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A GRAMÁTICA ASSASSINADA

ARTIGO

NELSON MORAES

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A GRAMÁTICA ASSASSINADA

O assassino em série gramatical Endauro Rebouças, 26, cumpre a maioria dos pré-requisitos para o perfil criminal em questão: personalidade fragmentada pela ausência da figura paterna (que sempre foi sujeito indeterminado), mãe dominadora (que o fazia tomar sopa de letrinhas de cor e salteado) e índole fanática (afirma ouvir vozes verbais ativas, passivas e reflexivas que o induzem ao crime), só ataca elementos gramaticais femininos: regências, desinências, preposições — e sempre, segundo ele, “com propósito purificador”, seguindo um padrão todo peculiar: espiona as vítimas como sujeito oculto e as ataca recitando desvairadamente orações coordenadas assindéticas. Preso em flagrante há dois meses, ao tentar violar uma regra de concordância, Rebouças nos concedeu — depois de inúmeras negociações — a seguinte entrevista:

Pergunta - Esta tendência é manifesta desde quando?

Resposta – Desde a infância, na escola. Levei bomba várias vezes só pelo prazer de assassinar a Gramática em série. No caso, a sétima série, que fiz oito vezes. (Ajeita o cabelo) E agora voltou com força total, quando comecei a frequentar redes sociais. Não há meio mais seguro para assassinatos gramaticais.

Pergunta - Como seria este “propósito purificador”, que você alega como indutor dos crimes?

Resposta – Fica só entre nós três — eu e você —, mas na verdade vim salvar a Gramática. Ao invés de manter-se restrita à pudicícia das bibliotecas ela caiu na boca do povo: daí à vulgarização foi um pulo. Transformando pois a língua portuguesa em língua morta eu contribuo para disseminar esse outro dialeto indescritível que toma conta dos jornais, da televisão e da internet. (Assume entonação messiânica) Desta forma ele acabará virando o idioma oficial do país, e a Gramática pura retornará à castidade das estantes de biblioteca, de onde nunca deveria ter saído.

Pergunta - Existe algum desvio de conduta em sua família? Algum antecedente?

Resposta – Sim. Minha mãe garante que meu pai era um número ordinal.

Pergunta - A frieza de seus métodos chocou a opinião pública. Como era seu modus operandi?

Resposta – (Sem demonstrar emoção alguma) Eu variava: às vezes amputava com precisão cirúrgica a crase das preposições, ou fazia o contrário: assediava uma letra e introduzia nela uma crase indevida até o fim. Houve vezes em que imobilizei as sílabas e as separei indiscriminadamente com hifens cortantes. Gostava também de abreviar a vida das formas pronominais. Já viu como o “vc” se popularizou? É marca registrada minha. Ah, e não podia ver passar as normas de estilo. Aquela pose aristocrática me deixava louco. Era ver uma norma e eu já afiava minha cedilha.

Pergunta - E você tentava conjunção com suas vítimas?

Resposta – (Acabrunhado) Não. Minha relação com elas era apenas verbo-nominal. (Ajeita novamente o cabelo) Nunca em minha vida eu tive uma experiência conjuntiva.

Pergunta - Você vai cumprir pena no presídio ou no hospital psiquiátrico?

Resposta – Meu advogado alegou insanidade. Assim, deverei passar por várias sessões de análise sintática.

Pergunta - Você tem algo a dizer à família de suas vítimas? Arrepende-se dos crimes que cometeu?

Resposta – (Afrouxa a gola) Sim, eu poderia até me desculpar junto à família linguística indo-europeia, da qual nasceu o Português. Mas como receio que ela faça uma incorreta interpretação do texto, vou poupar o meu latim. E quanto a arrependimento, não, eu não arrependo-me. (Um repentino brilho no olhar). Na verdade sim, mas não resisti a utilizar essa ênclise inapropriadamente! (Neste ponto os guardas imobilizam o entrevistado com uma mordaça de força. Fim da entrevista.)

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