terária na Universidade Heinrich Heine, em Düsseldorf (Alemanha), de 1994 a 2010. Foi professor visitante nos EUA, em Israel e na França, entre outros países. Publicou diversos livros e numerosos artigos, concentrando-se sobretudo em autores alemães dos séculos XVIII e XX e autores judeus-alemães. Desde 2001, é Presidente da Sociedade Internacional Walter Benjamin (IWBG). na Universidade Federal de Ouro Preto. Seus estudos concentram-se nas áreas de Filosofia da Arte e Filosofia da História. Fez doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais, com tese sobre Walter Benjamin, e pós-doutorado na Universidade Livre de Berlim. Publicou (em conjunto com outros autores): O cômico e o trágico (7Letras, 2008), Deslocamentos na arte (ABRE, 2010), Imagem, imaginação, fantasia (Relicário, 2014), Artefilosofia (Civilização Brasileira, 2015).
BENJAMIN UMA BIOGRAFIA
UMA BIOGRAFIA
TRADUTOR: Romero Freitas é professor
WALTER
BENJAMIN
BERND WITTE foi professor de Teoria Li-
o fim de julho de 1932, pouco antes do seu aniversário de 40 anos, ele voltou de Ibiza até a França para pôr em prática, em um hotel em Nice, o plano já várias vezes considerado: deixar a vida voluntariamente. Em uma carta de 26 de julho a Scholem, ele fala ‘do profundo cansaço’ que lhe acometeu. Seus trabalhos seriam ‘vitórias em pequena escala, mas a elas correspondem derrotas em grande escala’. Um dia após esse balanço desesperado, ele elaborou o seu testamento, no qual deixou a Scholem todos os seus manuscritos, nomeou Egon Wissing por carta como seu executor testamentário e escreveu curtas cartas de despedida a Ernst Schoen, Franz Hessel e Jula Cohn, as pessoas de quem ele se sentia mais próximo. Na carta a Jula lê-se: ‘Você sabe que uma vez eu te amei muito. E mesmo na hora da morte a vida não oferece dádivas maiores do que aquelas que lhe conferiram os momentos do sofrimento por você’. Por que ele não realizou o ato, após esses anúncios e esses preparativos minuciosos, permanece incerto. Mesmo assim, alguma explicação pode ser oferecida talvez pela frase final de um curto artigo escrito um ano antes, na qual ele constata resignado: ‘O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida seja valiosa, mas antes do sentimento de que o suicídio não vale a pena’.”
WALTER
Marcia Tiburi Filósofa e escritora
A “
Bernd Witte
No entanto, por respeito a quem um dia viveu o que viveu, o biógrafo Bernd Witte não apaga as brumas que envolvem seu personagem e o aprisionam agora ao cenário fantasmático do tempo. Poderá a sua leitura servir para algum tipo de libertação para os nossos tempos novamente tão sombrios?
ISBN 978-85-8217-987-1
9 788582 179871
www.autenticaeditora.com.br
Tradução: Romero Freitas
Bernd Witte
É sabido que Benjamin morreu muito cedo, em 1940, na cidade de Portbou, fronteira da Espanha com a França, em um momento desesperador. Não é tão fácil imaginar que, bem antes, ele tivesse passado alguns meses em um campo de concentração. Se é difícil imaginar seus amores, mais difícil ainda é imaginar sua perplexidade quando, na juventude, perdeu um amigo, o poeta Heinle, que respondeu com suicídio aos horrores da guerra naquele lugar tão especial que era o Lar do Espaço de Conversação, onde convivia com outros amigos. Desde Infância berlinense até as teses Sobre o conceito de história, Benjamin é apresentado no contexto das intensidades, dos dissabores, das esperanças, da crítica e da autocrítica, das relações humanas em tempos tão difíceis como aquele entreguerras em que ele viveu e escreveu. Assim,entre a vida e a obra de Benjamin, Witte vai costurando com um fio vermelho os olhares, os objetos, as descrições, as impressões, as cartas, os momentos vividos, os livros lidos, as línguas aprendidas, o materialismo histórico, a religião, as preocupações do pai de família que em tudo se assemelhava a Kafka – sobretudo ao seu fracasso, o todo das ideias de Benjamin –, como se pudéssemos ver no grande pensador alguém que conhecemos. Alguém que um dia possuiu o Angelus Novus de Klee, que em um momento tenso deixou tudo para escrever um livro sobre Baudelaire, alguém que vivia encantado com o trabalho das passagens de Paris.
OUTROS LIVROS DA FILŌ FILŌ A alma e as formas Ensaios Georg Lukács A aventura da filosofia francesa no século XX Alain Badiou Ciência, um Monstro Lições trentinas Paul K. Feyerabend Em busca do real perdido Alain Badiou A ideologia e a utopia Paul Ricœur O primado da percepção e suas consequências filosóficas Maurice Merleau-Ponty A teoria dos incorporais no estoicismo antigo Émile Bréhier A sabedoria trágica Sobre o bom uso de Nietzsche Michel Onfray Se Parmênides O tratado anônimo De Melisso Xenophane Gorgia Bárbara Cassin
O tempo que resta Um comentário à Carta aos Romanos Giorgio Agamben
FILŌBATAILLE O erotismo Georges Bataille A experiência interior Seguida de Método de meditação e Postscriptum 1953 Georges Bataille A literatura e o mal Georges Bataille A parte maldita Precedida de A noção de dispêndio Georges Bataille Teoria da religião Seguida de Esquema de uma história das religiões Georges Bataille
FILŌBENJAMIN O anjo da história Walter Benjamin
A união da alma e do corpo em Malebranche, Biran e Bergson Maurice Merleau-Ponty
Baudelaire e a modernidade Walter Benjamin
FILŌAGAMBEN
Imagens de pensamento Sobre o haxixe e outras drogas Walter Benjamin
Bartleby, ou da contingência Giorgio Agamben seguido de Bartleby, o escrevente Herman Melville A comunidade que vem Giorgio Agamben O homem sem conteúdo Giorgio Agamben Ideia da prosa Giorgio Agamben
Origem do drama trágico alemão Walter Benjamin Rua de mão única Infância berlinense: 1900 Walter Benjamin
FILŌESPINOSA
Introdução a Giorgio Agamben Uma arqueologia da potência Edgardo Castro
Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar Espinosa
Meios sem fim Notas sobre a política Giorgio Agamben
Espinosa subversivo e outros escritos Antonio Negri
Nudez Giorgio Agamben
Princípios da filosofia cartesiana e Pensamentos metafísicos Espinosa
A potência do pensamento Ensaios e conferências Giorgio Agamben
A unidade do corpo e da mente Afetos, ações e paixões em Espinosa Chantal Jaquet
FILŌESTÉTICA O belo autônomo Textos clássicos de estética Rodrigo Duarte (Org.) O descredenciamento filosófico da arte Arthur C. Danto Do sublime ao trágico Friedrich Schiller Íon Platão Pensar a imagem Emmanuel Alloa (Org.)
FILŌMARGENS O amor impiedoso (ou: Sobre a crença) Slavoj Žižek Estilo e verdade em Jacques Lacan Gilson Iannini Introdução a Foucault Edgardo Castro Kaf ka Por uma literatura menor Gilles Deleuze Félix Guattari Lacan, o escrito, a imagem Jacques Aubert, François Cheng, Jean-Claude Milner, François Regnault, Gérard Wajcman O sofrimento de Deus Inversões do Apocalipse Boris Gunjevic Slavoj Žižek Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan Philippe Van Haute Tomas Geyskens
ANTIFILŌ A Razão Pascal Quignard
FILŌBENJAMIN
Bernd Witte
WALTER BENJAMIN Uma biografia
TRADUÇÃO
Romero Freitas
Copyright © 1985 by Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH, Reinbek bei Hamburg Copyright © 2017 Autêntica Editora Título original: Walter Benjamin Todos os esforços foram feitos no sentido de encontrar os detentores dos direitos autorais das obras que constam deste livro. Pedimos desculpas por eventuais omissões involuntárias e nos comprometemos a inserir os devidos créditos e corrigir possíveis falhas em edições subsequentes. Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
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Gilson Iannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); Carla Rodrigues (UFJR); Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUC-Rio); Ernani Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco (UFRJ); João Carlos Salles (UFBA); Monique David-Ménard (Paris); Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind (UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP); Slavoj Žižek (Liubliana); Vladimir Safatle (USP)
revisão
Aline Sobreira capa
Alberto Bittencourt (sobre imagem retirada de goo.gl/CqmWDe; fotógrafo anônimo) diagramação
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Witte, Bernd Walter Benjamin : uma biografia / Bernd Witte ; tradução de Romero Freitas. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2017. (Filô/ Benjamin) Título original: Walter Benjamin ISBN 978-85-8217-987-1 1. Benjamin, Walter, 1892-1940 2. Benjamin, Walter, 18921940 - Literatura 3. Escritores alemães - Século 20 - Biografia I. Título. 16-05840
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07. Prefácio à edição brasileira 11. Infância e juventude em Berlim (1892-1912) 21. Movimento da Juventude, judaísmo, filosofia da linguagem (1912-1917) 35. Crítica de arte no espírito do romantismo (1917-1923) 55. Pessimismo histórico e estética anticlássica (1923-1925) 71. Paris – Berlim – Moscou (1926-1929) 89. Crise e Crítica (1929-1933) 107. Imigração: a teoria da arte não aurática (1933-1937) 123. Passagens (1937-1939) 139. O fim da história (1940) 145. Notas 159. Créditos das imagens
Prefácio à edição brasileira Marcia Tiburi
Quem escreve sobre Benjamin, sente-se impelido ao fracasso. Estar à altura da beleza e, ao mesmo tempo, do caráter trágico do que ele deixou como obra e do que viveu pessoalmente não é tarefa fácil. Contar a história de vida de alguém é difícil, mais ainda a vida de um filósofo da qual as ideias e os conceitos, bem como a busca do método, seja talvez a parte mais fundamental. E mais ainda quando a biografia tornou-se ela mesma uma mercadoria. Ora, uma biografia não é apenas uma história, ela é feita de evidências e escolhas, de sutilezas e mistérios. A biografia é, no mundo dos textos, o mais comprometido com questões éticas tanto da parte de quem narra quanto da de quem se torna personagem. O respeito aos traços representativos, aos sinais pessoais e impessoais que estruturam a vida de alguém, são sinal de um narrador que tenta revelar o que, por muitos motivos, deveria ser conhecido. É assim com esta biografia de Benjamin escrita por Bernd Witte. O desejo de contar atravessa o puro registro do vivido, nos permitindo chegar muito perto do que podemos imaginar como a experiência de Benjamin. O narrador é uma ponte para seu personagem. Tomado pela generosidade como uma categoria ética, a biografia surge como um retrato da alma de quem viveu aquilo que está a ser contado. Ainda que o texto de Bernd Witte corra tão fácil, não deve ter sido nada fácil escrevê-lo. Como seria possível contar bem a história de Benajmin sem ferir a delicadeza e a dor que a constituíram? Ora, a história de Benjamin sempre será uma história mal contada. O cuidado de Witte tende a ultrapassar isso, ao manter em cada parágrafo, e mesmo em cada frase, a criação filosófica de Walter Benajmin na centralidade de toda a sua vida. O que Witte alcançou foi um retrato, no melhor sentido da imagem dialética, da obra de arte como fotografia 7
e da fotografia como inconsciente óptico, tal como aprendemos com o próprio Walter Benjamin. Walter Benjamin é o filósofo cuja obra não se separa em momento algum de sua biografia. Mesmo quem não goste muito de filosofia de um modo geral ou não se interesse pelos aspectos metodológicos específicos ao pensamento de Benjamin, se encantará com o personagem, a criança, o jovem, o homem adulto, o judeu, o fugitivo, o amante, o amigo, o escritor e, acima de tudo, o grande pensador que ele foi. Benjamin era muito mais do que podemos supor. A biografia de Witte nos ajuda a olhar mais de perto para a delicadeza e as dificuldades que levaram Benjamin a concluir certas obras e deixar outras em tom de mistério na profusão de sua escrita. Benjamin em sua complexidade e em sua simplicidade, ao mesmo tempo. É isso o que esta biografia nos lega ao nos fazer pensar no já sabido e encontrar o inimaginável. É mais fácil saber que Benjamin era um alemão que amava Paris e que foi na base de Proust que escreveu suas memórias de infância, do que ter conhecimento dos programas de rádio que ele produziu no questionamento sobre a aura da obra de arte. É nesse contexto que Witte nos ajuda a compreender as circunstâncias emocionais, familiares, sociais, econômicas nas quais Benjamin pode escrever sua obra. É sabido que Benjamin morreu muito cedo, em 1940, na cidade de Portbou, fronteira da Espanha com a França, em um momento desesperador. Não é tão fácil imaginar que, bem antes, ele tivesse passado alguns meses em um campo de concentração. Se é difícil imaginar seus amores, mais difícil ainda é imaginar sua perplexidade quando, na juventude, perdeu um amigo, o poeta Heinle, que respondeu com suicídio aos horrores da guerra naquele lugar tão especial que era o Lar do Espaço de Conversação, onde convivia com outros amigos. Desde Infância berlinense até as teses Sobre o conceito da História, Benjamin é apresentado no contexto das intensidades, dos dissabores, das esperanças, da crítica e da autocrítica, das relações humanas em tempos tão difíceis como aquele entreguerras em que ele viveu e escreveu. Assim, entre a vida e a obra de Benjamin, Witte vai costurando com um fio vermelho os olhares, os objetos, as descrições, as impressões, 8
as cartas, os momentos vividos, os livros lidos, as línguas aprendidas, o materialismo histórico, a religião, as preocupações do pai de família que em tudo se assemelhava a Kafka – sobretudo ao seu fracasso, o todo das ideias de Benjamin –, como se pudéssemos ver no grande pensador alguém que conhecemos. Alguém que um dia possuiu o Angelus Novus de Klee, que em um momento tenso deixou tudo para escrever um livro sobre Baudelaire, alguém que vivia encantado com o trabalho das passagens de Paris. No entanto, por respeito a quem um dia viveu o que viveu, o biógrafo Bernd Witte não apaga as brumas que envolvem seu personagem e o aprisionam agora ao cenário fantasmático do tempo. Poderá a sua leitura servir para algum tipo de libertação para os nossos tempos novamente tão sombrios?
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Infância e juventude em Berlim (1892-1912)
Walter Benjamin descreveu a si mesmo, nas notas autobiográficas da Crônica berlinense, como “criança burguesa bem-nascida”. Seu pai, Emil Benjamin, nascido em 1866, vinha de uma família de comerciantes estabelecida havia muito tempo na região do Reno e tinha passado a sua infância em Paris. Os ascendentes da mãe, Pauline, cujo nome de batismo era Schönflies, “haviam se estabelecido como comerciantes de grãos e de gado em Brandemburgo e Mecklemburgo”.1 Depois de 1871, quando Benjamin era criança, as famílias dos dois avós se mudaram para a vibrante capital do recém-criado Reich, e moravam na mesma rua do bairro Alten Westen. Os pais de Benjamin também se fixaram após o seu casamento, no ano 1891, naquela região a sudoeste do Tiergarten e do jardim zoológico, na qual, em 15 de julho de 1892, nasceu o seu filho mais velho, registrado como Walter Benedix Schönflies Benjamin. Três anos mais tarde veio ao mundo o irmão mais novo, Georg, e em 1901 a irmã, Dora.2 Emil Benjamin havia conquistado “sua fortuna, que durante algum tempo era grande”, como leiloeiro e sócio na Casa de Leilões de Arte Lepke, na Kochstraße. Depois de se afastar da participação ativa nessa empresa, investiu o seu capital “especulativamente” em uma série de pequenas sociedades, entre outras, uma Casa de Produtos Médicos, uma Construções S.A. e uma Central de Distribuição de Vinhos. Desde 1910 ele era membro do consórcio que dirigia o Palácio de Gelo.3,4 Ainda que essas ligações comerciais do pai não fossem percebidas pelo filho, era impossível não se ver os atributos sociais da riqueza familiar. Na Crônica berlinense, Benjamin recorda detalhadamente a atmosfera da residência na Nettelbeckstraße, número 24. Entregadores de mantimentos e babás francesas, residências de verão em Potsdam e Neubabelsberg, aulas particulares anos seguidos em um pequeno grupo 11
de crianças “dos círculos superiores” valiam para a criança como sinais da proeminência social da sua família, bem como os numerosos eventos sociais na casa dos pais, cujo aparato de porcelana o filho ainda descreveria, 30 anos depois, com o assombro do colecionador apaixonado e do materialista histórico, mesclado de asco e respeito.5 Nas imagens mnemôniA família Benjamin: Emil e Pauline Benjamin cas da Infância berlinense: 1900, (nascida Schönfließ), com as crianças Walter (3 que Benjamin começou a anos) e Georg (8 meses). escrever no seu quadragésimo ano de vida, ele procurou rastrear, na proteção de sua infância grão-burguesa, o germe da aniquilação na qual o século XIX deveria perecer, em meio à guerra e à inflação. Os breves textos em prosa que constituem o livro, na forma de um mosaico, são menos documentos históricos do que profecias retrospectivas que já sintetizam o ponto de vista do materialista histórico de 1932 nos impulsos inconscientes da infância. O mobiliário da era guilhermina, que enchia as grandes residências da sua família, torna-se para a criança uma segunda natureza maligna, que não lhe permite ser ela mesma: ela será sempre semelhante àquilo que a rodeia, ao mundo da vida do final do século XIX, dominado pela administração das mercadorias, mas em relação à sua “própria imagem” ela será sempre mais dessemelhante. Benjamin registrou essa autoalienação de modo arquetípico na descrição de duas fotografias, sendo uma a que se assemelha àquela cuja feitura relata o Diário para Wengen, de 1911, e que o mostra como um menino de 10 anos, com o seu irmão, Georg, no “frescor de verão” de uma paisagem montanhosa artificial. “Para onde quer que eu olhasse, via-me rodeado por quebra-luzes, almofadas e pedestais que cobiçavam minha imagem como as sombras do Hades cobiçam o sangue do 12
animal a ser sacrificado. No fim me apresentavam como oferenda a um cenário dos Alpes grosseiramente pintado, e minha mão direita, que tinha de erguer um chapeuzinho com penacho, punha a sua sombra sobre as nuvens e os cumes congelados da tela. Mas o sorriso angustiado na boca do pequeno alpino não é tão desolador como o olhar que, a partir do rosto infantil, à sombra da palmeira falsa, mergulha em mim. Esta vem de um daqueles ateliês que, com seus banquinhos e tripés, tapeçarias e cavaletes, têm algo de alcova e câmara de tortura. Eu estou ali em pé, com a cabeça descoberta; na minha mão esquerda, um poderoso sombreiro, que deixo cair com graça estudada. [...] Mas estou desfigurado pela semelhança com tudo aquilo que me circunda aqui. Eu vivia como um molusco na concha, no século XIX, que agora está oco diante de mim, como uma concha vazia”.6 Esse texto, que Benjamin qualifica como autorretrato fotográfico, aponta para a perspectiva sob a qual o próprio autor via a sua infância. De um modo extremamente antipsicológico e anti-idealista, ele fundamenta a formação da identidade da criança no espaço socialmente condicionado da sua vida cotidiana. Arquitetura e mobiliário da era guilhermina surgem sempre de novo na Infância berlinense como cifra para aquela falsa “segunda natureza”. Na artificialidade da decoração, que preparava o sujeito fotografado para o aparelho, de modo que antes mesmo de ser exilado na chapa fotográfica ele já caia na rigidez cadavérica, Benjamin encontrou a metáfora mediante a qual ele podia refletir sobre a correlação entre a ausência de consciência e a autoalienação da época guilhermina, e da criança que nela crescia. O mesmo vale para o medo e a tristeza que essa situação trazia em si, para o indivíduo e para a coletividade. Por isso, revela-se inteiramente característico do método do antirromance de formação materialista de Benjamin o fato de que a segunda imagem que ele descreve não é de forma alguma um retrato de si mesmo. Já dois anos antes da redação do texto autobiográfico ele empregou frases quase idênticas em uma reflexão sobre uma fotografia de Franz Kafka aos 5 anos de idade.7 A autocitação não explicitada ao mesmo tempo esconde e revela a identificação de Benjamin com o autor praguense, que, vindo como ele de uma família judia de comerciantes, encontrou na escrita a força para a evasão de seu meio original. 13
O iniciado percebe que no texto da Infância berlinense não se trata de assunto privado, mas antes da constituição social do indivíduo-criança no meio judaico grão-burguês antes da virada do século. A ambivalência que se liga às figuras deformadas dessa infância só se interrompe nos raros momentos em que a criança se torna ela mesma, na medida em que ela escapa à sua classe. Nesse sentido se interpreta a lerdeza do rapazinho, seu “hábito de sempre ficar para trás cerca de meio passo. Walter Benjamin e seu irmão Georg como Era como se eu não quisesse de “alpinos”, por volta de 1900. modo algum formar uma linha de frente, mesmo que fosse com minha própria mãe”. Essa forma de protesto contra a própria origem social torna-se rica em associações se for relacionada com a primeira tentativa de escrita independente: “Os pobres: para as crianças ricas da minha idade, eles só existiam como mendigos. E foi um grande progresso do conhecimento quando pela primeira vez comecei a compreender a pobreza, na ignomínia do trabalho malpago. Isso aconteceu em um pequeno escrito, talvez o primeiro que escrevi apenas para mim mesmo. Ele tinha a ver com um homem que distribuía folhetos e com as humilhações que ele sofria, da parte de um público que não tinha nenhum interesse por esses folhetos”.8 Quando descreve o jogo de esconde-esconde da criança pequena, Benjamin perscruta a conexão entre revolta, busca de expressão e formação de identidade, em níveis de experiência ainda mais arcaicos: “A mesa da sala de jantar, debaixo da qual se acocorou, transforma-a em ídolo num templo em que as pernas torneadas são as quatro colunas. E atrás de uma porta ela própria é porta, recoberta por 14
ela, máscara pesada, mago que enfeitiçará todos os que entrarem desprevenidos. Por nada deste mundo pode ser descoberta. [...] Por isso, eu expulsava com um grande grito o espírito demoníaco que assim me transformava quando quem procurava me apanhava – nem sequer esperava por esse momento, antecipavame com um grito de libertação”.9 A visão de mundo mágica, que a criança funde sem distanciamento com seu meio ambiente vivifiFranz Kafka, com cerca de 5 anos de idade. cado de modo animístico, rompe-se pela primeira vez através dessa autoafirmação do grito. Essa primeira exteriorização do eu, ainda não articulada, vale para aquele que se lembra como promessa alegórica da autolibertação do ser decaído sem consciência num mundo ruim, tal como ele o encontra na escrita. Desse modo, constrói-se a criança como escritor na imagem dialética; o escritor assegura-se, na infância, da origem de sua própria atividade. Walter Benjamin conservou sempre extrema discrição a respeito das circunstâncias de sua vida pessoal. O autor que se vangloriava de “nunca usar a palavra ‘eu’” em seus escritos também não revela neles nada sobre sua família, sobre seus pais ou os irmãos mais novos.10 Apenas suas memórias de infância constituem aqui uma notável exceção. Nelas a “figura de poder e grandeza” do pai aparece em conexão com o telefone, que em torno de 1900 havia surgido em cortejo triunfal, e que o ajudava a fazer as suas transações na bolsa. As “ameaças e palavras tonitruantes” que ele então lançava contra pessoas socialmente mais frágeis mostravam-no como 15
soberano arcaico que havia posto a mais nova técnica a serviço de seus negócios.11 Nessa conjuntura, tornam-se visíveis as estruturas míticas da ordem social patriarcal sob as quais a criança sofre, impotente, e que podem valer como a origem daquela relação extremamente tensa que Benjamin teve com seu pai ao longo de sua vida. A imagem da mãe é diferente. Sua força curativa e consoladora servia de contrapeso à autoridade punitiva do pai quando ela ia até a cama da criança, que frequentemente estava doente, para lhe contar histórias: “A dor era um dique que só a princípio resistia à narrativa; mais tarde, quando esta ficava mais forte, era engolida pelo abismo do esquecimento. As carícias preparavam o leito dessa torrente. Eu gostava delas, porque da mão da mãe gotejavam já as histórias que depois iria ouvir de sua boca. Foram elas que me revelaram o pouco que vim a saber sobre a minha família. Evocava-se a carreira de um antepassado remoto, as regras de vida de um avô”.12 A ternura com a qual o filho relembra a sua relação infantil com a mãe se intensifica pelo fato de que ele atribui a ela os poderes arcaicos do contador de estórias, a capacidade de transmitir experiências e curar doenças, da qual ele faz o luto no ensaio “O narrador”, de 1936, considerando-a como há muito tempo perdida na modernidade. Nos seus fragmentos de lembranças, Benjamin não reproduz simplesmente a divisão de papéis da família nuclear regida de modo patriarcal. Também não extrai deles nenhuma chave psicológicosocial a respeito de sua socialização na primeira infância. Eles antes lhe surgem ordenados como emblema no qual a experiência social da criança revela-se idêntica à do adulto que a rememora na escrita. Em nenhum lugar isso é mais claro do que no texto com o título “Sociedade”. Nessa reinterpretação do motivo de abertura de Em busca do tempo perdido, de Proust, o ritual mundano da recepção vespertina na villa dos pais desmascara a fragilidade das relações familiares. O “monstro”, como o faro aflito da criança identifica a sociedade, lança no lixo os preparativos vespertinos que pareciam voltar-se para uma festa da paz e se estabelece no coração da família. A criança no seu quarto isolado é impotente contra os demônios da sociedade de consumo, que se esbaldam sobre a mesa decorada 16
para outros propósitos. Mas ela pressente – algo que no adulto se torna certeza – de onde o monstro tira a sua força destrutiva: “E como o abismo que lançou isso era o abismo de minha classe, assim nessas tardes eu tive contato com ela pela primeira vez”.13 O pai a confrontava com armas que eram do arsenal dela própria. “A camisa do fraque, limpíssima”, aparecia à criança como “tanque de guerra”, o pai, como um “guerreiro”, que ia à luta contra o monstro. Aqui também se contrapunha a imagem pacífica da mãe à imagem daquele que assumia a luta pela existência. Desde o início ela era envolvida no brilho das cores que emanavam das pedras dos seus broches. Ao leitor que as encontra em outro texto da Infância berlinense como alegoria da arte no sentido da expressão “reflexo colorido da vida”, de Goethe, a figura da mãe lhe será mostrada na mesma luz reconciliadora que a circunda no texto “A febre”. A relação ambivalente da criança com sua família se encontra novamente no seu relacionamento com a cidade de Berlim. Por um lado, Benjamin se vê durante a sua infância como um prisioneiro dos bairros Alten e Neuer Westen: “Meu clã habitava então esses dois bairros, com uma atitude que era um misto de teimosia e autoconfiança, e que fazia deles um gueto que ele contemplava como o seu feudo. Nesse bairro de proprietários eu permaneci fechado, sem saber de outro”.14 A partir do olhar retrospectivo, esse lugar – cuja arquitetura projetada “pelos últimos alunos de Schinkel” conservava
Wrangelbrunnen [Fonte de Wrangel], Tiergarten, Berlim, final do século XIX.
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ainda, nas palavras de Franz Hessel, “os últimos vestígios da Grécia prussiana”15 – lhe surgirá, todavia, como refúgio de uma forma de vida burguesa e humanista à qual a criança atribui a sua sorte e a sua segurança, e que, para o adulto que viveu a sua destruição, transformou-se numa distante utopia, através da imagem do jardim no qual os pomos de ouro das hespérides amadureciam. Aquilo que na infância só se pode reconstruir através de autointerpretações posteriores manifestou-se no tempo de escola nos primeiros textos transmitidos e nos primeiros comportamentos documentáveis. Benjamin frequentava, desde a Páscoa de 1902, a divisão ginasial da Escola Imperador Frederico, na Savignyplatz. Antes ele havia tido exclusivamente aulas particulares, começando em um pequeno grupo de filhos de pais ricos. A Crônica berlinense menciona, como testemunho da condição elitizada desse grupo, o nome de duas colegas de origem nobre e grão-burguesa, Ilse Ullstein e Luise von Landau. Depois, ele foi preparado para entrar na escola de segundo grau através de aulas particulares de um professor secundário. Entretanto, o jovem que cresceu protegido e que adoecia com facilidade visivelmente lidava mal com o sistema de educação pública, pois após três anos os pais o tiraram da escola secundária normal e o enviaram para o internato rural Haubinda, na Turíngia, onde ficaria quase dois anos e, aparentemente, repetiria um ano. Somente em 1907 ele voltaria à escola Imperador Frederico e faria lá, na Páscoa de 1912, aos 20 anos, o exame final do ensino médio. No mesmo ano, a família mudou-se para o bairro de mansões chamado Grünewald. Na Delbrückstraße, número 23, “Emil Benjamin comprou uma villa que parecia um castelo [...]. Moravam agora em um andar espaçoso com área de inverno coberta e tinham ao lado um belo jardim”.16 A escola secundária guilhermina, na qual, nos primeiros anos, “palmatória, mudar de lugar e deixar de castigo” eram práticas punitivas comuns, deixou o aluno Benjamin horrorizado e perplexo. Ainda em suas lembranças escritas 30 anos depois, “a moldura estreita com detalhes em estanho acima das salas de aula” surgia como “emblema dos prisioneiros”, que lhe abria os olhos para a constituição da escola e da sociedade da virada do século.17 Mais ainda que as medidas coercitivas 18
de natureza não pedagógica, chocava-lhe o fato de estar bloqueado na massa dos seus colegas: “Eu sempre odiei essas escadas quando eu tinha de subi-las no meio do rebanho, uma selva de panturrilhas e pés na minha frente”.18 Nessas linhas fala o desgosto físico de quem costuma caminhar sozinho, ao se ver como membro de um coletivo. Doença, atrasos, desatenção são as tentativas impotentes da criança para escapar dessa coação. Quando ela aprendeu a se articular, dessa recusa instintiva do pertencimento a uma classe nasceu a consciência do valor da própria individualidade. Assim, o estudo de Píndaro, exigido no plano de aulas da escola secundária humanista, induziu-o a escrever seu “primeiro ensaio filosófico”, cujo título, “Pensamentos sobre a nobreza”, pode ser um sinal das ambições elitistas do seu autor. Da temporada de dois anos em Haubinda irradiam impulsos decisivos para o posterior desenvolvimento do espírito e do caráter de Benjamin. Nesse internato escolar rural, que em 1901 foi fundado por Hermann Lietz para estudantes do segundo grau, e que desde 1904, sob a direção de Paulus Geheeb e Gustav Wyneken, procurava pôr em prática o programa de reforma escolar idealizado por este último, ele descobriu pela primeira vez que o seu idealismo era levado a sério, que professores e alunos se relacionavam como parceiros livres, no mesmo nível e com os mesmos objetivos espirituais. A vida nessa comunidade escolar idealista o marcou até os anos de guerra e fez dele um defensor entusiástico da reforma escolar. Na revista estudantil O Começo, que difundia as ideias de Gustav Wyneken e era editada em formato hectográfico por Georges Barbizon (isto é, Georg Gretor) desde 1908, ele publicou, no verão de 1910, os seus primeiros trabalhos literários, que, ainda não tendo forma ou conteúdo independentes, já permitem pressentir a consciência do seu futuro papel social como outsider intelectual. Assim, pode-se ler o seu primeiro texto publicado, um poema que procura delinear em metáforas tradicionais a figura do poeta, como o esboço de uma figura de identificação: Vê, junto à margem do monstruoso abismo, Aí percebes alguém despreocupado, Entre a noite negra e a vida cheia de cores. 19
Ele está em quietude imóvel, Solitário, separado da estrada da vida.19
Benjamin fundou, aos 16 anos, com Herbert Belmore e outros colegas, um círculo de discussões e leituras no qual semanalmente dramas da literatura universal eram discutidos e lidos em voz alta à noite. O fato de que também aí as ideias da reforma escolar estavam no centro é demonstrado pelo ensaio “A bela adormecida”, que Benjamin publicou no segundo número de O Começo, com o pseudônimo “Ardor”, que usou em todos os textos do tempo de escola e que dá o tom do seu engajamento. Nele, figuras da literatura dramática clássica e moderna eram interpretadas como precursoras da “era da juventude”, que Benjamin via chegar. “Mas a juventude é a bela adormecida que dorme e não percebe o príncipe que se aproxima para libertá-la. E para que a juventude desperte, para que ela tome parte na luta que se travará por ela, para isso quer contribuir a nossa revista com todas as suas forças”.20 Nos anos seguintes, os esforços intelectuais e organizacionais de Benjamin estiveram quase que exclusivamente a serviço dessa tarefa. Neles o solitário idealista acreditava encontrar o sentido de sua ação social e o abrigo de uma comunidade.
O colégio Kaiser-Friedrich, em Berlim, Charlottenburg.
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