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ENTREVISTA BEM HUMORADA: LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
ENTREVISTA
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
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ENTREVISTA BEM HUMORADA: LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
Ele diz que não é ele quem fala pouco, são os outros que falam demais. Luís Fernando Veríssimo é escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista de televisão, autor de teatro e também tem uma veia musical. Em seus textos, o escritor diz muito, mas pessoalmente, ele é conhecido por ser introvertido e até um pouco tímido. Filho de um dos maiores escritores do país, Érico Veríssimo, Luis Fernando construiu uma trajetória tão brilhante quanto a de seu pai e conquistou o público, não com romances, e sim com crônicas e histórias cheias de ironias e bom humor. Ele costuma dizer que começou a escrever tarde, pois foi com 31 anos que começou a trabalhar como jornalista no jornal Zero Hora. Logo conquistou uma coluna assinada com seu nome e, em 1973, seu primeiro livro “O Popular”, uma coletânea de textos já publicados nos jornais onde trabalhava. Entre as suas obras mais conhecidas estão “Ed Morte e outras histórias”, “Comédias da vida privara” e “O Analista de Bagé”. O autor escreve ainda para os jornais Zero Hora, O Estado de São Paulo e O Globo, e é criador dos personagens “As Cobras”, cujas tiras de quadrinhos são publicadas em diversos jornais. Luis Fernando Veríssimo concedeu sua maior entrevista para um grupo de jornalistas, tanto em número de perguntas como de respostas. De quebra driblou, com brilho, não apenas o Bolsonaro como a malícia dos entrevistadores. Enfim, todos saímos ganhando, exceto o governo. Esta entrevista foi feita em janeiro de 2020, antes da pandemia, mas abaixo dela publicamos parte de outra, feita em meados de 2020, já durante a pandemia.
Ayrton Centeno – Lembro que, lá na virada do milênio, no auge do neoliberalismo, você disse que estávamos entrando em um novo século só não se sabia qual. E agora, já descobriu?
Luis Fernando Veríssi-
mo – A gente só conhece o futuro quando ele chega, e aí não é mais futuro, é presente, e irreversível. Quem diria que o século em que estávamos entrando, no Brasil, era o 19? Ernani Ssó – Quando Bolsonaro disse “I love you” ao Trump não deveria estar vestido de rosa, conforme orientação da ministra Damares? Veríssimo – Dizem que o mais constrangedor foi o Bolsonaro pedir uma mecha do cabelo do Trump e oferecer, em troca, a Petrobras. Centeno – Além do amor trumpiano, não lhe parece contraditório que o presidente, um homofóbico explícito, insista em tiradas como aquela quando disse querer “continuar transando” com o Alexandre Frota ou declarar que “casou errado” com o vice Mourão e deveria ter “casado” com o príncipe? Veríssimo – O presidente estava obviamente usando linguagem figurada, como quando afirmou que mataria um filho que aparecesse namorando um bigodudo, ou o mandaria para um exílio na nossa embaixada em Washington. Só não ficou claro o que o presidente tem contra bigodudos. Ernani – A propósito, é verdade que o Carlucho se tratou com o Analista de Bagé? O senhor teve acesso ao diagnóstico? Veríssimo – O Analista aceitou analisar o Carlucho e o recebeu com um joelhaço, causando inveja em grande parte da população. Fraga – Pra fazer arminha, Bozo usa um marco evolutivo, o polegar opositor, e o indicador, o dedo mais acusatório de todos. Como o Analista de Bagé interpretaria esse gesto? Veríssimo – O dr. Freud diria que tem alguma coisa a ver com a tal inveja do pênis. Santiago – No embalo em que vamos, achas que chegaremos a um estado teocrático evangélico com obrigatoriedade de saias maria-mijona para mulheres e proibição de Darwin nas escolas? Veríssimo – Deus criou o mundo em seis dias e aproveitou a folga do sétimo para calcular quanto as igrejas lucrariam não tendo que pagar impostos, não Lhe sobrando tempo para fazer a Terra redonda
em vez de plana, como era no projeto original. Se você não acredita nisso prepare-se porque a Inquisição vem aí. Fraga – Bozonaro morre (eba!) e, por engano qualquer na passagem da alma pro além, ele vai pro céu. Imagine o seguinte: como Ele receberia ele? O que Bozonaro ouviria de Deus? Veríssimo – Deus cobraria do presidente: “Que ministério é esse, seu Bolsonaro? Assim, nem Eu posso ajudar, o que dirá o dr. Olavo”. Ernani – Que medidas podemos tomar para que o reino miliciano-evangélico saia do Velho Testamento e chegue, pelo menos, ao Novo? Veríssimo – Não sei qual seria a vantagem. O Velho Testamento tem pelo menos personagens mais interessantes e variados. O Novo é só Jesus, Jesus, Jesus… Enjoa. Fraga – Vamos supor o clássico clichê com o Bozonaro: que um dia ele fosse, de espontânea vontade, pruma ilha deserta. Que livros, discos e filmes tu achas que o deprimente da república levaria? Veríssimo – Gibis do Capitão América. Ernani – Por falar em clichê, digamos que você, num desses acasos tão comuns nas anedotas, está em um elevador com o Bolsonaro, o Moro e o Guedes e a joça tranca entre dois andares. Você daria uma bolacha em cada um e depois alegaria escusável medo, surpresa ou violenta emoção? Veríssimo – O difícil seria decidir em quem bater primeiro. O Guedes não, porque só ele sabe como fazer o elevador funcionar, ou diz que sabe mas não conta? O Moro porque nem registraria o golpe, continuaria com a mesma cara de “o que é que eu estou fazendo aqui?” e saudade de Curitiba. Ou o Bolsonaro por qualquer razão? Centeno – Como um amante da natureza, você também segue aquela incrível receita presidencial – um dia sim, outro não – para preservar o meio-ambiente? Veríssimo – Dias intercalados para fazer amor, é essa a receita para preservar a natureza? Se der para acumular os dias de abstinência da semana para dar seis seguidas no sábado, sou a favor. E ainda dizem que este governo não tem ideias! Schröder – No teu entendimento, qual o ministro realiza melhor o projeto de gestão intelectual e técnica anunciada pelo Bolsonaro? Veríssimo – A compe-
tição entre ministros e secretários de governo é grande e fica difícil escolher o pior. No momento a liderança está entre o novo chefe da Funarte, segundo o qual o rock leva ao satanismo, e a conselheira cultural que disse que dois minutos de sexo bastam para impregnar uma mulher e mais do que isso causa dependência e socialismo. Centeno – Paulo Guedes declarou que os pobres não sabem poupar. Como mais da metade da população vive com até R$ 413 mensais, parece que o ministro da economia fez faculdade sempre colando na prova de matemática. Ou não? Veríssimo – Guedes tem razão. Se todos os pobres do Brasil poupassem seu dinheiro nossos problemas estariam resolvidos, sem necessidade de um ministro da Economia. Mas os pobres insistem em gastar seu dinheiro em supérfluos, como comida. Assim não dá. Ernani – Li que só nos primeiros 271 dias de governo, Bolsonaro, enquanto repetia o versículo bíblico de que devemos saber a verdade porque a verdade nos libertará, deu 360 declarações falsas ou inconsistentes. Se Bolsonaro fosse o Pinóquio, quantos metros de nariz teria? Veríssimo – O nariz do nosso Pinóquio estaria dando a volta na quadra. Centeno – Agora, falando mais sério: você algum dia na sua vida imaginou que o Brasil se transformaria nisso daí? Veríssimo – Sou otimista. Ainda acredito que acordaremos e descobriremos que foi tudo um sonho ruim, e estamos na Dinamarca. Centeno – Tem gente que acha que Bolsonaro e sua trupe nos prestaram um serviço: destamparam a face mais estúpida, sórdida e violenta do país que nunca havia aflorado até então. Você acha que devemos dizer “Obrigado” para ele? Veríssimo – A estupidez não é novidade no Brasil, temos uma história de ódio e violência que vai longe. A novidade é a estupidez com acesso às redes sociais. Fraga – Faz de conta que dá pra fazer um amigo secreto com o povo todo e tu, por imenso azar, é sorteado com o nome do Bozonaro. Considerando o clima natalino, que presente tu escolherias pra ele? E por que justamente esse? Veríssimo – Um presente de amigo secreto para o Bolsonaro? Se o preço não for empecilho, uma passagem de ida. Para onde? Se a passagem for só de ida, quem se interessa? Centeno – A sociedade brasileira está, como nun-
ca, polarizada. Amigos rompem relações, famílias se dividem. Pior é que pessoas que você pensava que conhecia, de repente, aparecem falando em terra plana e votando em Bolsonaro. Você viveu esta experiência? Veríssimo – Sei que já tem gente usando faixas na testa com os dizeres “Estou com o Bolsonaro”, “Sou contra o Bolsonaro” e “Não quero falar de política”, sem as quais nenhum tipo de vida social será possível. Centeno – Voltando àquela outra questão: lembra daquele clássico B de ficção científica, Invasores de corpos, do Don Siegel? Aquele onde as pessoas, ao dormirem, são substituídas por vagens vindas do espaço e se transformam em cópias sem empatia alguma. Não lembra algo familiar? Veríssimo – Estamos nos transformando em vagens. Hmmm… De certa maneira é um futuro menos assustador do que a reeleição do Bolsonaro com o Alexandre Frota como vice. Ernani – Se o governo Bolsonaro tem razão e a Terra é mesmo plana, o que será dos antípodas? Veríssimo – Pois é. E não explicam como os ursos brancos do Norte e os pinguins do Sul ainda não se encontraram no vortex da Terra plana, para confraternizar. Centeno – Durante muito tempo, nossas elites sentiram-se afrontadas por Marx, homem do século 19. Hoje, parece que se sentem afrontadas por Copérnico, homem do século 16, que comprovou que nosso planeta gira em torno do Sol. Qual será a próxima conclusão secular da ciência que iremos afrontar? Veríssimo – Dizem que Copérnico, Galileu, Darwin e todos os opositores do criacionismo serão banidos dos livros escolares brasileiros e substituídos pela nova teoria do evolucionismo militar, segundo a qual toda a raça humana começou como soldados rasos e foi subindo de grau. Santiago – Alguns humoristas da Alemanha avaliaram, no pós-Segunda Guerra Mundial, que as críticas mais folclorizaram o führer do que diminuíram sua imagem junto ao povão. Corremos também esse risco? Veríssimo – Há esse perigo. Não dou duas gerações para que “bolsonaro” vire adjetivo, como elogio ou danação, dependendo de quem o usar e da memória de cada um. Ernani – Todo governo mente, claro, mas o caso do reinado Bolsonaro é especial: os mentirosos não apenas mentem como parecem, eles próprios,
acreditar nas mentiras que dizem… Veríssimo – No caso do Bolsonaro o rei não só está nu como desfila com uma radiografia computadorizada do seu interior, e mesmo assim poucos, curiosamente, gritam “Ele está nu!” Fraga – Bozonaro tem uma fraquejada e pede aos cidadãos cartas com sugestões pra melhorar seu modo de governar o Brasil. Tu também fraquejas e atende ao pedido. Quais enviarias? Veríssimo – “Renuncia!” Katia Marko – Não tem um momento em que a gente olha ao redor e pensa que virou personagem de um novo gênero literário, a comédia de horror? Veríssimo – É verdade. E o pior é que ninguém nos perguntou se queríamos estar no elenco. Ernani – Como se explica que o anticomunismo tenha sobrevivido ao comunismo? Veríssimo – Vê-se tão poucos comunistas hoje em dia porque estão todos embaixo das camas dos anticomunistas, como urinóis esquecidos. Centeno – “Agora é guerra” você escreveu recentemente sobre a loucura que estamos vivendo. O problema é que, do outro lado, estão as milícias… Veríssimo – O nosso lado está com a razão mas o lado deles está com os AK 154, certo? Mas lembrem-se que o David não precisou de mais do que um estilingue. Fraga – Dá pra imaginar como são as reuniões do condomínio do Bozo, com ele presente? Qual seria
uma pauta típica? Veríssimo – Discutiriam, certamente, a contratação de porteiros mais confiáveis. Edgar Vasques – Será que a sala de reuniões lá no condomínio do capitão tem detector de metais? Veríssimo – Além de detector de metais e câmeras, a sala de reuniões do condomínio deve estar cheia de gravadores, esperando a hora de serem ouvidos na hipotética comissão que um dia investigará tudo isto, ao menos em sonho. Santiago – Millôr disse que nós, humoristas, somos muito importantes para sermos presos, porém não tão importantes para que nos soltem. E então? Veríssimo – Humoristas presos e humoristas soltos são uma tradição no Brasil desde o Barão de Itararé. Infelizmente, humoristas, jornalistas e intelectuais presos e mortos também são uma tradição, menor mas não menos lamentável. Entre presos e soltos ninguém deveria estar nessa estatística tétrica num país civilizado. Fraga – Quando o Bozo chega tarde em casa, por causa de um dia problemático no palácio, que tipo de desculpas ele daria pra Michele? Ou ele contaria tudo que se passa lá? Veríssimo – “O Congresso me sacaneando de novo, a imprensa não largando meu pé, e você pergunta se o meu dia foi bom, Michele? Você anda vendo seriado da TV americana demais, querida”. Schröder – Entre o Cabo Anselmo, o Tenente Bol-
sonaro e o General da Banda, quem representa melhor a tradição militar brasileira? Veríssimo – Sem dúvida o General da Banda, que nos impede de desesperar por completo dos nossos militares. Ernani – Bom, Bolsonaro não criou a estupidez que se vê do Oiapoque ao Chuí, apenas levou as pessoas a ostentarem ela na rua e baterem no peito com orgulho. A pergunta é: depois disso a espécie tem alguma defesa, apesar da pasta de dente com listinha? Veríssimo – Além de Shakespeare, do Taj Mahal e da pasta de dente com listinha eu teria uma enorme relação de justificativas para a passagem do homem sobre a Terra, começando pelo pudim de laranja e terminando pelo Charlie Parker. A espécie não é culpada pelos seus dementes e torturadores. Edgar Vasques – Como imagina que os historiadores descreverão este período que enfrentamos? Que começou em 2016 e virou demência em 2018? E qual o papel da mídia na abertura das portas do inferno? Veríssimo – A História terá dificuldade em entender o fenômeno Bolsonaro, mas talvez desenvolva uma lógica para explicá-lo. Para a História, o tempo acaba explicando até o ilógico. Quanto ao papel da mídia, não existe uma mídia só. Entre coniventes, subservientes, bem e mal-intencionados, heroicos e bandidos, tivemos de tudo. Acho que com o tempo a História também nos compreenderá. Centeno – A propósito, o jornalista H. L. Mencken tinha uma definição implacável do jornal médio dos EUA. Diz que tinha “a inteligência de um carola caipira, a coragem de um rato, a imparcialidade de um fundamentalista, a informação de um porteiro de ginásio, o gosto de um criador de flores artificiais e a honra de um advogado de porta de cadeia”. E os nossos? Veríssimo – Mencken era um misantropo genial. O que ele pensava da espécie humana se multiplicava quando comentava a imprensa do seu país. Não sei se a nossa imprensa merece um rancor parecido. Ou talvez não mereça outra coisa. Ernani – Bolsonaro quer transformar todas as escolas em escolas militares. Mas, considerando o nível intelectual do general Heleno, do general Mourão e do próprio Bolsonaro, não é de se pensar que a inteligência militar é uma contradição em termos, como dizia Gore Vidal? Veríssimo – Escolas militarizadas são a consequência natural do espírito que se instalou no país, com a eleição do Bolsonaro. Vamos ver qual será a primeira a receber o nome Coronel Ustra. Centeno – Admitindo-se a hipótese criacionista – o que parece ser questão de
tempo nas escolas públicas ou não – onde Deus errou ao criar o Brasil? Veríssimo – Deus criou um paradoxo, um país gigantesco e menor ao mesmo tempo. Outra entrevista, esta já na pandemia: Pergunta – Há quatro anos, escreveste que faltava o cadáver, o primeiro morto na guerra aberta pela direita. Veríssimo – Se eu disse isso, retiro. Um cadáver já é demais, ainda mais nestes tempos de peste e intolerância. Pergunta – O que é bom e o que é ruim na quarentena? Veríssimo – O bom é o pretexto para arrumar os livros, o ruim é a impressão de que estaremos fazendo isto pelo resto da vida. Pergunta – Tem muita gente desafiando a clausura. Qual foi a arte que fizeste na quarentena? Veríssimo – Sou cardíaco, diabético e velho, quase um garoto propaganda para a necessidade de quarentenas. Sigo rigorosamente todas as instruções para driblar o corona. Pergunta – O mundo ficará pior ou melhor depois da pandemia? Veríssimo – Ficará certamente diferente, só não sei como. Vai unir a humanidade, consciente, pela primeira vez em gerações, da sua fragilidade e da necessidade de uma repaginação moral da espécie, ou vem aí mais barbárie? Não tenho a mínima ideia. Pergunta – Alguns estão prevendo que todos trabalharão em casa, com exceção dos entregadores de pizza. Isso é bom? Veríssimo – Tenho a impressão que o primeiro impulso da turma depois do cativeiro forçado será cada um correr para um lado e só se reencontrarem quando der saudade, ou nunca mais. Pergunta – As pessoas ainda se aglomeram na orla do Guaíba ou nas praias da Europa. Isso é só negacionismo ou tem mais alguma coisa? Veríssimo – Se não for um ímpeto de suicídio coletivo, é falta de informação. É impossível saber das mortes pelo vírus, que diminuem, mas nos Estados Unidos e no Brasil ainda estão em nível de massacre, e achar que só vai acontecer com o vizinho. Pergunta – Escreveste esses dias que estamos proibidos até de ver o sorriso das pessoas. O que veremos quando tirarem as máscaras? Veríssimo – As máscaras são miniburkas, que realçam os mistérios e as promessa dos olhos sem o resto do rosto para atrapalhar. Talvez vire moda quando tudo isto passar. Por enquanto sua função é impedir a propagação de perdigotos, claro. Pergunta – Há uma exibi-