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O TEMPO E O NATAL

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FESTA MAIOR

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CONTO

LUIZ CARLOS AMORIM

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O TEMPO E O NATAL

Lutara muito para conseguir o pouco que tinha e continuaria lutando sempre. Marta era pobre, sempre fora. Sua maior riqueza era sua família – os dois filhos pequenos, Carlos e Pedro, o marido – e também sua casa. Era um pequeno barraco de madeira, mas era o seu lar. Humilde, exíguo, porém a família podia chamar de seu. Moravam na parte alta da cidade, onde os terrenos custavam menos, pois a área estava começando a ser urbanizada. Paulo, o marido, era servente e ganhava salário mínimo. Ela tentava ajudar, trabalhando como doméstica, mas precisava cuidar dos filhos, ainda pequenos, e era difícil conciliar o cuidado dos filhos, da casa, com o trabalho. A vida era dura, mas eles eram felizes, a despeito das dificuldades. Sabiam que, para conseguir alguma coisa, para melhorar a sua condição de vida, teriam que fazer sacrifícios. Não compravam nada que não fosse absolutamente necessário, mas Marta abandonou, por um momento, o rígido controle das finanças e comprou, este ano, a sua árvore de Natal artificial, toda enfeitada, e um presépio, sonho desde que era menina. Queria que os filhos tivessem pelo menos isso, uma comemoração natalina mais fiel. Já corria o mês de novembro e prometera a si mesma que daria aos filhos um Natal melhor do que todos os outros que já haviam tido. As coisas andavam mais difíceis, agora, por causa da pandemia, que já estivera pior, mas ainda havia pouco trabalho. O confinamento para evitar maior número de casos e de mortes pela covid 19 foi terrível, mas agora as coisas começavam a funcionar e tudo deveria melhorar. Andava um pouco preocupada, pois além da pandemia, as chuvas insistiam em cair com uma certa frequência, incomum para a época, nos últimos meses, pois passava um grande rio pelo meio da cidade. O fato de morar no alto, no entanto, dava-lhe uma certa segurança,

mas se chovesse muito o risco aumentaria e muito. O problema era não poder sair, desta vez por causa da chuva e a consequente enchente, que interromperia os caminhos. No final de novembro, as chuvas aumentaram e não queriam parar mais. Choveu dois, três, cinco dias sem parar. Uma semana. E a terra, que já estava molhada das chuvas anteriores, ficou encharcada, não só onde a enchente alcançou, mas também nos lugares altos. E terra molhada não fica firme em lugar nenhum. Os morros e encostas começaram a deslizar, levando de roldão o que houvesse pelo caminho: prédios comerciais, carros e casas, com tudo o que havia dentro, às vezes até com os moradores. Muitas pessoas estavam morrendo, engolidas pela lama, e inúmeras outras estavam perdendo tudo. O morro onde Marta morava também começou a deslizar e sua família teve que abandonar tudo às pressas, para não ser tragada pela terra liquidificada, empapada de chuva. Foram levados para um abrigo, uma escola onde já estavam diversas famílias que, como eles, não tinham mais nada. Antes de seguir com a equipe de bombeiros que os estava resgatando, porém, Marta ainda conseguiu pegar uma caixa, que embrulhou numa manta e levou consigo. A chuva diminuiu, o sol até voltou, mas o cenário de destruição, de devastação na cidade era uma realidade que permanecia e demoraria a mudar. A solidariedade de pessoas que não conheciam fazia com que chegasse até eles, milhares de refugiados da chuva, comida, agasalho e água. De novo precisavam depender de ajuda de terceiros, como na época do isolamento, o tempo mais tenebroso da pandemia. Não era apenas o medo de pegar a doença, quando ainda não havia vacina, mas também o flagelo da fome. Apesar do sol, que aparecia em intervalos durante o dia, encostas continuavam se soltando e caindo e corpos continuavam a ser encontrados. Mais mortes, somando-se aos mortes pela covid. A chuva sempre voltava e Marta soube que o lugar onde morava não existia mais, como tantos outros que desmoronaram em sua cidade e em outras também castigadas pelo tempo. Não tinha mais nada, nem mesmo o terreno, o chão para reconstruir o lar. – Mas estamos vivos – repetia ela para os seus e para si mesma. Resistimos à pandemia e às enchentes, então... Veio dezembro, as chuvas ainda teimavam em cair, agora não tão frequentes, mas ainda mantendo o risco de deslizamento de morros e encostas. As campanhas para angariar recursos para a reconstrução das casas daqueles que não tinham

para onde ir e não podiam comprar nem o pão de cada dia, estavam acumulando boas somas. Mas será que daria para construir casas para todos? Eram tantos... Será que o dinheiro chegaria até eles? Dezembro foi avançando e o Natal se aproximava. Marta e os seus e muitas outras famílias continuavam no abrigo, talvez até lhes coubesse um lugar para morar, mais tarde, mas muita coisa ainda tinha que ser feita e prometia demorar. A pandemia já agravara tudo, então era preciso rezar para que alguma coisa boa fosse feita. Seu marido precisaria procurar outro trabalho, pois a empresa onde ele trabalhava fora destruída e levaria algum tempo até recuperar-se dos estragos causados pela enchente. E a época não era nada propícia... O Natal chegou. Na véspera, Marta ajudou a preparar o jantar comunitário, como já tinha se tornado hábito e antes de servirem, buscou a caixa que resgatara de sua casa, no dia em que tivera que abandoná-la, e que guardava como um grande tesouro. Abriu-a e começou a montar, no centro da grande mesa de merenda, a árvore artificial e o presépio que comprara para aquele final de ano. Apesar de tudo, era Natal. E aquela árvore, mesmo artificial, com aqueles enfeites coloridos e aquelas poucas luzes, representava renovação, fartura, recomeço. E o presépio representava a fé que movia todos para a frente, para conseguir tudo de novo. O ano novo e o Menino que nascia em seu coração, naquela noite, haviam de trazer a sua vida de volta, haviam de dar a ela e a sua família forças para edificar, de novo, o seu lar. Era Natal.

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