EDUCAÇÃO E EVANGELIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE CONTEXTOS, DESAFIOS, PRÁXIS E PISTAS PARA A PASTORAL NO CURRÍCULO
EDUCAÇÃO E EVANGELIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE CONTEXTOS, DESAFIOS, PRÁXIS E PISTAS PARA A PASTORAL NO CURRÍCULO
Curitiba 2018
EDUCAÇÃO E EVANGELIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE: contextos, desafios, práxis e pistas para a pastoral no currículo Concepção e coordenação técnica: Diretoria Executiva de Ação Social (DEAS) Direção Executiva: Alessandra Maia Rosas Hovorusko Direção Educacional: Viviane Aparecida da Silva Direção de Negócio: Luiz Augusto Matias Kleinmayer Diretores Regionais: Adriano Brollo, Kleberson Massaro Rodrigues, Marilusa Rossari e Osvaldo Maione Organização: Glaucio Luiz Mota e Paulo Fioravante Giareta Coordenação do projeto: Glaucio Luiz Mota e Matheus Henrique Alves Revisão de conteúdo: Paulo Fioravante Giareta, Viviane Aparecida da Silva e Sheila de Souza Pomilho Leitura crítica: Alex Villas Boas Revisão Final: Elisabete Franczak Branco e Camila Fernandes de Salvo Projeto Gráfico: Deborah Naomi Kosaka Diagramação: Paitra Design Apoio Técnico: Diretoria de Marketing e Comunicação do Grupo Marista Fotos: br.fotolia.com, Banco de Imagens www.solmarista.org Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central Giovanna Carolina Massaneiro dos Santos – CRB 9/1911 Educação e evangelização na contemporaneidade: contextos, desafios, práxis e pistas para a pastoral no currículo / Rede Marista de Solidariedade. – E24 Curitiba: PUCPRESS, 2018. 2018 290 p. ; 30 cm Inclui bibliografias ISBN 978-85-54945-36-7 978-85-54945-35-0 (E-book) 1. Evangelização. 2. Teologia pastoral - Igreja católica. 3. Educação. 4. Currículo. I. Rede Marista de Solidariedade. 18-025 CDD 20. ed. – 253.7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................ 7 APRESENTAÇÃO......................................................................... 10 PARTE 1 – FUNDAMENTOS PASTORAIS NA EDUCAÇÃO ......14
EVANGELIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO ........................................................................................... 15 Agenor Brighenti
EDUCAÇÃO E O TRANSCENDENTE: a Evangelização e o seu papel educativo integral ...................................................................... 43 Ir. Rogério Renato Mateucci Denílson Aparecido Rossi
ECLESIALIDADE, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO HUMANO .................................................................................................. 59 Marcial Maçaneiro
CURRÍCULO E PASTORAL: concepção, lugar e evidências............... 72 Kelles Gonçalves Edson Luiz Mendes
PARTE 2 – DESAFIOS E HORIZONTES DA EVANGELIZAÇÃO NOS CONTEXTOS EDUCATIVOS..............90
EVANGELIZAÇÃO NOS ESPAÇOS EDUCACIONAIS CATÓLICOS E O MAL-ESTAR PÓS-MODERNO............................... 91 Glaucio Luiz Mota
CULTURA E EVANGELIZAÇÃO: considerações para uma Educação Intercultural............................................................................. 111 Alex Villas Boas
INFÂNCIAS E JUVENTUDES: o protagonismo dos interlocutores na educação evangelizadora........................................... 145 Ana Carolina Dias Diogo Luiz Santana Galline Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda
IDENTIDADES CONFESSIONAIS, POLÍTICAS EDUCACIONAIS E ESTADO LAICO.................................................. 160 Romi Márcia Bencke Lucas Fabricio de Francesco Souza
UMA GESTÃO EDUCACIONAL ILUMINADA POR PRINCÍPIOS PASTORAIS...................................................................... 181 Denílson Aparecido Rossi Kleberson Massaro Rodrigues
PARTE 3 – PISTAS PARA A PRÁXIS DA PASTORAL NO CURRÍCULO..........................................................................198
ECOLOGIA INTEGRAL E EDUCAÇÃO: uma perspectiva cristã, à luz da Bíblia e do ensino social da Igreja............................................ 199 Marcial Maçaneiro
EDUCAÇÃO EVANGELIZADORA NO CONTEXTO DO PLURALISMO RELIGIOSO: conceitos e práticas .............................. 220 Diogo Marangon Pessotto Osmar Aloizio Resende
ESPAÇOTEMPOS DA AÇÃO PASTORAL NO CURRÍCULO: uma chave missionária para a educação católica.................................. 244 Glaucio Luiz Mota
PÓSFACIO...................................................................................280 Sobre os autores........................................................................286
INTRODUÇÃO As unidades sociais e educacionais da Rede Marista de Solidariedade, sobretudo a partir de 2013, apontavam a necessidade de ressignificar e potencializar o papel da ação pastoral no currículo educacional. Essa priorização surge a partir dos debates gerados nas formações e nos fóruns realizados com pastoralistas, coordenações pedagógicas, educadores e demais gestores. Havia em alguns cenários certas compreensões reducionistas em relação ao papel da ação pastoral no currículo, que descreviam uma pastoral somente catequizante ou somente celebrativa. Em 2015, os pastoralistas das unidades sociais e educacionais, juntamente com a Assessoria de Pastoral da Diretoria Executiva de Ação Social, criaram um Grupo de Trabalho intitulado Pastoral no Currículo. Essa nova concepção surge como uma perspectiva de tornar os processos evangelizadores ainda mais presentes em todos os pontos do currículo das unidades educativas maristas: áreas, lugares, espaços e tempos. Além disso, essa concepção considera que a ação pastoral tem seus próprios espaçotempos, ampliando seus lugares de atuação para além dos aspectos catequéticos e celebrativos.
Essa renovada configuração do pensar e do agir pastoral das unidades sociais e educacionais da RMS está pautada na missão da Igreja e no carisma marista, considerando as especificidades do cotidiano de cada território. A sistematização desse processo que foi conduzida pelo GT: Pastoral no Currículo resultou no documento: “Parâmetros para a Ação Pastoral: evangelização nas Unidades Sociais e Educacionais da RMS”, que traz as seguintes inovações e avanços: • Evangelização explícita e implícita: sem desconsiderar a história, a cultura e a confessionalidade da identidade institucional (evangelização explícita), implementamos uma evangelização implícita para ampliar o acesso ao Evangelho por meio de novas e apropriadas linguagens; • A configuração didática da manifestação da evangelização no currículo por meio da descrição de espaçotempos pastorais, conforme o último texto deste livro; • Planejamento Pastoral mais integrado e interdisciplinar, por meio de novos instrumentais e da presença significativa e determinante da pastoral nos processos de gestão; • Matrizes de Indicadores Pastorais integrados aos Sistemas de Indicadores Maristas e às Matrizes de Avaliação Educacional da RMS. Trata-se de instrumental qualitativo que torna as ações pastorais mensuráveis e, por sua vez, permitem que temas tão subjetivos possam ser avaliados para situar os desafios, os avanços e as possibilidades para a qualidade social da Evangelização. Além dos resultados citados, outra tarefa do movimento que o GT: Pastoral no Currículo provocou foi produzir conhecimento acadêmico no campo pastoral que pudesse ampliar o debate sobre o tema como forma de desenvolvimento e formação para o Grupo Marista, e que também pudesse ser compartilhado e servir para outras instituições católicas de ensino. Logo, a proposta desta publicação é divulgar as reflexões feitas no movimento do GT, bem como trazer outras problematizações e práticas realizadas no âmbito acadêmico e escolar que extrapolam o lugar da Evangelização das unidades sociais e educacionais maristas.
Além disso, a presente obra pretende ser um subsídio cuja intenção é participar do debate educacional atual em torno da definição do projeto de educação, portanto, sobre qual currículo pode corresponder aos desafios da contemporaneidade. Ou seja, há uma disputa por espaços e tempos no currículo caracterizada pela correlação de forças entre os interesses representados pelos saberes pragmáticos e utilitários da modernidade racionalista, bem como de saberes enunciados pelas culturas locais, pelos saberes e pelas religiosidades de crianças e jovens estudantes, que também disputam espaço e tempo no currículo. O debate em torno das demandas e práticas da ação pastoral no currículo, da educação e da evangelização na contemporaneidade, além de apontar os desafios de uma prática educativa significativa no atual contexto social, cultural e histórico, significa um esforço de apontar pistas para uma práxis nos valores da dignidade e da promoção humana, da cultura do encontro, do diálogo, da escuta e da acolhida. Essas e outras intencionalidades e práticas da Evangelização, em tempos de retrocessos nas relações humanas e sobre seus direitos, querem ser sinal vivo de uma “Igreja em saída” com “chave missionária”. Boa leitura.
APRESENTAÇÃO Com os inúmeros e apaixonantes desafios na agenda, que nos interpelam cotidianamente, o título e o subtítulo desta obra apresentam não somente uma síntese, mas um programa de ação. Este livro significa apenas o início do debate global em uma comunidade local, com a ideia de introduzir o debate em um segundo nível, posterior à sua leitura, ou seja, da aplicação das ideias globais submetidas ao crivo das configurações sócio-político-econômico-culturais como desafio da interculturalidade. Para tanto, o presente trabalho disponibiliza: conceitos básicos para adentrar a temática da evangelização e educação na cultura contemporânea, entendida como um complexo de culturas que constituem o tecido social; contextos que possibilitem a melhor compreensão da produção de ideias enquanto formas de organização mental que permitam maior interação com a realidade; desafios que ajudem a focar o olhar e concentrar esforços nos sintomas mais nevrálgicos do momento social; práxis enquanto oferta de um debate sobre uma prática consciente das estruturas determinantes de comportamentos, e especialmente condicionantes de práticas contraditórias no que diz respeito à dignidade humana e ao bem comum; pistas para a pastoral no currículo enquanto produto cultural e ao mesmo produtor de sentido para o cuidado pastoral como pequenos luminares de sentido partilhados da ex-
periência vivida de outras localidades. A partilha tem uma nova semântica em nossos dias, como um saber em rede, instrumento de interculturalidade por excelência. A pista ou partilha não tem pretensões imperativas, mas sim de despertar forças de esperança em meio ao discernimento da agapia cristã. A obra foi organizada em três partes, que podem ser entendidas como fundamentos, desafios e pistas. Na Parte 1, Fundamentos pastorais na educação, estão apresentados os fundamentos para as novas tarefas da Evangelização e da Educação na contemporaneidade; a Parte 2, Desafios e horizontes da evangelização nos contextos educativos, procura identificar alguns, entre tantos, desafios que possam ser vistos como sintomáticos e chave de leitura de inúmeros outros contextos atuais; por fim, a Parte 3, Pistas para a práxis da Pastoral no Currículo, oferece subsídios a respeito de algumas questões que já foram submetidas ao crivo da realidade, como acima descrito, como princípio de ação. Como parte significativa dos desafios da Evangelização e da Educação se encontra a pouca lucidez em mapear e procurar compreender os problemas de nosso tempo. Procurar compreender, inclusive, o que se declara inimigo da fé cristã é uma forma contemporânea de procurar amá-lo e desvelar a radicalidade da busca de compreensão do mundo, do outro, de si e do Mistério que o Cristianismo denomina Deus, como a excelência de transformar a realidade por meio da reconciliação é, ao mesmo tempo, um valor fundamentalmente cristão e substancialmente caro ao indivíduo hodierno. Tal postura emerge de um cogito ferido que, consciente de sua condição, sabe reconhecer uma alteridade ferida, como é próprio das epistemologias do Sul, dos povos que não fizeram uso da guerra e da violência como instrumento de civilização, mas antes, por conhecerem essa dor, substituem a violência da espada pela força da salvação que habita na palavra, promotora de diálogo, de justiça e de paz. Serenidade e empatia são virtudes fundamentais contemporâneas para anunciar o valor do diálogo e educar para o respeito com a alteridade. São desafios que se confirmam quando a face de Deus se desvela no silencioso e eloquente sorriso de uma criança que se descobre amada, progressivamente protagonista de sua história e respeitada em sua singularidade, para assim aprender a respeitar. Se o Reino de Deus pertence às “criancinhas”,
é na educação das novas gerações, que desde muito cedo convivem com alteridades, que seremos reeducados para uma Evangelização e Educação deste Novo Milênio. Alex Villas Boas
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1. FUNDAMENTOS PASTORAIS NA EDUCAÇÃO
EVANGELIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO Agenor Brighenti
Introdução
Entretanto, evangelizar não significa conquistar as pessoas para a Igreja, muito menos “doutrinar” ou fazer proselitismo para o catolicismo. O Papa Francisco, na Exortação Evangelii Gaudium (EG 176),2 frisa que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo”. E este Reino não é algo intimista ou espiritualizante. Na Bíblia, o Reino de Deus é caracterizado como um reino de justiça, de paz e de amor, que começa aqui, na concretude da história. Os Bispos da América Latina, na Conferência de Aparecida, que teve por lema “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10), falam que o Reino de Deus é um “Reino de Vida” (DOCUMENTO DE APARECIDA, DAp 358).3 Paulo VI, acusando recepção do modo de ser Igreja na América Latina, menciona que “entre evangelização e promoção humana há laços profundos e intrínsecos” (EN 31) e, consequentemente, entre evangelização e educação cristã-católica. PAULO VI, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi: sobre a evangelização no mundo contemporâneo. 8 dez. 1975. 2 FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013. 3 DOCUMENTO DE APARECIDA: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado LatinoAmericano e do Caribe. São Paulo: CNBB; Paulus; Paulinas, 2007. 1
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O Papa Paulo VI, na Exortação Evangelii Nuntiandi (EN 14),1 lembrou que “a Igreja existe para evangelizar”. A educação cristã-católica não tem outra finalidade, quer contribuir para a edificação do Reino de Deus por meio de uma “educação evangelizadora”. Se a educação cristã-católica não tiver um caráter evangelizador, deixa de ser “educação cristã” ou uma forma de educar segundo os carismas educativos plasmados nas instituições católicas de ensino.
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Para uma “educação evangelizadora” que contribua para “tornar o Reino de Deus presente no mundo”, tal como se propõe a educação cristã-católica, é importante levar em conta três exigências básicas: a) ter uma compreensão adequada do que é evangelização; b) levar em conta o contexto em que se vai evangelizar; c) saber como relacionar educação e evangelização, segundo o horizonte da fé cristã. Uma educação que se pretenda evangelizadora, não pode desconhecer seu contexto socio-eclesial, muito menos a proposta cristã, sob pena de não responder aos desafios postos pelos educandos e nem às exigências da evangelização no contexto atual. Como se pode perceber, evangelizar, particularmente no campo da educação, não é uma tarefa fácil, sobretudo hoje, em tempos marcados por profundas transformações, tanto na sociedade como na Igreja. Estamos imersos numa crise em todas as esferas da vida: crise de identidade, de valores, das utopias, dos paradigmas, das ciências, da razão, crise de sentido, das instituições, das religiões, etc. Vivemos um tempo de “passagem”, de travessia, que esperamos possa ser um “tempo pascal”, porquanto a crise é sempre prenúncio de novas oportunidades. Tudo depende de como a assumimos, incluída a educação marista.
Evangelização: delimitações semânticas Para uma “educação evangelizadora”, resposta consequente aos desafios dos tempos atuais, antes de tudo é preciso começar pelo que se entende por “evangelização”. Há diferentes termos implicados à questão, e o seu sentido não é unívoco. Evangelização ou missão? Pastoral ou apostolado? Comecemos por algumas delimitações semânticas para, na sequência, vermos o itinerário da evangelização no caminhar da Igreja.
Evangelização e missão O termo “evangelização”,4 amplamente generalizado no vocabulário pastoral, deriva de “Evangelho”, que no Antigo Testamento equivale tanto a uma Um conceito bem aproximado de “evangelização” pode ser encontrado em: RAMOS, J. A. Teología Pastoral. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2001. (Serie Teología: Sapientia Fidei). p. 211-220; ESQUERDA BIFET, J. Teología de la evangelización: curso de Misionología. Madrid: Biblioteca de 4
mensagem que traz alegria quanto aos próprios fatos que concretizam essa mensagem, ou seja, a intervenção salvadora de Deus na história. Daí que evangelizar tem a ver com duas realidades: o anúncio e a concretização de uma “boa notícia”.
O termo “evangelização” foi utilizado pela primeira vez pelo teólogo protestante A. Duff, em 1854, e adotado somente nos meios protestantes até meados do século XX. Com o neologismo, designa-se a encarnação do Evangelho todo na pessoa inteira, para convertê-la em filho de Deus, bem como na sociedade, para impregná-la dos mistérios do Reino de Deus. Nos meios católicos, o termo só começou a ser usado no contexto imediato do Concílio Vaticano II, precisamente no seio do movimento ecumênico, dadas as reservas que os protestantes tinham com relação ao termo “missão”, historicamente com conotações proselitistas ou confessionalistas. É a partir da Exortação Evangelii Nuntiandi de Paulo VI, publicada em 1975, que o termo “evangelização” praticamente substitui o termo “missão” nos meios católicos. O termo “missão” deriva de apostello, que significa “enviar”; em latim mittere, de onde brota o substantivo missio. Tal como o termo “evangelizar”, o verbo “enviar” nos Evangelhos significa duas coisas: o ato de enviar e o conteúdo do envio. Em outras palavras, “missão” significa o envio do cristão ao mundo pela Igreja (o enviado) e o objeto do envio, que é tornar presente o Reino de Deus na concretude da história. Assim sendo, todo missionário é Autores Cristianos, 1995. p. 27-43; FLORISTÁN, C. Evangelización. In: FLORISTÁN, C. (Org.). Nuevo Diccionario de Pastoral. Madrid: San Pablo, 2002. p. 550-559. 5 FLORISTÁN, 2002, p. 551-552.
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No Novo Testamento não consta o termo “evangelização”; e sim o verbo “evangelizar”, referindo-se ao anúncio da chegada da era messiânica e do reinado de Deus, universal e definitivo. Nos Evangelhos, Jesus é o mensageiro da “boa nova” e, ao mesmo tempo, a própria boa notícia. Para Marcos, o Evangelho é a história de Jesus, através de suas ações. Mateus afirma que Jesus proclama o “Evangelho do Reino”. Lucas enfatiza que o Evangelho é alegria e esperança. João substitui o termo “Evangelho” por “testemunho” e “envio”.5 Em resumo, no Novo Testamento, evangelizar é anunciar e levar à prática o Evangelho ou a salvação de Jesus Cristo, que acontece com a inauguração do Reino de Deus.
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um enviado pela Igreja ou um “apóstolo” do Reino. Jesus é o “apóstolo” ou o enviado por excelência de Deus para “levar a boa notícia aos pobres” (Is 61, 1s). Por sua vez, a missão de Jesus se prolonga na missão de seus próprios enviados, a começar pelos “apóstolos”, pelos doze. Os enviados são eleitos por Deus para a salvação de todos. Com isso, a missão estabelece uma dupla relação: com quem envia e com quem se vai encontrar no envio. O missionário é um enviado por alguém a alguém. É um mediador ativo. O termo “enviar” aparece frequentemente no Evangelho de João.6 Dado que o termo “missão”, pela prática da Igreja no período da cristandade e da neocristandade, adquiriu conotação proselitista e eclesiocêntrica, com a renovação do Concílio Vaticano II será substituído por “evangelização”, oriundo dos meios protestantes. No pontificado de João Paulo II, o termo “missão” é resgatado, mas no sentido de uma evangelização inculturada, superando todo e qualquer resquício da mentalidade de cristandade.
Pastoral e apostolado O termo “pastoral” deriva do substantivo “pastor’, que por sua vez remete a Jesus “o Bom Pastor”, imagem oriunda da prática corrente no povo de Israel – o pastoreio de ovelhas. O pastor que vai à frente das ovelhas, bastão ou cajado, verdes pastagens, lobos ameaçadores, ovelhas no redil ou desgarradas, pastor com ovelha nos ombros, etc., são todas imagens que aludem à pessoa e à práxis de Jesus. Ele é o Messias enviado, que inaugura seu Reino de Vida em abundância para toda a humanidade (Jo 10,10), e seus discípulos, ovelhas suas, estão chamados a acolhê-Lo e torná-Lo presente na concretude da história. A ação da Igreja como “pastoreio” ou serviço que se remete à obra de Jesus está presente desde os primeiros passos da Igreja primitiva. Catecismos como a Didaqué; escritos como O Pastor de Hermas, e Tradição Apostólica, de Hipólito de Roma; ou manuais como De catechizandis rudibus, de Santo Agostinho, e Liber regulae pastoralis, de Gregório Magno, dão conta da preocupação por uma ação pastoral que encarne na história o Reino de Deus. Entretanto, no segundo milênio, a ação da Igreja como “pastoreio” desaparecerá, e vai ser FLORISTÁN, 2002, p. 552-553.
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imposto o termo “missão”. Esta adquire um caráter ad gentes, de conquista dos não cristãos para a Igreja, sobretudo com os grandes “descobrimentos” do século XVI, num contexto colonialista. O regime do padroado das Coroas portuguesa e espanhola, por exemplo, é expressão de uma missão de conquista dos novos povos para a Igreja e para o Império. Padre Vieira, no Brasil, denunciava a missão da Igreja de seu tempo, financiada pela Colônia, que equivalia fazer do índio um vassalo do Rei.7
Itinerário da evangelização Para compreender o que se entende por evangelização, além de uma aproximação etimológica e semântica, é importante também um olhar sobre seu percurso no caminhar da Igreja. Como a tradição é viva, e a Igreja continua “originando-se”, o modo como historicamente foi compreendida e levada a cabo a evangelização também passou por uma evolução. Foi diferente evangelizar na Idade Antiga em relação à Idade Média, assim como na Idade Moderna em relação aos tempos atuais.8 VIEIRA, A. Sermão da Epifania. In: PEIXOTO, A. Os melhores sermões do Pe. Antônio Vieira. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938. 8 Sobre os diferentes modelos de Igreja ou de evangelização, ver: FLORISTÁN, C. Teología práctica: teoría y práxis de la acción pastoral. Salamanca: Sígueme, 1991. p. 259-275; FLORISTÁN, C. Modelos de Iglesia subyacentes a la acción pastoral. In: Concilium 196, 1984, p. 417-426; BOFF, L. Modelos de teologia, 7
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No século XIX, com a separação Igreja-Estado e o crescente anticlericalismo professado pelos artífices da sociedade emancipada do poder religioso, a Igreja coloca de pé um projeto de reconquista dos que se haviam distanciado dela. Nesse contexto, o termo “missão” será substituído por “apostolado”. Na eclesiologia, que dá sustentação a esse projeto – a Igreja como “sociedade perfeita” –, é integrada pelo clero o alter Christus, continuador da obra dos apóstolos. Por isso a ação “pastoral” é comumente referida como “apostolado”, o prolongamento da ação dos apóstolos, dos quais os bispos são os sucessores, e os presbíteros, a estes associados. Mas, como o clero não é mais aceito pela sociedade emancipada, a Igreja envia os leigos para conquistá-la, compreendidos estes como extensão do braço do clero, associados ao seu “apostolado” e enviados sob seu “mandato”. A ação do leigo “mandatado”, clericalizado, é concebida como “apostolado” nos parâmetros de uma ação capilar dos leigos no mundo, com o objetivo de reconquistá-lo para a Igreja.
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Na Igreja Primitiva e Antiga Na Igreja Primitiva e Antiga, em grande medida, evangelizar significa propor a mensagem evangélica, de modo que aqueles que a acolhem vivam e deem testemunho da fé, como membros de uma comunidade fraterna, no seio da sociedade. Os cristãos não reivindicam ser a única religião, mas ter liberdade religiosa para poderem praticar livremente sua fé. Os que creem, organizam-se em pequenas comunidades, inseridas profeticamente na sociedade, que, com seu testemunho e ação, procuram tornar presente o Reino de Deus no mundo. O batizado, que passa a integrar a “comunidade dos santos”, tem na Eucaristia a expressão mais viva da nova vida, que consiste em testemunhar e trabalhar em prol de uma sociedade fraterna e solidária. A Palavra de Deus ocupa um lugar central na vida cristã, tanto na oração como na ação. O serviço e a assistência aos pobres são decorrência ou consequência da Palavra acolhida na fé e da Eucaristia celebrada entre irmãos. Nesse período, sobretudo antes da era constantiniana, há uma forte resistência à integração dos cristãos nas estruturas pagãs e opressoras do Império Romano, tais como o serviço militar, o exercício de cargos públicos, a produção e o comércio de objetos para o culto pagão e a presença em espetáculos circenses. Quanto à procedência dos cristãos, os convertidos que integram as comunidades, em geral, são provenientes dos humiliores – pessoas da plebe, das periferias. Sem triunfalismos, a Igreja se autoconcebe como a “pequena grei”, que, diante de um mundo pagão e hostil, está chamada a ser diferente, distinção esta a ser vivida no risco, na perseguição e no martírio.
No período de cristandade Nesse período, tanto a compreensão como a prática da evangelização mudarão radicalmente. Com o Cristianismo feito religião oficial do Império Romano, evangelizar passa a ter duas conotações: de um lado, conservar a fé (pastoral de conservação9) dos supostamente já evangelizados e enquadrados modelos de Igreja: curso para coordenadores diocesanos de pastoral (Subsídio 3). Porto Alegre: Instituto de Pastoral da Juventude, 1988. 9 “Pastoral de conservação” é uma expressão do Documento de Medellín (1968), referindo-se à necessidade de superar um modelo pastoral pré-conciliar e de cristandade, “baseado numa sacramentalização com pouca ênfase na prévia evangelização”; a pastoral de “uma época em que as estruturas sociais coincidiam
na cristandade medieval; e, de outro, conquistar para a Igreja ou para a cristandade outros povos, como aqueles das novas terras alcançadas pelos grandes descobrimentos do século XVI. Para dentro da Igreja, práticas devocionais e dos sacramentos; para fora, a missão encarregada sobretudo às congregações religiosas de integração de novos povos à cristandade. Nesse período, concretamente, em sua configuração pré-tridentina, a prática da fé é de cunho devocional, centrada no culto aos santos e composta de procissões, romarias, novenas, milagres e promessas, práticas típicas do catolicismo popular medieval (um catolicismo “de muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”);10 em sua configuração tridentina, a vivência cristã gira em torno da paróquia e do padre, baseada na recepção dos sacramentos e na observância dos mandamentos da Igreja.
No período de neocristandade No período de neocristandade, tanto o conceito como a prática da evangelização passarão por nova mudança. Com a emancipação da sociedade civil frente ao poder religioso e a consequente separação Igreja-Estado, evangelizar constitui-se, basicamente, em sair para fora da Igreja, para trazer de volta para dentro dela a sociedade emancipada. A Igreja reconhece a legitimidade da sociedade civil emancipada, mas a Igreja é a “sociedade perfeita”, única mediação de salvação. Esse modelo de evangelização é o que se poderia chamar de pastoral apologista, que alcançou seu auge no século XIX e início do com as estruturas religiosas...” (6, 1). 10 AZZI, Riolando. A instituição eclesiástica durante a primeira época colonial. In: HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1983. Tomo II.
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Resquício de uma sociedade teocrática, assentada sobre o denominado “substrato católico” de uma cultura rural estática, a pastoral de conservação pressupõe cristãos evangelizados, quando na realidade são “católicos” não convertidos, sem iniciação à vida cristã. Nesse modelo, a recepção dos sacramentos salva por si só, concebidos e acolhidos como “remédio” ou “vacina espiritual”. A paróquia é territorial e, nela, em lugar de fiéis, na prática, há clientes que acorrem esporadicamente ao templo para receber certos benefícios espirituais fornecidos pelo clero.
século XX, quando a Igreja pré-moderna jogou suas últimas cartas no confronto com o mundo moderno.
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Como estratégia de evangelização, a pastoral apologista assume a defesa da instituição católica diante de uma sociedade supostamente anticlerical, bem como a guarda das verdades da fé quanto a uma razão dita secularizante, que não reconheceria senão o que pode ser comprovado pelas ciências. Ao desconstrucionismo dos metarrelatos e ao relativismo reinante que geram vazio, incertezas e medo, contrapõe-se o “porto de certeza” da tradição católica e de um elenco de verdades apoiadas numa racionalidade metafísica. Se a pastoral de conservação é pré-moderna, a pastoral apologista é antimoderna. Na ação evangelizadora, a pastoral apologista se apoia numa “missão centrípeta”, a ser levada a cabo pela milícia dos cristãos, soldados de Cristo, a “legião” de leigos e leigas “mandatada” pelo clero. A missão consiste, numa atitude apologética e proselitista, em sair para fora da Igreja, e trazer de volta as “ovelhas desgarradas” para dentro dela. E numa atitude hostil em relação ao mundo, a Igreja cria o próprio mundo, uma espécie de “subcultura eclesiástica”, a típica mentalidade de seita ou gueto. A redogmatização da religião e o entrincheiramento identitário acabam sendo sua marca. Com naturalidade, fala-se em “refazer o tecido cristão da sociedade”, em manter o “substrato católico”, em “adotar o método apologético” na evangelização para implantar uma “cultura cristã”, ignorando um mundo autônomo da Igreja, pluralista, tanto no campo cultural como religioso.11
Na renovação do Vaticano II O Concílio Vaticano II, em sua “volta às fontes” (ad rimini fontes) bíblicas e patrísticas, inaugurou um novo momento na trajetória da Igreja e, particularmente, na pastoral ou na ação evangelizadora. A nova postura assumida pela Igreja deixa para trás modelos de pastoral, tanto o modelo circunscrito ao contexto da cristandade como o da neocristandade, tornados obsoletos pela reconciliação da Igreja, enfim, com o mundo moderno. Para uma visão mais completa deste e de demais modelos mencionados, ver: BRIGHENTI, A. A pastoral na vida da Igreja: repensando a missão evangelizadora em tempos de mudança. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ANIMAÇÃO BÍBLICA DA PASTORAL. 1., 2012. Goiânia. Anais… Brasília: CNBB, 2012. p. 117-138. 11
De uma evangelização pautada pelo enquadramento institucional e pelo distanciamento do mundo, com o novo lugar que a Igreja ocupa no mundo, a presença dos cristãos será impulsionada no seio da sociedade pluralista, numa postura de diálogo e serviço.
Para propiciar a participação de todo o Povo de Deus (LG 9) no discernimento e nas decisões relativas à ação pastoral, são criados os conselhos e as assembleias de pastoral (Christus Dominus [CD] 27e16), assim como novos mecanismos de coordenação, com funções definidas comunitariamente. Desenvolve-se uma pastoral orgânica e de conjunto no contexto da Igreja Local, referência e unidade de planejamento da ação, seja para as paróquias (Apostolicam Actuositatem [AA] 10b17), seja para os movimentos eclesiais. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja. 21 nov. 1964a. CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Presbyterorum Ordinis. 7 dez. 1965e. 14 CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Unitatis Redintegratio: sobre o ecumenismo. 21 nov. 1964b. 15 CONCÍLIO VATICANO II. Declaração Nostra Aetate: sobre a Igreja e as religiões não cristãs. 28 out. 1965a. 16 CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Christus Dominus: sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja. 28 out. 1965b. 17 CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Apostolicam Actuositatem: sobre o apostolado dos leigos. 18 nov. 1965c. 12 13
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Para responder às necessidades da evangelização, inspirados no modelo de vida das comunidades eclesiais na Igreja primitiva e antiga, são criados ministérios leigos não só para dentro da Igreja, mas, sobretudo, para fora dela. O culto deixa de esgotar a ação dos membros da Igreja na edificação do Reino de Deus, que começa já neste mundo (Lumen Gentium [LG] 6c).12 Surge a catequese renovada, a liturgia ligada à vida e a pastoral social, fruto da consciência do significado e da vivência do tríplice ministério do batismo – o tria munera Ecclesiae –, o ministério profético, litúrgico e da caridade (LG, 13; Presbyterorum Ordinis [PO], 5a13). O sujeito da ação pastoral deixa de ser o clero para ser a comunidade eclesial como um todo. O respeito do direito humano à liberdade religiosa dá origem ao ecumenismo (Unitatis Redintegratio [UR] 1214) e ao diálogo inter-religioso (Nostra Aetate [NA] 2c15). O reconhecimento da autonomia do temporal impulsionará ações de cooperação e serviço em parceria com iniciativas, grupos e organizações da sociedade civil em prol de um mundo justo e solidário.
Na tradição eclesial libertadora latinoamericana
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Consequentemente com a renovação do Concílio Vaticano II, a Igreja na América Latina, à luz da opção preferencial pelos pobres, que radica na fé cristológica,18 fará de sua presença e ação no mundo uma evangelização libertadora.19 Considerando os desafios do Continente, particularmente marcado pela injustiça institucionalizada e a exclusão, a ação evangelizadora adquire uma dimensão sócio-transformadora, sob o protagonismo de pequenas comunidades eclesiais, inseridas profeticamente na sociedade. Os leigos e as leigas são incorporados aos processos eclesiais como sujeitos, com ministérios próprios, oportunidade de formação bíblica e teológico-pastoral, com lugar de decisão em conselhos (CD 27e) e assembleias, bem como nas tarefas de coordenação dos diferentes serviços pastorais. À luz da opção pelos pobres, os excluídos deixam de ser objeto de caridade para se tornarem sujeitos de um mundo solidário e fraterno.20 A Igreja, além de assumir sua causa, assume igualmente seu lugar social, com ênfase na pastoral social. Nascem serviços de pastoral, com espiritualidade e fundamentação própria, como a pastoral operária, pastoral da terra e rural, pastoral da saúde e dos enfermos, dos direitos humanos, pastoral da criança, da ecologia, da consciência negra e indígena, da mulher, do menor, da educação, etc. A comunidade eclesial é organizada em pequenas comunidades de vida na base, alicerçada na leitura popular da Bíblia. Busca-se criar uma Igreja com rosto próprio, encarnando nas diferentes culturas os ritos e os símbolos da fé cristã (LG 13c). A liturgia é animada com cantos próprios. Sobretudo no âmbito popular, assembleias, reuniões, dias de estudo, cursos, etc. vão BENTO XVI, Papa. Discurso Inaugural de Aparecida. CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE, 5., 2007, Santuário de Aparecida. DAp 4. 19 Sobre a “recepção criativa” do Vaticano II na América Latina, ver: SOBRINO, J. El Vaticano II y la Iglesia latinoamericana. In: FLORISTÁN, C.; TAMAYO, J.-J. (Eds.). El Vaticano II: veinte años después. Madrid: Cristiandad, 1985. p. 105-134; GUTIÉRREZ, G. La recepción del Vaticano II en América Latina. In: ALBERIGO, G.; JOSSUA, J.-P. (Eds.). La recepción del Vaticano II. Madrid: Cristiandad, 1987. p. 213237. 20 COMBLIN, J. Los pobres en la Iglesia latinoamericana y caribeña: tejiendo redes de vida y esperanza. Cristianismo, sociedad y profecía en América Latina y El Caribe. Bogotá: IndoAmerican Press, 2006. p. 289-305. 18
desenvolvendo uma reflexão teológica contextualizada, sobretudo uma espiritualidade de militância, colada à vida.
A evangelização na encruzilhada do presente As profundas transformações em curso nas últimas décadas têm trazido novos desafios à evangelização e provocado as mais diversas reações, desde os que, temendo as mudanças, fazem do passado um refúgio, os que buscam sobreviver no pragmatismo do cotidiano e os que se lançam a dar respostas novas aos novos desafios, na tessitura do risco.
A crise da modernidade e a emergência de novos desafios Sobram evidências de que estamos imersos em um tempo marcado por profundas transformações. E como elas atingem todas as esferas da vida social, mergulham-nos em um tempo de crise: crise de paradigmas e das utopias, das ciências e da razão, dos metarrelatos e das instituições, crise de CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. 7 dez. 1965d. 21
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No seio desse modelo, abre-se espaço para a reflexão e a ação das mulheres, dos afro-americanos e indígenas, que forjam, desde suas práticas, uma releitura bíblica e das verdades de fé, fazendo da revelação Palavra de salvação “para nós hoje”, conforme mencionado no Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes [GS] 6221). A catequese privilegia a experiência e a inserção comunitária, num processo de educação permanente na fé. A liturgia faz interação do mistério pascal com a “paixão” dos pobres que, em seu rosto desfigurado, prolongam a paixão de Cristo no mundo. Na pregação e na meditação da Palavra em cultos dominicais sem Eucaristia, procura-se alimentar a esperança do povo, atualizando a revelação no contexto das vítimas de um sistema injusto e excludente. Desde a fé, procura-se formar a consciência cidadã, para que os próprios excluídos, organizados como cidadãos, sejam protagonistas no seio da sociedade civil, de um mundo solidário e inclusivo de todos.
identidade, das religiões, de valores, crise de sentido. É um tempo incômodo, pois está permeado de incertezas e angústias, mais ingente à criatividade do que ao plágio ou para agarrar-se a velhas seguranças de um passado sem retorno.22
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Entretanto, como nos adverte a sabedoria oriental, crise não é “fim-da-história” ou “beco-sem-saída”. Crise é encruzilhada, ocasião de novas oportunidades, mas à condição de não fugirmos dela. Crise é metamorfose, passagem, travessia, só que tanto para a morte como para um novo nascimento, dependendo de como a enfrentamos. Se fugirmos dela, é presságio de um fim catastrófico; se a assumirmos, é prenúncio de um tempo pascal, de um novo começo. O amplo leque de mudanças em curso atesta que, em grande medida, a crise atual deve-se à crise da modernidade, do projeto civilizacional moderno, responsável pelas maiores conquistas para a humanidade, mas, ao mesmo tempo, pelas maiores frustrações da história. Por um lado, não se podem descartar valores como democracia, liberdade, igualdade, ciência, estado de direito, tecnologia, autonomia da subjetividade, tolerância, mas, por outro, é preciso reconhecer que a sociedade moderna, fundada no mito do progresso, deixou sem respostas as questões mais ligadas à finalidade do progresso e da aventura tecnológica, à realização e à felicidade pessoal, enfim, ao sentido da vida.23 Prova disso é a irrupção de novas realidades, frente às quais o projeto civilizacional tornou-se mais curto do que falso e, com elas, a emergência de novas aspirações e valores. Para nos situar no atual momento eclesial e pastoral, é importante ter presente esse pano de fundo, pois também a experiência religiosa e a Igreja passam por profundas mudanças. A crise da modernidade afeta diretamente a Igreja, pois nela está também implicado o Concílio Vaticano II, dado que, entre outros, ele significou a reconciliação da Igreja com o mundo moderno Sobre a crise da modernidade, pode-se ter uma boa aproximação em: GASTALDI, I. De la modernidad a la posmodernidad. Iglesias, Pueblos y Culturas, v. 30, p. 5-22, 1993; BALLESTEROS, J. Postmodernidad: decadencia o resistencia. Madrid: Tecnos, 1989; HABERMAS, J. Modernidad y postmodernidad. Madrid: Alianza, 1988; LYOTARD, J. F. La condición postmoderna. Madrid: Cátedra, 1986. 23 Para uma visão global das profundas transformações no seio do prometo civilizacional moderno e a emergência de um novo paradigma, ver o excelente trabalho de TOURAINE, A. El nuevo paradigma. Barcelona: Paidós, 2006. 22
depois de cinco séculos de oposição e excomunhão em bloco. O que representa a modernidade para a humanidade significa o Vaticano II para a Igreja. E da mesma forma que a modernidade está em crise, também o Vaticano II atravessa uma profunda crise, para muitos um grande equívoco, num momento de ingênuo otimismo eclesial. Estaria, então, a saída da crise eclesial em ser anti-Vaticano II (a postura apologética da contrarreforma tridentina) ou pré-Vaticano II (refugiando nas práticas medievais de piedade devocional)? Estaria a saída em ser pós-Vaticano II (entregues ao emocionalismo, entre a magia e o esoterismo) ou em aferrar-se à letra do Concílio, fechando-se a uma nova recepção do mesmo no novo contexto?24
Em momentos de crise, quase que instintivamente se busca revisitar o passado – “se em algum momento a gente não sabe para onde vai, poder ser muito útil saber de onde viemos” (J. Gaarder). Entretanto, uma forma de revisitá-lo é fazer dele “fonte” (volta às fontes) e, outra, “refúgio” (volta ao fundamento). Nos meios eclesiais, não é diferente. Há segmentos refugiando-se seja na pastoral de conservação, de cunho devocional e providencialista, seja na pastoral apologista da neocristandade, de cunho tradicionalista e, em certos casos, fundamentalista. Nos dias atuais, com a crise da modernidade e a falta de referenciais seguros, sobretudo a pastoral apologista volta com força, com ares de “revanche de Deus”, com muito dinheiro e poder, triunfalismo e visibilidade, guardiã da ortodoxia, da moral católica, da tradição. O novo pontificado tem-se mostrado um contraponto dessa tendência. Entretanto, nesse contexto, há um fenômeno novo: a emergência de uma religiosidade eclética e difusa, que invadiu também os espaços eclesiais, dando origem a uma espécie de pastoral secularista, que se propõe responder às Sobre a involução eclesial das últimas décadas, ver: MANZANARES, C. V. Postmodernidad y Neoconservadurismo. Estella: Verbo Divino, 1991; GONZÁLEZ FAUS, J.-I. El meollo de la involución eclesial. Razón y Fe, v. 220, n. 1089/90, p. 67-84, 1989; LADRIÈRE, P.; LUNEAU, R. (Dir.). Le retour des certitudes: evénements et orthodoxie depuis Vatican II. Le Centurion, Paris, p. 161-178, 1987; LIBÂNIO, J. B. A volta à grande disciplina. São Paulo: Loyola, 1984. (Col. Teologia e Evangelização, n. 4). 24
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O refluxo da neocristandade e o escapismo de uma religiosidade secularizada
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necessidades imediatas das pessoas, em sua grande maioria órfãs de sociedade e de Igreja. Trata-se de pessoas desencantadas com as promessas da modernidade, por “pós-modernos” em crise de identidade, pessoas machucadas, desesperançadas, em busca de autoajuda e habitadas por um sentimento de impotência diante dos inúmeros obstáculos a vencer, tanto no campo material como no plano físico e afetivo. Em suas fileiras, estão pessoas que querem ser felizes hoje, buscando solução de seus problemas concretos e apostando em saídas providencialistas e imediatistas. Nesses meios, há um encolhimento da utopia no momentâneo, desafiando as instituições a fazer o presente tocar o fim ou da intra-história, lugar de antecipação daquilo que se espera em plenitude na meta-história.25 Em meio às turbulências de nosso tempo, dado que o passado perdeu relevância e o futuro é incerto, o corpo é a referência da realidade presente, deixando-se levar pelas sensações e professando uma espécie de “religião do corpo”. Trata-se de um neopaganismo imanentista, que confunde salvação com prosperidade material, saúde física e realização afetiva. É a religião a la carte: Deus como objeto de desejos pessoais, solo fértil para os mercadores da boa-fé, no seio do atual próspero e rentável mercado do religioso. A religião já é o produto mais rentável do capitalismo. No seio da pastoral secularista, há um deslocamento da militância para a mística na esfera da subjetividade individual, do profético ao terapêutico e do ético ao estético (da passagem de opções orientadas por parâmetros éticos para escolhas pautadas por sensibilidades estéticas), contribuindo para o surgimento de “comunidades invisíveis”, composta por “cristãos sem Igreja”, sem vínculos comunitários. Há uma internalização das decisões na esfera da subjetividade individual, esvaziando as instituições, inclusive a instituição eclesial, composta também por muitos membros sem espírito de pertença. Nesse contexto, a mídia contribui para a banalização da religião, não só reduzindo-a à esfera privada, como a um espetáculo para entreter o público. Trata-se de uma “estetização presentista”, propiciadora de sensações “in-transcendentes”, espelho das imagens da imanência. Também a religião passa a ser Sobre as mudanças em curso no seio da religião, ver: MARDONES, J. M. Para comprender las nuevas formas de la religión. Navarra: Verbo Divino, 1994. p. 151-163; TERRIN, A. N. Despertar religioso: nuevas formas de religiosidade. Selecciones de Teología, v. 126, p. 127-137, 1993. Na América Latina, ver: AZEVEDO, M. América latina: perfil complexo de um universo religioso. Medellín, v. 87, p. 5-22, 1996. 25
consumista, centrada no indivíduo e na degustação do sagrado, entre a magia e o esoterismo.26
O novo alento de Aparecida e do novo pontificado Em meio a um mundo e uma Igreja em crise, a Conferência de Aparecida e o pontificado novo do Papa Francisco tem sido não só um freio ao processo de involução eclesial, sobretudo em relação à renovação do Concílio Vaticano II, como um forte convite aos cristãos a darem respostas novas aos novos desafios dos tempos atuais.
Sobre a questão, ver: DAGMANG, F. D. Gratificação instantânea e libertação. Concilium, v. 282, p. 59-71, 1999/4; BONGARDT, M. Existência estética e identidade cristã: sobre a possível figura do Cristianismo na sociedade do prazer imediato. Concilium, v. 282, p. 83-96, 1999/4; KESSLER, H. A satisfação do momento: a dor do momento perdido. Concilium, v. 282, p. 121-136, 1999/4. 27 Para uma visão mais completa deste perfil, ver: BRIGHENTI, A. Perfil pastoral da Igreja que o Papa Francisco sonha. In: SILVA, J. M. (Org.) Papa Francisco: perspectivas e expectativas de um papado. Petrópolis: Vozes, 2014. 26
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Respaldado pela Conferência de Aparecida, que resgatou a renovação do Vaticano II e da tradição libertadora latino-americana, o Papa Francisco tem desafiado os cristãos a um outro perfil de Igreja e de evangelização, que deixe para trás todo e qualquer resquício de cristandade e neocristandade.27 Elemento central das proposições de Aparecida e do Papa Francisco é a urgente passagem de uma Igreja autorreferencial, centrada em si mesma, a uma “Igreja em saída”, às periferias. À luz da opção pelos pobres, o centro da Igreja é a periferia. Segundo o Papa, se vê melhor quando se olha a partir da periferia, pois, para uma Igreja “autorreferencial”, sobram e se toma distância dos fiéis irregulares, em situações que ferem códigos legais; dos que estão nas “periferias do pecado”, considerados perdidos; dos que estão “nas periferias da ignorância e da prescindência religiosa”, excluídos como interlocutores, dignos de serem levados a sério; dos que estão “nas periferias do pensamento”, desafio aos nossos sistemas teológicos de contornos nítidos e nossas certezas; enfim, dos que estão “nas periferias da injustiça, da dor, de toda miséria”, clamando pelo regaço de uma mãe, e não pelo julgamento de um juiz. Aparecida fala da necessidade de “passar de um eterno esperar a um constante buscar”. Ainda como Bispo em Buenos Aires, o Cardeal Bergoglio criticava “as pastorais
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distantes”, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais, sem proximidade, sem ternura, sem carinho. Ignora-se, dizia ele, a “revolução da ternura”, que provocou a encarnação do Verbo. Jesus não veio para os sãos, mas especialmente para os doentes, os excluídos das instituições rígidas, para resgatar o que estava perdido, para redimir e não para julgar e condenar. Um segundo elemento central das proposições de Aparecida e do Papa Francisco, em sintonia com o Vaticano II, é uma Igreja samaritana (DAp 26), “companheira de caminho” de toda a humanidade, especialmente dos pobres e dos que sofrem. No discurso aos bispos do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, o Papa Francisco fala da necessidade “de uma Igreja que não tenha medo de entrar na noite deles e seja capaz de encontrá-los no caminho que estão percorrendo”, tal como Jesus com os Discípulos de Emaús. E continua: “precisamos de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que, fugindo de Jerusalém, vagam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um Cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido. [...] Hoje, precisamos de uma Igreja capaz de fazer companhia, de ir para além da simples escuta”. Um terceiro aspecto importante marca a diferença de uma missão centrípeta (sair para fora para trazer as pessoas para dentro da Igreja) para uma missão centrífuga (oferecer gratuitamente a proposta do Reino de Deus). Em entrevista à Revista La Civiltà Cattolica, o Papa Francisco exorta ficar atentos para não cair na “tentação de domesticar as fronteiras: deve-se ir em direção às fronteiras, e não trazer as fronteiras para casa, a fim de envernizá-las um pouco e domesticá-las”. É o respeito à alteridade, a acolhida do diferente, estar disposto a deixar-se surpreender e aprender com as diferenças, dado que na evangelização não temos destinatários, mas interlocutores. Em lugar de uma missão proselitista, um processo de evangelização pautado pelo testemunho e o diálogo, condição para o anúncio do kerigma, que leva sempre à vivência da fé cristã numa comunidade de irmãos, inserida no seio de uma sociedade pluralista. Nessa perspectiva, apresenta-se a tarefa do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. A verdadeira Igreja de Jesus é una, mas está dividida, o que é um
escândalo, diante da missão de promover a unidade de todo o gênero humano. Como disse o Vaticano II, as religiões são depositárias de raios da mesma luz, que brilhou em plenitude, em Jesus. O Cristianismo tem a plenitude da revelação, mas isso não significa ter a exclusividade e nem tê-la entendido tudo. No diálogo com as religiões, nós os cristãos podemos testemunhar e acenar para essa plenitude e também aprender do que já temos, mas que ainda não descobrimos.
Evangelização e transformação pessoal e social
Para responder aos novos desafios, hoje, apresenta-se o imperativo de uma evangelização integral e integradora. Integral no sentido de abarcar a pessoa inteira e todas as pessoas, incluída a obra da Criação. O dualismo grego corpo-alma, material-espiritual, imanência-transcendência entrou no Cristianismo e contribuiu para uma fé espiritualista, desencarnada, a-histórica, alienante. A revelação professa uma antropologia unitária. Salvação e ressurreição incluem o corpo e a obra da Criação e implicam uma evangelização integradora, na medida em que precisa abarcar tudo e todos e acontecer no âmbito da pessoa, da comunidade e da sociedade.
O potencial transformador da fé cristã Uma autêntica evangelização é uma evangelização integral. Há segmentos da Igreja, hoje, que reduzem a evangelização ao mero anúncio ou “proclamação do kerigma”, no sentido de propiciar uma experiência de fé de corte emocional ou de simplesmente transmitir uma doutrina. Evangelizar, conforme apontou Evangelii Nuntiandi, é uma tarefa complexa, termo que no Documento substitui “missão”, entendida tradicionalmente como sair para
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O Documento de Aparecida, consequente com a mensagem cristã, põe no centro da missão evangelizadora da Igreja o cuidado, a defesa e a promoção da vida. A vida está na essência da fé cristã. A missão do cristão e a tarefa da evangelização são extensão da missão de Jesus; “eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
fora da Igreja para trazer pessoas para dentro dela. Evangelizar não é implantar a Igreja; é ser mediação do Espírito para a encarnação do Evangelho na vida dos interlocutores.
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Nas últimas décadas, a CNBB tem frisado com as conhecidas quatro “exigências” – testemunho, diálogo, anúncio, vida comunitária – que evangelização não começa com o anúncio, mas com o testemunho. Importa primeiro mostrar a fé, e não demonstrá-la. É o testemunho que abre o interlocutor para o diálogo e, quando este se dá, como o Evangelho é comunicação, se pode então anunciar o kerigma. Na sequência, a adesão a Jesus Cristo e a seu Reino leva a aprofundar os conteúdos da fé, inclusive teologicamente, a celebrá-la liturgicamente na comunidade e, sobretudo, a fazê-la obra, através do serviço e da vida fraterna. A fé cristã não consiste simplesmente em um novo modo de ver, mas de agir. Cristianismo é um comportamento, uma ética, um compromisso de conversão pessoal e de transformação da sociedade, segundo os desígnios de Deus. Consequentemente, a evangelização é caminho de uma conversão, que abrange mais do que uma mudança pessoal e do coração. Como bem advertiu Paulo VI em Evangelii Nuntiandi, para que a evangelização não se reduza a um “verniz superficial” ou a uma fé sem adesão a Jesus Cristo, sem pertença à comunidade de seus seguidores e sem compromisso com a edificação do Reino no mundo, precisa abarcar, simultaneamente, conversão do coração das pessoas e das estruturas (EN 36). Não se pode esquecer que as pessoas fazem as estruturas, mas estas também fazem as pessoas, sobretudo quando não se é ou não se consegue ser sujeito delas. Bento XVI, no Discurso Inaugural de Aparecida, frisou que fé cristã “não é uma fuga no intimismo, no individualismo religioso, um abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo, e uma fuga da realidade para um mundo espiritual” (DI 3). A conversão do discípulo é em vista de uma missão no mundo, dado que a Igreja existe para o mundo, para fazer presente e, cada vez mais visível, o Reino de Deus, na história.28 Daí o compromisso também com a mudança Cf. HUNERMANN, W. Reino de Dios. Sacramentum Mundi. Barcelona: Herder, 1973. (col. 880-897, Tomo V); SOBRINO, J. El reino de Dios anunciado por Jesús: reflexiones para nuestro tiempo. Tejiendo Redes de Vida y Esperanza: Cristianismo, sociedad y profecía en América Latina y El Caribe. Bogotá: IndoAmerican Press, 2006. p. 267-288. 28
das estruturas, porquanto o pecado social não é a soma de pecados individuais, mas pecados pessoais que passaram às instituições. Conforme o Documento de Aparecida, a evangelização como inculturação “do Evangelho na história, no mundo moderno e tradicional”, nos “novos areópagos” significa, sobretudo, uma presença ética coerente e prolongada, em que os discípulos missionários se tornam semeadores de “valores evangélicos” (DAp 491). O “ponto de chegada” da evangelização não é a Igreja. Esta não se anuncia, antes aponta para Jesus Cristo e se apresenta como mediação histórica para aqueles que aderirem à fé no Deus Trindade, a ser vivido em comunidade. A adesão a Jesus Cristo leva à adesão ao sacramento da comunidade. Não há cristão sem Igreja.
Evangelização e educação Um dos importantes meios de promoção da “vida em plenitude” é a educação. E sempre que promove vida na perspectiva cristã é uma “educação evangelizadora”. Jesus, ao assumir nossa humanidade, veio nos trazer vida. Com a encarnação do Verbo, a vida divina em nossa vida tornou-se vida humana em abundância, já a partir desta vida. Por isso, o Cristianismo não propõe à humanidade nada mais do que sermos verdadeiramente humanos, humanos em plenitude. Nessa perspectiva, Santo Irineu de Lion, na aurora do Cristianismo, afirma que a “a glória de Deus é o ser humano pleno de vida” (gloria Dei homo vivens). João Paulo II, alinhado a essa tradição,
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Por isso, segundo a Evangelii Nuntiandi, “entre evangelização e promoção humana, existem laços profundos”, dado que “o plano da Criação está para a promoção humana, assim como o plano da redenção está para a evangelização” (EN 31). Não se pode perder de vista que o encontro com Jesus Cristo é redentor da pessoa inteira e de todas as pessoas, o que implica um “processo de passagem de situações menos humanas para mais humanas”, como afirmou Medellín. Nesta perspectiva, Aparecida, juntamente com a Populorum Progressio e a tradição latino-americana, reafirma que a obra da evangelização leva à autêntica libertação, integral, abarcando a pessoa inteira e todas as pessoas, fazendo-as sujeito do próprio desenvolvimento e da edificação de uma sociedade justa e solidária (DAp 399).
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em Redemptor Hominis (RH 1329) e em Centesimus Annus (CA 5330) tira as consequências para a ação evangelizadora: “o ser humano é o caminho da Igreja”. Jesus é o caminho da salvação; o caminho da Igreja é o ser humano, pois ela existe para o serviço da vida plena para todos, a única razão e fim da obra de Jesus. Para o Cristianismo, a mensagem revelada nas Escrituras não é portadora de valores estritamente confessionais, que só serviriam aos cristãos. No Cristianismo, à luz do mistério da Encarnação do Verbo, Jesus de Nazaré é “verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus” e, consequentemente, o plenamente humano é divino e o divino é o autenticamente humano.31 Na aurora da modernidade, com a irrupção do humanismo, que em grande medida se erigiu contra a Igreja, místicos medievais colocaram em evidência a congruência entre o humano e o divino: São João da Cruz, por exemplo, diviniza o humano, e Santa Tereza de Ávila humaniza o divino. Tal como afirmou L. Boff (1988) a respeito de Cristo, “Jesus de Nazaré foi tão humano, tão humano, que só podia ser Deus”. Fé cristã não é “fuga mundi”, alienação, refúgio na esfera da subjetividade da alma ou escapismo da concretude da história. No Emanuel, Deus se “humanizou” e, com sua ressurreição, nos “cristificou”. Assim, no seio do Cristianismo, o processo de humanização prolonga-se num processo de divinização, e o processo de divinização se dá no processo de humanização. É o que Paulo VI falava em Populorum Progressio (PP 43)32 sobre “humanismo aberto ao absoluto”. É aqui que educação e evangelização se tocam, se entrelaçam e interagem mutuamente, fazendo da educação um meio privilegiado de evangelização integral e, assim, constituindo-se uma “educação evangelizadora”.
O papel transformador da educação evangelizadora A “educação evangelizadora”, para ser consequente com a proposta cristã, precisa ser transformadora: “eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21, 5). JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Redemptor Hominis. 4 mar. 1979. JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Centesimus Annus. 1 maio 1991. 31 SOBRINO, J. Aprender a unir lo divino y lo humano. Sal Terrae, v. 91, p. 817-829, 2003. 32 PAULO VI, Papa. Carta Encíclica Populorum Progressio. 26 mar. 1967. 29 30
E, em nosso contexto, marcado pela injustiça e a exclusão, por sua vez, a transformação precisa ter um caráter libertador de toda forma de injustiça institucionalizada ou ordem social injusta. Para isso, a educação cristã precisa abarcar os três âmbitos da ação evangelizadora: o âmbito da pessoa, o âmbito da comunidade e o âmbito da sociedade. O trinômio pessoa-comunidade-sociedade é tributário da eclesiologia do Concílio Vaticano II, que concebe a Igreja como uma comunidade de pessoas a serviço da sociedade. Os três âmbitos não são três campos de ação autônomos e separados, mas conformam um todo.
Uma educação evangelizadora no âmbito da pessoa No âmbito da pessoa, à luz da proposta cristã, a grande tarefa de uma educação evangelizadora consiste na reconstrução da identidade pessoal e na conquista de uma liberdade autêntica, no seio de uma sociedade consumista. A identidade do ser humano se tece na conjugação harmônica entre sua natureza individual e social. Individualismo, desenraizamento cultural, ecletismo religioso, modismos, relativismo ético, etc. são sintomas de perda de identidade. Por sua vez, no campo da educação, ações como acolhida e respeito à dignidade pessoal, orientação e atenção aos dramas pessoais, uma pedagogia dialógica e respeitosa da alteridade, formação do espírito crítico e outras tantas iniciativas alicerçadas na realidade dos educandos na atualidade podem contribuir para a reconstrução da identidade pessoal.
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Ser pessoa, transbordar-se para a comunidade e, desde, aí, conformar uma sociedade solidária, resume a vocação cristã, bem como o segredo da realização humana. São três âmbitos de um mesmo mistério, de uma mesma inesgotável grandeza da vocação humana e cristã. É na medida em que o ser humano, enquanto pessoa, no seio da comunidade, humaniza a sociedade, que ele próprio se humaniza, se realiza e faz acontecer sua vocação humana e cristã.
Uma educação evangelizadora no âmbito da comunidade
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Fé cristã é inter-relação com um Deus comunhão de pessoas e com os demais, filhos de um mesmo Pai. Uma educação que se pretende evangelizadora precisa ser promotora de comunhão, tanto no horizonte da transcendência como da imanência. A família é certamente a comunidade natural mais espontânea e fundante, da qual a educação não pode descuidar. A própria experiência de fé e a convivência fraterna dependem muito dela. É a partir da família que se pode passar para inter-relações em esferas mais amplas, tanto na comunidade eclesial como no espaço local. No âmbito da comunidade, o grande desafio para uma educação evangelizadora é a superação da fragmentação da vida e a busca de relações mais humanas. O processo de individuação da modernidade desembocou no individualismo, acirrado pelo sistema liberal-capitalista, fragmentando as experiências e as instituições comunitárias como um todo, a começar pela família. Urge uma educação que contribua para o rompimento da redoma de um indivíduo hiperindividualista, hiperconsumista e hiper-hedonista.
Uma educação evangelizadora no âmbito da sociedade A realização da vocação humana e cristã se dá quando o indivíduo sai de si e torna-se pessoa e, na sequência, transcende-se na comunidade para, finalmente, com os outros, fazer-se servidor de todos na sociedade. Torna-se pessoa pela comunidade. Mas seus integrantes, como membros da humanidade e cidadãos universais, necessitam também da sociedade para se realizarem, para nela sentirem-se livres e participarem da construção de um mundo para todos. No âmbito da sociedade, o grande desafio de uma educação evangelizadora é contribuir para a superação do escândalo da exclusão e da violência, no seio de uma sociedade consumista e excludente. A educação pode ser um importante fator de reconstrução do tecido social, que as tendências anarquistas e totalitárias, bem como a mercantilização das relações humanas e institucionais, operadas pelo sistema liberal capitalista, tendem a fragmentar
e destruir. Consequentemente, uma das tarefas mais importantes da educação evangelizadora, hoje, é ter a pessoa, a comunidade e a sociedade como âmbitos indispensáveis da defesa, cuidado e promoção da vida em abundância que Jesus Cristo veio trazer. Ela é um meio privilegiado para contribuir com as pessoas e comunidades, organizadas no seio de uma sociedade civil inclusiva de todos.
Considerações finais
Nos últimos tempos, a Conferência de Aparecida e o pontificado novo do Papa Francisco soaram como um forte convite a caminhar com esperança, renunciando fazer do passado um refúgio, uma postura inconsequente com os novos sinais dos tempos e as grandes aspirações da humanidade. Diante de novas perguntas, é preciso ousar novas respostas, criar o novo, na liberdade do Espírito. A tessitura do risco é a única garantia de futuro.
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Dedicar-se à educação, por sua nobreza, é um privilégio, mas também uma grande responsabilidade, sobretudo em tempos de profundas mudanças e transformações. E, como educação cristã-católica, o desafio é fazer da educação um espaço de evangelização, através de uma educação integral. A proposta de uma educação evangelizadora, sintonizada com os desafios atuais e as exigências evangélicas, advoga por uma evangelização transformadora da pessoa e da sociedade, o que exige superar toda e qualquer postura de cristandade, antagônica à renovação do Vaticano.
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EDUCAÇÃO E O TRANSCENDENTE: A EVANGELIZAÇÃO E O SEU PAPEL EDUCATIVO INTEGRAL Ir. Rogério Renato Mateucci Denilson Aparecido Rossi
Introdução
As Instituições Educativas Cristãs têm como finalidade a fidelidade a Jesus Cristo no serviço com as crianças, os adolescentes e os jovens. Por isso, são chamadas a repensar continuamente suas práticas, a fim de integrá-las aos pilares do Evangelho, que deve ser o ponto de partida e a inspiração para apoiar nosso trabalho de evangelização nas diversas realidades em que nos encontramos. Assim, indicamos oito elementos de “inculturação”34 que, conforme acreditamos, são os mais pertinentes a este texto, cada um iluminado Salientamos que o ter missionário, no contexto educacional, abrange também a missão e a tarefa de educador que envolve o trabalho de muitas pessoas vinculadas às Organizações Confessionais. 34 Este termo é explorado em Diretrizes de Ação evangelizadora (2011, p. 45) e significa “um conjunto de componentes interdependentes (que pode ser interpretado como os principais conceitos, lugares, temas ou dimensões). Nós acreditamos que os elementos de inculturação promovem um diálogo entre princípios e valores do Evangelho nas culturas contemporâneas, ao passo que apoia um processo de evangelização contextualizado historicamente” e favorece um processo de educação integral. 33
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Este texto segue com a proposta de apresentar uma perspectiva mais prática para compreender caminhos de aplicação da evangelização no âmbito da educação. Tem como ponto de partida os textos dos Evangelhos que, em si, são fonte inesgotável de inspiração. Dessa forma, tentaremos um ensaio que possa iluminar a missão cristã, privilegiando os espaços institucionais nos quais congregamos grande número de crianças, adolescentes e jovens. Compreendemos que a pedagogia de Jesus é fonte valiosa para que o ser humano encontre possibilidades de respostas significativas para sua existência e, também, permanece como um manancial fresco e revigorante para nossa entrega de vida como missionários.33
por um texto bíblico e que pode ajudar a desenvolver ainda mais nossas opções pastorais.
Diálogo com o mundo contemporâneo35
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O mundo contemporâneo convida todo o Cristianismo a estabelecer um diálogo contínuo com a sociedade. Este é o espaço em que os educandos36 se desenvolvem em sua integralidade e, por isso, o diálogo é necessário, a fim de que a missão cristã seja percebida por eles como uma experiência relevante, que lhes ofereça apoio para encontrar sentido em suas vidas. A evolução tecnológica e a globalização são fatores que impactam negativa ou positivamente as crianças e os jovens. Por um lado, eles vivenciam diariamente a volatilidade e efemeridade no relacionamento com as pessoas e com as coisas, o que interfere também em sua interioridade. Por outro lado, essa nova configuração social favorece vínculos e intercâmbios com outras comunidades, a autonomia em relação à própria formação e uma gama de possibilidades de exercer o engajamento social. Com mais informações à sua disposição, os jovens de hoje podem questionar conhecimentos e crenças inadequados para o seu tempo e impulsionar as renovações institucionais. São, portanto, mais dotados de força para a necessária renovação de conceitos. Nesse contexto, o diálogo entre o jovem Jesus e os Doutores da Lei, no templo, pode servir de luz para o estabelecimento de troca, acolhimento e partilha entre os espaços educativos cristãos e as crianças e os jovens. Este evento, apresentado em Lc 2,41-50, mostra um importante momento na vida de um israelita: a passagem para a maturidade, quando a criança completa 12 anos de idade. Um dos sinais dessa nova condição era a introdução do jovem à leitura da Torá, o texto normativo do povo hebreu. O conceito de contemporâneo apresentado no texto está em conformidade com a visão de Agamben, ou seja, contemporâneo é “perceber a luz na escuridão do presente, que procura chegar até nós e não consegue. Por isso que o contemporâneo é tão raro. E, por conta disso, ser contemporâneo é uma questão de coragem acima de qualquer coisa: significa ser capaz não apenas de manter o nosso olhar fixo na escuridão do tempo, mas também de perceber naquela escuridão uma luz direcionada a nós, mas que se distancia infinitamente de nós” (AGAMBEN, 2009, p. 65). 36 Optamos pelo termo “educando” por entender que esta é a expressão mais adequada para representar os sujeitos que se encontram em processo de desenvolvimento e/ou formação integral. 35
O evangelista Lucas começa o relato dizendo como Jesus foi separado de Maria, José e suas caravanas de homens e mulheres no caminho à Jerusalém. Depois de um dia inteiro de viagem, o casal percebeu a ausência de Jesus e só foram encontrá-lo três dias depois, conversando no templo com os doutores da lei.
O diálogo pressupõe a autonomia das partes: eles ouvem e pregam, eles leem e interpretam, de forma dinâmica. Isso tudo acontece em uma sistemática de pergunta e resposta, em concordância com o modus operandi da cultura semita. No episódio descrito em Lucas, Jesus fala com autoridade própria, propondo perguntas para os pregadores, quer fossem eles Maria, José ou mestres e líderes religiosos. Com efeito, longe de ser indiferente e fácil, o diálogo compromete: nós ensinamos como ouvimos e ouvimos como aprendemos, em uma troca constante. Isso pode ser aplicado nas relações humanas em geral. Esta é uma das razões de maior relevância para nossas atividades pastorais, pois a evangelização não se limita à proclamação, mas “também envolve o caminho do diálogo”.38 Essa é uma referência ao hábito de sentar-se ao ensinar, tão costumeiro aos anciãos. Na arte bizantina, Cristo também é retratado sentado, entronizado no centro como o Pantrocrator (Onipotente), numa atitude de escuta atenta de decência, examinando e ponderando, em sua dupla natureza, divina e humana. 38 FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013. 37
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O texto sugere um aspecto que pode ser importante para nosso diálogo com os jovens: a relação com a família e o cuidado nesse momento tão delicado de ruptura, que é o início da maturidade. A cena do encontro é cheia de surpresas: Maria e José o acham debatendo a Torá, “sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e fazendo perguntas” (Lc 2, 46). Jesus está sentado com a mesma atitude daqueles que ensinam.37 Ele escuta, faz perguntas e responde, comunicando-se com as pessoas e interpretando. Maria e José estão tão surpresos quanto os doutores ou estudiosos, porque o que eles veem não é normal: geralmente, os anciãos falam e ensinam, os jovens apenas ouvem e aprendem. Mas a cena com Jesus sugere outros aspectos e até mesmo muda a relação pedagógica com a perspectiva de diálogo entre pessoas de diferentes gerações.
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Portanto, é necessário que a ação evangelizadora nos ambientes educativos cristãos provoque e auxilie o protagonismo das crianças e jovens, em contribuição mútua com os educadores. É importante não só ouvi-los, mas proporcionar que sejam artífices de sua adesão aos valores dos Evangelhos. Francisco nos aponta este aspecto: “[…] sabem qual é o melhor instrumento para evangelizar os jovens? Outro jovem! Este é o caminho a ser percorrido por vocês!”39 Contudo, para as crianças e os jovens, essa dinâmica é consolidada em um processo gradual e sistemático. O tempo em que permanecem nos ambientes cristãos precisa ser significativo para esse seu crescimento. Os educandos vivem uma condição de estarem abertos para o mundo e o enxergam com entusiasmo, aprendendo mais e mais a cada dia, a partir de suas experiências anteriores e, assim, seguem em frente. Por isso, é imprescindível que lhes ofereçamos oportunidades para refletir sobre suas ações e agirem. Envoltos com educadores capazes de lhes proporcionar tais experiências, as crianças e os jovens crescem em autonomia, de modo a serem capazes de dar continuidade ao seu aprimoramento integral. Aqui, o texto de Lucas é igualmente esclarecedor. O evangelista conclui o relato sobre os anos da adolescência na vida de Jesus dizendo: “E Jesus crescia em sabedoria, idade e graça” (Lc 2, 52). Existe nesse versículo três dimensões: “Sabedoria” refere-se à capacidade de julgar, escolher, decidir; “Idade” refere-se ao crescimento físico e mental; “Graça” refere-se à abertura da pessoa à transcendência ou à espiritualidade. Assim, concluímos que é de fundamental importância que os ambientes educativos cristãos tratem dessas dimensões em diálogo com as crianças e os jovens, a fim de lhes proporcionar toda a riqueza existencial anunciada pelo Senhor.
Sensibilidade e amizade A vida é um processo de desenvolvimento e de integração que agrega e alivia conflitos. Conforme o tempo passa, assimilamos valores, melhoramos nosso senso crítico, estabelecemos e aprofundamos laços relacionais. Aos poucos, o ser humano abre-se ao outro e, por isso, vai tecendo uma existência Santa Missa pela XXVIII Jornada Mundial da Juventude, Rio de Janeiro, 28 de julho de 2013.
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provida de sentido. Seu crescimento é marcado por uma interação contínua entre individualidade e alteridade. Face a isso, o desenvolvimento para a maturidade compreende-se também como abertura aos outros, no qual se encontra a capacidade de compromisso e de agir com amor. É nessa dinâmica que Lucas, mais uma vez, inspira a nós cristãos em nossa relação com as crianças e os jovens. Na passagem de Lc 10, 38-42, encontramos Jesus em uma visita à casa de Lázaro, Marta e Maria. O nível de intimidade descrito no texto sugere que aquela não foi a primeira visita, mas uma entre muitas que ocorreu: Jesus está entre amigos.40
Mas se ambas são partes constitutivas da “casa” (ambientes de aprendizagem), por que será que Jesus repreendeu Marta? Ele diz “Marta, Marta, você se preocupa com tantas coisas, embora poucas são necessárias, de fato apenas uma coisa. E foi Maria quem escolheu a melhor parte, e não é para ser tirada dela” (10, 41-42). Afinal de contas, Maria escolheu estar com o mestre, ouvir suas palavras, envolver-se totalmente nessa relação: que é a melhor parte nessas atividades; a única necessária, de um ponto de vista totalmente humano. A postura de Jesus revela que o primordial em nossa ação deve ser sempre as manifestações de humanidade. Ela é o critério que pauta a reordenação de todos os compromissos e tarefas missionárias, pois representa o fator de organização da “casa”, seja em seu espaço interior ou em seu espaço comunitário. As crianças e os jovens enfrentam grandes desafios em seu caminho rumo à maturidade. E isso já basta para que nossa sensibilidade nos aproxime deles e nos comprometa com sua felicidade. Mas, para que sejamos essa presença Jo 11,5 reforça a tese de que Jesus mantinha uma profunda amizade com Lázaro e suas irmãs.
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Nessa passagem, o evangelista concentra-se nas duas mulheres, com quem Jesus estabelece um diálogo que deve ser lido com cuidado, e não superficialmente. Jesus está sendo atendido por Maria, enquanto Marta corre atrás de afazeres domésticos. As irmãs, de certa forma, representam duas dimensões presentes em toda casa e que podem ser aplicadas, também, aos espaços em que exercemos nossa missão: há o trabalho que exige responsabilidade, mas também há situação de acolhimento e aceitação carinhosa do outro que também reivindica compromisso. Marta representa a primeira situação, enquanto Maria, sentada aos pés de Jesus, a segunda.
significativa, também nós, educadores cristãos, precisamos estar cientes de que a pessoa possui prioridade diante das estruturas e dos projetos, de que o ser está acima do fazer e do ter.
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Em outras palavras, nossas estruturas educativas e missionárias precisam se converter na “casa” em que as crianças e os jovens aprofundarão sua amizade amorosa com o Senhor e, consequentemente, com toda a humanidade. Uma amizade que amadurece progressivamente e que alcança novos espaços: que parte de seu entorno (família, colegas, professores...), amplia-se à sociedade (solidariedade, cidadania, honestidade, ética...) e atinge o âmbito planetário (comunhão, ecologia, preservação dos ambientes...). Enfim, as crianças e os jovens constroem-se como pessoas plenas no encontro com o outro, nos relacionamentos consolidados em uma perspectiva afetiva, formativa e social. Diante disso, evidencia-se ainda mais a importância de nossa presença enquanto missionários junto a eles, a fim de incentivar essas experiências significativas de amor e de relações fraternas, que é o caminho proposto por este Evangelho e que pode ser o fundamento de nossa ação pastoral.
Instituição cristã: um lugar de acolhimento Acolhida é uma atitude de abertura para consigo mesmo e para com os outros. Para isso, é necessário criar um estado de despojamento interior e aceitar o outro como ele vem ao encontro. Quem recebe o outro abre mão de muitas realidades próprias: convicções, prazeres, tempo, posses etc. O mundo se abre, pois, a pessoa já não está egoisticamente voltada somente para si, para os próprios anseios, procura agora a convivência e a alteridade. Isso requer maturidade, que se alcança com o tempo e com o acúmulo de experiência. Mas não acaba em um estágio específico da vida, ou melhor, desenvolve-se até o momento de se entregar nas mãos do Senhor. Enquanto missionários, precisamos nos apresentar livres de posturas que nos impedem de ir até as crianças e os jovens, ao mesmo tempo que precisamos abrir nossas portas àqueles que vêm até nós.
O Evangelho de João (Jo 9), que narra o encontro entre Jesus e o Cego, é inspirador para nós no que diz respeito à acolhida de nossos interlocutores. O centro da história é um homem cego desde nascença que se tornou mendigo, vive como excluído, sendo considerado incapaz do convívio social. De certa forma, essa é a maneira como o mundo vê as crianças e os jovens: cegos, incapazes. Mas Jesus não age conforme o padrão social. Pelo contrário, aproxima-se do homem, olha-o como a um irmão e lhe propõe uma nova realidade. Como há reciprocidade, estabelece-se um diálogo amoroso entre os dois. Em seguida, Jesus, tocando seus olhos, orienta para que vá lavá-los em um espaço público.
Nossa missão provém do Senhor e, face a isso, precisamos converter nosso coração e nossas estruturas aos apelos que Ele nos faz hoje. Dessa forma, as obras cristãs configuram-se como lugares de acolhida, que permitem o crescimento pessoal e favorecem o desenvolvimento do potencial de cada criança e jovem que lhes são confiados. Nossas instituições são como o coração de Jesus: ao mesmo tempo capazes de tocar os olhos (criando proximidade) e de enviar as pessoas a lavarem os próprios olhos (incentivando a autonomia). A infância e a juventude representam uma fase de descobertas, em que a criança e o jovem se lançam ao mundo para viver o presente e construir seu futuro. Seguindo o exemplo de Jesus, podemos tornar nossas obras espaços ideais para acomodá-los e ajudá-los na descoberta de suas vocações. Portanto, cuidar é acolher, é chamar para dentro, é incluir o diferente, é oferecer proteção e liberdade em seu sentido mais profundo.
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Naquele momento Jesus desaparece de cena e fica por conta “daquele que agora vê” defender sua nova condição. Todo mundo sabia de sua cegueira, de sua vida de mendigo, mas tiveram dificuldades em aceitar a mudança e reconhecer que ele tinha agora recuperado sua autonomia e seu direito de participar nas decisões da comunidade. Todos o rejeitaram: as pessoas da vizinhança, os fariseus, os próprios pais, ninguém acreditou nele. O ápice dessa rejeição é a sua expulsão da sinagoga (Jo 9, 34). No fim da história, Jesus aparece novamente e o convida para ser seu discípulo: “Você crê no Filho do Homem?”; “Senhor, eu creio” (Jo 9, 35-38).
Essa oportunidade de experimentar o encontro significativo consigo mesmo, com os outros e com o Senhor auxilia as crianças e os jovens a desenvolverem uma interioridade rica, capaz de os impelir a criar vida em seu contexto e atuar para transformar o mundo. Por isso, nosso seguimento fiel ao Mestre nos leva a reconhecer nas crianças e nos jovens sua capacidade de protagonismo e seus dons e a valorizá-los como missionários nos seus contextos. Mediamos suas vivências para que concretizem no mundo os exemplos dos Evangelhos e que nos auxiliem a ser mais fiéis às nossas intuições fundacionais. Essas são as riquezas que se mostram como frutos de nossa postura de acolhida aos que nos são confiados.
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Educação cristã e promoção humana As Instituições Cristãs, no presente, continuam sendo desafiadas a cooperar na busca de soluções para os problemas humanos, com alternativas que ultrapassam a rota econômica como única possibilidade de alcançar a felicidade. É parte de sua missão institucional formar pessoas justas, que sejam profissionais competentes e sensíveis aos graves problemas que assaltam a sociedade, para impregná-la com espiritualidade. Por isso, ao passarem uma parcela de suas vidas nas obras cristãs, as crianças e os jovens têm o direito de experimentar práticas de ética e de respeito pela vida. Essas vivências os auxiliarão no discernimento para suas opções futuras, sejam de longo alcance ou do cotidiano. Por conta de suas origens, muitas Instituições Cristãs têm vocação mais ampla do que a oferta de uma educação apenas voltada aos saberes científicos. Elas propõem uma educação global e crítica, capaz de proporcionar um encontro entre a formação profissional de qualidade com cidadania, e isso se traduz no engajamento social para a busca criativa de solução de problemas mais graves, mas com uma postura solidária que brota de um coração maduro e rico em espiritualidade. Sem dúvida, o pleno de desenvolvimento humano, a primazia do bem comum e os atos de solidariedade, principalmente para com os mais desfavorecidos, traduzem o Evangelho no âmbito das obras educacionais confessionais.
Portanto, podemos interpretar a parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 2937) como referência para a ação evangelizadora nas nossas estruturas. As atitudes, a gestão e as disposições do Bom Samaritano convocam a nossa ação pastoral, motivando a formação para a solidariedade como um dos aspectos mais relevantes da espiritualidade de Jesus.
Os gestos do Samaritano são pedagogicamente apresentados por Lucas como um itinerário de amor eficaz: o samaritano que encontrou o homem praticamente morto “foi movido de compaixão ao vê-lo” (Lc 10, 33). Movido por compaixão, “ele foi até o Judeu e enfaixou suas feridas, derramando óleo e vinho sobre elas. Então o colocou sobre sua própria montaria e levou-o para uma hospedagem e cuidou dele” (Lc 10, 34). Antes de ir embora, o samaritano tomou alguns cuidados complementares, até que ele retornasse (cf. Lc 10, 35). Quando a parábola termina, Jesus diz a todos nós, da mesma maneira que disse ao mestre da Lei: “Vá, e faze tu o mesmo” (Lc 10, 37). Os gestos do Samaritano, como indicação da Lei do Amor indicada por Jesus, continuam em pleno vigor nos nossos dias e, por essa razão, inspiram nossa ação evangelizadora que deve objetivar uma educação para a solidariedade. As dimensões comunitárias, de catequese e de sacramento podem convergir nessa direção, apontando para a caridade efetiva que se traduz em misericórdia. Da mesma forma, o estudo catequético-bíblico e as celebrações podem ocorrer lado a lado com projetos de ação externa aos mais
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Jesus encontra-se em diálogo com um Mestre da Lei que indagou sobre os caminhos que levam à vida, ao que ele respondeu: “Ame ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua força, e com toda a tua mente, e ao teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10, 27). Não satisfeito, o Mestre da Lei pergunta “quem é meu próximo?” (Lc 10, 29). Jesus, então, responde com a parábola, deixando claro que o próximo é todo aquele a que se escolhe para estar perto, mesmo se ele ou ela está entre os últimos e mais distantes na esfera social. Na parábola, o Samaritano (excluído de Israel e considerado herege) se torna próximo do Judeu (que se julga o preferido de Javé) ferido caído ao lado da estrada.
necessitados, que envolvam o engajamento conjunto de professores e alunos, com foco na valorização humana.41 Em suma, os conhecimentos curriculares, as pesquisas, todos os projetos de natureza pedagógica que envolvam reflexão e ação, assim como a pastoral e as demais atividades das obras cristãs, precisam estar voltados para possibilitar às crianças e aos jovens que enxerguem o bem do ser humano e sua prática como aprofundamento da espiritualidade de Jesus.
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Pastoral como defesa e reafirmação da dignidade humana O subtítulo anterior tratou do aprofundamento da espiritualidade como uma dimensão de engajamento em favor da promoção humana, no sentido de resgatar as pessoas de suas situações mais críticas em relação à exclusão. Nesse âmbito, a espiritualidade se materializa na ação de misericórdia, que tem origem na própria ação de Deus para com a humanidade. Nesse tópico da dignidade humana, a misericórdia se estende e o foco no desenvolvimento humano atinge toda a integralidade do ser, em todas as dimensões que pudermos abordar. Dessa forma, a espiritualidade se refere a uma força interior que toca todas as perspectivas da pessoa, seja em seu aspecto individual ou no que tange a toda a sociedade humana. Por isso, nossas instituições têm a missão de não apenas buscar o melhoramento dos conhecimentos científicos da grade curricular, mas também garantir a sua aplicação para o bem comum. Volta-se para a dignidade do ser humano e tudo o que pode afetá-la: suas condições de vida, direitos básicos, cidadania, liberdade religiosa, acesso à educação, justiça, inclusão social, entre outros. A passagem de Marcos, que narra o encontro de Jesus com o cego Bartimeu, convida a olhar para o outro e reconhecê-lo como a si próprio, possibilitando que saia da margem, “da beira do caminho”, restaurando sua dignidade humana e inserindo-o na vida da comunidade. “Jesus parou e disse: ‘Chamai-o aqui.’ Então eles chamaram o cego. ‘Coragem’, eles disseram, ‘levanta-te; ele está te chamando’ [...]. Então Jesus disse: ‘O que você quer que eu te faça?’ O homem cego respondeu: ‘Rabbuni, deixe-me ver novamente.’ Jesus lhe disse, Cf. FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium, Cap. IV sobre a dimensão social da evangelização.
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‘vá; a sua fé te salvou.’ E, ao mesmo tempo, sua visão foi retomada e ele o seguiu ao longo da estrada” (Mc 10, 49.51-52). O compromisso com a dignidade ocorre tanto no âmbito local quanto global. Mas o primeiro é o compromisso local. Ao promover discussões e experiências práticas com as crianças e os jovens, os ambientes educativos cristãos os estimulam a pensar diferente, a serem sensíveis e solidários com as pessoas que passam por situações de miséria e dilaceração de sua condição de dignidade, e contribuem para criar uma cultura de solidariedade. Essa situação, porém, precisa ser vivida com sinceridade por todos os participantes de suas estruturas, educadores e educandos. Por isso é tão importante que reflexões e gestos brotem de uma espiritualidade provada no cotidiano.
Educação cristã e as necessidades da sociedade A presença de Instituições Católicas de Ensino na sociedade atual demonstra a nossa atenção e sensibilidade para os contextos que colocam a pessoa humana em situações de vulnerabilidade, especialmente crianças e jovens. A atitude de Maria nas bodas de Caná é um bom exemplo para as nossas iniciativas missionárias porque nos ensina a perceber os problemas dos outros e nos anteciparmos na prática da solidariedade. João (2, 1-11) narra essa festa em Caná da Galiléia. “E eles ficaram sem vinho, [...] e a mãe de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm mais vinho’” (Jo 2,3). Essa
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Consequentemente, a experiência circunscrita incrementa-se e atinge a esfera global. A humanidade urge de cidadãos conscientes que promovam a justiça, a paz e a superação das desigualdades. Da mesma forma, o planeta e toda a vida que nele habita pode ser compreendido como um “outro” que necessita de atenção e cuidado. Nossos contextos formam um “todo” e, em conjunto, são responsáveis pelo equilíbrio ambiental e pela perpetuação da vida. Por isso, nossas ações e estruturas precisam provocar a sensibilidade das crianças e jovens para que cresçam com um profundo amor às pessoas, ao planeta e a todos os seres vivos. Isso pressupõe a inclusão de perspectivas evangélicas em seus critérios de planejamento e de avaliação.
atitude de enxergar o outro e suas necessidades provoca um efeito de alcance mais amplo que atinge toda a comunidade: “Todo mundo serve primeiramente o vinho bom e depois o vinho pior, quando os convidados já estão bem servidos; mas tu guardaste o vinho melhor até agora” (Jo 2,10).
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As privações sociais que impactam as pessoas que nos cercam nos estimulam a compartilhar nossos dons, a fim de saná-las. Em grande parte, isso ocorre devido à tradição religiosa, pedagógica, ética e científica que temos e que vêm das nossas raízes fundacionais. Consequentemente, oferecemos o nosso “bom vinho” a todas as pessoas, mas principalmente às crianças e aos jovens, tanto em situações cotidianas quanto nas mais extremas. Em outras palavras, uma Instituição Cristã é explicitamente chamada para redirecionar os resultados das suas atividades em prol da comunidade. A passagem do livro de João possibilita-nos ainda outra reflexão. Simbolicamente, esse Evangelho também nos conduz a um aprofundamento de atitudes, ou seja, relaciona-se com uma prática que vai além da simples solução de problemas localizados – a falta de vinho em uma festa de casamento. Evidencia, assim, uma crença fundamental: a atitude inovadora de Jesus e a transformação que ele provoca na vida das pessoas, que permanece ao longo de suas existências. Aquele que provou do “bom vinho” já não se contenta mais com o “vinho ruim” e, por isso, buscará que essa “agradável bebida” faça parte de sua comunidade. Por conseguinte, acreditando no potencial das crianças e dos jovens, podemos nos tornar seus mediadores na sua experiência de uma espiritualidade inebriante e transformadora, que os faça crescer em uma solidariedade proativa e transformadora, seguindo, desse modo, o exemplo de Maria e de Jesus, os quais resultam em comunhão, participação pessoal e crescimento social.
Ambientes cristãos: lugares de encontro As estruturas cristãs apresentam-se às crianças e aos jovens como ambientes propícios para o encontro consigo mesmo e com os outros, interna e externamente. Sua identidade Missionária contribui para o desenvolvimento de outra dimensão desse encontro: o que ocorre com o Absoluto e que dá
sentido à existência integral de cada pessoa. A espiritualidade revela que o Altíssimo já está presente em nossa condição humana, é preciso apenas disposição para acolhê-Lo. A caminhada dos discípulos no caminho de Emaús revela essa realidade (Lc 24, 13-35). Jesus toma a iniciativa e se aproxima dos discípulos, falando-lhes aos corações. Ele sara suas memórias de fatos dolorosos relacionados à sua paixão, propõe uma hermenêutica de esperança para o presente e o futuro e valoriza-os e integra-os dialogicamente em uma rota que lhes dê sentido para a vida.
O encontro significativo com Jesus motiva o encontro amoroso com os outros e vice-versa, porque se origina na experiência pascal, permeada de amor e solidariedade com toda a humanidade. Por isso, esse encontro gera mudança interior e apelo missionário: “Então eles disseram um ao outro: ‘Não ardia nosso coração dentro de nós enquanto ele falava conosco no caminho e nos explicava as Escrituras?’ Eles partiram naquele instante e voltaram para Jerusalém” (Lc 24, 32-33). Emaús serve como lição para as obras cristãs. Por essa razão, priorizamos a formação de relacionamentos pautados na autonomia que se revela na atitude de amor ao próximo. As crianças e os jovens que participam de nossa ação educativa experimentam o crescimento para a maturidade, marcada por experiências de diálogo e alteridade. É essa maturidade, própria para cada etapa da vida e permeada pelo mistério pascal de Cristo, que os auxilia Cf. FRANCISCO. Evangelii Gaudium, n. 160-175.
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Nossas posturas e ações nas obras cristãs podem ser inspiradas por esse trecho do Evangelho de Lucas. A pastoral que propomos estrutura-se a partir da presença, do processo de encontro e relacionamento duradouro, que nos coloca em sintonia com um presente e um futuro cheios de sentido porque é acompanhado pela fé na presença do Senhor. A perspectiva cristã nos dá garantia de que Ele caminha conosco e nos converte a cada instante.42 Assim, Jesus nos aponta o caminho de uma pastoral do diálogo, da construção conjunta, que valoriza a experiência do outro e que é sempre dinâmica. Estes aspectos estão evidenciados nos Evangelhos e no Carisma de muitas Instituições Confessionais.
em seu discernimento diante de um vasto leque de possibilidades que a vida lhes oferece. Isso requer também educadores imbuídos da espiritualidade de Emaús, para que possam mediar e orientar as experiências das crianças e dos jovens na fidelidade ao Senhor.
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O relato de Lucas mostra a centralidade da temática pascal no encontro à mesa com o partir do pão: “E seus olhos se abriram e eles o reconheceram” (Lc 24, 31). Durante seu retorno para Jerusalém, os discípulos compartilharam entre si o que haviam experimentado: “O que havia acontecido no caminho e como o tinham reconhecido ao partir do pão” (Lc 24, 35). O estar juntos à mesa, o compartilhar do pão e da vida, torna-se uma dinâmica humana e sacramental que deve ser encorajada em nossa ação evangelizadora entre nossos educandos, à medida que passam pelas etapas de suas vidas no interior das nossas obras educacionais. Então, o processo de Emaús pode contribuir enormemente para inspirar as pessoas a descobrirem sua verdadeira vocação e investir nela, a buscar compreender qual é seu papel no mundo em que vive e compartilhar o crescimento mútuo com seus pares. Abre-se, assim, uma dinâmica do encontro em duas vias: de um lado, cada pessoa se projeta em direção ao crescimento do outro; por outro lado, o crescimento coletivo impulsiona cada indivíduo para a realização de seu projeto pessoal.
Educação cristã e escolhas O ato de escolher é uma dimensão inerente à condição humana. Passamos a maior parte de nossas vidas tomando decisões que nos impulsionam em direção à realização pessoal. É por isso que temos de deixar para trás tudo o que nos impede de alcançar nossas metas pessoais. Escolher significa tecer a teia da própria identidade, que é construída pouco a pouco na vida cotidiana. Como Paulo aponta sabiamente, todos nós somos instruídos a abandonar o velho e nos revestir do “Novo” (Ef 4, 24). Crescer, então, é um processo que coloca o ser humano em plena comunhão com o Criador, pois esse processo dinamicamente gera em nós “a imagem de si mesmo” (Gn 1, 27).
O trecho bíblico que narra o primeiro encontro de Jesus e Pedro mostra o relacionamento com Deus como libertador e capaz de produzir o desejo de uma autorealização mais profunda no Ser, além de trazer adiante uma capacidade criativa para a prática do bem. O Senhor não força ninguém a fazer nada, mas Ele toca corações, sensibiliza e seduz pessoas para que elas sejam seus artesãos nesta vida, apresentando um caminho viável para a felicidade.
Considerações finais O período da infância até a maturidade é especialmente marcado por uma imensidão de descobertas e escolhas que podem causar traumas e frustrações, principalmente quando se depara com situações de fracasso. Vimos no trecho de Lucas (Lc 5, 8.10b) que Jesus incentiva Pedro, pois acredita em seu potencial. Pedro está esgotado, não em razão do cansaço do trabalho, mas pelo infortúnio. Porém, ao se sentir amado pelo simples fato de Ser, Pedro encontra forças para efetivar sua vocação. Aqui reside o papel fundamental da ação educativa cristã, que é apoiar os jovens e as crianças unicamente por serem dons oferecidos pelo Senhor para enriquecer o mundo. Nossa presença significativa, nossas estruturas e nossos recursos podem ajudá-los em suas escolhas de vida, sem estarem vinculadas a interesses produtivos ou a qualquer tipo de retorno para o mercado. Acima de tudo, nossos contextos educacionais precisam constituir-se como espaços nos quais cada criança e jovem encontre sua vocação, descubra o melhor em si mesmo e coloque seus dons a serviço da vida.
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O encontro com Jesus extrai o melhor de Pedro. “Vendo isso, Simão Pedro caiu aos pés de Jesus e exclamou: ‘Retira-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador’ [...] Mas Jesus disse a Simão: ‘Não temas; doravante serás pescador de homens’” (Lc 5, 8.10b). Jesus confirma a perspectiva de que existe uma centelha divina em todos nós e que não há limites para os nossos sonhos. Além do mais, esse trecho evidencia que a capacidade humana de se superar é mais importante do que as limitações que carregamos. A presença de Jesus e sua inspiração nos demonstra que não precisamos ter medo de agir quando nossas opções se alinham com os valores e os conselhos dos Evangelhos.
Enfim, a Missão Cristã na Educação é engajar-se em uma formação que faz brotar a autenticidade das crianças e dos jovens, para que alcancem o máximo de seus potenciais, libertando-se de tudo o que se opõe ao que eles são chamados a Ser. Isso traduz, para o nosso tempo, o chamado de Jesus para Pedro, a fim de que cada um seja um “pescador de homens”. Com Jesus, assumimos essa missão complexa e árdua, porém gratificante, de trazer à luz o que há de melhor nas crianças e nos jovens.
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Desse modo, entendemos que os elementos de inculturação aqui apresentados a partir de textos dos Evangelhos possam corroborar com uma perspectiva mais prática para a aplicação da evangelização no âmbito da educação integral.
Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-SUL. Diretrizes da Ação Evangelizadora. 2. ed. São Paulo: FTD, 2014. FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013. Disponível em: <https:// w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html>. Acesso em: 10 dez. 2017. FRANCISCO, Papa. Santa Missa pela XXVIII Jornada Mundial da Juventude, Rio de Janeiro, 28 jul. 2013. Disponível em: <https://jovensconectados.org. br/15-frases-marcantes-do-papa-francisco-no-brasil.html> Acesso em: 15 dez. 2017.
ECLESIALIDADE, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO HUMANO Marcial Maçaneiro
Introdução A eclesialidade da educação católica pode ser tratada sob vários enfoques: pelas relações entre Escola e Pastoral, com foco nas ações evangelizadoras; pelo viés formativo-curricular, com disciplinas e conteúdos que traduzem a missão católica da Escola; pela incidência de um carisma congregacional que está na origem da Escola e inspira sua pedagogia, etc.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. 7 dez. 1965. 43
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Uma das formas de organizar esses enfoques, subsidiando tanto a reflexão quanto a ação, é partir dos elementos paradigmáticos: aqueles elementos fundamentais do ser e do agir da Igreja, que iluminam – mediante releitura contínua – os horizontes da educação católica. Caracterizam-se como paradigmáticos por serem elementos originários colhidos da Palavra de Deus, estáveis enquanto valores da identidade cristã e propositivos para nossas avaliações e escolhas. Desse modo, os elementos paradigmáticos subsidiam os elementos programáticos (projetos, metas, conteúdos, ações) que podemos eleger e implementar na escola católica. Essa foi a opção aqui tomada: apresentar os elementos paradigmáticos da eclesialidade (à luz da eclesiologia bíblica) e do projeto cristão de Humanidade (à luz da constituição pastoral Gaudium et Spes [GS]43), pontuando os conteúdos mais significativos para nossa missão de educadores na escola católica.
Elementos fundamentais da eclesialidade A Igreja, sinal do Reino de Deus
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A Igreja não é uma realidade autorreferida. Ao contrário, define todo o seu ser e agir em referência a Jesus Cristo, em quem se revela “o rosto divino do Homem e o rosto humano de Deus”. Toda a vida de Jesus – narrada nos Evangelhos e testemunhada ao longo do Novo Testamento – constitui o centro gravitacional da Igreja, a qual deve servir à “comunhão dos homens entre si e destes com Deus” (Lumen Gentium 1)44. Diversamente de uma gnose (salvação pelo conhecimento secreto da divindade) ou de uma filosofia especulativa (interpretação teorética da realidade), a Igreja é porta-voz de uma profecia de incidência histórica e alcance escatológico: “O Reino de Deus está próximo” (Marcos 1,15). Trata-se de uma esperança que se traduz em projeto, rascunhado na Criação do mundo e ensaiado nas várias Alianças que Deus estabeleceu ao longo da história humana, lida como História de Salvação. Com Noé, Abraão e os Profetas, dá-se uma sequência de Alianças, não restritas a Israel, mas inclusivas de toda a humanidade (cf. Gênesis 9,9-10 e 12,3; Isaías 42,6). Trata-se de uma pedagogia histórica e relacional, da qual Israel se torna exemplo pelo vínculo continuamente renovado entre Deus e o povo: “Eu serei vosso Deus e vós sereis o meu povo” (Jeremias 31,33). Essa Aliança se faz definitiva no Messias Jesus, em quem divindade e humanidade se encontram: Ele proclama o Ano da Graça, inaugura o Reino de Deus com seus gestos e palavras, agracia a todos com misericórdia, a começar dos últimos: deserdados, empobrecidos, enfermos e pecadores (Lucas 4,16-21; 5,17-25; 8,36-50; 15,1-2).
Comunidade discipular e missionária Para que a boa nova aconteça e se perpetue, Jesus congrega uma comunidade de discípulos, a quem educa para anunciar e testemunhar o Reino de Deus (cf. Mateus 4,18-22; 10,5-15; 28,19-20). Essa comunidade caracteriza-se como CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja. 21 nov. 1964.
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uma qahal presidida por Jesus: uma congregação de relações vinculantes, com partilha de mesa e de missão, unida ao Rabi de Nazaré. O termo qahal (comunidade de relações vinculantes) foi vertido para o grego como ekklesía (assembleia congregada), donde o significado originário de igreja: comunidade de discípulos com o Mestre, reunidos das diversas culturas e nações, para serem uma parábola viva do Reino de Deus, pela vivência do Evangelho (cf. Atos 2,42-47).
Pelo ministério da Igreja, a todos se comunica a Nova Aliança consumada pelo Messias Jesus em sua Páscoa, instauradora de uma nova humanidade: reconciliada com Deus Pai, vivificada pelo Espírito Santo, promotora das bem-aventuranças, solidária para com os últimos da sociedade, servidora da vida e da verdade entre as nações, sinal do Reino de Deus no mundo (cf. Lucas 6,20-23; 6,32-36; 22,19-20). E assim como Jesus exerceu sua missão na força do Espírito Santo, igualmente a Igreja cumpre sua missão sob as luzes do mesmo Espírito, o Consolador derramado em Pentecostes sobre os discípulos e sobre toda a Criação (cf. Lucas 4, 18-19; Atos 2,1-4). Promover essa Aliança ao longo dos tempos, pela acolhida do Reino de Deus nos corações e nas sociedades, constitui a evangelização da qual a Igreja se faz ministra: eis aqui o sentido radical do que é anunciado na pregação, celebrado nos sacramentos e aprimorado no discipulado contínuo dos cristãos. Desta boa nova derivam todos os demais projetos eclesiais com suas agendas: catequética e sacramental, social e educacional, cultural e ecumênica, missionária e inter-religiosa.
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Por sua vida, morte e ressurreição, Jesus estabelece os princípios espirituais, éticos e sociais de sua qahal, expressos nas relações novas que Ele propõe aos discípulos: do Pai, filhos (relação com Deus); no Filho Jesus, irmãos (relação com o próximo); pelo Espírito Santo, livres (relação com o mundo criado). Assim se evidencia a comunhão do Pai e do Filho no Espírito Santo como matriz para a comunidade eclesial: unidade na diversidade e diversidade na unidade, como um Corpo de membros diferentes, tendo Jesus por Cabeça (cf. Romanos 12). O batismo em nome da Trindade introduz os novos membros da Igreja nesta mesma comunhão (koinonia), com Deus e com os irmãos.
Eclesialidade da escola católica À luz dessas considerações sobre o Reino de Deus e a Igreja, podemos dizer que a eclesialidade na educação católica implica, basicamente, duas ações contínuas, que podemos entender como dois passos do mesmo percurso: • Assimilar, por comunicação e experiência, os elementos constitutivos da Igreja (explanados anteriormente).
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• Fazer incidir esses elementos, de modo transversal e pontual, nos conteúdos, métodos e relacionamentos da escola, incluindo a formação de docentes e colaboradores neste sentido. Com tais ações, será possível desenvolver um programa de evangelização no espaço educativo, com agentes da própria escola. Não só como pastoral para a escola, mas como escola em pastoral, sensibilizando e incluindo os variados sujeitos em educação (discentes, docentes, colaboradores e famílias). Essas duas ações marcam a escola como espaço de evangelização, pelos meios e recursos que lhe são próprios: valores humanos e educacionais, qualidade docente, projeto pedagógico, atividades religiosas, práticas solidárias e ênfases do carisma (no caso de escolas dirigidas por algum Instituto, Associação ou Congregação Religiosa). As escolas evangelizam enquanto espaço de educação integral, servindo-se de um Setor, Coordenação ou Equipe Pastoral, em diálogo e colaboração com a Direção, a Coordenação Pedagógica, o colegiado docente e demais instâncias disponíveis. Outra dinâmica será a inserção da escola na Igreja Local (em geral, a Diocese), na medida em que a escola mesma define seu projeto de evangelização: Promove atividades catequéticas? Inclui a liturgia sacramental no espaço escolar? Recorre à Palavra de Deus como referência de conteúdo e de espiritualidade? Celebra de algum modo os tempos litúrgicos de Quaresma e Páscoa, Advento e Natal? Programa iniciativas de conteúdo religioso e/ou cristão, através de gincanas, cine-fórum, teatro, enquetes com estudantes e contatos extraclasse? Propicia o encontro dos cristãos ali presentes (reformados, batistas, metodistas, pentecostais, luteranos, anglicanos)? Além disso, acolhe a diversidade religiosa de seus membros (kardecistas, budistas, judeus, muçulmanos, candomblecistas, etc.) como oportunidade de testemunhar os valores
universais do Evangelho? Essas questões deverão ser respondidas, primeiramente, pelos responsáveis da escola, respeitada sua missão e autonomia. A partir daí, será possível esclarecer a relação (pessoal ou institucional, eventual ou permanente) da escola com os organismos pastorais da Igreja Local (Diocese). Trata-se mais de interação do que absorção. Pois também a Igreja Local deveria compreender o lugar da escola católica no conjunto da Pastoral Orgânica diocesana, conforme às diretrizes da Igreja.
Projeto de humanidade segundo o evangelho
A antropologia cristã A antropologia cristã se caracteriza pela concepção integral da pessoa humana, aberta às relações com Deus, com o cosmos, com os demais humanos e com as criaturas da Terra. As dimensões pessoal, social e transcendente dão-se no mesmo sujeito humano, plural em seus fenômenos e unitário em sua natureza. O mosaico antropológico das qualidades e relações (homo faber, loquens, politicus, aestheticus, religiosus) configura a humanidade universal, num processo constante de paideia (aprendizado e aprimoramento mediante a educação) nos diversos espaçotempos da História. Mais que organismo bioquímico feito de água, carbono, oxigênio e minerais, possuidor de um sistema neural capaz de autoconsciência, o ser humano não se define nem se realiza apenas pelo exercício funcional de suas capacidades. Há nele expressões de beleza e de sentido, de afeto e gratuidade, que o constituem como sujeito transcendente: além de técnico, é artista; além de racional, é simbólico; além de biológico, é poético; além de matéria, é espírito – ruah
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Para sermos propositivos, destacamos aqui uma perspectiva missionária/ evangelizadora diretamente implicada na educação: o projeto de humanidade segundo o Evangelho, que inclui a dignidade da pessoa, a Criação como dádiva, o primado do bem comum, o desenvolvimento humano integral e o diálogo com a cultura, em coerência com a universalidade (ou catolicidade) da salvação em Cristo (GS).
(no dizer dos rabinos judeus), psiquê (no dizer dos sábios gregos) ou ésprit (no dizer dos humanistas franceses). Todas essas qualidades nos constituem, afirmando nossa singularidade entre as espécies, ao mesmo tempo filhos da terra e filhos do céu (MAÇANEIRO, 2011).
A nova humanidade em Cristo (cf. Gaudium et Spes 22)
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Na humanidade de Jesus Cristo – Palavra de Deus encarnada – se esclarece o mistério de nossa própria humanidade. Pois Adão, o primeiro homem, era efetivamente figura do futuro, isto é, Jesus. À medida que Jesus nos revela o mistério de Deus como Pai, revela também o ser humano a si mesmo e nos faz conhecer nossa vocação fundamental: filhos do Pai, irmãos em Cristo, livres pelo Espírito Santo. Sendo “imagem do Deus invisível” (Colossenses 1,15), Jesus representa o humano realizado segundo Deus; pois nele se cumpre nossa condição original de “imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1,26): interlocutores do Criador e intérpretes da criação, leitores da Palavra divina no mundo e cuidadores da vida, que nos foi confiada já no primeiro jardim (cf. Gênesis 2,15). Em Jesus, a natureza humana não é destruída, mas sim assumida; de tal modo que também nós fomos elevados em dignidade na humanidade d’Ele. Com efeito, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se a cada ser humano. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com um coração humano. Nascido de Maria Virgem, tornou-se verdadeiramente um de nós, “em tudo semelhante a nós, exceto no pecado” (Hebreus 4,15). Vivendo não para si mesmo, mas para Deus e os outros, de quem se fez próximo, Jesus proclamou a boa notícia do Reino, curou os enfermos, resgatou os pecadores, acolheu os excluídos. Atestou a dignidade humana ao afirmar que “não é o homem feito para o sábado, mas o sábado feito para o homem” (Marcos 2,27). Fiel a um projeto radical de amor, mereceu-nos a vida entregando a sua, até a efusão do sangue. Assim, cancelou os sacrifícios injustos e se apresentou como Cordeiro da nova aliança. Nele, Deus nos reconciliou consigo e entre nós, como irmãos e irmãs na humanidade do Filho Jesus (cf.
Efésios 2). O seu Evangelho é proposta de liberdade e responsabilidade, de amor traduzido em gestos, que nos liberta do egoísmo e da autossuficiência, para viver relações de amizade, justiça e fraternidade – atentos aos últimos, a quem a sociedade muitas vezes nega pão e esperança. Amando-nos ao extremo (cf. João 13,1), Jesus não só nos deu exemplo – para que sigamos os seus passos –, mas também nos abriu um caminho novo: o caminho pascal, horizonte de esperança, mistério de salvação no qual a vida e a morte recebem um novo sentido: “Quem guardar para si mesmo a sua vida, vai perdê-la; quem a perder por causa de mim, vai encontrá-la” (Mateus 16,25). Na sua Ressurreição confirma-se a nossa! Por isso – com insistente esperança – promovemos justiça e paz, diálogo e solidariedade, como afirmação da vida e prática das bem-aventuranças (cf. Mateus 5,1-16; João 10,10).
O primado do bem comum (cf. Gaudium et Spes 26) As conexões cada vez mais estreitas entre as pessoas, tanto intensas (relacionamentos e assiduidade) quanto extensas (fluidez e diversidade), fazem o bem comum – compreendido como o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar a justa e plena realização humana – ser hoje uma demanda universal. Por esse motivo, implica direitos e deveres que dizem respeito a toda a humanidade, em cada
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Enquanto cristãos, somos recriados conformes à imagem do Filho Jesus, que é primogênito entre muitos irmãos (cf. Romanos 8,29). Por Ele recebemos do Pai “as primícias do Espírito” (Romanos 8,23) – o Sopro da vida nova – que nos qualifica para a prática do mandamento novo do amor: “Amai-vos como eu vos amei. [...] Nisto todos reconhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (João 13,34-35). Este imperativo nos desinstala, ilumina novos discernimentos, urge-nos ao encontro do outro, acolhido como irmão no Senhor. Daqui brotam o diálogo para a unidade dos cristãos (cf. João 17,21-23), o encontro da fé com as culturas (cf. Atos 17,18-23) e a defesa da dignidade e dos direitos da pessoa humana sem distinção de etnia, nacionalidade ou credo (cf. Lucas 10,25-37).
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um dos níveis de convivência: local, nacional e internacional. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos, e mesmo o bem comum da humanidade como um todo, globalmente afetada pela economia, pelo clima, pelas guerras, pela política, pela migração, pelas mídias e outros fatores. Simultaneamente, firma-se a consciência da singular dignidade da pessoa humana, que – enredada com as demais criaturas na teia vital – detém direitos e deveres universais de base ética e mesmo jurídica, a serem garantidos e respeitados. Nesse sentido, a Igreja reconhece os direitos humanos no âmbito da comunidade internacional e conclama a todos, crentes e não crentes, a promovê-los. É necessário, portanto, tornar acessíveis à pessoa os bens de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à proteção da sua vida e à justa liberdade, inclusive em matéria religiosa. Ainda quanto ao bem comum, inserem-se nessa categoria: a paz entre os povos, os direitos de classe segundo a democracia, a participação dos trabalhadores no lucro das empresas, o exercício pleno da cidadania e os bens da Terra (solo, ar, água, grãos, fármacos e identidade genética), cujo acesso deve ser universal, protegido por leis nacionais e internacionais (GS 69-72; também Laudato Si’ [LS] 93-95).
O primado da pessoa sobre as coisas (cf. Gaudium et Spes 26) (T2) A cidadania e a governança, a economia e o desenvolvimento, devem reverter sempre em bem das pessoas, já que a ordem das coisas deverá estar subordinada à ordem das pessoas – e não o contrário. Jesus mesmo o demonstra, estabelecendo um princípio para o que hoje constitui a Doutrina Social da Igreja: “O sábado foi feito para o homem; e não o homem para o sábado” (Marcos 2,27). O primado da pessoa sobre as coisas – fundado na ética, edificado no direito e vivificado pela solidariedade – necessita desenvolver-se na liberdade das relações sociais, para consolidar-se de modo humano. Para
tal fim, têm sido necessárias a renovação da mentalidade, a introdução de reformas sociais, a afirmação dos direitos humanos, o combate à corrupção, o ordenamento ético da economia e a educação integral. Jamais se poderá valorar a pessoa por sua produção, ou as populações por sua utilidade mercadológica, subjugando o ser humano aos interesses financeiros, partidários ou ideológicos. Por isso mesmo, a Igreja se recorda antes de tudo dos que são postos à margem, descartados pelo mercado ou esquecidos nas periferias sociais e existenciais. Sobre estes, Jesus nos diz: “Tudo o que fizeste a um desses pequeninos, a mim o fizeste” (Mateus 25,40).
Educação integral (Gaudium et Spes 61-62)
Nesse cenário, a Igreja é desafiada pelo Evangelho a se posicionar: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias da humanidade de hoje, sobretudo dos pobres e todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não há nada de verdadeiramente humano que não ecoe em seu coração” (GS 1). Perfila-se, assim, o humanismo cristão de raiz bíblica e síntese clássica, dinamizado pelos sucessivos contextos históricos e relido continuamente, à luz dos “sinais dos tempos” (GS 11). Seu fundamento está na encarnação do Verbo (cf. João 1,14): em Jesus Cristo, Deus assume a humanidade integralmente. Daí o valor que a Igreja reconhece na pessoa humana em todas as suas dimensões (moral, intelectual, afetiva, social e transcendente) a serem de-
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Num mundo ferido pela violência, de um lado, e pela indiferença, de outro, há sempre o risco de desumanidade, com reducionismos antropológicos, descarte dos mais pobres, sectarismos e cancelamento do “outro”. Voltam à cena nacional e internacional as manifestações integristas, que usam elementos religiosos e ideológicos como fatores de oposição identitária: para se afirmarem, negam e agridem os que são diferentes, descurando gravemente a humanidade que todos nós partilhamos. Felizmente, em reação a esses fatos, vozes se levantam e iniciativas se promovem, envolvendo pessoas e instituições na contenção de conflitos, na assistência humanitária, na intervenção social e educativa, nos voluntariados, nas cooperativas de economia solidária, na saúde preventiva, etc.
senvolvidas de modo integral. Não só com foco nos conteúdos e habilidades, mas nas relações que fazem do indivíduo uma pessoa (persona = um ser que ressoa, que se comunica, que interage).
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Este viés humanístico inclui a Comunicação, as Letras, a História, a Filosofia, as Artes, a Ética, a Política e também a Economia, pelas quais o ser humano se realiza como “autor da cultura” (GS 55). A Igreja propõe que as demais Ciências e Tecnologias sejam promovidas em face das Humanidades, tendo-as sempre presentes, em vista de uma educação integral que inclua duas questões: A questão do sentido: não só o sentido da vida em perspectiva moral e transcendente, mas também “o sentido da cultura e da Ciência para a pessoa humana” (GS 61). À falta desse viés, se arrisca uma educação parcial, sob a pressão do tecnicismo, do materialismo e do consumismo: se a humanidade é negligenciada, as Ciências e as Tecnologias (bem como a Economia e a Política) se desumanizam. A questão dos valores: pela consideração da vida e dos bens da natureza como dádiva do Criador, nunca redutíveis a um produto da indústria humana. Claro que a inteligência humana é convidada a participar do ato criador de Deus pela pesquisa, criatividade e engenho, no campo dos saberes e tecnologias. A questão é distinguir o valor peculiar dos bens (sobretudo os bens vitais) que não resultam da mera tecnologia nem deveriam ser tratados como mercadoria. Aqui estão fundamentalmente os bens naturais como: água, solo, ar, flora e fauna, clima, substâncias medicinais naturais e identidade genética (cf. LS 5, 67-69, 90, 93, 95, 165). De fato, muitos dos males mencionados se enraízam ou agravam nos reducionismos antropológicos que fragmentam a pessoa, estreitam a visão do mundo e do outro, resultando em posturas unidimensionais, menos dialógicas e mais intransigentes. Quando se perdem as perspectivas de sentido (que nos direciona à transcendência, à solidariedade e aos projetos de vida fecundos) e de valor (que dimensiona o justo lugar do corpo, da vida humana, da natureza em geral e do uso benéfico das tecnologias), arriscamos nos perder também. Em previsão desses riscos, a escola cristã deve zelar pela educação integral – entendida como plataforma estratégica para um desenvolvimento
igualmente integral da pessoa e da sociedade. Quando o foco da Economia é o lucro – e não mais o serviço à humanidade –, deixamos de ser autores para ser objetos do mercado financeiro. Quando o foco da Política é o poder – e não mais o serviço público do bem comum –, damos espaço à busca de privilégios e à corrupção. Quando o foco das Ciências é o domínio da Natureza – e não mais o cuidado da vida –, negligenciamos o planeta e damos vez à depredação dos recursos naturais.
Desenvolvimento humano integral (cf. Gaudium et Spes 64-65)
Em nossos dias, para gerir o aumento populacional e satisfazer às crescentes demandas e aspirações da sociedade, com razão se procura aumentar a produção agrícola e industrial e a prestação de serviços. Para isso se deve favorecer o aprimoramento técnico, o espírito de inovação, a criação e ampliação dos empreendimentos, a adaptação dos métodos e os esforços de todos os que participam na produção; numa palavra, favorecer todos os fatores que contribuem para tal desenvolvimento. Contudo, a finalidade fundamental da produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou o poderio, mas o serviço ao ser humano; ao ser humano integral, isto é, tendo em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de qualquer pessoa ou grupo de pessoas, de qualquer etnia ou região do mundo. A atividade econômica, regulando-se pelos métodos e leis próprias, deverá ser exercida nos limites da ética pessoal, social e ambiental, para que se cumpra o desígnio de Deus sobre todo ser humano: crescer em estatura (dimensão biológica), sabedoria (dimensão cognitiva) e graça (dimensão espiritual), diante de Deus (com transcendência) e dos homens (com sociabilidade) – a exemplo da humanidade de Jesus (cf. Lucas 2,40).
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A proposta cristã de educação e desenvolvimento integrais busca reordenar à humanidade as atividades da Ciência, da Economia, da Política e das Tecnologias, sem esquecer a Religião. O ser humano é tomado como fim de todas essas esferas de ação e decisão, para ser efetivo sujeito do conhecimento, da ética, da técnica, da governança e também da espiritualidade.
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O desenvolvimento econômico, particularmente, deverá permanecer sob a direção do reto juízo humano: nem ser entregue ao arbítrio de alguns poucos indivíduos ou grupos economicamente mais fortes, nem ficar à mercê da comunidade política ou da negociação de algumas nações ricas. Pelo contrário, é necessário que, em todos os níveis, participe da direção e das decisões o maior número possível de pessoas, bem como de nações, quando em contexto internacional. De igual modo, é necessário que as iniciativas dos indivíduos e dos grupos privados sejam coordenadas com os poderes públicos, interagindo e organizando-se com estes. O desenvolvimento não pode ser abandonado ao curso quase mecânico da atividade econômica, nem à autoridade pública somente. Por isso, devem denunciar-se como errôneas tanto as teorias que, a pretexto duma falsa liberdade, se opõem às reformas necessárias, como as que sacrificam os direitos fundamentais das pessoas particulares e das associações à organização coletiva da produção. Afinal, constitui um direito e ao mesmo tempo um dever dos cidadãos – com reconhecimento do poder civil – contribuir segundo suas possibilidades para o verdadeiro desenvolvimento da própria comunidade. No caso das regiões economicamente menos desenvolvidas, onde é urgente empregar os recursos disponíveis para suprir as necessidades de todos, cabe um alerta: colocam o bem comum em perigo todos aqueles que mantêm seus recursos sem dar frutos, ou – salvo o direito pessoal de migração – privam a sua comunidade dos meios materiais ou espirituais de que ela necessita.
Perspectivas Os elementos de eclesialidade e projeto cristão de humanidade, propostos acima, são básicos e paradigmáticos. Não servem de receita, mas de critério; não compõem sozinhos uma metodologia, mas têm grande apelo pedagógico. Incidem na Escola católica na medida em que incidem nos sujeitos e nos projetos ali postos. Com foco nos sujeitos, esses critérios e valores necessitam ser conhecidos e argumentados, revelando seu sentido e o quanto prospectam o modo cristão de ser, de viver e de relacionar-se. Jamais alcançados de modo pleno, são, contudo, um télos: uma meta inspiradora, um horizonte
Referências CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja. 21 nov. 1964. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_ councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html>. Acesso em: 5 dez. 2017. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. 7 dez. 1965. Disponível em: <http://www. vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_ const_19651207_gaudium-et-spes_po.html>. Acesso em: 5 dez. 2017. FRANCISCO, Papa. Encíclica Laudato si’ sobre o cuidado da Casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015. MAÇANEIRO, Marcial. O labirinto sagrado. São Paulo: Paulus, 2011.
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de sentido que nos faz avançar, um antever de ideais que podem se fazer realidade à medida em que são assumidos e partilhados. Aqui entra, naturalmente, a educação dos próprios educadores (pais, docentes, colaboradores) junto com os educandos (estes também sujeitos de relação e reação). Por outro lado, com foco nos projetos, esses mesmos critérios e valores necessitam ser claramente conceituados, narrados e inscritos – com linguagem adequada – nos projetos pedagógicos, no código ético e nas marcas de identidade da Escola católica. Não, porém, de modo meramente escriturário e fixista, como se palavras-chave já bastariam para assegurá-los. Pois isto teria pouco sentido para as pessoas e se tornaria um ideário artificial. Os elementos fundamentais da eclesialidade e do projeto cristão de humanidade se comunicam mediante diálogo e avaliação, ensaios e reinterpretações. Necessitam, para isso, ser transmitidos a partir de suas fontes, com expressões novas, que encantam e instigam a reflexão. Tocarão nossos projetos ao mesmo tempo que tocam as pessoas, convidadas a compreendê-los como mediação e ferramenta de construção do humano em todas as suas relações: consigo mesmo, com o próximo (mirando também aos últimos da sociedade), com as criaturas da Terra e com o Criador.
CURRÍCULO E PASTORAL: CONCEPÇÃO, LUGARES E EVIDÊNCIAS45 Keles Gonçalves de Lima Edson Mendes
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Introdução No campo da educação, o currículo é um território em disputa46 ocupado por concepções ambivalentes e por ocupações culturais, sociais, econômicas e políticas. Contemporaneamente, o verbo “ocupar”, substantivado, ganhou repercussão no processo histórico da realidade brasileira. Esse movimento,47 alavancado por jovens estudantes, envolveu inquietações e rupturas, criou iniciativas, construiu possibilidades e questionou a atual conjuntura da política educacional brasileira. Parafraseando esse acontecimento e com o olhar abrangente no território da escola, pensar na perspectiva do currículo é também dialogar com algo que “é o núcleo e o espaço central mais estruturante da função da escola. Por causa disso, (o currículo) é o território mais cercado, mais normatizado. Mas também o mais politizado, inovado, ressignificado”.48 A partir dessa concepção, torna-se imprescindível refletir sobre o papel dos sujeitos que ocupam/constituem esse “núcleo e espaço” e, como em permanente marcha de participação efetiva, podemos favorecer o empoderamento dos sujeitos presentes no currículo, considerando diferenças culturais e religiosas, bem como incompletudes. Este texto teve a leitura crítica de Sheila Pomilho e Viviane Aparecida da Silva, e contribuições de Glaucio Luiz Mota na escrita. 46 ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 47 PALHARES, Isabela et al. Ocupações em escolas recriam movimento estudantil. O Estado de S. Paulo, 29 nov. 2015. 48 ARROYO, 2011, p. 13. 45
O ato de educar favorece uma ambiência capaz de contribuir com um processo de aprendizagem que considere o sujeito em suas experiências singulares e coletivas, nas quais a interação pressupõe uma tomada de consciência de valores como alteridade, cooperação, fraternidade, justiça, liberdade, paz, respeito, simplicidade e solidariedade. Além disso, pensar nesses sujeitos e em suas interações pressupõe que a ação pastoral e o contexto evangelizador possam proporcionar espaços de garantia de direitos e de convivência fraterna entre as diferentes expressões culturais, religiosas e não religiosas. Para isso, ampliamos nosso foco, fazendo uma relação com o que se pretende neste texto: discutir as evidências pedagógicas que dão luz à atuação da pastoral no currículo.49 Para tanto, nossa questão orientadora discutirá: “Qual é o lugar da pastoral dentro do currículo escolar e que evidências pedagógicas estão explícitas ou implícitas em sua atuação evangelizadora?”.
Currículo: lugares de articulação e de encontros “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo. E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos”. (Fernando Pessoa) Desde 2015, os pastoralistas das unidades sociais e educacionais da Rede Marista de Solidariedade, coordenados pelo assessor de pastoral Glaucio Luiz Mota, da diretoria executiva de Ação Social dessa mesma rede, realizaram um processo de ressignificação da pastoral no currículo com a intenção de ampliar as reflexões sobre evangelização de forma interdisciplinar. A partir dessa intencionalidade, surgiram inúmeras reflexões, produções de conhecimento e instrumentais, sempre integradas às diretrizes institucionais e eclesiais. A síntese dessa trajetória foi sistematizada num documento interno: “Parâmetros para a Ação Pastoral: evangelização nas unidades sociais e educacionais”, disponível em: <https://issuu.com/grupomarista/docs/af_rms_parametrospastoral_a4_web>.
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Ao tentar responder a essa questão – recorrente em escolas confessionais católicas –, serão expostos conceitos, pressupostos metodológicos e outras especificidades que demarcarão este debate. A proposta deste texto é colocar em evidência a ação pastoral no currículo e como seria possível contribuir para que a educação-evangelizadora possa gerar comunidades educativas fundamentadas nos valores cristãos e éticos, de alteridade e de justiça social.
Propondo-se a caminhar no ciclo da história, fazendo do tempo uma travessia; ao refletir sobre as concepções de currículo, pode vir à tona um questionamento bem peculiar a respeito de quais conhecimentos queremos considerar ao compor um currículo.
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Sendo o currículo esse território em disputa,50 há, portanto, uma inegável relação de poder que se estabelece nos espaços e nos tempos das escolas e das universidades. Por mais que a tendência educacional atual tenha intenção interdisciplinar e/ou intercultural para a relação entre saberes e culturas, há outras concepções que reforçam a hierarquia entre saberes e culturas. As teorias curriculares representam essas concepções no território em disputa do currículo. Trata-se de noções e conceitos que correspondem a uma visão de mundo que determina a prática da respectiva teoria curricular. Além de o currículo ser uma questão de conhecimento, é também de identidade, e é sobre essa questão que se concentram também as teorias.51 Os discursos, as oposições, os tensionamentos, as resistências, os posicionamentos não definem o currículo, mas ajudam a constituir uma teoria de currículo, ou o que “um discurso curricular busca responder”.52 Ou seja, o currículo tem uma identidade que corresponde ao que é demarcado pelos interesses dos sujeitos desse currículo. Parece ficar evidente que as teorias tradicionais são aquelas que correspondem à rubrica da ordem moderna53 e à racionalidade/colonização dos saberes.54 No enfoque tradicional de currículo, o conhecimento é concebido como algo inerte e objetivo, e o professor apenas o transmite. Sem problematizá-lo ou questionar a serviço de quem está o currículo, o aluno, por sua vez, apresenta-se como um receptor passivo desse conteúdo transformado em objetos de ensino. No entanto, as teorias tradicionais alegam ser “neutras, científicas, desinteressadas”.55 O currículo é tradicional e técnico, centra-se nos aspectos ARROYO, 2011. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 52 SILVA, 2007. 53 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. 54 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010. 55 SILVA, 2007, p. 16. 50 51
instrumentais e econômicos, e volta-se para as exigências do mercado de trabalho, tanto para funções técnicas quanto profissões de nível superior. Mas, atualmente, o currículo escolar não pode ser mais entendido como um conjunto de disciplinas, pois também “se constitui em processo, movimento, dinâmica, política que integra a projeção e desenvolvimento de uma intencionalidade educativa”.56 A partir desse novo paradigma, surgem outras teorias curriculares. Entretanto, a teoria crítica é aquela que pauta as lutas de classe e se confronta com as estruturas econômicas que resultam em desigualdades.
Entretanto, Paulo Freire influenciou de maneira significativa vários autores críticos que tratavam de perspectivas curriculares com sua obra Pedagogia do Oprimido.60 A síntese de sua crítica está no conceito de “educação bancária”, que encara o conhecimento transferido do professor para o aluno como um ato de depósito bancário. Nessa concepção, “o educador exerce sempre um papel ativo, enquanto o educando está limitado a uma recepção passiva”.61 Henry Giroux,62 inspirado pela libertadora concepção de educação de Freire, sugere combater a dominação e o controle exercidos por determinados saberes e culturas hegemônicas por meio de mediações educativas que favoreçam ações transformadoras para ressignificar o currículo. EYNG, Ana Maria. Currículo escolar. 2. ed. rev. atual. Curitiba: Intersaberes, 2012. p. 16. SILVA, 2007, p. 29. 58 De acordo com SILVA, 2007. 59 SILVA, 2007, p. 48. 60 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 35. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. 61 SILVA, 2007, p. 58-59. 62 Apud SILVA, 2007. 56 57
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A década de 1960 foi de grandes agitações e transformações. Nesse contexto, “as teorias críticas do currículo efetuam uma completa inversão nos fundamentos das teorias tradicionais”.57 Autores como Michael Apple,58 em sua pedagogia que parte dos elementos centrais do marxismo, coloca o currículo no centro das teorias educacionais críticas, relacionando-o às estruturas mais amplas, contribuindo assim para politizá-lo. “Apple procurou construir uma perspectiva de análise crítica do currículo que incluísse as mediações, as contradições e ambiguidades do processo de reprodução cultural e social”.59
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No entanto, a teoria pós-crítica, em complementação à teoria crítica, problematiza as relações de poder para além das estruturas de classe e econômicas, aprofundando as questões que tratam sobre as subjetividades, as identidades e as diferenças culturais. Reafirmamos que o sufixo do pós-crítico não representa o fim da teoria crítica, mas uma condição mais apropriada de aprofundar algumas tematizações pós-modernas, uma vez que essa teoria nasce, justamente, na condição pós-moderna, incorporando novos elementos narrativos63 da atualidade ao currículo. Contudo, o currículo pós-crítico abdica o currículo linear, sequencial e estático, apresentando como contraponto um currículo marcado pela consideração da indeterminação e da incerteza. Sob influência do pós-estruturalismo,64 que considera a filosofia da diferença a base para esse tipo de pensamento, sem fixar os significados, ou seja, a significação que um sujeito atribui para a Evangelização não terá exatamente a mesma tradução que o seu par fará sobre esse significante, ainda que seja num mesmo contexto evangelizador. Após conhecer as teorias críticas e pós-críticas, não podemos mais ser ingênuos na compreensão das relações sociais de poder que concebem o currículo.65 “Torna-se, portanto, necessário constituir pensamentos curriculares que possam servir de linhas de fuga, ideias-força, canais de vazamento para outras ideias curriculares, outras abordagens”.66 É preciso considerar outros elementos narrativos, sobretudo os invisibilizados, fazer e incluir outros discursos. Isso significa problematizar, dialogar e instigar o educando na sua relação com a realidade. As teorias tradicionais pretendem ser apenas “‘teorias’ neutras, científicas, desinteressadas. As teorias críticas e pós-críticas, em contraste, argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente, implicada em relações de poder”.67 LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1998. Autores como Michel Foucault e Jacques Derrida são considerados influenciadores do pós-estruturalismo ou pós-estruturalistas. 65 SILVA, 2007. 66 CHIQUITO, Ricardo Santos; EYNG, Ana Maria. Escrita curricular: algumas considerações a partir das abordagens pós-estruturalistas/pós-críticas do currículo. Trabalho apresentado no GT Currículo. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO – ANPED, 31., 2008, Caxambu. p. 11. 67 SILVA, 2007, p. 16. 63 64
De forma alguma se quer desconsiderar a tradição dos conhecimentos e saberes historicamente construídos, mas o que faremos com as culturas e saberes invisibilizados? Qual “cultura do encontro”68 queremos provocar em nossos currículos? A evangelização é somente para alguns escolhidos ou também é para o diferente?
Relação do Agir Pastoral com as Teorias Curriculares Nas experiências de ações pastorais nas unidades educacionais (educação básica e ensino superior), a pastoral tem desempenhado seu trabalho no campo litúrgico, celebrativo e catequético. Em alguns casos, a pastoral tem em seu escopo de ações o Ensino Religioso, já em outros são entendidos como parceiros, mas compreendidos como campos específicos e singulares.
Qual é o papel da Inculturação do Evangelho nesse contexto? Seria papel da Inculturação do Evangelho dialogar com outros saberes e culturas no currículo? A pastoral tem seus próprios saberes? Como entendemos o papel da ação pastoral no currículo? A pastoral é um conteúdo? É uma disciplina? É a mesma coisa que o Ensino Religioso? Que tipo de catequese queremos? Queremos uma pastoral focada somente no campo litúrgico, celebrativo e catequético? Há espaço e tempo para a pastoral para além do campo litúrgico, celebrativo e catequético no currículo? A pastoral tem condições de dialogar com outras culturas e saberes para ampliar o alcance do Evangelho? A ação pastoral tem ou precisa ter um currículo, ou já está integrada ao currículo das unidades educacionais católicas? Em qual ou quais teorias do FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013. 68
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A evangelização disputa espaço no currículo por meio de ações pastorais, mas nem sempre encontra espaço e tempo na formação continuada ou, quando há algum espaço e tempo, pode acontecer por abordagens fragmentadas, ou com pouca interdisciplinaridade, uma vez que os professores têm dificuldade em integrar os saberes pastorais aos seus planejamentos.
currículo a pastoral tem mais identificação ou atuação? Em que outros lugares do currículo a pastoral teria tempo e espaço? Podemos perceber que, no processo histórico de constituição das teorias do currículo, o campo da educação evangelizadora torna-se fértil para a missão de educar com fundamento na pedagogia de Jesus Cristo, caracterizada na escuta, no ensino, na aprendizagem e na transformação da realidade.
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A identidade da educação católica tem referencial nessa pedagogia que fundamenta a constituição dos seus currículos como lugares de encontro. Contudo, os encontros dos sujeitos do cotidiano educativo carregam crenças e estão em busca da emancipação de suas vidas por meio da vivência de uma espiritualidade que favoreça a transcendência de suas limitações e a sua relação com o sagrado. Dentro dessa perspectiva, os espaços e tempos escolar e universitário devem propiciar o exercício de aproximação com o outro e de suas realidades vividas, estimulando a arte da escuta, que: é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder plenamente ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria vida.69
O modo de pensar a educação das escolas e universidades católicas pode trazer em sua identidade a possibilidade de ser um espaço de escuta e encontro de diversas culturas, partilhando essas experiências e vivências educativas articuladas com saberes do cotidiano e com os conhecimentos escolares e acadêmicos. PAPA FRANCISCO, 2013, n. 171.
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Essa articulação educação-evangelização tem na ação pastoral sua principal dinamizadora nesse processo. Uma vez reconhecido que a pastoral também tem seus saberes constituídos, cabe favorecer espaços e tempos para que eles sejam transversalizados no currículo. Não se trata de incluir um novo conteúdo ao currículo, como se os saberes pastorais fossem uma disciplina ou área de conhecimento, mas de contribuir na ressignificação dos conteúdos e das práticas pedagógicas existentes à luz dos valores evangélicos, considerando cultura e religiosidade dos estudantes. Partindo dessa intencionalidade, na sequência do texto teremos indicativos de como pode ser delineada a ação pastoral dentro dos processos educativos do currículo, e dessa forma contribuir para efetivar a formação de sujeitos e de seus territórios, atribuindo um sentido de acolhimento e participação plena à construção coletiva do Reino de Deus.
“Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.” (Manoel de Barros)
Nessa visão inquietante, daquele ou daquela que constrói, desconstrói e reconstrói saberes e possibilidades, problematizando e se lançando à descoberta do Outro que partilha buscas em comum, é onde encontramos a práxis educativa. Mas o que significa o agir pastoral na práxis educativa? Como essa atitude de serviço pastoral pode incidir no processo de ensino e de aprendizagem que considera a educação evangelizadora uma dimensão fundamental e emancipadora de sujeitos e territórios onde estão inseridas as escolas e as universidades católicas?
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Desafios da práxis escolar e acadêmica: integrando a ação pastoral
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Por mais que se considere as teorias curriculares críticas e pós-críticas, a base de nossos currículos da educação básica e do ensino superior é organizada por componentes curriculares, áreas de conhecimento e disciplinas, com exceção de propostas que trabalham com currículos inovadores e outras com foco ou integrados à metodologia da pedagogia de projetos70 sociais e culturais. Isso exige o desenvolvimento de linguagens e novos conteúdos que favoreçam a interdisciplinaridade, para que a ação pastoral possa alcançar a integralidade das faculdades intelectuais, físicas, emocionais e sociais presentes nos conhecimentos e saberes preestabelecidos. Na concepção de educação integral, interdisciplinar e evangelizadora, seu cerne está na igualdade entre os participantes e no direito de todos a desenvolver e expressar suas potencialidades – emocionais, físicas, intelectuais e científicas –, que não acontecem de maneira fragmentada, mas concomitantemente. A educação integral é o caminho para esta superação, e um passo na transformação da sociedade, pois pretende educar o homem sem separar o trabalho manual do trabalho intelectual, pretende desenvolver as faculdades intelectuais, mas também desenvolver as faculdades físicas, harmonizando-as. E, além disso, pretende ainda trabalhar numa educação moral, uma formação para a vida social, uma educação para a vivência da liberdade individual em meio à liberdade de todos, da liberdade social.71
Logo, em perspectiva integral, o currículo da educação católica precisa articular o viés evangelizador com os conhecimentos, competências e saberes escolares construídos histórica e culturalmente pela humanidade. Busca-se uma relação entre fé e vida que contemple a transcendência e a intervenção do sujeito na realidade, a fim de transformar seus espaços e tempos em um exercício constante de cidadania. Nessa perspectiva, o projeto educativo e a Uma fonte para a concepção da pedagogia de projetos está em HERNÁNDEZ, Fernando; VENTURA, Montserrat. A organização do currículo por projetos de trabalho: o conhecimento é um caleidoscópio. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. 71 GALLO, Sílvio. Pedagogia Libertária: anarquistas, anarquismos e educação. São Paulo: Intermezzo, 2015. p. 36. 70
proposta de evangelização identificam-se, inter-relacionam-se e são compatíveis, ou seja, encontramos sentido da pastoral no currículo.
A ação pastoral no currículo Uma característica fundamental na vida da comunidade educativa católica é o cultivo dos valores cristãos na formação dos estudantes, para que possam ser cidadãos corresponsáveis na construção da civilização do amor. A pastoral tem grande responsabilidade nessa missão, pois tem por característica proporcionar uma evangelização de forma planejada, orgânica, progressiva e permanente, tornando concretos os objetivos de diálogo com seus interlocutores; e o Evangelho, inculturado em diferentes realidades.
Mesmo com esta realidade tão perversa, há sinais de esperança com o crescimento da consciência dos direitos humanos. Avançamos no serviço à vida humana e no crescimento da responsabilidade com o meio ambiente, cresce o empenho daqueles que trabalham pela paz e dos que lutam contra as injustiças. Os pobres e marginalizados estão lutando para se livrar de estruturas opressivas, e outros, mesmo não estando em situações extremas, se juntam a essas causas. Ter uma visão de mundo a partir das necessidades de crianças, jovens, famílias e comunidades, sobretudo as empobrecidas, é uma condição para a ação pastoral. Reconhecemos que esses sujeitos têm a capacidade de compreender e de expressar, por meio de diversas linguagens, a experiência de Deus, do sagrado e de sua relação com a defesa da vida. Independentemente das condições sociais e econômicas, há um clamor em comum, uma comunhão de histórias e de sentidos, de experiências místicas e de contato com o sagrado que tocam o coração daqueles que procuram o Reino de Deus pela
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No contexto atual de crises, a sociedade se vê ameaçada pela cultura do descartável, pelas desigualdades sociais e pela falta de oportunidades educativas emancipadoras. Além disso, muitos sofrem violência e discriminação, sobretudo os menos favorecidos economicamente, e isso afeta diretamente as relações e a forma como esses sujeitos se expressam na sociedade.
prática da solidariedade e da justiça, como modo de ser e de viver o Evangelho em suas vidas. Independentemente da religião que a criança ou o jovem professem, torna-se imprescindível o papel dos educadores na mediação para a vivência da espiritualidade e em propor um processo educativo fundamentado na formação de um cidadão humanizado, mais sensível e acolhedor, capaz de olhar o mundo e de se sentir responsável por fazer deste mundo um lugar melhor.
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Contudo, processo pastoral e processo educativo devem seguir lado a lado, pois assim a ação pastoral é realizada aliando ciência, fé e cultura, otimizando a difusão dos valores cristãos por meio de uma íntima relação com a práxis pedagógica e com as culturas dos estudantes. De acordo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja,72 o empenho de todo ser humano no campo da cultura perpassa pela dignidade da pessoa humana através de escolas livres e abertas à liberdade de expressão, pesquisa, ao debate e ao diálogo. “O empenho pela educação e pela formação da pessoa constitui desde sempre a primeira solicitude da ação social dos cristãos”.73 Uma educação visa efetivamente “ao aprimoramento da pessoa humana em relação ao seu fim último e ao bem das sociedades de que o homem é membro, e de cujas tarefas, uma vez adulto, terá de participar”.74 Entretanto, pautar os direitos humanos na perspectiva da Doutrina Social da Igreja é uma das portas de entrada para o reconhecimento da ação pastoral no currículo, e uma forma de garantir essa abertura seria problematizar essa estratégia no Projeto Político Pedagógico. O projeto, além de pautar os direitos humanos, precisa deixar claro o que a escola pensa sobre educação e sobre o papel da pastoral no currículo, além de ter a concepção clara de como efetivar a educação evangelizadora e quais seriam as implicações dessas intencionalidades. Considerando isso, a prática pedagógica católica precisa ser constituída de maneira participativa por meio de projetos que possibilitem a pesquisa, PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2005. 73 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2005, n. 557. 74 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2005, n. 242. 72
o diálogo e a troca de saberes, cujo pano de fundo perpassa pela inclusão da concepção de direitos humanos, pautados no projeto de Jesus Cristo. Nesse movimento didático, há momentos em que o pastoralista75 está envolvido no planejamento, ou o educador provoca o diálogo com base nos valores cristãos e nos direitos humanos, imprescindíveis para haver convivência social com dignidade humana. Dessa forma, constituímos a Escola/Universidade em Pastoral,76 termo que integra em sua concepção os Colégios, Unidades Sociais e Universidades, entre outros espaços educativos em que todos se sentem responsáveis pela disseminação dos valores institucionais em todos os processos educativos.
Quanto ao assunto diversidade, no documento Educar Hoje e Amanhã (Instrumentum Laboris) consta que: Os professores são chamados a encarar um grande desafio educativo: reconhecer, respeitar, valorizar a diversidade. As diversidades psicológicas, sociais, culturais, religiosas não devem ser escondidas, negadas, mas consideradas como oportunidade e dom. Do mesmo modo, as diversidades ligadas à presença de situações de especial fragilidade sob o perfil cognitivo ou da autonomia física, devem ser sempre reconhecidas e escutadas, para que não se transformem em desigualdades penalizantes.77 Em algumas instituições católicas de ensino há um profissional – agente, assistente, coordenador e/ ou assessor de pastoral, entre outras nomenclaturas – que atua na área pastoral; em algumas escolas e universidades, há até equipes de pastoral/pastoralistas, e em certas instituições, esse sujeito é voluntário ou não há ninguém em específico que trabalhe na área de pastoral, que acaba sendo assimilada por outros profissionais e/ou religiosos. 76 Escola em Pastoral: “espaçotempo do anúncio, do testemunho e da comunhão; da compaixão pela humanidade; do compromisso com as causas da justiça e da paz; do conhecer-experienciar-aderir aos valores do Evangelho, concretizados no desenvolvimento de uma cultura do cuidado, da solidariedade” (UMBRASIL. Projeto Educativo do Brasil Marista: Nosso jeito de conceber a Educação Básica. Brasília: UMBRASIL, 2010. p. 67). 77 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Educar hoje e amanhã: uma paixão que se renova. Instrumentum laboris. 2014. p. 10. 75
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Atitudes e evidências pedagógicas de uma escola em pastoral
Por isso, é de grande importância que os educadores conheçam as crianças, os jovens e a realidade cultural em que estão inseridos, para que possam atuar de forma a tocar o maior número possível de vidas, transformando o meio em que vivem.
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A ação pastoral tem que estar atenta à realidade em que está atuando, pois somente dessa maneira conseguirá corresponder às necessidades que suscitam, para poder assim fortalecer os valores do Evangelho, contribuindo para a formação de uma comunidade mais humana e fraterna, que sabe dar sentido à vida. De forma explícita ou implícita,78 a ação pastoral exerce sua missão evangelizadora, revelando sua identidade embasada na promoção do diálogo, no olhar ético para as diversas realidades que enfrentamos no dia a dia, no cultivo das atitudes de respeito, justiça, na promoção da paz, na abertura à diversidade, na acolhida das diferenças, na vivência do amor, na defesa da vida. Essas ações aparecem também na forma organizacional dos espaços e tempos educativos na busca da construção da autonomia, participação e responsabilidade dos educandos por meio das trocas de turmas, roteiros de aprendizagem, assembleias estudantis, debates cotidianos nas apresentações dos trabalhos, autoavaliação. Todas essas ações exercitam e provocam a conscientização e emancipação pautada em valores por meio de relações humanizadas entre os sujeitos. Como proposta pedagógico-pastoral, o Evangelho incide no currículo, contribuindo para o processo de ensino e aprendizagem dos educandos e educadores. Embora haja grande exigência para que educadores e docentes deem conta de conteúdos previamente estabelecidos, a pastoral encontra lugar no currículo quando coloca à disposição seus saberes, não de forma descontextualizada, mas sim complementar aos saberes estabelecidos. Esse processo favorece que o sujeito viva sua plenitude e desenvolva integralidade, podendo constituir novos saberes que possam contribuir para o desenvolvimento do currículo. Ou seja, uma “educação que ofereça às crianças, aos Para o conceito de evangelização explícita ou implícita, Brighenti traz mais elementos provocativos para essa nova relação da pastoral para rever suas linguagens em seus processos (BRIGHENTI, Agenor. A pastoral dá o que pensar: a inteligência da prática transformadora da fé. 2. ed. São Paulo: Paulinas; Valência, ESP: Siquem, 2011). 78
jovens e aos adultos o encontro com os valores culturais do próprio país, descobrindo ou integrando neles a dimensão religiosa e transcendente.79 Mesmo nos espaços educativos em que não há pastoralistas, a partir das proposições referidas nas discussões deste texto, o trabalho pedagógico das instituições pode suscitar na comunidade educativa ações que possam efetivar o cunho pastoral, através da disseminação dos valores cristãos em diálogo com as diferenças culturas presentes no currículo. Para isso ser possível dentro da proposta de uma escola/universidade em pastoral, o currículo é um espaço e tempo de evangelização que acolhe a todos. A essência do sujeito evangelizador pode ser assumida com maior eficácia quando toda a comunidade educativa adere à proposta da pastoral no currículo.
Cabe à pastoral projetar sua entrada no currículo para além do campo celebrativo, mas que seja uma presença significativa em todos os processos da escola e da universidade.
Considerações finais Como vimos, o currículo da proposta educativa católica é um lugar de articulação e de encontros; e a evangelização, um princípio gerador dessa proposta. O papel da pastoral no currículo é encontrar seu lugar e promover encontros dos valores evangélicos com as diferentes culturas, uma vez que isso é próprio da Inculturação do Evangelho, que exige diálogo aberto e amplo na relação com as culturas locais. Desse modo, o Evangelho terá maior CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO, 2011, n. 334. CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO, 2011, n. 330.
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A educação humaniza e personaliza o ser humano quando consegue que este desenvolva plenamente seu pensamento e sua liberdade, fazendo-o frutificar em hábitos de compreensão e em iniciativas de comunhão com a totalidade da ordem real. Dessa maneira, o ser humano humaniza seu mundo, produz cultura, transforma a sociedade e constrói a história.80
alcance, e um campo fértil para o anúncio no currículo das escolas e universidades católicas.
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A discussão sobre currículo passa a ter sentido quando entendemos que somos educação e todas as nossas unidades educativas têm um currículo. Quando a pastoral escolar e universitária está fora desse debate e dessa concepção, fica à margem da proposta educativa. A pastoral é a força articuladora da Inculturação do Evangelho no currículo, mas para isso é importante quebrar o paradigma de considerar o currículo somente numa perspectiva tradicional da grade de disciplinas, pois também há um currículo crítico e pós-crítico, de acordo com a síntese apresentada neste texto. A educação católica tem seu currículo com base nos princípios e valores evangélicos. Caso nos fecharmos somente na concepção tradicional do currículo, a inculturação do Evangelho ficará restrita ao lugar celebrativo e pouco dialogará com as culturas e religiosidades presentes na escola e universidade, as quais nem sempre os conteúdos previamente estabelecidos dão conta de considerar. Nesse caso, a pastoral escolar é articuladora dos princípios e valores evangélicos com os conteúdos estabelecidos. Mas, na perspectiva das teorias curriculares críticas e pós-críticas, a pastoral articula seus saberes em diálogo com os saberes escolares e também com os saberes dos educandos e das demais culturas presentes nas escolas e universidades. Ou seja, a pastoral no currículo é a educação evangelizadora acontecendo na prática para além do espaçotempo celebrativo, é fazer uma escola em pastoral se efetivar, ser transversal de fato. Para isso, precisamos de uma pastoral forte e reconhecida no currículo, sem fragmentar e relativizar a mensagem do Evangelho, pelo contrário será um processo de ampliação do alcance dessa mensagem, contribuindo para a perpetuidade da identidade confessional. Desse modo, a concepção de pastoral no currículo apresenta-se como espaço e tempo dinâmico que discute constantes mudanças, está atenta à conjuntura política, social e religiosa, elabora práticas e possibilidades de atuação concreta para intervir nas realidades que permeiam o contexto escolar e o currículo e o Projeto Político-Pedagógico.
A prática pedagógica relacionada com as ações pastorais, quando pautadas pelos direitos humanos, é uma entrada didática estratégica, pois, desse modo, é possível relacionar o currículo aos contextos dos sujeitos e à realidade que precisa ser transformada, afinal o Evangelho é transformação.
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Assim sendo, elencando essas considerações, percebemos a complexidade do contexto dos temas em questão, porém buscamos explicitar a relação currículo e pastoral. Quando entendemos que há necessidade de entrada mais incisiva da Evangelização na prática pedagógica, estamos compreendendo todos os processos educativos presentes no currículo, inclusive os aspectos administrativos. Além disso, é importante valorizar e inculturar as diferenças culturais, não somente como destinatários do Evangelho, mais como participantes da Evangelização. Desse modo, parece necessário praticar não somente um currículo tradicional, afinal não queremos renunciar às tradições que compõem a identidade confessional, mas praticar também um currículo crítico e pós-crítico que dará mais alcance e capilaridade ao Evangelho.
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2.
DESAFIOS E HORIZONTES DA EVANGELIZAÇÃO NOS CONTEXTOS EDUCATIVOS
EVANGELIZAÇÃO NOS ESPAÇOS EDUCACIONAIS CATÓLICOS E O MAL-ESTAR PÓS-MODERNO Glaucio Luiz Mota
Introdução
A religião sofreu um revés na modernidade, sobretudo o Cristianismo, e reencontra possibilidades para seguir como referência diante da debilidade humana.83 A Igreja Católica, apesar de receber críticas pela demora de suas reformas, tem demonstrado na história interessantes respostas para os mal-estares da pós-modernidade, sobretudo após o Concílio Vaticano II, com uma forte abertura para mudanças internas e para o diálogo com o mundo secular e suas culturas. Logo, a inculturação do Evangelho ganhou novos contornos, novas linguagens, com ações mais efetivas nos espaços e tempos de sua atuação, sendo a educação católica um desses lugares para a evangelização inculturada. Diante desse cenário de mal-estares pós-modernos, nos perguntamos: Como a educação católica tem enfrentado o desafio de inculturar o Evangelho em escolas, universidades e nas demais modalidades educativas, uma BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1998. 83 VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: M. Fontes, 1996. 81 82
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A sociedade não encontrou soluções para seus mal-estares com a modernidade, derivando em novos mal-estares nas condições atuais.81 A busca pelo progresso se tornou uma mera rotina, colocando-nos num ciclo vicioso de consumo e desgaste. E é nesse contexto que a pós-modernidade se apresenta não como uma ruptura e fim de um tempo, mas como uma nova condição para a sociedade, carregando um conjunto de novos questionamentos sobre essa imobilidade moderna.82
vez que a diversidade cultural é cada vez maior no perfil das famílias e dos educandos atendidos nesses espaços? Para essa análise, a escolha foi delimitar a educação católica como campo de investigação, com as seguintes categorias: cultura,84 identidade,85 diferenças86 e subjetividades.87
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Para analisar essas categorias, utilizei a pesquisa teórica bibliográfica88 a partir do documento do magistério da Igreja que trata da educação católica: Educar hoje e amanhã: uma paixão que se renova,89 que toma como referência a declaração Gravissimum Educationis,90 e ainda a exortação apostólica do Papa Francisco Evangelii Gaudium,91 que trata da evangelização na sua amplitude. O objetivo desta pesquisa é compreender como os temas das categorias de análise são problematizados nesses documentos, percebendo qual é a influência da pós-modernidade nessas reflexões, à luz de referenciais da teologia pastoral e da eclesiologia.92 A intenção não é indicar novas pistas teológicas e pastorais para enfrentar os mal-estares da pós-modernidade, e sim fazer provocações sobre como a educação católica aborda e abordará esses desafios e que outras perguntas faremos para aprofundar esse debate.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & realidade, v. 22, n. 2, p. 15-46, 1997. 85 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015. 86 WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 7-72. 87 WOODWARD, 2014. 88 DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000. 89 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Educar hoje e amanhã: uma paixão que se renova. Instrumentum laboris, 2014. 90 CONCÍLIO VATICANO II. Gravissimum educationis: Declaração do Concílio Vaticano II sobre a educação cristã da juventude. São Paulo: Paulinas, 1965. 91 FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: a alegria do evangelho. São Paulo: Paulinas, 2013. 92 BRIGHENTI, Agenor. A Igreja do futuro e o futuro da Igreja: perspectivas para a evangelização na aurora do terceiro milênio. São Paulo: Paulus, 2001; LIBÂNIO, João Batista. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002. ______. Qual o futuro do Cristianismo? São Paulo: Paulus, 2006. 84
O mal-estar da pós-modernidade A modernidade não correspondeu totalmente aos auspícios das sociedades contemporâneas, visto que havia uma condição de certeza que aparentemente estaria estabelecida em seus valores. A mentalidade moderna e a sua visão de mundo, que supostamente nos traria uma vida segura, parece-nos que veio para relativizar a liberdade em nome da ordem, da regulamentação, provocando mal-estares. “Dentro da estrutura de uma civilização concentrada na segurança, mais liberdade significa mal-estar. Dentro de uma estrutura de uma civilização que escolheu limitar a liberdade em nome da segurança, mais ordem significa mais mal-estar.”93
Tanto o liberalismo quanto o marxismo, em suas diferentes formas, davam a entender que o apego ao local e ao particular dariam gradualmente vez aos valores e identidades mais universalistas e cosmopolitas ou internacionais; que o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicas de apego – a espécie de coisa que seria “dissolvida” pela força revolucionária da modernidade.96
Tanto isso não aconteceu que tais prerrogativas, a exemplo do nacionalismo, permanecem na condição atual em que a sociedade vive, e em algumas circunstâncias em maior ou menor dimensão. Estaríamos vivendo um tempo BAUMAN, 1998, p. 9. BAUMAN, 1998, p. 9. 95 ibid., p. 8. 96 HALL, 2015, p. 56. 93 94
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A dinâmica das civilizações pressupõe uma ininterrupta necessidade de negociação de sua ordem, e é nesse sentimento que a modernidade se funda como detentora da solução para essa necessidade. “A liberdade individual, outrora uma responsabilidade e um (talvez o) problema para todos os edificadores da ordem, tornou-se o maior dos predicados e recursos na perpétua autocriação do universo humano.”94 Logo, a modernidade apresenta-se como “rubrica da ordem”.95 Aqui, emergem também o fechamento em nacionalismos, ao essencialismo, entre outras atitudes, ao passo que a universalização da modernidade parece não ter alcançado suas intenções, pois:
em que atitudes pré-modernas, modernas e até pós-modernas convivem e abrem reflexões num mesmo tempo e espaço. Há uma reflexividade do ser humano em que o sujeito problematiza constantemente os próprios resultados e as necessidades de mudança, mas essa reflexão não é suficiente para analisar essas complexidades.97
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Vivemos uma modernidade ressignificada, mas: “isso não significa, porém, que os ideais de beleza, pureza e ordem que conduziram os homens e mulheres em sua viagem de descoberta moderna tenham sido abandonados ou tenham perdido um tanto do brilho original”.98 Na verdade, a diferença dessa nova modernidade reside na fluidez99 das suas características em relação ao tempo, às relações, ao consumo, entre outros aspectos, causando mal-estar diante de uma sociedade tão plural. Ainda que se refute ou considere em partes a teoria pós-moderna, há provocações que alguns autores da pós-modernidade apresentam que não podem ficar de fora dessa tentativa de análise das crises civilizacionais. Embora os ideais de pureza e limpeza, da beleza, da racionalidade harmônica, tendo como horizonte a uniformidade e a universalização, tenham se perpetuado no tempo, já não são tão absolutos.100 Simplificando ao extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências; mas este progresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde, sobretudo, a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia.101
A pós-modernidade não seria uma negação da modernidade, e sim uma consideração dos novos jogos de linguagem com a inclusão de outros BAUMAN, 2001. BAUMAN, 1998, p. 9. 99 BAUMAN, 2001. 100 BAUMAN, 1998. 101 LYOTARD, 1998, p. XVI. 97 98
relatos e sujeitos na análise social que a modernidade não apresentara até então por conta da sua “artrose burocrática”.102 Novos relatos, que incluem diversidade, diferenças, identidades, subjetividades, são temas que provocam insegurança nas civilizações e em determinados grupos, uma vez que colocam em “xeque” sua segurança cultural e identidade nacional e institucional. Esse movimento, denominado “virada cultural”, consiste em “uma revolução de atitudes em relação à linguagem”,103 afirmação essa que corrobora com as de Lyotard,104 que trata tal virada como novos jogos de linguagem.
Culturas, identidades, diferenças e subjetividades como mal-estares para a educação À medida que o sujeito tem acesso a novos conhecimentos, a outros contextos socioculturais e contato com outros sujeitos, essa interação vai ampliando seu repertório de significações, ao mesmo tempo que vai encontrando seu espaço, identificando-se com grupos e culturas e, desse modo, constituindo sua identidade, sua singularidade e suas subjetividades. Afinal, “a cultura não é nada mais do que a soma de diferentes sistemas de classificação e diferentes formações discursivas aos quais a língua recorre a fim de dar significado às coisas”.105 Isso quer dizer que, enquanto nos deparamos com saberes e conhecimentos, deflagra-se um processo de significação que vai dando Ibid., 1998, p. 31. HALL, 1997, p. 9. 104 LYOTARD, 1998. 105 HALL, 1997, p. 10. 102 103
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Para continuar com a reflexão do mal-estar da pós-modernidade, mas agora no universo educacional católico, a pergunta que se pode fazer é: Até que ponto a escola é reprodutora e produtora dessas incertezas modernas e pós-modernas, e o quanto está disposta a acolher e problematizar as estranhezas causadas pelo mal-estar pós-moderno? Queremos testemunhar um possível avanço no diálogo evangélico com e entre os diferentes? Estamos dispostos a avançar no aprender com essas crises?
sentido e constituindo nossas culturas e a cultura dos grupos sociais aos quais pertencemos.
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Esse processo encontra um campo muito propício nos espaços educativos, à medida que entendemos que seus currículos são produto e produtores de cultura. “O currículo é, como muitas outras, uma prática de atribuir significados, um discurso que constrói sentidos. Ele é, portanto, uma prática cultural.”106 Sendo assim, diante do inegável contexto multicultural na educação, apesar da tendência monocultural tentar se impor hegemonicamente, as diferenças entre as culturas que surgem das ressignificações de sistemas simbólicos e dos aspectos sociais, políticos e econômicos dos grupos e sujeitos continuam e continuarão se encontrando nos espaços educativos de alguma forma, mesmo que se tente impedir que isso aconteça. Diante dessa disputa, cabe aos currículos problematizarem os ideais modernos – em parte uma discussão necessária – de igualdade, juntamente com os ideais pós-modernos que têm trazido a problematização sobre as diferenças no campo das culturas. A ideia não é criar um “culto” às diferenças e nem deixar de problematizar o acesso igualitário à educação de qualidade social,107 e sim que a singularidade do sujeito possa ter um mesmo tratamento, e sem prejuízo, em relação às identidades coletivas e vice-versa. De todo modo, há uma ênfase necessária no conceito de diferença, ao passo que ela se torna um elemento-chave para as leituras pós-modernas e seus mal-estares. Woodward se aporta na “différance” de Derrida,108 na tentativa de problematizar as diferenças diante da rigidez da modernidade. “Em vez de fixidez, o que existe é contingência.”109 A ideia é contrapor os binarismos fixos, no sentido de aproximar as culturas, sem se preocupar em encontrar uma verdade universalizante, e sim deixar a porta conceitual sempre aberta. LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011. p. 203. A qualidade social da educação é aquela que atenta para um conjunto de elementos e dimensões socioeconômicas e culturais que circundam o modo de viver e as expectativas das famílias e de estudantes em relação à educação; que busca compreender as políticas governamentais, os projetos sociais e ambientais em seu sentido político, voltados para o bem comum; que luta por financiamento adequado, pelo reconhecimento social e valorização dos trabalhadores em educação; que transforma todos os espaços físicos em lugar de aprendizagens significativas e de vivências efetivamente democráticas. SILVA, Maria Abádia da. Qualidade social da educação pública: algumas aproximações. Caderno CEDES, v. 29, n. 78, p. 216-226, 2009. 108 DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991. 109 WOODWARD, 2014, p. 54. 106 107
Mesmo que as incertezas continuem, dessa vez não será para dificultar a aproximação, mas para o diálogo. Ainda que o conflito se mantenha nessa relação, essa situação pode ser encarada como uma possibilidade de aprendizagem para sujeitos e grupos quanto às suas identidades, por meio de trocas culturais. Esses processos, que também são subjetivos, contribuem para a constituição dos sujeitos e de grupos, pois é nas interações sociais, nas aprendizagens, nas escolhas, nas ressignificações, que conferem uma identidade singular, ligada ou não a uma tradição ou instituição. Uma vez que a identidade pode ser marcada pela mesmidade, vimos que ela também pode ser marcada pela diferença, entre o essencial e o não essencial, a partir de sistemas simbólicos institucionalizados ou não.110
Na perspectiva pós-moderna, “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas”.112 Nesse caso, o sujeito não será mais o mesmo na condição global e local em que vive, pois há um movimento flexível provocado na relação com outros sujeitos e pelas experiências de aprendizagem que vivemos constantemente que nos fazem cruzar fronteiras culturais constantemente, resultando em hibridismos.113 Mas esses cruzamentos nem sempre são experienciados da mesma forma. À medida que as fronteiras, por mais que sejam as mesmas fronteiras, são transpostas, não terão mais o mesmo significado WOODWARD, 2014. Ibid., p. 56. 112 HALL, 2015, p. 11. 113 Novas identidades negociadas e criadas no cruzamento entre diferentes culturas (HALL, 2015). 110 111
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Pode haver uma sobreposição e até mesmo uma convergência entre identidade e subjetividade, pois “o conceito de subjetividade permite uma exploração dos sentimentos que estão envolvidos no processo de produção da identidade e do investimento pessoal que fazemos em posições específicas da identidade”.111 Seria como se, suscintamente, consciente ou inconscientemente, estabelecêssemos uma relação com o outro, com o diferente, para reforçar, demarcar ou explicar nossa própria identidade.
de um sujeito para outro. Podem ser, ao mesmo tempo, uma “poderosa fonte criativa”, como também podem implicar “custos e perigos”.114
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Isso não quer dizer que todo sujeito na pós-modernidade perde completamente a tradição ou que sua identidade é totalmente relativizada, mas não há como negar que nossa identidade, por menor que seja a frequência de cruzamentos de fronteiras entre a identidade e a diferença do outro, não tem ou não terá como se estabelecer de forma fixa e imutável. Ou seja, “quanto mais nos proibimos de pensar os híbridos, mais seu cruzamento se torna possível; este é o paradoxo dos modernos que essa situação excepcional em que nos encontramos nos permite enfim captar”.115 Então cabe dizer que, por mais que se tenha uma determinada identidade, parece um pouco difícil dizer que ela é imutável. Contudo, ao trazermos essa discussão para a educação católica, a fim de considerar as diferenças culturais no currículo, pode haver a intenção de que isso sirva somente para cumprir um protocolo de uma política educacional de Estado, e não para reforçar os direitos humanos sobre as manifestações individuais e coletivas, sobretudo de minorias e de excluídos. Para isso, as Diretrizes Curriculares Nacionais propõem “a mobilidade e a flexibilização dos tempos e espaços escolares”, no sentido de ampliar o repertório cultural dos educandos.116 Embora tais políticas explicitem essa intencionalidade, a tradução destas para a realidade depende não apenas de uma adaptação ou discurso, mas de um tencionamento que problematize a reflexão sobre como as identidades e as diferenças são produzidas e reconhecidas nessa diversidade. “A diversidade cultural dentro da escola insurge em relações tensas que necessitam de adequadas mediações para oportunizar a vivência de uma cultura de reconhecimento das diferenças e uma cultura de paz”.117 Essa é uma possível lição que podemos aprender dessa relação, ou o papel da educação será contraditório, sobretudo quando se faz presente nos discursos HALL, 2015, p. 53. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 16-17. 116 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. p. 136. 117 MOTA, Glaucio Luiz. Currículos e religiosidades: as manifestações religiosas como campo da diversidade cultural na escola. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (EDUCERE), 12., 2015, Curitiba. Anais... Curitiba: PUCPRess, 2015. p. 17617. 114 115
dos educadores e das instituições educativas o reconhecimento dos direitos de sujeitos e de grupos sociais. Portanto, a ideia ao apontar tais problemáticas não é relativizar ou até mesmo abandonar a tradição e o movimento salutar de conservar das culturas e das instituições os valores basilares para o desenvolvimento humano. Tampouco desconsiderar o debate crítico sobre os currículos escolares, e sim provocar questionamentos sobre como podemos avançar nesse debate. Ou seja, como podemos incluir outros sujeitos invisibilizados118 nos processos educativos por meio da ressignificação das pedagogias?
Alguns mal-estares pós-modernos na educação católica As fontes da pesquisa teórica, que será apresentada na sequência, será o Instrumentum laboris da Congregação para a Educação Católica: Educar hoje e amanhã: uma paixão que se renova,119 que toma como referencial Gravissimum Educationis;120 e a exortação apostólica Evangelii Gaudium,121 que dá fundamentos gerais para a prática da evangelização. A justificativa de abordar somente esses dois documentos é porque são os mais recentes e fazem uma síntese entre a tradição e os pensamentos atuais da Igreja sobre a evangelização e a educação católica. A pesquisa teórica bibliográfica é a metodologia que usamos para dar argumentação para os temas que constituem este texto. “Trata-se de estudar fundamentos teóricos disponíveis para podermos atingir nível explicativo, para além de meras descrições, acúmulo de autores e dados, arrolamento de ARROYO, Miguel G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014. 120 CONCÍLIO VATICANO II, 1965. 121 PAPA FRANCISCO, 2013. 118 119
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E, na perspectiva da educação evangelizadora, de que maneira é possível mediar o debate entre a identidade confessional da educação católica e o reconhecimento das diferenças culturais? E ainda, a partir dos processos de subjetivação e singularização que podem originar dessas trocas culturais, como tudo isso pode ser mediado da maneira mais justa possível?
ideias vindas de fora”.122 Nesse sentido, o que veremos a seguir será uma tentativa de apresentar as contribuições argumentativas sobre as categorias de análise, ao mesmo tempo que tomamos como base autores para fundamentar os argumentos sobre as análises, com a intenção de produzir alguma reflexão ou novo conhecimento a partir da pesquisa. Entretanto, é preciso: “fundamentar o que pretendemos dizer, primeiro, buscando apoio na literatura disponível, e, a seguir, tecendo a montagem da própria argumentação”.123
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Logo, o objetivo desta pesquisa é encontrar reflexões nos textos indicados a partir das seguintes categorias de análise: cultura, diversidade, identidade e subjetividade, no sentido de compreender como esses temas são problematizados nesses documentos, uma vez que se tratam de temas centrais para identificar qual influência da pós-modernidade é possível encontrar nos referidos documentos. Sendo assim, todas essas categorias foram encontradas nos documentos indicados, exceto em Educar hoje e amanhã: uma paixão que se renova, que não aborda a categoria subjetividade, denotando que pode ser pouco compreendida ou desconsiderada nas reflexões. Por outro lado, arriscamos dizer que a problematização desse tema, mesmo que não tenha sido abordada de forma explícita nos documentos, aparecerá de forma implícita nas suas intencionalidades evangelizadoras. Com a descrição do procedimento metodológico da pesquisa apresentado, iniciamos a análise partindo do princípio de que, por mais que a Igreja Católica seja criticada pela demora nas reformas e na apresentação de respostas às exigências contemporâneas e a seus problemas, ela tem, de alguma forma, trazido orientações, seja por meio de seus discursos formais ou informais, seja por meio de suas objetividades ou subjetividades. Autores como Libânio (2002; 2006) e Brighenti (2001) abordam em suas análises o papel da Igreja Católica pós-conciliar, bem como do Cristianismo em geral, nessa nova condição para a sociedade denominada pós-modernidade,124 considerando seus mal-estares125 nesse debate. DEMO, 2000, p. 164. Ibid., p. 164. 124 LYOTARD, 1998. 125 BAUMAN, 1998. 122 123
Conforme consta no documento Evangelii Gaudium, há um crescente nível de conscientização da “identidade e da missão”131 em todas as esferas eclesiais, sobretudo no laicato. Da mesma forma, uma pessoa que conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade, quando se integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre novos estímulos para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.132
LIBÂNIO, 2006, p. 146. Ibid., p. 147. 128 BRIGHENTI, 2001, p. 13. 129 Ibid., p. 13. 130 “Não julguem, e vocês não serão julgados. De fato, vocês serão julgados com o mesmo julgamento com que vocês julgarem, e serão medidos com a mesma medida com que vocês medirem.” (Mateus 7, 1-2). 131 PAPA FRANCISCO, 2013, n. 102. 132 Ibid., n. 235. 126 127
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Há uma diferença entre a universalização dialogante e inculturada dos valores cristãos em detrimento da universalização globalizante que desconsidera as singularidades locais e dos sujeitos.126 Essa atitude difere do tipo de globalização intimidadora. “É uma atitude que assume o polo pós-moderno de aproximação existencial, mas supera-o pela consciência universal que redime a pós-modernidade de sua fragmentação neurotizante”.127 Embora haja fragilidade em certas atitudes cristãs que se perdem no fundamentalismo, bem como no relativismo, o Cristianismo, em sua história e também nesse tempo, coloca-se como referência para as crises civilizacionais, apresentando-se como fonte de valores universais. Esses valores são caros ao Cristianismo e para a missão da Igreja, e, nesse contexto, o papel da ação pastoral organizada será o de dar acesso a esses valores para todo o sujeito que queira experienciá-los. E isso se dá, necessariamente, pela inculturação, pois “a descoberta das culturas leva a tomar consciência da inevitabilidade de uma fé que só pode acontecer de uma forma inculturada”.128 Ou seja, o que se universaliza são os valores, e não um “Cristianismo monocultural” ou uma “teologia universalizante”.129 Nesse sentido, na evangelização não se abre mão da identidade cristã e católica, mas também não se pode abrir mão do valor da acolhida e do diálogo com o diferente, sendo essa, também, uma virtude cristã.130
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Nesse desenvolvimento pastoral, ainda que em alguns casos haja contradição e retrocessos, há uma consciência identitária e abertura para novas formas de evangelizar e se deixar evangelizar nesse processo. Mas “a verdadeira abertura implica conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas disponível para compreender as do outro e sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos”.133 O que para alguns agentes de pastoral, não favoráveis à abertura do Concílio Vaticano II, pode parecer um paradoxo, essa abertura ao diálogo com outras culturas se trata, nada mais nada menos, do que a própria essência da inculturação do Evangelho. Por consequência, a universalidade dos valores cristãos é um desafio numa sociedade multicultural, pois há nesse contexto necessidade de mudança de paradigma no diálogo com as culturas e com as ciências por parte da Igreja. O Cristianismo produz seus saberes, mas, pela lógica da inculturação do Evangelho, tais saberes não podem ser absolutizantes, ou seja, precisam se inculturar. Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre nova; daí a importância da evangelização entendida como inculturação. Cada porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus, segundo a sua índole própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si.134
Fundamentalmente, a inculturação exige troca, aproximação e mudança; para isso, é preciso uma ação pastoral atenta aos diferentes contextos de sua atuação, com especial atenção para a diversidade cultural e religiosa, sem perder a essência nem ser instrumentalizada para fins meramente catequizantes e clericalizantes por receio de perda da sua identidade. Logo, a inculturação do Evangelho não se dá sem um fundamento teológico e pastoral, pois seu contato com as culturas, sendo que sua razão de ser não acontece no fechamento e na desconfiança de perder a identidade cristã, mas no mergulho radical na alteridade. “A Igreja Católica não é nenhuma Ibid., n. 251. Ibid., n. 122.
133 134
‘diáspora’ frágil, secularizada, perdida no meio da cultura de hoje. Tem sua identidade, eficácia e força de anunciar e antecipar uma cultura e sociedade para além da decomposição, fraqueza e carências da pós-modernidade”.135 Trata-se de uma Igreja que é referência, mas que se renova na contemporaneidade, sendo um lugar de respostas para as perguntas a que a modernidade não soube responder. A educação católica é um desses lugares da inculturação do Evangelho por excelência, entendida como extensão da missão da Igreja, guardiã dos valores que comunidades e sujeitos buscam na atualidade.
A educação católica é o lugar de espaços e tempos de encontro de culturas, é um “prato cheio” para a inculturação do Evangelho, pois: “em muitos países a população das escolas católicas é caracterizada pela multiplicidade das culturas e das crenças, por isso a formação religiosa nas escolas deve partir da consciência do pluralismo existente e saber constantemente atualizar-se”.137 Isso porque, atualmente, os espaços educativos católicos não são mais procurados majoritariamente por católicos, seja em escolas, universidades e, sobretudo, unidades sociais que atendem educandos em situação de pobreza e de vulnerabilidade social e pessoal. Por isso, há em alguns desses espaços uma forte representação de não católicos, ou de sujeitos que vivem duas ou mais formas de religiosidade, dado que reforça que a multiculturalidade é um fato. Além disso, mesmo entre as famílias e estudantes católicos, há diferentes formas de viver o Cristianismo e de ser Igreja, sendo esses, por si só, fortes motivos para o diálogo intercultural. LIBÂNIO, 2002, p. 173. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 3. 137 Ibid., p. 14. 135 136
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A educação católica, com as suas numerosas escolas e universidades espalhadas pelo mundo, dá um contributo relevante às comunidades eclesiais comprometidas na nova evangelização, e contribui também para que as pessoas e a cultura assimilem os valores antropológicos e éticos que são necessários para construir uma sociedade solidária e fraterna.136
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No entanto, há riscos nesse processo, dentre os quais estão o da relativização da identidade da educação católica e da restrição do diálogo em detrimento da perda de identidade católica. Ou seja, “a mensagem, que anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador”.138 Logo, a educação católica, com “a sua característica confessional não deve constituir uma barreira, mas ser condição de diálogo intercultural, ajudando cada aluno a crescer em humanidade, responsabilidade civil e na aprendizagem”.139 Para isso, há uma necessidade de bem relacionar fé e vida, seja a vida cristã, seja a vida cidadã, para que a educação católica possa fazer sentido tanto para os católicos quanto para os não católicos. Trata-se de dar oportunidade de acesso à dimensão espiritual, de forma experiencial, e não por imposição, que propicie uma experiência pessoal e em grupo com a pessoa e o projeto de Jesus Cristo para todo o sujeito das unidades educacionais católicas, mesmo ao não cristão e ao não católico. Seja na oferta de experiências explicitamente católicas em que a participação é espontânea ou por meio do diálogo dos valores cristãos com os saberes científicos e com a diversidade cultural, entendida como experiência implícita de evangelização.140 Há aqui um ponto crucial de equilíbrio entre a valorização da diversidade e a perenidade da identidade confessional. Conforme o Papa Francisco, não há por que temer a diversidade, afinal ela está aí, nos enriquece e é um objeto da inculturação do Evangelho.141 Se for bem entendida, a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja. É o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que transforma os nossos corações e nos torna capazes de entrar na comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo encontra a sua unidade.142 PAPA FRANCISCO, 2013, n. 117. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 8. 140 Encontraremos mais referenciais sobre o conceito de evangelização explícita e implícita em Brighenti (2006). 141 PAPA FRANCISCO, 2013. 142 Ibid., n. 117. 138 139
Logo, os arranjos curriculares educacionais precisam dar conta dessa comunhão, proporcionando espaços de educação na fé que fortaleça a identidade católica de colaboradores, famílias e educandos. Ao mesmo tempo, que possa haver um movimento de ampliação ao alcance do Evangelho aos que, possivelmente, não teriam esse acesso – porque não foi feito de forma adequada, ou porque foi feito por imposição simbólica, ou por algum outro tipo de imposição –, a fim de que possam ter essa experiência de forma gradual e dialogante.
Um bom ponto de partida diante desses desafios é reconhecer que a diversidade dos interlocutores na evangelização está cada vez mais presente nos espaços de educação católica. Logo, é preciso não perder a característica acolhedora da inculturação do Evangelho com esses interlocutores, bem como a atitude de não perder de vista o desafio de reconhecer as novas propostas de educação católica. Elas não se resumem somente às universidades e escolas paroquiais e diocesanas, mas também a experiências presentes em diferentes territórios no atendimento de diferentes públicos, a exemplo de escolas/projetos sociais católicos. Esse cenário tem desafiado ainda mais a identidade da educação católica, uma vez que muitos desses espaços acolhem um grande número de não católicos, de acordo com o que já foi ratificado anteriormente. Outro desafio está na interdisciplinaridade e na transposição dos saberes pastorais no currículo. Os espaços da pastoral no currículo educacional têm avançado para além da parceria com o Ensino Religioso como disciplina, ou de resumir-se somente à dimensão catequética formal. Há algumas CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 14.
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O multiculturalismo e a multirreligiosidade dos alunos, que frequentam as escolas católicas, interpelam todos os responsáveis do serviço educativo. Quando a identidade das escolas enfraquece, emergem numerosos problemas ligados à incapacidade de interagir com esses novos fenômenos. A resposta não pode ser aquela de refugiarse na indiferença, nem de adotar uma espécie de fundamentalismo cristão nem, por fim, aquela de declarar a escola católica como uma escola de valores “genéricos”.143
experiências de entrada da pastoral educativa no campo pedagógico com a intenção de dialogar e potenciar a evangelização com e nas diferentes áreas de conhecimento.
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Por outro lado, há outro desafio em relação aos agentes de pastoral que podem, com ou sem intenção (subjetivamente), desconfigurar a identidade da educação católica. “Hoje nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo pessoas consagradas, uma preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios deveres como mero apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria identidade”.144 Contudo, vemos que no campo da prática (objetividade) há desafios para avançar no currículo, mas também no campo das intencionalidades (subjetividade) dos sujeitos e das instituições que colocam a identidade da educação católica em situação de alerta. Entretanto, a Igreja, nos aspectos de manutenção da identidade, alimenta sentimentos de defesa da sua tradição. Para essa intencionalidade, podemos dizer que é essa uma das subjetividades da Igreja e de seus agentes, pois a referida intencionalidade está envolvida diretamente nos aspectos da sua identidade.145 “É urgente redefinir a identidade da escola católica para o século XXI”.146 Num cenário mais amplo, podemos perceber que a religião pode estabelecer uma forma de retomar a condição humanística que o positivismo colocou em “xeque”.147 Em outras palavras, temos visto uma busca nostálgica pelo fundamento último e inabalável das religiões.148 Aproveitar a debilidade da modernidade149 e a secularização como possibilidade de revisão e reinvenção é, não apenas para as religiões em geral, mas para a própria Igreja e para a educação católica, um campo produtivo para que a ação pastoral possa dar uma resposta ainda mais adequada aos sinais dos tempos. PAPA FRANCISCO, 2013, n. 78. WOODWARD, 2014. 146 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 10. 147 LYOTARD, 1998. 148 VATTIMO, Gianni. O vestígio do vestígio. In. DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni (Org.). A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 96. 149 VATTIMO, 1996. 144 145
A sociedade pós-moderna é uma imagem, um simulacro,150 mas que sozinha não tem força para transcender essa imagem, pois seu papel é mais questionador do que propositor. Nesse ínterim, a pedagogia de Jesus, seus exemplos, sua acolhida às diferenças, que precisam ser fundamentos da ação pastoral na atualidade, pode contribuir para a transcendência contemporânea que o pós-moderno não se propõe a fazer, pois sua tarefa, como já foi mencionado, está mais no campo do questionamento.
Algumas perguntas, desafios e possibilidades (considerações finais) Uma vez que o testemunho cristão na sua essência sempre foi de acolher e de não excluir – “Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra” (João 8, 7) –, nos perguntamos: Em que aspectos sobre a identidade e as diferenças ainda são desafio para a Igreja e para a educação católica? Até que ponto, no currículo dos espaços educacionais católicos, pode-se encontrar ainda a reprodução de uma cultura hegemônica? A cultura do encontro proposta pelo Papa Francisco é uma proposta para todos ou para alguns privilegiados? Essa cultura é também para o sujeito diferente que está presente na educação católica? Podemos relacionar esses questionamentos, de alguma forma, aos provocados pelos mal-estares pós-modernos, pois esses trazem reflexões que podem indicar possibilidades pastorais no sentido de mobilizar a revisão positiva das práticas e das linguagens da inculturação do Evangelho, a fim de indicar saídas para a imobilidade da modernidade. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’água,1991. PAPA FRANCISCO, 2013, n. 210.
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Por isso, é necessário que a Igreja, “em vez de temer a destruição da identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais”.151 Que a educação católica seja esse espaço e tempo da expressão do legado e da perpetuação do Evangelho. Mas, para isso, a Igreja e a educação católica devem reconhecer suas fragilidades e, ao mesmo tempo, confiar no seu potencial como referencial de valores ao sujeito, uma vez que os sujeitos encontram poucas referências na condição moderna e pós-moderna.
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Contudo, não se quis apontar essa ou aquela visão de mundo, ou filosofia, ou modelo de sociedade, como saída para as crises atuais, ou até mesmo essa ou aquela teologia, ou modelo eclesial, muito menos relativizar a identidade da educação católica. Na verdade, a intenção foi indicar algumas possíveis perguntas mobilizadoras sobre o que podemos fazer para não tornar a ação pastoral dos espaços educacionais católicos uma mera reprodutora de desigualdades e exclusões – simbólicas, subjetivas ou até mesmo não intencionais –, correndo o risco de reforçar ainda mais as crises de sentido e de identidade atuais, em detrimento de uma demasiada luta em defesa da identidade cristã e católica. Pelo contrário, o que vimos nesta pesquisa teórica reforça as intenções da Congregação para a Educação Católica, e do Papa Francisco, ou seja, da Igreja. Que a inculturação do Evangelho possa ser realizada com ousadia, fazendo dos mal-estares, no contexto pós-moderno, uma oportunidade de alteridade, problematizando temas como cultura, identidade, diferenças e subjetividade. E que esse movimento, ao contrário do que se pensa, seja a oportunidade de favorecer ainda mais o reforço da identidade católica, pois seu alcance atingirá não somente os católicos, mas também os não católicos, por meio de uma linguagem respeitosa e de constante aproximação com as diferentes culturas, pois essa é a função da inculturação do Evangelho. Nesse sentido, a subjetividade pastoral, ou seja, a intencionalidade que reside na evangelização, não pode ser realizada por meio da imposição, mas por meio do diálogo baseado na “cultura do encontro”,152 acolhendo as diferenças, reforçando ou compondo comunidades fraternas nos espaços educativos católicos. Dessa forma, vamos construindo e reconstruindo uma identidade católica por meio da retomada dessas que são as características e a essência das primeiras comunidades cristãs. Portanto, a educação católica renova sua objetividade e sua subjetividade quando reforça seu papel baseado nesses princípios.
PAPA FRANCISCO, 2013.
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CULTURA E EVANGELIZAÇÃO: CONSIDERAÇÕES PARA UMA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL Alex Villas Boas
Introdução
Tal ressignificação, que passa a se chamar Evangelização, já em sua nomenclatura implica uma volta ao anúncio do que o Evangelho proclamava, a saber, as narrativas que tratam do kerigma anunciado por Jesus Cristo, que em última instância dizem respeito ao Reino de Deus e, consequentemente, uma Não se encontra anteriormente o termo evangelizatio como substantivo e suas declinações, como, por exemplo, evangelizationis. As traduções em vernáculo que optam pelo uso de “evangelização” nos documentos oficiais do Vaticano anteriores ao período do Concílio, talvez com o intuito de facilitar a compreensão do leitor, não são diretas do termo latino e suas declinações, como é o caso das Cartas Encíclicas de Pio XII, Ad Apostolorum Principis, nn. 3 e 28 (29/06/1958), Le Pèlerinage de Lourdes (02/07/1957), Ecclesiae Fastos (05/06/1954), Evangelii Praecones, nn. 8, 22 e 54 (02/06/1951), Saeculo Exeunte Octavo (13/06/1940); e também em João XXIII, Aeterna Dei Sapientia, nn. 19 e 26 (11/11/1961), Princeps Pastorum, n. 44 (28/11/1959), Sacerdotii Nostri Primordia, n. 57 (01/08/1959). Cf. ainda MELO, A. A. A Evangelização no Brasil. Dimensões teológicas e desafios pastorais: o debate teológico e eclesial (1952-1995). Roma: Editrice Pontificia Uniersità Gregoriana, 1996. (Tesi Gregoriana, Serie teologia, vol. 16). p. 61-62. 153
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O uso da expressão evangelização é um neologismo na semântica da Tradição católica que aparece pela primeira vez como categoria oficial no Concílio Vaticano II e diz respeito, portanto, a um novo modo de anunciar o Evangelho, o que significa uma volta às fontes do Evangelho para a tarefa de ressignificação para o mundo contemporâneo. O termo não aparece nem antes de Pio XII, até mesmo na época de João XXIII está ausente, e é possível dizer que é um termo tipicamente conciliar, pois é nas discussões do Vaticano II que é concebido como ressignificação missionária.153 Tal labor não é mero exercício de adaptação de linguagem, mas revisão metanoica, enquanto implica uma mudança de mentalidade que atinge o modo de ser cristão no Mundo, entendido como âmbitos em que não há uma confessionalidade cristã, ou mesmo que há diferentes confissões religiosas.
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postura em relação à vida que implica o reconhecimento da ação do amor de Deus (testemunho), configurador de um estilo de vida marcado pelo signo do amor e disposição do serviço ao mundo (diaconia). Tal reconhecimento resulta um itinerário de salvação, que da graça imerecida se faz caminho de fé confiante nesse Amor e abertura para amar e servir como forma de gratidão a quem mais precisa, processo que se desdobra na dinâmica da graça-gratidão-gratuidade, implicando não somente um discurso, mas um processo de subjetivação que se desdobra no alargamento de uma consciência ética que humaniza o humano. Evangelização, portanto, tem a ver com “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Evangelii gaudium [EG], 176)154, de modo que “nenhuma definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar”. A evangelização pós-conciliar só é possível de ser entendida dentro de uma abrangente “visão de conjunto” e de “todos os seus elementos essências” (Evangelii nuntiandi [EN], 17,155 retomada por EG 176).
Reino de Deus e avanço da cultura A categoria do Reino de Deus como elemento para o qual a missão se destina, e consequentemente da causa de toda atualização como tarefa permanente do Cristianismo, está presente mesmo dentro da Cristandade e no último papa antimoderno, Pio XII (1876-1958), no qual tal categoria estava ligada a uma conversão ao Reino, que tinha por objetivo a regeneração da cultura [de Cristandade], como entende ser a tarefa de seu papado. Realizar esta obra de regeneração, adaptando os seus meios às modificadas condições dos tempos e às novas necessidades do gênero humano, eis a tarefa essencial e materna da Igreja. Agregação do Evangelho, imposta pelo seu divino fundador, em que se inculca aos homens a verdade, a justiça e a caridade, e o esforço para ar FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013c. 155 PAULO VI, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi: sobre a evangelização no mundo contemporâneo. 8 dez. 1975. 154
raigar nas almas e nas consciências os seus preceitos, eis também o trabalho mais nobre e frutuoso em favor da paz. A grandiosidade de tal missão quase que esmorece os corações daqueles que fazem parte da Igreja militante. Mas o empenhar-se para que seja difundido o reino de Deus, coisa que cada século procurou realizar de vários modos, com diversos meios e não poucas e duras lutas, é um dever imposto a todo aquele que a graça divina arrancou das garras de Satanás e que com o batismo elegeu cidadão daquele reino (Summi Pontificatus, 60).156
É sempre verdade a palavra do Divino Mestre: “Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,33). Quando se é “luz no Senhor” (Ef 5,8), e se caminha como “filhos da luz” (cf. Ef 5,8), apreendem-se melhor as exigências fundamentais da justiça, mesmo nas zonas mais complexas e difíceis da ordem temporal, em que, não raro, os egoísmos individuais, e os de grupo ou de raça, insinuam e espalham espessas névoas. E quando somos animados pela caridade de Cristo, nós conhecemos os laços que nos unem aos outros, e PIO XII, Papa. Carta Encíclica Summi Pontificatus. 20 out. 1939. Todos os documentos oficiais da Igreja Católica Apostólica Romana serão retirados da Libreria Editrice Vaticana. Disponível em: <www.vatican. va>. 157 JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Mater et Magistra. 15 maio 1961. 158 JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Pacem in Terris. 11 abr. 1963. 156
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Face à ideia de regeneração da Cristandade na missiologia piana, João XXIII (1881-1963) não segue o caminho de condenação da modernidade e nem de apologia de uma primazia católica, opta pelo aggiornamento e considera a Igreja capaz de apresentar e proclamar “uma concepção sempre atual da convivência humana”, capaz de assimilar e dilatar o “avanço na cultura” (Mater et Magistra [MM], 217; 201)157, na medida em que a cultura de “paz” emerge da nova consciência dos novos tempos da dignidade humana, assimilando na linguagem eclesial a gramática dos Direitos Humanos e acentuando a convivência social marcada pela justiça, caridade, liberdade, valores mais universais e afins da “promoção do bem mútuo” (Pacem in Terris [PT], n. 31).158 Em João XXIII, o bem comum promovido pela justiça e a cultura de paz são sinais do Reino de Deus na modernidade, que devem ser perseguidos pela missão:
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sentimos como próprias as necessidades, os sofrimentos e as alegrias alheias. Por conseguinte, a ação de cada um, qualquer que seja o objeto da mesma e o meio em que se exerce, não pode deixar de ser mais desinteressada, mais vigorosa e mais humana; pois a caridade: “é paciente, é benigna... não busca os seus próprios interesses... não folga com a injustiça, alegra-se com a verdade... tudo espera, tudo suporta” (l Cor 13,4-7) (MM 255).
A missão em Pio XII é confundida com cristianização da cultura na medida em que a teologia do Reino de Deus é reduzida à estrutura política imperial de Cristandade, e a universalidade do Reino é confundida com a presença hegemônica da Igreja Católica, ao passo que, em João XXIII, a primazia do Reino de Deus na missão como primazia da justiça no espírito do Mistério da caridade, fonte igualmente de toda misericórdia que reconhece, defende e dinamiza a dignidade humana, é a origem seminal do sentido de evangelização no Concílio Vaticano II: Com efeito – se, como está na expectativa de todos, o próximo concílio ecumênico deverá acarretar um grandíssimo incremento da religião católica; se nele ressoará de modo ainda mais solene a “palavra da reino” de que se fala na parábola do semeador (Mt 13, 19); se queremos que por meio dele “o Reino de Deus” se consolide e se estenda sempre mais no mundo – o bom êxito de tudo isso dependerá, em grande parte, das disposições daqueles a quem serão dirigidos os seus ensinamentos de verdade, de virtude, de culto público e privado para com Deus, de disciplina, de apostolado missionário (Paenitentiam Agere, 22).159
Evangelização e Cultura no Concílio Vaticano II O conceito de Evangelização no Concílio Vaticano II é, originalmente, ainda impreciso em seu significado, dada a ampla e diversa compreensão histórica do que é missão. O termo latino evangelizatio aparece uma única vez na JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Paenitentiam Agere. 1 jul. 1962.
159
A experiência dos séculos passados, os progressos científicos, os tesoiros encerrados nas várias formas de cultura humana, os quais manifestam mais plenamente a natureza do homem e abrem novos caminhos para a verdade, aproveitam igualmente à Igreja. Ela aprendeu, desde os começos da sua história, a formular a mensagem de Cristo por meio dos conceitos e línguas dos diversos povos, e procurou ilustrá-la com o saber filosófico. Tudo isto com o fim de adaptar o Evangelho à capacidade de compreensão de todos e às exigências dos sábios. Esta maneira adaptada de pregar a palavra revelada deve permanecer a lei de toda a evangelização. Deste modo, com efeito, suscita-se em cada nação a possibilidade de exprimir a mensagem de Cristo segundo a sua maneira própria, ao mesmo tempo que se fomenta um intercâmbio vivo entre a Igreja e as diversas culturas dos diferentes povos (GS 44a).
O Concílio aplica ao substrato semântico da Evangelização a própria tarefa hermenêutica conciliar de que “uma coisa é o próprio depósito de fé ou as
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja. 21 nov. 1964. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. 7 dez. 1965a.
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Lumen Gentium (LG, 35)160 e a variação evangelizationis também uma única vez na Gaudium et Spes (GS, 44).161 Na primeira, faz-se menção a um “modo de evangelização” [Haec evangelizatio] a partir dos leigos, “proclamando a mensagem de Cristo” pelo “testemunho da vida” e com a “palavra” no qual se dirige a ação missionária na vida secular, ou a “evangelização do mundo” [evangelizandum mundum], que engloba eventualmente suprir “funções religiosas” [officia sacra] em sua ausência ou impedimento, mas fundamentalmente “incumbe a obrigação de cooperar para a dilatação e crescimento do Reino de Cristo no mundo” (LG 35). Já a Gaudium et Spes, como documento conciliar conclusivo, acentua a necessidade de “adaptar a pregação” [acccommodata preadicatio] do Evangelho às necessidades contemporâneas de compreensão da vida, e entende que tal tarefa constitui a própria “lei de toda evangelização” [lex omnis evangelizationis], o que inclui a consciência hodierna da crescente complexidade e respeito às “várias formas de cultura humana”:
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verdades e outra é o modo de enunciá-las, conservando-se, contudo, o mesmo sentido [sensu] e significado [sententia]” (GS 62). Uma grande novidade da sensibilidade conciliar para aumentar o diálogo e o “vivo intercâmbio” [vivum commercium], no qual a Igreja não só ensina mas também aprende com as diferentes culturas em um tempo “em que tudo muda tão rapidamente e os modos de pensar variam tanto” é contar com a “ajuda [auxilio] daqueles que vivem no mundo [viventes in mundo] [...], sejam eles crentes ou não [sive de credentibus sive de non credentibus]”: Para aumentar este intercâmbio, necessita especialmente a Igreja – sobretudo hoje, em que tudo muda tão rapidamente e os modos de pensar variam tanto – da ajuda daqueles que, vivendo no mundo, conhecem bem o espírito e conteúdo das várias instituições e disciplinas, sejam eles crentes ou não. É dever de todo o Povo de Deus, e sobretudo dos pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da palavra de Deus, de modo que a verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente [...]. Ao ajudar o mundo e recebendo dele ao mesmo tempo muitas coisas, o único fim da Igreja é o advento do reino de Deus e o estabelecimento da salvação de todo o género humano (GS 44b-45).
Ao resgatar a dimensão evangélica do Reino de Deus para além dos limites cristãos, também resgata o conceito de Povo de Deus, que é maior que o conceito de Igreja, enquanto instituição confessional, redimensionando a finalidade eclesial como “sacramento universal de salvação”, enquanto sinal que ajudar a visibilizar “o mistério do amor de Deus pelos homens” (GS 45). A categoria teológica de Povo de Deus entende “sinceramente que todos os homens, crentes e não-crentes, devem contribuir para a reta construção do mundo no qual vivem em comum” (GS 21), quer seja o Povo de Deus “por Cristo congregado” (GS 3) quer seja a parcela de “todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente” (GS 22).
Mesmo lamentando o “ateísmo” por dificultar o entendimento da bondade do Criador, que não se opõe à gramática da “dignidade do homem”, entende que o “remédio” não está na condenação, pois “só Deus pode responder plenamente e com toda a certeza, Ele que chama o homem a uma reflexão mais profunda e a uma busca mais humilde”, a dor presente nas razões de recusa de Deus, não raro ligado a um imaginário de teodiceia, mas “há-de alcançar-se, antes de mais nada, com o testemunho duma fé viva e adulta, educada de modo a poder perceber claramente e superar as dificuldades”, porém, mais uma vez o Concílio insiste na primazia da caritas sobre a veritas:
Assim o Povo de Deus deve, com a “ajuda do Espírito Santo” expresso pela fé ou no íntimo das consciências em que a graça opera misteriosamente, “saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo”, e sobretudo “os pastores e teólogos julgá-las à luz da palavra de Deus, de modo que a verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente” (GS 44c) para “discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus”, rompendo radicalmente com uma semântica de teodiceia, para uma fé que permite “conhecer o desígnio divino acerca da vocação integral do homem e, dessa forma, orientar o espírito para soluções plenamente humanas” (GS 11). Assim, além de Mestra, inicia-se, ainda timidamente, a semântica da Igreja discípula retomada pela Conferência Geral dos Bispos da América Latina em Aparecida e no Pontificado do Papa Francisco (Misericordiae vultus, 5),162 porém já em gérmen na recusa de uma FRANCISCO, Papa. Misericordiae Vultus: Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. 11 abr. 2015c.
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Ela [a fé] deve manifestar a sua fecundidade, penetrando toda a vida dos fiéis, mesmo a profana, levando-os à justiça e ao amor, sobretudo para com os necessitados. Finalmente, o que contribui mais que tudo para manifestar a presença de Deus é a caridade fraterna dos fiéis que unânimemente colaboram com a fé do Evangelho (18) e se apresentam como sinal de unidade” (GS 21).
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mera posição de condenação aos seus críticos, pois teologia conciliar “a Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar da própria oposição daqueles que a hostilizam e perseguem” (GS 44c) e assim o “Povo de Deus e o gênero humano se prestam mútuo serviço” (GS 11). Nos demais documentos conciliares, diferentemente da Lumen Gentium e a Gaudium et Spes, de teor mais conceituais, o termo “evangelização” aparece de modo impreciso,163 ora acentuando a semântica do Reino, ora acentuando a pessoa do Cristo, que evidentemente não se separam, mas isso indica ainda a dificuldade no próprio Concílio de amadurecer a missão da Igreja no mundo, e a ordem dos fatores propositivos, a saber: o anúncio do Cristo como condição para o desenvolvimento do bem comum e da dignidade humana, ou o do Reino de Deus, como proclamação do que Cristo anunciou, que inclui a exigência primordial da justiça na promoção do bem comum e da dignidade humana, pela primazia da caritas como caminho de reconhecimento do Mistério do Cristo. Tal sintomática imprecisão é indicativa do amadurecimento e ressignificação do imaginário missionário que começa a migrar da postura propositiva de uma cultura dominante para o diálogo entre as culturas, a transição de uma Igreja que se entende exclusivamente como mestra para uma Igreja que precisa se converter para o ad fontes de também discípula. Com a Carta Encíclica Ecclesiae Sanctae (ES)164 de motu próprio, destinada à implementação das novas normas decorrentes do Concílio Vaticano II, especificamente no que diz respeito aos seus decretos: Christus Dominus, sobre o ofício dos bispos [múnus pastoral]; Presbyterorum ordinis, sobre o ministério e a vida dos padres; Perfectae cartitatis, sobre a adaptação e renovação da vida religiosa; e Ad Gentes Divinitus, sobre a atividade missionária da Igreja, Paulo VI introduz um princípio hermenêutico conciliar: “para atender às relações introduzidas pelo Concílio e que serão cada vez mais [magis magisque] adaptadas aos novos fins [novis apostolatus finibus] e áreas do apostolado que através do Concílio foram abertos à Igreja no mundo moderno” (ES 1). Nos demais documentos, o termo “evangelizationis” e suas declinações aparece em Ad Gentes, nos números 6, 14, 20, 23, 27, 29, 30, 35, 36, 38, 39, 40, 41; Apostolicam Actuositatem, nos nn. 2, 6, 19, 26; na Presbyterorum Ordinis, nos nn. 5, 6, 19, e somente uma vez na Christus Dominus, n. 6. 164 PAULO VI, Papa. Carta Encíclica Ecclesiae Sanctae, 6 ago. 1966. 163
Essa adaptação “mais e mais” indica não uma mera mudança de forma pontual, mas assimilar a dinamicidade da mudança de época, que implica a iniciativa dos bispos, por meio de suas Conferências Episcopais, de propor “questões de grande importância nos tempos modernos” (41, 5, e); adaptar o governo da Igreja e da vida religiosa para atender as “necessidades modernas” (18); adaptar os costumes da vida religiosa para as “circunstâncias modernas”, “adotando novas formas também extraídas da “condição moderna da vida” (22); bem como “tornar a prática e o testemunho da pobreza mais eficaz nos tempos modernos” (23). A teologia da missão fora incentivada a uma verdadeira mudança copernicana, a fim de “explorar métodos, inclusive novos” de empreender o “diálogo da salvação” (Ad Gentes [AG], 10-11):165
O termo “Evangelização” será retomado quase 10 anos depois, também por Paulo VI, na Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, ocupando aí um papel central e de promoção do espírito do Concílio no mundo moderno. Tal CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Ad Gentes: sobre a atividade missionária da Igreja. 7 dez. 1965b.
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Estabelecer grupos de estudo para investigar os modos de pensar dos povos sobre o universo, o homem e sua atitude para com Deus, e dar consideração teológica a tudo o que é bom e verdadeiro (AG 22); Tal estudo teológico deve fornecer a base necessária para as adaptações que devem ser feitas, e que os grupos de estudo devem investigar. Estas adaptações devem, entre outras coisas, dar atenção aos métodos de pregação do Evangelho, às formas litúrgicas, à vida religiosa e à legislação eclesiástica (AG 19) [...]; No que diz respeito à condição religiosa (AG 18), deve-se ter cuidado para não se prestar mais atenção às formas exteriores (gestos, vestimentas, artes, etc.) do que às disposições religiosas dos povos que devem ser adotadas e a perfeição evangélica a ser assimilada; Promover, em determinados momentos, encontros de professores de seminário para adequar programas de estudo e intercâmbio de informações e conferir com os grupos de estudo mencionados acima para melhor atender às necessidades modernas de formação de sacerdotes (AG 16) (ES 18,1-3).
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exortação não somente reforça a importância de considerar aqueles “novos fins”, mas também impulsionar a dinâmica do magis magisque na tarefa de adaptar a Tradição para o mundo contemporâneo, conferindo à tal tarefa uma ampliação semântica da ideia de missão, sendo vista como “sem dúvida alguma um serviço prestado à comunidade dos cristãos, bem como a toda a humanidade”, contudo, reconhecendo que “o empenho em anunciar o Evangelho aos homens do nosso tempo” se situa entre os que estão “animados pela esperança” e ao mesmo tempo entre os que estão “torturados muitas vezes pelo medo e pela angústia” (EN 1). Tal tensão entre o entusiasmo e o medo quanto às diferentes concepções de cultura de Pio XII e João XIII foi reeditada no pós-concílio, pois, apesar de João Paulo II (1920-2005) insistir com a ideia de inculturação, a retomada da ideia de “lei natural”, abandonada pelo Concílio, e a insistência de coincidi-la com aquilo que chamou de fenomenologia católica,166 apareceria pela primeira vez na Redemptor hominis,167 acaba por reforçar o eurocentrismo do imaginário do catolicismo de Cristandade mesmo sem defendê-lo propriamente dito. Reforçar o catolicismo era para Wojtyla uma forma de proteger a cultura do comunismo histórico, contudo, se o marxismo na Europa era a expressão da falta de liberdade, na América Latina fora uma das expressões de reivindicação de liberdade nas ditaduras católicas, questão que jamais entendeu. Também a insistência da primazia da veritas no Cristianismo por Bento XVI, como medo de expansão do relativismo, foi insuficiente para atender à necessidade de pensar formas de interculturalidade no mundo contemporâneo plural. Em ambos, há uma postura de receio paternalista no que toca à autonomia do Povo de Deus e sua capacidade própria de autorregulação dos fenômenos culturais. Visão muito distinta de cultura e do povo, contudo, a do Papa Francisco se inscreve dentro da Teología del Pueblo ou da Teologia da Cultura, de matriz argentina. Ainda que a visão do bispo de Roma não se restrinja a ela, não há como negar sua influência.
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Teologia da Cultura como Teología Del Pueblo
A compreensão de cultura na Teología del Pueblo é extraída da Gaudium et Spes, no qual, em seus três parágrafos, irá ler A e B, a partir de C, acentuando assim uma perspectiva histórico e social, do que a abordagem filosófico-conceitual de A, e existencial de B:170 A. É próprio da pessoa humana necessitar da cultura, isto é, de desenvolver os bens e valores da natureza, para chegar a uma LUCIANI, R. La opción teológico-pastoral del pontificado de Francisco. Razon y Fé, t. 273, n. 14111412, p. 459-471, 2016. p. 459-461. 169 SCANNONE, J. L. El Papa Francisco y la teología del Pueblo. Razon y Fé, t. 271, n. 1395, p. 31-50, 2014. p. 19-29. 170 SCANNONE, 2014, p. 34. 168
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A Teología del Pueblo ou também conhecida como Teologia da Cultura foi desenvolvida inicialmente por Lucio Gera (1924-2012) e Rafael Tello (19172002), presbítero da Arquidiocese de Buenos Aires, e assumida pelo episcopado argentino em 1969, fruto do amadurecimento do trabalho realizado pela Comisión Episcopal de Pastoral (COEPAL).168 Ela se situa entre um dos ramos da Teologia da Libertação, na classificação de Juan Luís Scannone: 1) Teologia da Libertação desde a práxis pastoral, que não assume especificamente uma mediação sócio-analítica, mas sim fundamentalmente “ético-antropológica”, presente sobretudo na atuação dos bispos latino-americanos; 2) Teologia da libertação desde a práxis de grupos revolucionários, que faz uso da análise marxista (materialismo histórico) e se apresenta como comprometida com a ação revolucionária, não necessariamente violenta, tendo como nome expressivo Hugo Assmann; 3) Teologia desde a práxis histórica, buscando uma transformação estrutural da sociedade latino-americana a partir de uma reflexão e uma práxis libertadora pastoral e política, através de organizações e comunidades de base dialogando a Tradição cristã com a mediação sócio-analítica, também conhecida como teologia do político, tendo como expressivo Gustavo Gutierrez; e por fim 4) Teologia desde os povos latino-americanos, em que se situa o ramo argentino, e ainda que não negue a mediação sócio-analítica, privilegia o uso da mediação histórico cultural.169
autêntica e plena realização. Por isso, sempre que se trata da vida humana, natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas.
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B. A palavra “cultura” indica, em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana, com o progresso dos costumes e das instituições, a vida social, quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações. C. Daqui se segue que a cultura humana implica necessariamente um aspecto histórico e social e que o termo “cultura” assume frequentemente um sentido sociológico e etnológico. É neste sentido que se fala da pluralidade das culturas. Com efeito, diferentes modos de usar das coisas, de trabalhar e de se exprimir, de praticar a religião e de formar os costumes, de estabelecer leis e instituições jurídicas, de desenvolver as ciências e as artes e de cultivar a beleza, dão origem a diferentes estilos de vida e diversas escalas de valores. E assim, a partir dos usos tradicionais, se constitui o património de cada comunidade humana. Define-se também por este modo o meio histórico determinado no qual se integra o homem, raça ou época, e do qual tira os bens necessários para a promoção da civilização (GS 53).
Ademais, também se compreende que essa é a perspectiva latino-americana por excelência, sendo a perspectiva assumida pela Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Puebla, confirmando assim a escolha feita pelo COEPAL ao apresentar a visão de “homem latino-americano” em seu “profundo sentimento de transcendência e ao mesmo tempo da proximidade de Deus”, que se traduz em uma “sabedoria popular com expressões contemplativas”, a qual orienta um “modo latino-americano”, vivendo sua relação com a natureza e com os demais, em um “sentido de trabalho e festa, de solidariedade, de amizade e parentesco” no “sentimento de sua própria
dignidade que não é diminuída pela vida pobre e singela que leva” (Puebla, 413).171 Desse modo:
A Teologia da Cultura assume essa perspectiva dos aspectos da sabedoria popular católica como princípio de discernimento, lendo “cultura” como “povo”, de modo que a Evangelização da cultura passa pela capacidade que a sabedoria popular tem, essencialmente marcada pelo Evangelho, de evangelizar o povo. Sua missão não buscava a transformação das estruturas sociais e políticas por si só, mas o “discernimento da missão” e a “identidade da instituição eclesiástica a partir de uma opção pelo povo pobre” que ajudasse o povo a ser protagonista da transformação das estruturas. Tal opção conduziria a uma “práxis pastoral” orientada pela “justiça social” como “valor” do povo fiel a Jesus. Nesse sentido, a cultura tem papel especial, pois é entendida como: 1) lugar de mediação para o conhecimento da realidade; e 2) especialmente o âmbito da “cultura popular” é onde se pode “conhecer o pobre e seu modo de vida”. Desse modo, a opção pelos pobres passaria a ser uma “eleição pela cultura popular”, a fim de conhecê-la, preservá-la e potencializá-la. CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO, 3., 1979. La Evangelización en el presente y en el futuro de América Latina. Puebla, 1979. Petrópolis: Vozes, 1980.
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A religiosidade do povo, em seu núcleo, é um acervo de valores que responde com sabedoria cristã às grandes incógnitas da existência. A sapiência popular católica tem uma capacidade de síntese vital; engloba criadoramente o divino e o humano, Cristo e Maria, espírito e corpo, comunhão e instituição, pessoa e comunidade, fé e pátria, inteligência e afeto. Esta sabedoria é um humanismo cristão que afirma radicalmente a dignidade de toda pessoa como Filho de Deus, estabelece uma fraternidade fundamental, ensina a encontrar a natureza e a compreender o trabalho e proporciona as razões para a alegria e o humor, mesmo em meio de uma vida muito dura. Essa sabedoria é também para o povo um princípio de discernimento, um instinto evangélico pelo qual capta espontaneamente quando se serve na Igreja ao Evangelho e quando ele é esvaziado e asfixiado com outros interesses! (Puebla, 448).
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Os “pobres” que se entendem como “povo”, ou seja, que possuem um “ethos cultural próprio”, um “ethos comum” cuja “alma” é um “coração religioso” que “aposta sempre pela esperança desde as experiências limite e de carência material em que vivem” se descobrem como “sujeitos coletivos de uma história”. O método dessa teologia da cultura é inserir-se no “mundo de valores próprios do mundo da vida popular”, para em seguida teorizá-lo e evangelizá-lo, como “aposta” pela “promoção integral do sujeito humano”, o “fomento do diálogo sócio-político” e a “prática da justiça social” como características de uma religião que liberte as pessoas para mostrar-lhes o “rosto bem aventurado da história”, por meio da unidade entre a “condição política do Cristianismo” de estar ao lado dos pobres e a “ação pastoral da Igreja” que daí decorre sua opção.172 Também está presente na Teologia da Cultura uma teologia dos processos históricos, na medida em que a cultura está diretamente relacionada ao povo, como sujeito coletivo que desenvolve sua identidade na história, categoria distinta da “vida pessoal”, que se desenvolve em acontecimentos privados. A história, por sua vez, desenvolve-se em acontecimentos públicos, o que implica igualmente o discernimento dos afetos públicos, ou seja, daquilo que afeta a vida do povo, e que pode afetar, evidentemente, a vida pessoal de muitos, cujo relato da história atinge a biografia da vida pessoal. A história surge do fundo espiritual do ser humano, de modo que ele é o sujeito próprio da história como “espírito encarnado”, e enquanto sujeito plural há que ter uma “intercomunicação” entre “indivíduos e grupos” por meio da linguagem. Uma teologia da história pressupõe que Deus “atua na história” e que se pode reconhecer em alguma medida essas intervenções”, ou seja, “acontecimentos da história são reveladores”. Desse modo, a “teologia da história consiste no conhecimento da ação de Deus na história”, ou ainda das “incidências” de “Deus no acontecer histórico”. Tal conhecimento “religioso ou científico” pode se referir a três interrogações acerca desses acontecimentos, como exercício de discernimento: 1) a pergunta acerca da origem; 2) acerca do fim como cumprimento de uma meta; 3) acerca do curso intermédio entre o acontecer em sua origem e o fim, curso esse que constitui propriamente a história. Para os cristãos, o conhecimento de Deus na história se dá pela fé na LUCIANI, 2016, p. 460-461.
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revelação de “índole narrativa”, depositada nas Escrituras e nos Símbolos de fé e na história secular, em que há uma projeção histórico-salvífica do Mistério do amor do Pai manifesto no Filho pela ação do Espírito nas diversas culturas, que age, portanto, “não somente nos homens de boa vontade tomados individualmente”, mas também na “sociedade e na história, nos povos, nas culturas [e] nas religiões”.173
Outra característica importante na Teologia da Cultura é o uso de um “critério literário e estético” para falar do dogma, vendo como sendo as “formas GERA, L. La teologia de los procesos históricos. Teología, t. XLII, n. 87, p. 259-279, 2005. p. 260-266. GERA, 2005, p. 267-268; 271; PT 40-45.
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A teologia da história é uma busca de “participação na sabedoria com que Deus conduz a história”, como “história das culturas” por meio de “diversas épocas e processos”. Época é entendida como “um conjunto de tempo caracterizado por determinados processos”, sendo o conhecimento teológico dos processos históricos seculares a leitura dos “sinais dos tempos” de inspiração conciliar (GS 4). O discernimento dos sinais dos tempos passa por reconhecer “acontecimentos, exigências e desejos [ou aspirações] de uma época”. Essas categorias podem constatar e explicar as ciências sociológicas e a psicologia social, e em um segundo momento, enquanto hermenêutica da “dimensão especificamente teológica” desses “acontecimentos, exigências e aspirações sociologicamente constatáveis” visam constatar os “sinais da presença [ativa] de Deus”. Nem todas as características sociológicas de uma época são sinais teológicos com sinal da presença e atuação do Espírito, e por isso o Povo de Deus precisa “discernir precisamente quais” [grifos do autor] são sinais que dão acesso ao conhecimento teológico. A “qualidade própria” [grifos do autor] de um acontecimento epocal que permite interpretar um dito acontecimento como moção do Espírito é a sua “qualidade ética ou moral”. E uma “particular qualidade moral” dessa época que os Padres conciliares são inclinados a valorizar é a “fraternidade universal”. Além desses, a Teologia da Cultura assumirá questões em que se debruçaram os “sinais dos tempos” já apontados por João XXIII, a saber: a promoção dos trabalhadores na ordem econômica, social e política; o movimento de promoção da mulher na vida pública; o processo de descolonização e a juventude atual, coincidindo assim com João XXIII.174
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mais aptas de expressar a teologia”, o “romance, o teatro e a poesia lírica, porque expressa melhor a forma contemplativa da teologia”, e assim ajuda a “dar expressão” a uma “fé vivida”, e “refazer a experiência daquele a quem fala”, tanto ao falar “de Deus ao pobre que não tem o que comer” como “ao que tem muito dinheiro”. A literatura, portanto, ajuda a “incorporar a experiência de outra cultura para poder falar” do Evangelho, pois a “experiência de fé” recai na “experiência humana”, e “outra experiência é outra linguagem”. A literatura, portanto, trata da “experiência dos problemas humanos”, uma “palavra com dimensão estética, ou seja, uma palavra referida a uma experiência”.175 Também está presente a temática da religiosidade popular como núcleo da cultura popular, tal qual se faria presente em Puebla, como categoria chave para compreender a pastoral popular. Ao falar de “ação evangelizadora da Igreja”, Tello evoca o “princípio encarnatório”, que determina aquilo que fala sobre “pastoral popular”, “vida moral do povo” e “espírito de evangelização”. A Igreja como “Povo de Deus” deve se “encarnar em um povo temporal”, e como um povo se constitui como cultura, também se “encarna em uma cultura”. A Igreja Povo de Deus nunca existe como um ente separado, sua missão é encarnar-se, concretizando-se em um “modo particular” e ao mesmo tempo “transcendendo todo modo particular”. Isso faz que o Povo de Deus “encarnado em diversas culturas” seja também “diverso”, “conservando sua unidade” de Povo de Deus. Ou seja: “a cultura lhe dá uma modalidade encarnada aos valores universais do povo de Deus, e assim o multiplica no espaço e no tempo, sem esgotá-lo jamais”. Assim, ao se referir ao povo que foi evangelizado, não se pode “deixar de perceber os elementos evangélicos já presentes nele, segundo sua modalidade cultural”.176 Distinguem-se notáveis diferenças entre o que chama de “cultura ilustrada” e “cultura popular” La cultura de los dominadores se inclina ciertamente hacia el logos e impone una tónica racional, analítica y resolutiva. También en el orden de la expresión de la doctrina cristiana. La cultura popular no asume esa forma lógica, analítica, y más bien se inclina al modo GERA, L. Desafíos actuales del diálogo teología, estética y literatura: experiencia y lenguage. Entrevista y Homenaje a Lucio Gera (1924-2012). Teoliterária, v. 3, n. 5, p. 161-188, 2013. p. 168-173. 176 TELLO, R.Versión magnetofónica del Segundo encuentro de reflexión y diálogo sobre pastoral popular, La Rioja, 1971, [s.p.]. p. 16. 175
compositivo y sincrético para recibir, organizar y desarrollar la fe. Mientras la cultura ilustrada prioriza grandemente la palabra, la cultura popular capta más fácilmente y da un lugar más central al rito, la acción, que aunque se refiera a un objeto natural — el trabajo, la fiesta— tiene un contenido religioso... Privilegia un lenguaje simbólico y mítico y lo enriquece com formas no verbales, de silencios y movimiento (pensar por ejemplo en los bailes religiosos), de canto y música, de ofrecimiento y don, velas flores, etc.177
La realidad histórica es una única realidad dialéctica en la cual hay pueblos opresores y pueblos oprimidos. Esa es la única realidad actual. Y en esta única realidad los pueblos oprimidos están conformados por valores fundamentales no sometidos y por valores impuestos o introyectados por el opresor. Es decir: el oprimido es un tipo doble, tiene una doble personalidad, está dividido; tiene una personalidad cultural fundamental y otra personalidad ética-cultural impuesta por la realidad de la opresión.179
TELLO apud FERNÁNDEZ, V. M. Con los pobres hasta el fondo: el pensamento teológico de Rafael Tello. Revista Proyecto, ano 12, n. 36, p. 187-205, 2000. p. 188. Férnandez recolhe o material de assessoria pastoral de Tello, intitulado Nueva evangelización, anexo 1 (inédito). 178 TELLO, 1971. 179 TELLO, 1971, p. 22.
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A cultura popular não é tida de modo idealista, vendo com clareza que há um “transfundo basicamente bom e cristão”, mas também é “influenciada pelos meios de comunicação e por propostas que nem sempre harmonizam com o ideal cristão”. Contudo, considera característico da cultura popular sua capacidade de “adaptar a si os elementos estranhos”. O povo é capaz de absorver ideologias ou questões de senso comum, mas depois as devolve, desenvolvendo uma “arma que acaba rechaçando a imposição cultural”. A “cultura popular” não é mera forma de conservação do passado, mas um “princípio de novo desenvolvimento do povo”, gerando uma “mescla de culturas” que promove um processo dialético de identidade.178 Por isso mesmo:
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Nesse sentido, apesar de considerar a instituição “absolutamente necessária” para que “a fé e os valores evangélicos” sejam mantidos, também o clero ou ainda certas estruturas das instituições eclesiais, como movimentos, pastorais, planos pastorais e formativos, podem prejudicar a riqueza da religiosidade popular ao impor “exigências” e/ou “esquemas da cultura moderna” que não respondem à “atitude fundamental” do povo, exigindo formas que “podem em algum momento ser alienantes”. Do ponto de vista filosófico, a Teologia da Cultura argentina sofre influência de Enrique Dussel, da libertação integral, e da fenomenologia ética de inspiração em Emmanuel Lévinas, assumindo assim a lógica analética como método latino-americano, saindo da relação de exclusão dialética entre ser e não ser visto como um problema metodológico comum nas expressões filosóficas e políticas de liberais e marxistas, para “assimilar sem destruir”, como um “momento de síntese superior” ou “eminência” que afirma sem negar a alteridade, como forma de estar aberto ao “mais além” e ao “ainda não”. Assim estabelece o “estar sobre o ser”, o “símbolo sobre conceito”, a “sabedoria sobre ciência”, afirma a preeminência de um ponto sem negar seu contraponto, analiticamente.180 Tal Teologia da Cultura culmina com o espírito do COEPAL, criado em 1966, como proposta de “interiorizar o espírito do Concílio”, no qual se entendia quatro grandes finalidades conciliares: 1) consciência mais viva da Igreja; 2) A necessidade de reforma; 3) diálogo com os irmãos cristãos; e 4) abertura ao mundo de hoje. Desse modo, o COEPAL empreende a tarefa decorrente de consolidar uma “forma comunitária de ser Igreja” mediante a “promoção de estruturas colegiadas” quanto às duas primeiras finalidades conciliares, o que resultava na promoção de uma “reforma” de “mentalidades” e de “normas” que regulavam a estrutura da Igreja, com a finalidade de favorecer a “defesa da dignidade humana” e a “promoção de uma religião libertadora”. A dignidade humana e os processos de libertação serão vistos como elemento comum para reconciliar as diferenças com outros cristãos e a cultura moderna. O COEPAL emprega o termo Pueblo como a “existência de uma cultura comum”, “enraizada em uma história comum” e “comprometida com o bem comum”.181 SCANNONE, J. L. La filosofía de la liberación: historia, características, vigencia actual. Teología y Vida, v. V, p. 59-73, 2009. p. 71; TELLO, 1971, p. 20-22. 181 LUCIANI, 2016, p. 460. 180
A Teologia da Cultura no Papa Francisco
Francisco também assume, a seu modo e compondo as influências de escolas latino-americanas, o dever da Igreja, em fidelidade ao Reino de Deus, de convidar, acompanhar e promover movimentos sociais que “lideram processos históricos” [método histórico cultural] e promovem “caminhos de libertação” e “incorporação dos excluídos no destino comum” [método SCANNONE, 2014, p. 39.
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É inegável a influência da chamada Teologia da Cultura, que aborda o tema da libertação econômica e social considerando sobretudo a questão da cultura, mantendo o paradigma latino-americano, mas com alterações no acento.182 Francisco assume, assim, esse acento do papel da cultura e sua tarefa de transformar o “habitante” em “cidadão”, e assim em “povo” e “povo fiel” (Evangelii Gaudium [EG] 95-96), que encontra na fé a força que resiste às forças dominantes contrárias ao povo, tarefa que se dá em um processo constante, de geração em geração, como “povo peregrino”, e que “transcende toda necessária expressão institucional” (EG 101) como fruto de uma “multiforme harmonia”, resultado de uma “cultura de encontro”, que sabe ver o enriquecimento do povo promovido pela “diversidade de culturas” (EG 117), que tem o fruto da paz como “comunhão nas diferenças”, sem negar o conflito, mas procurando neles, “nas tensões e nos opostos”, alcançar um “pacto cultural” e uma “diversidade reconciliada” em prol do bem comum que “incorpora a todos” (EG 228; 230; 236). É esse povo em seu conjunto que “anuncia o Evangelho” (EG 113) como povo que evangeliza o povo (EG 122), e na totalidade dos fiéis é “dotado de um instinto da fé” de um “sensus fidei”, que ajuda a discernir o que vem realmente de Deus por uma certa “conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captar intuitivamente, ainda que não tenham o instrumental adequado para expressá-las com precisão” (EG 119). O próprio povo possui capacidade para “encontrar novos caminhos” (EG 31). Vê na religiosidade popular, como a TP, o melhor “ponto de partida” (EG 69), e não a vê de modo depreciativo e defeituoso, mas reconhece ali uma “mística popular” que se encarna em expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de festa” (EG 237; 124).
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sócio-analítico], criticando ao mesmo tempo um “sistema econômico que tem no centro um ídolo, que se chama dinheiro”, como “consequência de uma eleição mundial” e que nega ao povo “terra, teto e trabalho”, bem como critica a política de fechamento de fronteiras presente na então campanha do atual presidente estadunidense: “uma pessoa que pensa apenas em construir muros, seja onde for, e não construir pontes, não é cristã”.183 A crítica que Francisco faz ao sistema financeiro não é meramente ideológica, emerge da experiência concreta da realidade do sul, onde viveu em seu episcopado, fazendo a “opção pelos pobres” com o “imperativo de ouvir o clamor dos pobres” (EG 179-180), e assim fala pelos pobres e com os pobres. Um mês antes de se tornar o bispo de Roma, Bergoglio diz: el sufrimiento de inocentes y pacíficos no deja de abofetearnos; el desprecio a los derechos de las personas y de los pueblos más frágiles no nos son tan lejanos; el imperio del dinero con sus demoníacos efectos como la droga, la corrupción, la trata de personas —incluso de niños— junto con la miseria material y moral son moneda corriente. La destrucción del trabajo digno, las emigraciones dolorosas y la falta de futuro se unen también a esta sinfonía. Nuestros errores y pecados como Iglesia tampoco quedan fuera de este gran panorama.184
Um ponto original de Francisco no modo como analisa os processos históricos culturais sem negar os conflitos sociais é extraído da compreensão de dinamismo dialético dos contrários em Romano Guardini, analisando de modo “relacional” os polos subjetivos e objetivos, interioridade e exterioridade, ideias e realidade concretas.185 A transposição desse dinamismo relacional para “critérios sociais” que auxiliassem no discernimento da práxis e dos processos históricos seria o tema de sua tese,186 que mesmo tendo sido EG 199; FRANCISCO, Papa. Encuentro con el mundo laboral. Visita Pastoral a Cagliari. 22 set. 2013b; FRANCISCO, Papa. Discurso del Santo Padre Francisco a los Participantes en el Encuentro Mundial de Movimientos Populares. Roma. 28 out. 2014. 184 BERGOGLIO, J. Mensaje Cuaresmal del Sr. Arzobispo. Buenos Aires, 13 fev. 2013. 185 GUARDINI, R. Der Gegensatz. Versuche zu einer Philosophie des lebendig Konkreten, Mainz: Mathias Grünewald, 1955. 186 MAGISTER, S. Os quatro ganchos nos quais Bergoglio pendura o seu pensamento. Entrevista com Papa Francisco. Chiesa, 19 mai. 2016. 183
abandonada para assumir a função de provincial da Companhia de Jesus na Argentina, se tornam as “prioridades bergoglianas” para a construção e condução do povo, como “prioridades de governo condizentes ao bem comum” utilizadas como referência tanto como provincial jesuíta quanto arcebispo de Buenos Aires, a saber: 1) A superioridade do todo pelas partes; 2) a superioridade da realidade sobre a ideia; 3) A superioridade da unidade sobre o conflito; 4) A superioridade do tempo sobre o espaço. Elementos que aparecerão depois em seu pontificado como fundamentais para a compreensão de Evangelização das culturas, e consequentemente dos processos históricos (EG 217-237).
Outra influência substancial e que ao mesmo tempo influencia ativamente é a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, ou Conferência de Aparecida, do qual Bergoglio é o presidente da Comissão de Redação: En Aparecida la Iglesia toma conciencia de lo que se venía anunciando desde hace varios años. Lo que estamos viviendo es un “cambio epocal”, lo que está aconteciendo es que cambia precisamente esa matriz. Los cambios “no se refieren a los múltiples sentidos parciales que cada uno puede encontrar en las acciones cotidianas que realiza, sino al sentido que da unidad a todo lo que existe. Lo propio del “cambio de época” es que ya las cosas no están en su sitio. Lo que antes servía para explicar el mundo, las relaciones, el bien y el mal, ya parece que no funciona más. La manera de ubicarnos en la historia cambió [...] Probablemente lo que nos parecía normal de la familia, la Iglesia, la sociedad y el mundo, SCANNONE, 2014, p. 42. BERGOGLIO, J. Discurso del cardenal Jorge Mario Bergoglio. In: Jornada arquidiocesana de pastoral social celebrado bajo el lema hacia un bicentenario en justicia y solidaridad 2010-2016, 13., 2010. Nosotros como ciudadanos, nosotros como pueblo, Buenos Aires, 16 oct. 2010.
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As “prioridades” aparecem pela primeira vez na Congregação Provincial XIV, em 18 de janeiro de 1834, no qual fala de três, sem explicitar a dimensão da superioridade da realidade sobre a ideia, porém também presente.187 Já na Conferência como Arcebispo de Buenos Aires, na XIII Jornada Arquidiocesana de Pastoral Social, em 2010, aparecem a forma das quatro prioridades de governo.188
parecería que ya no volverá a ser de ese modo. Lo que vivimos no es algo que ilusoriamente tenemos que esperar que pase para que las cosas vuelvan a ser como siempre fueron.189
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A “respuesta de Aparecida” é oferecer “chaves” para olhar para o essencial, capaz de acender o desejo profundo e “despir de toda roupagem desnecessária”, a saber: o “olhar humilde” e disposição “aprendedora”, a “escuta silenciosa e atenta”, pois “o discípulo não é Mestro, por isso não sabe o que tem que fazer, não tem respostas”190: La Iglesia de Aparecida es comunidad de discípulos misioneros que quieren escuchar al Señor y escuchar la realidad con humildad para discernir qué es lo que hay que ser y hacer [...] La escucha del Señor también se hace en la escucha de la realidad com espíritu profético. Ello significa “poner luz sobre modelos antropológicos incompatibles con la naturaleza y dignidad del hombre” y “presentar la persona humana como el centro de toda la vida social y cultural”: En nuestros días, hacer este anuncio integralmente exige espíritu profético y coraje [...] lo que tenemos para oferecer al mundo y contrarrestar la cultura de muerte con la cultura cristiana de la vida y la solidaridad [...] Una pastoral en clave de Misión pretende sencillamente abandonar el cómodo criterio pastoral del “siempre se ha hecho así “, salir de la repetición mecánica, superar la improvisación y la rutina, dejar de dar respuestas estereotipadas a preguntas que nadie se hace, construir un proyecto válido de misión permanente, ordenando en función de este proyecto las actividades de los agentes de pastoral, partiendo de la realidad, valorando los recursos humanos y materiales y teniendo muy en cuenta la medida del tiempo para proponerse objetivos concretos a corto, mediano y largo plazo. Por lo tanto, el sentido misionero deberá animar todas las programaciones pastorales y acciones de la pastoral ordinaria
BERGOGLIO, J. Palabras Del Cardenal Jorge Mario Bergoglio, Arzobispo De Buenos Aires. Primera Reunión con El Consejo Presbiteral 2008, Buenos Aires, 15 abr. 2008. 190 BERGOGLIO, 2008. 189
intentando seriamente llegar a todos en sus propios lugares y en su estilo de vida.191
É possível evidenciar em Francisco uma recepção criativa das categorias centrais da teologia da cultura, especialmente nos acentos que confere para a relação expressão e experiência, no uso da linguagem empregada e nos gestos que conferem visibilidade à sua consciência teológica e eclesial tendo como categoria fundamental o povo (experiência) e sua cultura (expressões), BERGOGLIO, 2008. FRANCISCO, Papa. Discurso del Santo Padre por ocasión de la Entrega del Premio Carlomagno. 6 maio 2016a. 193 WOJTYLA, K. Mi visión de hombre. Madrid: Palabra, 2005, p. 135. 194 FRANCISCO, Papa. Discurso al cuerpo diplomático acredita en la Santa Sede. Roma. 22 mar. 2013a.; FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Loyola, 2015a. p. 8. 195 FRANCISCO, Papa. O nome de Deus é Misericórdia: uma conversa com Andrea Tornielli. São Paulo: Planeta, 2016b. p. 33s. 191 192
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Em Aparecida começa a ser gestada a eclesiologia de uma Igreja em Saída, assumindo a compreensão de uma “mudança de época” e definitivamente o fim da era carolíngia, para “sair e encontrar-se com os feridos”, superando uma mentalidade e imaginário de uma época em que a Igreja se torna reguladora moral de um âmbito teocrático para promover a cultura da misericórdia como cultura cristã pós-carolíngia.192 Esse traço de uma Igreja da Misericórdia é o elemento de continuidade pós-conciliar, presente em todos os pontificados, porém redimensionando o papel do Direito Canônico como regulador da comunidade de fé, como em Woytila e sua compreensão de ética normativa kantiana,193 para ter a misericórdia como “fio condutor” e elemento de unidade entre as diferenças reconciliadas, a fim de “construir pontes” para “encontrar no outro não um inimigo, não um contendente, senão um irmão para acolhê-lo e abraçá-lo”, pois “a caridade e a misericórdia pedem à própria Igreja, enquanto mãe, que se torne mais próxima dos filhos que percebe afastados”.194 Elemento esse que advém de sua própria biografia195 enquanto experiência que faz de Deus em sua vida e que acende ao público, integrando um processo histórico da cabeça para o corpo, na medida em que ocupa a cátedra de Pedro, e procura guiar seu rebanho da consciência de catolicidade para a fraternidade universal.
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entendido como povo-pobre-trabalhador, que busca no trabalho a ascensão de sua condição, e na justiça social a unidade cultural. Também se verifica em Francisco a busca pela proximidade do povo como forma de pastoral popular e matéria-prima para o raciocínio analético que promove a compreensão dos processos históricos para uma diversidade reconciliada, em prol do bem comum, base epistemológica da cultura de encontro, modo por excelência de gerar identidade cultural e iniciar processos históricos. A criatividade de sua recepção se verifica no modo como engloba experiência pessoal biográfica e intelectual, a experiência episcopal da Igreja latino-americana e a reproposição de sua síntese local para o universo global da catolicidade, a produzir uma compreensão maior de universalidade em prol da fraternidade universal, a começar de uma aliança pelos que mais sofrem, afirmando os movimentos sociais, por exemplo, e a atenção ao problema dos migrantes. Se “a graça supõe a cultura, e o dom de Deus se encarna na cultura que o recebe” (EG 115), a tarefa de uma Teologia da Cultura após Francisco e uma educação intercultural implica reconhecer os sinais da presença da graça, como presença do Reino no mundo globalizado, lido em chave cristológica. Em Francisco, tais sinais de uma nova cultura cristã, enquanto reconhecimento da ação do Espírito, parece apontar para a tarefa de reconhecer o amor de Deus misericordioso como fonte de toda a graça, a reverência para com a criação, ampliada na consciência ecológica, e servir as “periferias existências” todas, mas sobretudo servir aos pobres, apoiando novos processos históricos encampados pelos movimentos sociais, sendo uma Igreja pobre, e assim se salvar de sua autorreferencialidade estéril, como exercício da ordenação da sensibilidade cristã em mudança de época, caminho de uma Igreja pobre para os pobres, que prefere ser pobre e humilde como Cristo, ou seja, que busca se manter fiel ao sentido evangélico que anima e sustenta sua vocação, do que rica e poderosa, e assim corrobora com as estruturas de dominação cultural que sustentam as contradições culturais do modelo de globalização que substitui a dignidade humana pelo lucro, incorrendo no desvio de sua realização mais profunda, tanto da missão que produz frutos quanto da realização pessoal que cava maior profundidade na alma missionária. A cultura da misericórdia desloca o acento de crítica moralista de um imaginário reducionista da compreensão de “pecados da carne” para apontar gravidade
mais agravante dos pecados do espírito, a começar do pecado intelectual de se esquecer dos pobres, como opção do próprio Cristo, itinerário soteriológico que a Igreja latino-americana enriquece a Igreja Universal, com Francisco.
Conclusão A clareza semântica do conceito de Evangelização como categoria pós-conciliar por excelência, é fundamental para pensar as práticas educativas. O Concílio Vaticano II apresenta como tarefa revisitar a linguagem teológica, o que não se reduz ao mero uso instrumental de linguagem, mas à mudança de um modo de pensar a partir da hermenêutica da Tradição teológica cristã a fim de atualizar seu sentido e significado (GS 62) “à luz do Evangelho e da experiência humana” (GS 46). Tal experiência humana implica a hermenêutica da cultura, amplamente citada no Concílio (GS 36, 44, 53, 55, 56, 57, 62), e se estendeu no pós-concílio, sendo revisitada, de modo especial, no atual papado.
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Ademais, enquanto cultura cristã se lhe impõe a tarefa de ampliar a catolicidade carolíngia para a fraternidade universal, promovendo uma Evangelização enquanto presença do Reino no mundo (EG 176), em que a Igreja vem como consequência, e não causa, daqueles que se identificam com o chamado a um modo de ser. Na perspectiva da teologia da cultura após Francisco, pode-se então elencar “sinais da presença da ação do Espírito” na cultura contemporânea que podem constituir a agenda teológica na era franciscana, e suas consequências políticas de resistência contracultural: 1) a compreensão de Deus como fonte de bondade e misericórdia, superando assim visões religiosas legitimadoras de dominação e formas de violência; 2) a fraternidade universal e o respeito as alteridades como forma de cooperação religiosa à constituição de uma cultura global a ser reconciliada; 3) o protagonismo dos movimentos sociais que procuram novas formas de participação política; 4) a consciência ecológica integral e os males de um hegemonismo econômico na cultura; 5) a consciência missiológica como cuidado para com o Mundo, e a disposição para a missão do diálogo, como forma de superar mentalidades totalitárias.
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Dois aspectos de fundamental importância para a análise da cultura, enquanto doadora de sentido para a condição humana, são a linguagem e a ética, enquanto ser constitutivamente comunicativo e social. Dessa intrínseca relação emerge o imaginário que operacionaliza a sensibilidade e a ação. A tarefa da formação da consciência não pode olvidar tais elementos, de modo que se faz necessário tanto a arte da compreensão como o raciocínio crítico das condições estruturantes da sensibilidade, ações e reações do contemporâneo, e, no caso da teologia, qual influência a religião tem nesse aspecto, reformulando sua consciência pela ressignificação da linguagem teológica e postura ética em relação aos novos desafios. Entre esses, o desafio da hermenêutica da identidade católica se impõe na sua relação com a alteridade cultural como uma grande questão de época, sobretudo na análise da cultura, enquanto desafio comum da sociedade contemporânea de pensar as identidades em diálogo com alteridades, condição para a paz social. De modo muito sucinto, dados os limites do presente trabalho, para a análise da questão intercultural iremos nos ater aos conceitos de narrativa e de recepção estética quanto à questão da identidade. No que toca à narrativa, pode-se dizer que ela tem um papel decisivo por ser o modo como a identidade cultural se estrutura, sendo a identidade em si uma construção que se dá ao se narrar. Por cultura, elege-se aqui a noção de relação entre instituições produtoras de sentido, a concepção de sentido da vida e o imaginário cultural que daí decorre, emoldurando um sistema de ações, como elemento mais objetivo da questão,196 contudo, enquanto dimensão subjetiva, ou seja, da consciência do sujeito, a identidade se dá muito mais como processo de identificação com “sistemas de representação (elementos de simbolização e procedimentos de encenação desses elementos)” inerentes às “relações entre indivíduos e os grupos” em seus respectivos espaços de “reprodução e produção” de sentido.197 Dito de outro modo, a identidade se dá como processo de identificação com narrativas que promovem um imaginário que acessa um sentido para a vida, produzido e reproduzido “por” e “entre grupos” situados no espaço (locais físicos e virtuais) e tempo (assimilado no cotidiano ou eventualmente), em meio a um dinamismo de busca de sentido, de modo que QUINTÁS, A. L. Cultura y sentido da vida. Madrid: RIALP, 2003. p. 23-50. WINCK, O. L. Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza. Curitiba: Appris, 2017. p. 24.
196 197
tal processo, longe de ser “estático” é “dinâmico” em sua interação com imaginários, narrativas, grupos e momentos da própria pessoa, em que vai tecendo a sua própria narrativa. Em um ambiente de cultura dominante isso produz pessoas adeptas das instituições produtoras de sentido, e pessoas inimigas das instituições produtoras de sentido. Esse “outro”, que não é igual ao “mesmo” da identidade dominante, ou se negava em sua condição de diferente, ou era coagido à identificação, quando não sua eliminação era assumida como solução para a manutenção da identidade dominante.
ŽIŽEK, S. Alguém disse totalitarismo?: cinco intervenções no mau (uso) de uma noção. Rio de Janeiro: Boitempo, 2013.
198
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Na Tradição Cristã, essa alteridade de grupos diferentes da cultura, que passa a ser dominante com a oficialização do Edito de Tessalônica, passa a se chamar “herege”, e sua eliminação é, desde o ostracismo do Cristianismo Imperial, passando pela fogueira do Cristandade Medieval até o tardio antimodernismo dos novos tempos, a solução adotada pela identidade dominante. O mesmo se repetiu com as Cristandades protestantes, com os regimes civis totalitários, como Fascismo, Nazismo e Stalinismo, assim como o fenômeno recente do jihadismo. Slavoj Žižek levanta a questão do fascínio pelo totalitarismo na cultura, no qual a exclusão de quem é diferente está instalada na própria desestruturação psíquica que não assimila a diferença do outro na constituição do eu, que em última instância refuta a construção da identidade com um diálogo entre narrativas.198 No que toca à Tradição Cristã, confundem-se a semântica doutrinal com o processo de teocratização do Cristianismo, de modo que a questão da verdade passa de um processo de busca de sentido para a determinação objetiva da totalidade das coisas, determinando seus representantes, ou seja, quem ocupa os espaços de decisão política de modo totalizador, colocando a identidade acima ou excluindo as alteridades na administração do bem comum, no caso, privilegiando alguns em detrimento de outros, causa das guerras históricas. Se impõe uma cultura de respeito, na qual a narrativa da identidade deve ser construída respeitando a alteridade de outras narrativas, que, em última instância, diz respeito ao modo como se relaciona empática ou antipaticamente, incluindo ou excluindo, em espaços e eventos da tessitura do cotidiano.
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O resgate do ad fontes da missão retoma o objeto do anúncio do Evangelho, a saber: o Reino de Deus apregoado por Jesus Cristo como sinal do amor de Deus pela humanidade, que aponta o caminho da misericórdia como forma efetiva de amar gratuitamente, especialmente os mais pobres. Essa perspectiva assumida pelo Concílio Vaticano II visa à superação de uma concepção de missão ligada à Cristandade, que se reduziu à cristianização do mundo por meio de um projeto político de teocracia. Com efeito, não cabe aqui um juízo histórico de todo o período de Cristandade, mas a recusa de um anacronismo, no qual a questão cultural seja vista como a concepção de uma cultura dominante e superior, como se bastando que sua aceitação fosse suficiente para a transformação do mundo. Nesse aspecto, o Reino de Deus, presença misteriosa do amor de Deus que atua na história e nos corações, é de per si intercultural, e fora reduzido a uma forma imperial, e sua reminiscência se dá na forma de cultura cristã pretensamente superior. Particularmente grave nesse ambiente de recepção é a confusão entre o diálogo com os movimentos sociais e a busca do bem comum e a alocação das causas nobres em uma bipolaridade partidária. Cabe aqui uma distinção necessária entre o reconhecimento dos sinais do Reino de Deus nos movimentos de transformação social pela reivindicação do reconhecimento da dignidade humana, especialmente pelos mais pobres, e a identificação com um cenário político oportunista de alguns que fizeram de projetos populares um projeto de poder. A opção pelos pobres não coincide com a bipolaridade partidária oriunda de uma cultura de guerra-fria, entre direita e esquerda partidária, mas é a identificação de um dos sinais da presença do Reino de Deus. Ademais, a diferença de posicionamento político na sociedade contemporânea não se dá em torno das agendas políticas de um ou outro “lado”, uma vez que por vezes se separam por uma linha muito tênue, dadas as estratégias eleitorais de que todo extremo tende ao centro para ascender ao poder. Mas a diferença que pode ser identificada com a evangélica e inegociável “opção pelos pobres” é a diferença entre aqueles que entendem que a desigualdade social é algo natural e não há que ser combatida e aqueles que a entendem como um produto histórico que deve ser combatido em função dos que mais
sofrem. Tal compreensão ajuda a regular o processo de identificação com as narrativas que sinalizam a vontade de Deus, que deseja sempre o bem para o ser humano, sem com isso dispensar a tarefa do discernimento crítico do contexto das lutas políticas. A opção pelos pobres é a opção pela desnaturalização da pobreza social, e é a alteridade por excelência do Cristianismo do hemisfério sul.199
Nas instituições de natureza religiosa que desempenham funções sociais para além do aspecto religioso, como as instituições educacionais, essa discussão é particularmente necessária, e urgente a consciência de teologia da cultura, presente em Francisco, pois incorrem no risco de confundir a autêntica confessionalidade como forma de cultura alternativa, tal qual em sua origem como paideia alternativa, que assume para si os problemas de sua época e contexto com a promoção de uma cultura dominante, que anacronicamente corrobora para a retroalimentação de um imaginário intolerante e totalitário. A tensão que se inicia na perspectiva conciliar de superação [avanço] de uma mentalidade de promoção de cultura hegemônica e/ou de supremacia, alimentada em uma Cristandade, como limite de época, e o desafio de uma identidade aberta a alteridade, especialmente no que diz respeito aos espaços de intersecção entre o religioso e o privado, é formulada com o desenvolvimento de uma teologia pública, que não nega a sua confessionalidade, mas a relê criticamente, no sentido de alcançar seu sentido mais originário em cada BOBBIO, N. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. Trad. Marcos Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 1994. p. 95s. 199
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Por fim, em Francisco, o que pode ser chamado de interculturalidade, enquanto exercício hipodigmático de interagir elementos comuns entre paradigmas diferentes, dentro do que pode ser visto na sua Cultura da Misericórdia, que retoma a semântica de João XXIII, e nesse sentido fomenta uma Igreja que aprende com a alteridade em sua condição de discípula de uma missão que promove o Reino de Deus no centro de sua prática evangelizadora, escapando daquilo que Francisco chama de “autoreferencialidade”, ou seja, a confusão da promoção institucional como objetivo primeiro na missão de Evangelização, ao invés do esforço de tornar o Reino de Deus presente no meio na cultura contemporânea, sem confundir o diálogo com a alteridade com a oferta de uma experiência de encontro pessoal com o Cristo.
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época e contexto em que se elabora a semântica do Mistério, e a tradução pública dos valores e consciência de uma tradição religiosa. Nesse sentido, uma primeira tarefa de superação de uma visão anacrônica de uma concepção de Verdade hegemônica é a releitura da Tradição pela primazia da caritas, sempre atenta aos que mais precisavam na história do Cristianismo, como caminho para uma sociedade “mais livre, democrática, amigável”.200 Toda cultura, inclusive o que se chamou de cultura cristã, carrega em si formas de contradição que tendem a uma postura excludente da alteridade, e ao mesmo tempo apontam profundas intuições doadoras de sentido. A construção da identidade é uma tarefa dinâmica e nunca acabada, na qual o diálogo entre culturas promove a pergunta e a percepção mais profunda sobre o sentido da vida, naquilo que cada expressão capta de melhor, e que pode ser entendido como sinal daquilo que a Tradição cristã chamou de Revelação, como um excesso de sentido que não se esgota, mas que sempre se desvela na tarefa de cada vez mais [magis magisque] humanizar o humano, optando em dialogar e procurando identificar e valorizar o que tem de melhor na cultura do outro, e assim enriquecer a própria identidade, ao invés de condenar. Do mesmo modo de ver conversão como um exercício de mudança de mentalidade de um modo de pensar a vida egoísta para a abertura à alteridade a favor de quem mais precisa do que mera filiação institucional, e entendendo que, com o testemunho da caritas, que busque cada vez ser mais eficaz é que as “instituições temporais” podem se rever como “abertas aos valores espirituais” (MM 255), dada a capacidade de humanização que uma autêntica espiritualidade tem ao assumir como seu os problemas da sociedade e da cultura contemporânea, cada vez mais como motivador da emergência missionária.
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INFÂNCIAS E JUVENTUDES: O PROTAGONISMO DOS INTERLOCUTORES NA EDUCAÇÃO EVANGELIZADORA Ana Carolina Dias Diogo Luiz Santana Galline Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda
Introdução
Por muito tempo, a educação pautou-se pela ótica individual, por meio de processos que tornavam os sujeitos produtivos. O foco pedagógico tinha, também, a finalidade de controle social sobre as crianças e jovens, refletindo na construção de sujeitos individualizados, limitados e fortemente influenciados pela sociedade e suas regras. Esse modelo de contradições se perpetuou até a chegada da contemporaneidade, em que novos valores de mundo necessitaram de novos modelos educativos. O processo de globalização é marca dessa mudança de época e gerações. A liquidez das relações e dos fatos provocou uma reflexão mais profunda sobre a sociedade e, em especial, as crianças e os jovens. São novos atores, com novas demandas. Esse fenômeno impele a necessidade de uma evangelização com forte interlocução com a cultura, compreendendo como a realidade contribui nos processos pastorais de cada local.201 GRUPO MARISTA. Pastoral na educação infantil: referencial para a ação pastoral-pedagógica. Curitiba: Champagnat, 2012.
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No decorrer da história da humanidade, as crianças e jovens estiveram à margem do cenário social. Na modernidade, essas duas categorias passaram a ser tema de estudos históricos, sociológicos e antropológicos, a partir de mudanças no modelo de sociedade. Isso possibilitou um novo olhar para esse público, tornando-os foco de relevância social e política.
A crise nas instituições202 (escola, igreja, família, etc.) impacta diretamente essa nova conjuntura social. As instituições confessionais de educação têm um grande desafio pela frente, como conciliar sua proposta educativa com o modo como os sujeitos se compreendem no mundo.
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Entende-se a participação das crianças e jovens no processo pedagógico-pastoral como um primordial princípio educativo que contribui para a efetivação de uma autêntica educação emancipadora, que possibilita aos sujeitos o desenvolvimento de “suas potencialidades e seu livre pensar, incorporando seus diferentes saberes, conhecimentos técnicos, linguagens e tecnologias na promoção da investigação, reflexão e no posicionamento crítico frente à realidade”.203 Fomentar um modelo de ensino-evangelização fundamentado nos anseios dos sujeitos que vivenciam a realidade escolar é uma resposta aos desafios de uma educação evangelizadora no mundo contemporâneo, para ser possível construir um caminho com os sujeitos, e não apenas para eles. Isso garante um significado maior para a formação das crianças e jovens.204
Evangelização com as infâncias Os estudos sobre a infância entendida como uma condição construída socioculturalmente e da criança como um sujeito biopsicossocial datam de tempos recentes, especialmente aqueles que tratam da criança histórica e como sujeito de direitos. Nessa trajetória, destacam-se os estudos de Philippe Ariès, historiador francês do século XX que publicou, entre outras obras, o clássico História Social da Criança e da Família.205 Vale ressaltar que a obra trata de ampla pesquisa sobre a história da criança e da família burguesa europeia a partir da Idade Média até a modernidade, portanto um recorte, não considerando em seus estudos crianças de outras classes sociais e econômicas. Ainda assim, Philippe Ariès é reconhecidamente um percursor nos estudos sobre HERVIEU-LÉGER, D. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Tradução João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2008. Cap. 2. 203 PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-SUL. Diretrizes da Ação Evangelizadora. 2. ed. São Paulo: FTD, 2014. p. 68. 204 GIARETA, P. F. Direito a aprendizagem e gestão democrática: caminhos possíveis. Curitiba: Champagnat, 2015. 205 ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. 202
a infância, mas há quem discorde de aspectos de sua obra devido ao rigor da linearidade dos fatos apresentados e pelo fato de haver, conforme muitos acreditam, ausência do sentimento de infância até a Idade Média, já que muitos autores afirmam que havia o sentimento, mas com um entendimento diferente do da visão contemporânea. Conforme relata a historiadora brasileira Mary Del Priore na apresentação do livro História das crianças no Brasil: “as teses de Ariès instigam o historiador brasileiro a procurar suas próprias repostas”.206
Foi a partir da Idade Moderna (XV a XVIII) que o conceito de infância ganhou contornos que se assemelham ao entendimento que temos hoje. Surgem, nesse período, dois sentimentos: a “paparicação”; agora, devido a sua graça e doçura, a criança cumpria o papel de distrair e divertir os adultos, e começava a ser olhada não mais como um miniadulto, e sim alguém que precisava de cuidados diferenciados. A família, que antes não tinha uma função afetiva, “tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre cônjuges e entre PRIORE, M. del. O papel branco, a infância e os jesuítas na colônia. In: PRIORE, M. del (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. p. 10-27. p. 10. 207 ARIÈS, 1981, p. 50. 208 ARIÈS, 1981, p. 39. 209 ARIÈS, 1981, p. 69. 206
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O sentimento de infância surge do século XII ao XVIII. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la; é difícil acreditar que essa ausência se devesse à falta de habilidade ou de competência. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”,207 e que nasce na modernidade a ideia de infância, ainda sem reconhecimento de categoria social como hoje a entendemos: “A vida era a continuidade inevitável, cíclica, uma continuidade inscrita na ordem geral e abstrata das coisas, mais do que na experiência real, pois poucos homens tinham o privilégio de percorrer as idades da vida naquelas épocas de grande mortalidade”.208 Até o século XVII, não havia individualidade para a criança, já que, como um adulto em miniatura, sua identidade misturava-se com a do mundo adulto: “Assim que a criança deixava os cueiros, ou seja, a faixa de tecido que era enrolada em torno do seu corpo, ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição”.209
pais e filhos, algo que ela não era antes”.210 Esses sentimentos foram refutados por moralistas e educadores da época, e como consequência surgiu o segundo sentimento, o “apego”, que “inspirou toda a educação até o século XX”211 e impulsionou o que Philippe Ariès chamou de uma instituição nova: a escola. Na modernidade, e a partir da instituição “escola”, a infância passa a ser considerada em suas particularidades:
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A escola tornou-se uma instituição fundamental na sociedade quando a infância passou a ser vista como fase dotada de diferença, a ser institucionalizada, separada do restante da sociedade e submetida a um regime disciplinar cada vez mais rigoroso. A criança passa então a ser objeto de estudo e normatização das ciências, como a pedagogia e a psicologia, especialmente.212
Já na contemporaneidade, a Convenção sobre os Direitos da Criança213 é um marco que explicita a garantia de liberdade de expressão da criança, além de tratar do direito de ela formular os próprios juízos e expressar opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados aos aspectos que tocam sua vida. Essa visão de uma criança participativa e que precisa ser considerada em suas particularidades e história de vida desafia educadores, pastoralistas, estudiosos e demais interlocutores214 envolvidos na educação, evangelização e formação das infâncias a proporcionarem espaços que favoreçam a ampliação de seus conhecimentos formais e informais, que permitam às crianças desenvolverem-se em todas as suas dimensões e forjarem suas identidades baseadas em valores humanos, como o respeito, a ética e a solidariedade. ARIÈS, 1981, p. 11. ARIÈS, 1981, p. 162. 212 MOREIRA, E. M.; VASCONCELOS, K. E. L. Infância, infâncias: o ser criança em espaço socialmente distintos. Serviço Social e Sociedade, João Pessoa, v. 76, p. 165-174, 2003. p.171. 213 BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União, 22 nov. 1990. 214 Por interlocutores “entendem-se todos os sujeitos da evangelização que se colocam em disposição de diálogo, superando a ideia de que trabalhamos com destinatários da evangelização. Dessa maneira, a ação evangelizadora ocorre mutuamente, ou seja, todos se evangelizam. Como interlocutores: crianças, adolescentes, jovens, adultos, colaboradores, religiosos” (PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-SUL. Diretrizes da Ação Evangelizadora. 2. ed. São Paulo: FTD, 2014, n. 31). 210 211
Assume-se uma compreensão de criança capaz, não mais um “vir a ser”, mas sim um ser que vive uma fase peculiar e que precisa ser considerado em suas especificidades e capacidades. É preciso considerar que: a infância é construção social elaborada para e pelas crianças em um conjunto ativamente negociado de relações sociais. Embora a infância seja um fato biológico, a maneira como ela é entendida é determinada socialmente; a infância como construção social é sempre contextualizada em relação ao tempo, ao local e à cultura, variando segundo a classe, o gênero e outras condições socioeconômicas.215
Essas considerações podem contribuir sobremaneira na construção de uma proposta pedagógica-pastoral. Assim, algumas pistas para as interlocuções da pastoral no currículo com as infâncias surgem. Os estudos sobre a sociologia da infância, por exemplo, podem enriquecer as ações de evangelização216 com crianças nos espaços educativos. O envolvimento das crianças nos processos e planejamentos, de forma que sejam construídos com ela, em uma escuta intencional e atenta, tornam-se verdadeiramente inclusivos, constituindo-se uma postura esperada pelos adultos mediadores, uma vez que: “a criança, por meio da cultura de pares, negocia com o mundo adulto a sua existência, utilizando-se da sua capacidade de criar, nomear, simbolizar e interpretar a realidade na qual estão inscritas e a qual produzem”.217 A participação e corresponsabilização das famílias também se fazem necessárias e refletem uma atitude democrática por parte da gestão da escola, que gera DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A. Qualidade na Educação da Primeira Infância: perspectivas pósmodernas. Tradução Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 71. 216 “Por evangelização entendemos a missão global da Igreja que, fiel ao projeto de Cristo, empenha-se incansavelmente na promoção do Reino de Deus, tornando-se presente entre as pessoas e as culturas de maneira significativa, a fim de promovê-las em dignidade, à luz da fé. Assim, a evangelização serve ao desenvolvimento humano integral, com ações plurais e complementares, na diversidade das comunidades cristãs” (PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-SUL, 2014, n. 38). 217 ARROYO, M. G.; SILVA, M. R. da (Org.). Corpo infância: exercícios tensos de ser criança – por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 286. 215
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Não existe uma infância, mas sim muitas infâncias e crianças, que, na multiplicidade de modos de ser e viver, constituem-se como produtoras de cultura e construtoras de novas realidades.
e cria espaços de sinergia entre a família e a escola, seja em planejamentos, ações conjuntas, nas tomadas de decisão ou processos avaliativos.
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Os estudos da sociologia da infância podem inspirar, ainda, a relevância das interações na constituição do sujeito e de sua relação com o mundo, por meio da ação mediadora do adulto. Essas mediações em processos evangelizadores com a criança necessitam também suscitar a abertura ao transcendente, ao desenvolvimento de atitudes de tolerância, ao respeito, à solidariedade e à promoção da paz. Mais tarde, com a internalização da fala social, a criança adquire capacidade para planejar sua própria ação, passando a se autorregular. Juntamente com a linguagem, são internalizados valores, significados, regras de conduta, enfim, formas culturais de comportamento (ou papéis) que possibilitam atribuir novo sentido ao real, criar novos símbolos, ampliando conhecimento.218
A ação pastoral necessita, ainda, estar articulada aos demais envolvidos por meio de processos transversais com diferentes interlocutores, sejam crianças, adolescentes e jovens, educadores, gestores, famílias e comunidade eclesial. A dimensão da fé se torna também uma relevante possibilidade do campo pastoral, com respeito às particularidades e pluralidades culturais e religiosas das infâncias e suas famílias. Nossa fé “adulta” está diretamente vinculada com a vivência e convivência no mundo infantil. A fé é cultivada nas relações que travamos desde que nascemos, portanto, está ligada aos significados e ao sentido que damos à vida. A criança expressa sua compreensão do mundo mais por meio dos “sentidos” do que por um discurso “elaborado” (mundo adulto).219
PALANGANA, I. C. Desenvolvimento e aprendizagem em Piaget e Vygotsky: a relevância do social. São Paulo: Plexus, 1994. p. 141. 219 PAULA, B. de. A criança e a fé. Caminhando, v. 9, n. 2, p. 77-88, ago./dez. 2004. p. 78. 218
Acredita-se, portanto, que a pastoral atravessa o currículo, efetivando-se na medida em que busca uma articulação entre fé, cultura e vida de maneira integrada e respeitosa, que envolva verdadeiramente os sujeitos e contextualize, sempre que possível, os conhecimentos próprios do campo pastoral. “Jesus presta tal atenção às crianças – consideradas, na sociedade do Médio Oriente antigo, como sujeitos sem particulares direitos e inclusivamente como parte da propriedade familiar –, que chega ao ponto de as propor aos adultos como mestres, devido à sua confiança simples e espontânea nos outros”.220 Essa afirmação demonstra que Jesus buscava considerar a criança verdadeiramente e que ela é capaz de inspirar e ensinar os adultos com quem convive.
Dessa forma, a prática pedagógico-pastoral concentra-se na formação de valores, buscando considerar as crianças em sua integralidade. À comunidade educativa da instituição confessional cabe a reponsabilidade de dinamizar os projetos e processos pastorais com as infâncias de forma lúdica e contextualizada, considerando as múltiplas linguagens da criança.
Evangelização com as juventudes No Brasil, para os efeitos da lei, são consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos de idade,222 faixa etária em que estão 51,3 milhões de FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Lætitia: aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas, aos esposos cristãos e a todos os fiéis leigos sobre o amor na família. 19 mar. 2016. p. 18. 221 QUADROS, B. Medellín, Puebla, Aparecida e Santo Domingo: a luta pelos pobres e pela libertação. Entrevista com o teólogo Paulo Suess. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, ed. 267, p. 42-44, ago. 2008. p. 44. 222 Cf. Capítulo I do Estatuto da Juventude. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. 220
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Sobre os grandes conflitos que ocorrem atualmente, de redistribuição dos bens (capital, terra, água, trabalho) e de reconhecimento da alteridade (dignidade humana, questões de gênero, causa indígena e afro-americana, migrantes), em entrevista à revista do Instituto Humanitas Unisinos, o teólogo Paulo Suess coloca que “o Evangelho pode, a partir do seu campo próprio, que é o campo dos sinais de justiça e das imagens de esperança, construir estruturas de participação e de gratuidade. Estas configuram cunhas nas fissuras do sistema e anúncio e prática do Reino”.221 A construção de estruturas que fomentem o conhecimento de direitos e deveres necessita também ser fomentada e fortalecida pela presença da pastoral no currículo.
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habitantes, o equivalente a cerca de 1/4 da população.223 Todavia, faz-se necessário ampliar o conceito acerca da juventude para além da variável “faixa etária”. Remi Lenoir224 atenta para a questão de que a própria noção de idade não é uma construção natural, mas sim social, e, por essa razão, os grupos etários não podem ser compreendidos fora de seu contexto. Compreender determinada faixa etária envolve questões sociais e históricas, como gerações e classes.225 A juventude é “ao mesmo tempo, uma fase da vida, uma força social renovadora e um estilo de existência”.226 Cada sociedade constitui a própria imagem de juventude ao defini-la como “uma concepção, representação ou criação simbólica, fabricada pelos grupos sociais ou pelos próprios indivíduos tidos como jovens, para significar uma série de componentes e atitudes a ela atribuídos”.227 É fundamental compreender a juventude como uma categoria social pautada na faixa etária dos sujeitos. Entretanto, a compreensão deve estar atrelada aos questionamentos sociais e históricos que tornam a juventude uma categoria não homogeneizada. É comum retratar a juventude como um grupo social com interesses comuns. Porém, corre-se o risco de se camuflar a diversidade da vivência da condição juvenil, pois a compreensão do sujeito jovem se dá pelo processo de reconhecimento das necessidades específicas e diversas dessa categoria social. Colocar juventude no plural expressa a posição de que é necessário qualificá-la, percebendo-a como uma categoria complexa e heterogênea, para evitar simplificações e esquematismos.228 Há uma pluralidade de juventudes definidas a partir de grupos sociais concretos que possuem um recorte sociocultural de classe social, estrato, etnia, religião, gênero, região, mundo urbano e INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo Demográfico 2010. Remi Lenoir é sociológo francês, professor de Sociologia na Universidade de Paris e Diretor do Centro de Sociologia Europeia. 225 LENOIR, R. Objeto sociológico e problema Social. In: CHAMPAGNE, P.; LENOIR, R.; MERLLIÉ, D. Iniciação à prática sociológica. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 59-106. 226 FORACCHI, 1965, apud SOFIATI, F. M. Juventude católica: o novo discurso da Teologia da Libertação. São Carlos, SP: Editora da Universidade Federal de São Carlos, 2012. 227 GROPPO, L. A. Juventude: ensaios sobre Sociologia e história das juventudes modernas. Rio de Janeiro: Difel, 2000. 228 VELHO, G. Epílogo: juventudes, projetos e trajetórias na sociedade contemporânea. In: ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. (Org.). Culturas jovens: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 192200. 223 224
rural, sendo que várias juventudes convivem em um mesmo tempo e espaço social, havendo também diferenças entre os jovens que vivem em uma mesma sociedade, como no caso da juventude brasileira.229
Esta abordagem remete a uma específica conjugação de fatores históricos e conjunturais que evidenciam as dificuldades de inserção social de uma determinada geração juvenil. A noção do jovem como sujeito de direitos legitima a inscrição de velhas e novas demandas no espaço público fazendo com que as respostas e iniciativas do poder público passem a ser classificadas como políticas de juventudes.230
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também considera os jovens sujeitos de direitos, diversos em suas expressões e modos de ser. Pelo fato de serem sujeitos com necessidades, potencialidades e demandas singulares, é necessário olhá-los conforme a diversidade e “as desigualdades de classe, renda familiar, região do país, condição de moradia rural ou urbana, no centro ou na periferia, de etnia, gênero, etc.”.231 Portanto, “conhecer o jovem é condição prévia para evangelizá-los. Não se pode amar nem evangelizar a SOFIATI, 2011, apud GROPPO, 2000. ABRAMO, H. (Org.). Estação Juventude: conceitos fundamentais – ponto de partida para uma reflexão sobre políticas públicas de juventude. Brasília: SNJ, 2014. p. 55. 231 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Evangelização da Juventude: desafios e perspectivas pastorais. Brasília: CNBB, 2007. p. 24. 229 230
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Essa categoria social é foco de debates, questionamentos e pesquisas, de tal maneira que possibilitou a concepção das juventudes como período diferenciado das outras fases da vida, fortemente marcadas pela construção da identidade, com especificidades e necessidades que devem ser reconhecidas no espaço público como demandas cidadãs legítimas, emergindo a compreensão do jovem como sujeito de direitos. Essa concepção supõe reconhecer, de fato, a capacidade de as juventudes refletirem e proporem ações pessoais e coletivas, contribuindo para o processo de desenvolvimento de interesses e necessidades enquanto categoria social.
quem não se conhece”.232 E conhecer os jovens é estar em constante movimento, já que o dinamismo é marca fortemente presente nas juventudes.
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Em recente pesquisa realizada pelo Observatório das Juventudes da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),233 algumas situações ficaram evidentes pelas pesquisas, tais como: i) diminuição da relação institucional dos jovens com a religião, aumentando o vínculo com o Sagrado sem a necessidade de uma mediação com alguma instituição ou com a própria religião;234 ii) as práticas religiosas são cada vez mais individualizadas e menos coletivas235; iii) a existência de certa mobilidade juvenil entre uma religião e outra à procura de respostas autênticas236; iv) a busca de coerência entre aquilo que se prega e o que se faz;237 e v) a possibilidade de engajamento social por meio das pastorais nas áreas da saúde, educação, cultura, entre outros.238 A busca de respostas para suas dúvidas e angústias existenciais, a abertura ao novo, a extrema curiosidade, a liberdade frente a exigências incompreensíveis, a crítica aguçada quando percebem nos líderes religiosos atitudes consideradas inadequadas, tudo isso pode explicar uma adesão mais fluida, os vínculos tênues que uma parcela da juventude mantém com as instituições religiosas.239
Essa perspectiva de ter os jovens no centro impacta diretamente no modus operandi da formação proposta pelas escolas confessionais. Surge o desafio de propor uma educação que considere os jovens não como meros receptores ou destinatários, senão como partícipes da educação, capazes de contribuir para o próprio itinerário educativo. Nesse sentido, o jovem é considerado lugar teológico. CNBB, 2007, p. 15. RIBEIRO et al. (Org.). Juventudes na universidade: olhares e perspectivas. Porto Alegre: Redes, 2014. 234 Ibid., p. 117. 235 Ibid., p. 118. 236 Ibid., p. 119. 237 Ibid., p. 122. 238 Ibid., p. 123. 239 RODRIGUES, Solange. Como a juventude brasileira se relaciona com a religião? Boletim Observatório Jovem, Faculdade de Educação, Rio de Janeiro, 12 jun. 2007. 232 233
A novidade que a cultura juvenil nos apresenta neste momento, portanto, é sua teologia, isto é, o discurso que Deus nos faz através da juventude. De fato, Deus nos fala pelo jovem. O jovem, nesta perspectiva, é uma realidade teológica que precisamos aprender a ler e a desvelar. Não se trata de sacralizar o jovem, imaginando-o como alguém que não erra; trata-se de ver o sagrado que se manifesta de muitas formas, também na realidade juvenil.240
Outro importante apontamento relacionado a uma efetiva educação evangelizadora se dá com a necessidade de o currículo escolar dialogar com a realidade juvenil. O segredo da educação consiste em colocar “dentro dos programas os grandes problemas da região, do país, do mundo, e os jovens estudarão. Aliás, eles estudam. Estão muito mais em dia com a problemática nacional e internacional do que os adultos imaginam”.241 Embora sinalizado há cinquenta anos, o apelo permanece vivo: um educar que converse com os desafios dos jovens e, a partir disso, permita a formação crítica para agirem como “sal da terra e luz do mundo” (Mt 5,13). Não é tarefa simples compreender o jovem em sua complexidade, bem como promover uma educação evangelizadora dialógica, horizontal e participativa. Todavia, há que se acreditar e concretizar esse modelo de educação. Promovê-la é romper com o antigo modelo de “apresentar um mundo pré-definido, fechado e ocupado por adultos”.242 “Embora nem sempre seja fácil CNBB, 2007, p. 56. CÂMARA, 1968, p. 92. 242 BANÕ, 2000, apud REDE MARISTA DE SOLIDARIEDADE. Ecos da participação infantil e juvenil. São Paulo: FTD, 2010. 240 241
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Considerar o jovem como lugar teológico é valorizá-lo como partícipe fundamental da ação, abandonando práticas pensadas exclusivamente pelos adultos. Significa acreditar em uma relação dialógica, colaborativa e verdadeira na educação evangelizadora, respeitando ambos como interlocutores dessa ação. Uma autêntica relação favorecerá a derrubada de pré-conceitos de ambos os lados, permitindo aos adultos um reconhecimento dos jovens em suas múltiplas formas de ser e viver e compreendendo-os de forma integral; ao passo que proporcionará aos jovens o entendimento da perspectiva do adulto e, consequentemente, a aproximação para a ação conjunta.
abordar os jovens, houve crescimento em dois aspectos: a consciência de que toda a comunidade os evangeliza e educa, e a urgência de que eles tenham um protagonismo maior”.243 Uma educação dialógica e empoderada pelos jovens: um desafio que, caso seja feito de maneira autêntica, pode promover grandes transformações na vida dos envolvidos e nos espaços em que estiverem.
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Evangelização com crianças e jovens: considerações para uma proposta pedagógico-pastoral Diante do contexto e concepções sobre as infâncias e juventudes explorados no decorrer deste texto, dos infinitos mecanismos em estabelecer um processo evangelizador que atendam às diferentes realidades e dificuldades apresentadas, é essencial ter clareza quanto à intencionalidade da proposta pedagógica-pastoral na qual queremos desenvolver com as crianças, os adolescentes e os jovens. Mas, antes de traçar o caminho de evangelização, faz-se necessário reconhecer a pastoral como uma área de saber específico, com seu valor, que contribui de forma orgânica e processual no desenvolvimento educativo das crianças, dos adolescentes e dos jovens que ali estão, tornando-se assim um espaço educativo-evangelizador. O modo de agir pastoral necessita partir da realidade e experiência das crianças e dos jovens. Se foi afirmado anteriormente que crianças e jovens são capazes de contribuir para a construção de sua identidade e de seu caminho de amadurecimento na fé, e que são lugares teológicos, nada mais assertivo do que apresentar Cristo a partir deles mesmos. No entanto, a realidade nos mostra que é fundamental repensar frequentemente o modelo pedagógico-pastoral, e que, acima de tudo, o essencial é a proximidade e o comprometimento com seu desenvolvimento e sua promoção, reconhecendo-os como legítimos protagonistas de suas trajetórias. Reafirma-se, portanto, a necessidade de uma formação integral que leve em conta as dimensões humanas das crianças e dos jovens, considerandoos seres inteiros – compostos de dimensão intelectual, corporal, espiritual, FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013. (EG, 106).
243
ética, cultural, afetivas, e tantas outras constitutivas do indivíduo. A prática pedagógica-pastoral, portanto, considera as crianças e os jovens na sua integralidade. À comunidade educativa cabe a reponsabilidade de dinamizar os projetos e processos pastorais de forma lúdica, com sentido, contextualizada, considerando as múltiplas linguagens das crianças e dos jovens.
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IDENTIDADES CONFESSIONAIS, POLÍTICAS EDUCACIONAIS E ESTADO LAICO Romi Márcia Bencke Lucas Fabricio De Francesco Souza
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Introdução Este texto pretende apresentar desafios e possíveis caminhos para as escolas confessionais, na garantia da laicidade na educação e de sua identidade de educação católica em espaços plurais, dessa forma também garantindo as políticas educacionais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,244 os Parâmetros Curriculares Nacionais,245 as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica246 e os indicadores da nova Base Nacional Curricular Comum247 nas perspectivas da diversidade cultural.
Identidade confessional e a diversidade cultural A identidade é sempre plural, nunca é algo posto, pronto e estável. Está sempre em movimento. É algo processual e vai se fazendo de acordo com as relações, que vão se estabelecendo durante esse processo, que chamaremos de processo identitário. É algo constante.248 A identidade é feita por e caminha para a heterogeneidade, no encontro com pessoas, grupos, entidades, BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. p. 27833. 245 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997. 246 BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 247 BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. 248 HALL, S. A identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. p. 38. 244
culturas, religiões, povos, formas de governo e tantas outras influências. Se considerarmos que as identidades são colocadas mediante a marcação da diferença, somos levados a admitir que a identidade não é o oposto da diferença, depende da diferença.249 Ela se alimenta e se faz entre as realidades locais e globais, e ambas são de extrema importância para a construção dessa identidade. A identidade é indutiva, e não dedutiva, inicia do conhecimento das partes para se consolidar no todo. Identidade se faz no caminho, no percurso da caminhada. O ponto de partida para a construção identitária nunca será um ponto, mas vários pontos que vão se encontrando nas encruzilhadas do processo.
Neste texto, vamos nos ater à identidade cristã, em especial católica apostólica romana, que professa a fé em Deus que se revela em Jesus Cristo e no Espírito Santo. Tradição eclesial é a história do Espírito Santo na história da Igreja. O Espírito Santo não é enviado a uma Igreja já constituída antes de sua missão. A missão do Espírito Santo é constitutiva da Igreja, pois a Igreja existe porque o Espírito Santo foi-lhe enviado. Ela se manifesta a partir desse dom. Por isso a Igreja não é nem anterior, nem exterior à missão do Espírito. Primeiro há uma missão do Espírito a toda a criação, para que essa criação exista; depois, dentro dessa missão geral, surge e existe a Igreja. Em consequência, a ação do Espírito não é determinada pela ação da Igreja. Não é a Igreja que mostra os rumos ao Espírito. Ao contrário, é a Igreja SANTIAGO, M. C.; AKKARI, A.; MARQUES, L. P. Educação Intercultural: desafios e possibilidades. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 38.
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A identidade confessional implica uma confissão religiosa. Seja cristã católica, cristã protestante, candomblecista, budista e tantas outras confissões. Implica professar e ter a experiência da fé no sagrado segundo a tradição religiosa escolhida. E essas instituições procuram construir e descobrir suas identidades nesses processos. Isso é recorrente em todas as instituições confessionais. Utiliza-se muito os termos “voltar às origens”, “resgatar a identidade”, “reforçar o carisma” entre outras. Essa preocupação por si só já é uma construção permanente de identidade. A tentativa de encontrar o que se é e como vai se fazendo.
que deve seguir, e somente existe à medida que segue os rumos do Espírito.250
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Conforme o Catecismo da Igreja Católica, nos números 763 a 768, a Igreja foi “instituída” por Jesus Cristo e “manifestada” pelo Espírito Santo. Portanto, é o Espírito – sopro, fogo, água, movimento – que move e indica os caminhos da Igreja. Se faz necessário, portanto, ouvir e sentir mais o Espírito para as conduções da Igreja. Deixar o Espírito agir na História e pela História, indicar caminhos, como sempre foi, desde os primórdios da caminhada do Povo de Deus. Esse é o caminho da construção identitária cristã católica. A Igreja não nasce só de Cristo, nasce também do Espírito, que faz história da comunidade eclesial. Ela é divina e humana, portanto, carisma e instituição, um corpo a serviço do carisma que lhe foi confiado, carisma que faz parte igualmente de seu ser. Sem instituição, o carisma é um ideal incapaz de encarnar-se na história. Ela é a mediação que permite essa encarnação. Nada do que é divino pode fazer-se presente e atuante no humano sem um mínimo de instituição.251
O Cristianismo também é híbrido,252 construído principalmente pelas culturas judaicas e helênicas. Portanto, um encontro de identidades. Não existe Cristianismo puro. Basta atentar-se às escritas de Atos dos Apóstolos, às Epístolas de Paulo e também a todo o primeiro testamento. A Igreja, que é o Povo de Deus em movimento, não está fora desse processo identitário, mas inserida na História, e caminha com as culturas e tantas outras influências, sofrendo também constante construção identitária. Essa identidade cristã está em permanente estado de mudança, adaptando-se a diversas circunstâncias. Sempre que se mostra inapta a encarnar o BRIGHENTI, A. A Igreja Perplexa: as novas perguntas, novas respostas. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 132. 251 BRIGHENTI, 2004, p. 133. 252 Canclini entende por hibridação os “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2006, p. XIX. 250
carisma, fica flexível para reconstruir sua identidade. Ousamos dizer que essa nada mais é do que a ação do Espírito na Igreja, no carisma e na instituição. Toda instituição confessional nasce de um carisma fonte. Não podemos relativizar e deixar de lado os primeiros passos, mas precisamos compreender que a identidade está em movimento e vai se fazendo de acordo com os apelos do povo, principalmente os pobres, na escolha preferencial de Cristo, como está no Evangelho. A identidade confessional ao longo da existência interage dinamicamente com a experiência histórica de cada lugar. Onde se pisa, onde se come, onde se sente o cheiro, onde se bebe a água. Essa identidade é também continuamente movida pela ação do Espírito Santo, que conduz os esforços de cada cristã e cada cristão. A identidade confessional está encarnada nas diferentes culturas.
Cultura é a intervenção humana na natureza, concreta e simbolicamente. Cultura é o complexo que envolve conhecimento, arte, crenças, lei, moral, costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano na sociedade. É sabido que no mundo existem várias culturas. Culturas das mais diversas formas. Cada pedaço de chão do mundo é rico de sua cultura. Formas de ver a vida, formas de governo, língua, comida, jeito de vestir, expressão corporal e expressão de vida. Há especificidades e diferenças enormes em cada cultura. Na China, se come de um jeito; na Itália, se fala de outro; em Uganda, as pessoas se vestem de outra forma. Existe, portanto, como fato dado, um multiculturalismo. Que embora sejam bem diferentes uns dos outros, dialogam entre si e se encontram. Mendel criou o termo para explicar intersecções biológicas, como o enxerto de sementes.
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A cultura, a multiculturalidade e interculturalidade. Como as culturas se constroem e como estão em um processo de intersecção? Podemos explicar essa tese com diversos teóricos acadêmicos, mas será utilizado aqui o texto Culturas híbridas, de Canclini. O sociólogo Néstor Garcia Canclini foi um dos melhores acadêmicos que trabalhou esse conceito de hibridismo cultural. Ele adotou o termo hibridismo da biologia de Mendel.253
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Cultura, assim como a identidade, é sempre plural. Na história da humanidade não podemos dizer que exista uma cultura pura. Sempre uma cultura exerce influência sobre outra. Esse encontro de culturas sempre gera uma terceira cultura, e esse movimento é contínuo nas relações culturais, logo, relações humanas. Esse encontro de culturas é denominado interculturalidade. Ou seja, essa mistura cultural, que passa por processos, que Canclini vai chamar de “hibridismo cultural”.254 Há uma assimilação da cultura do outro e da outra nesse encontro. E desse encontro de duas culturas sempre há uma terceira, que já não é mais a mesma, nem de um, nem de uma, nem de outro e nem de outra. É resultado de um encontro. É preciso certo cuidado nesse diálogo de diversidade cultural, para que alguns processos não sejam relativizados. “É preciso conduzir criticamente esse debate da diversidade cultural para que não se torne somente uma mera intenção de considerar a multiplicidade de culturas, mas sem qualquer ou pouco reconhecimento e diálogo sobre e com elas.”255 Há, portanto, a tentativa de uma globalização cultural, europeia e estadunidense. Impõe-se pelo mercado, orquestrado pelo grande capital, uma cultura posta como a “verdadeira”, criando uma hegemonização cultural. Mas diversos grupos culturais vão nesse movimento de contracultura. Contra esses processos hegemônicos postos pelos “grandes do mundo”. É uma forma de resistência a esse processo imposto. Dentre as ações, podemos citar as ações afirmativas dos movimentos negro e indígena. É relevante o número de alunos e alunas, educadores e educadoras, colaboradores e colaboradoras de todos os setores de instituições confessionais de educação católica que não professam a fé católica. Entendem, respeitam, participam e promovem um ensino com valores evangélicos, mas não são católicos. São pessoas evangélicas (de inúmeras nomenclaturas de Igrejas), espíritas, candomblecistas, umbandistas, budistas e inclusive agnósticos e ateus. Todos e todas promovendo todos os dias dentro da comunidade educativa valores evangélicos. CANCLINI, 2006. MOTA, G. L. Pastoral no currículo: recortes e possibilidades de espaçotempos evangelizadores. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CATÓLICA, 3., 2015, Curitiba. Anais...: Brasília: ANEC, 2015. p. 5.
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A identidade confessional tem esse importante papel de fortalecer os valores evangélicos, principalmente por meio da pastoral. É preciso que a identidade católica seja garantida nos processos educacionais, mas, para isso, existem alguns caminhos que não precisam ser os mais fáceis e conhecidos processos, como o de catequização e de proselitismo. É preciso assumir que valores evangélicos são valores humanos. Os valores cristãos nada mais são do que valores de cidadania e de respeito para com o outro e a outra. Nos processos pedagógicos, inclusive dentro das salas de aula e oficinas, é preciso a transposição didática pedagógica-pastoral. Com o olhar para os valores políticos de cidadania, de respeito para com o próximo e ações de promoção do bem comum. Esses são caminhos para o respeito e promoção à diversidade cultural e religiosa.
A complexa relação entre políticas de educação confessionais, estado laico e políticas educacionais Apesar de nem sempre ser assegurada a todos uma educação de qualidade, há no pais boas leis e políticas educacionais. O que nos falta é a aplicabilidade e o respeito a tais leis. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, os Parâmetros Curriculares Nacionais, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica e os indicadores da nova Base Curricular Comum são alguns sinais de que há preocupação com a educação em nosso país. As instituições educacionais de confissão religiosa, inclusive as católicas, também têm as próprias políticas educacionais, propostas curriculares e seus projetos educativos. Que devem estar em consonância com as políticas educacionais do país. Uma das principais preocupações das políticas educacionais de instituições confessionais é a garantia da identidade da escola católica
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Aqui entendemos processos pedagógicos que incluam o debate de classes, de gênero, de raça, de religião, de etnia, de justiça socioambiental e tanto outros debates postos em nossa sociedade como desafiadores. Esses debates, à luz do Evangelho de Jesus, só têm duas alternativas: o diálogo e a misericórdia de Deus.
no processo pedagógico-pastoral e o entendimento da criança, do adolescente e do jovem como sujeitos de direito.
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Outra ameaça, que poderia emergir de novo, é aquela das regras da não discriminação. Sob a aparência de uma discutível “laicidade”, esconde-se a aversão em relação a uma educação declaradamente orientada aos valores religiosos, que é reconduzida à esfera “privada”.256
Não há dúvidas quanto à contribuição das igrejas para a educação. Um breve olhar para a história mostra a antiga preocupação das Igrejas com a educação. A Reforma Protestante do século XVI, por exemplo, provocou impactos no sistema educacional em um mundo que passava pela transição de uma sociedade medieval para outra orientada pelo capitalismo mercantil, e que posteriormente impulsionou a sociedade moderna. Lutero destacou a urgência de o sistema educacional tornar-se acessível para todos e todas. O reformador compreendia que era tarefa das autoridades políticas municipais responsabilizar-se pela criação e manutenção de escolas.257 A educação, para Lutero, era fundamental por duas razões: i) a necessidade de preparar pessoas para o novo mundo que surgia, o qual exigia mão de obra qualificada, por isso ele propunha que, além das disciplinas comuns, como história, línguas, direito e matemática, as escolas deveriam ensinar algum ofício; ii) para Lutero, a educação era compreendida como mandato de Deus. Era vontade de Deus que se falasse sobre a necessidade de escolas. Isso porque Deus se comunica pela linguagem escrita. A partir do momento que as pessoas não têm acesso à língua escrita, a mensagem de Deus se perde. Os responsáveis por garantir a educação na perspectiva do reformador seriam os conselhos municipais. Para Lutero, “a cada florim investido em gasto militar, dever-se-ia investir cem na educação”.258 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Educar hoje e amanhã: uma paixão que se renova. Instrumentum laboris, 2014 257 ALTMANN, W. Lutero e Libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Ática; 1994. p. 201. 258 ALTMANN, 1994, p. 203. 256
Esse sistema educacional apresentaria benefícios tanto para a Igreja quanto para o Estado. A Igreja seria beneficiada porque uma educação universal e qualificada possibilitaria melhores pregações. Contribuiria também para que as pessoas compreendessem melhor o Evangelho. Para o Estado, seria um benefício ter cidadãs e cidadãos mais preparados para assumir tarefas na sociedade. Para Lutero, a Bíblia deveria ser o livro mais importante da escola. Apesar de vislumbrar uma escola pública, ele compreendia que a educação deveria ser cristã e abarcar as dimensões secular e espiritual. É importante destacar que o período histórico em que Lutero viveu e concebeu sua ideia de educação era caracterizado pela cristandade. A relação entre poder político e religioso estava presente. Não se concebia Estado sem o poder eclesial.
No entanto, a partir do século XVI, o desenvolvimento científico e a ampliação dos meios de produção, ocorrida em parte com o surgimento da mineração e de banqueiros, fizeram a influência da religião como “agência reguladora do pensamento e da ação” e como monopólio de legitimação última da vida individual e coletiva261 ser gradativamente questionada.
GIDDENS, A.; BECK, U.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na Ordem Social Moderna. São Paulo: UNESP, 1997. p. 80. 260 RAMOS NETO, J. O. A Renovação da Tradição: uma análise da Reforma Protestante do Século XVI aos dias de hoje. São Leopoldo: CEBI, 2016. 261 BERGER, P. O Dossel Sagrado: elementos para uma Teoria Sociológica da Religião. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2011. p. 147. 259
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O Cristianismo, no Ocidente, governava todos os âmbitos da sociedade, estabelecia as normas, os valores e os símbolos que proporcionavam sentido à vida e às experiências humanas.259 A sociedade era dividida em três ordens: o clero, os guerreiros e os camponeses.260 Nesse ambiente, o Cristianismo oferecia os instrumentos de legitimação da realidade social (BERGER, 2011, p. 45). As relações de poder, trabalho subordinação eram explicadas e legitimadas através do discurso religioso. O direito do soberano e sua família governarem era justificado com o argumento de que esse era um direito concedido por Deus.
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Esse processo, conhecido como modernização da sociedade, tem sido associado ao enfraquecimento social e cultural da religião. Alguns falam do “exílio da religião”, indicando uma mútua exclusão entre religião e modernidade.262 Desde essa perspectiva, os valores religiosos estariam em plena contradição com os valores da modernidade, embora não ausentes. Alguns profetizaram que, com o advento e a consolidação do processo de modernização, a religião seria suprimida da vida pública, permanecendo como uma dimensão única e exclusiva da vida privada. É desse processo que surge o conceito de secularização. Há pelo menos três razões que explicariam a associação entre o processo de modernização e um possível enfraquecimento social da religião. A primeira delas pode ser relacionada a uma das principais características do processo de modernização, a de priorizar, em todos os âmbitos de ação, a racionalidade, compreendida como “o imperativo da adaptação coerente dos meios aos fins”.263 Isso significa que, para desempenhar suas funções e exercer suas intervenções, exige-se cada vez mais que as organizações estejam aptas e integradas por pessoas preparadas para exercer os diferentes papéis. A vida social burocratiza-se, ou seja, passa a ser organizada por divisão e coordenação de várias atividades. Para isso, leva-se em consideração os resultados da especialização científica e das diferenciações técnicas estabelecidas. O status social do indivíduo passa a ser mantido ou alcançado como resultado de sua educação ou trabalho. Não é mais uma transferência hereditária imediata. A ciência passa a atuar como orientadora da vida moderna. As explicações do mundo e dos fenômenos sociais precisam estar amparadas em critérios científicos. A ciência transformou o mundo moderno em uma civilização reflexiva,264 em que a religião perderia, cada vez mais, seu papel de normatizar a vida em sociedade. A segunda razão que contribuiu para explicar a aparente exclusão entre religião e modernidade é a afirmação central da autonomia humana. As HERVIEU-LÉGER, D. O Peregrino e o Convertido. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 35. HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 31. 264 MATA, S. da. Religião e modernidade em Ernst Troeltsch. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 20, n. 2, 2008. p. 239. 262 263
pessoas podem construir, por si mesmas, as significações que oferecem sentido à sua existência. O ser humano descobre-se condutor da própria vida, ou seja, se reconhece como ser com liberdade para estabelecer relações de cooperação com outras pessoas e interferir no mundo para determinar seu rumo.
Por fim, a terceira razão que favorece a relação entre modernização e secularização é a maneira pela qual a sociedade moderna se organiza. A principal característica do processo de modernização é a emancipação da esfera política em relação à esfera religiosa somada à diferenciação entre público e privado. A secularização precisa, portanto, ser compreendida como um processo lento e gradativo, que resultou na separação entre Igreja e Direito, Igreja e Política, tornou independente da religião as diferentes áreas do conhecimento, liberou a arte da religião. Nesse processo, foram viabilizadas novas formas de conhecimento, os quais repercutiram também na religião,266 que passou a ser questionada. A secularização no Ocidente foi resultado das muitas guerras religiosas. Não haveria solução para os conflitos sem a secularização do poder do Estado. Um Estado religioso não poderia arbitrar de forma neutra em contextos de guerras religiosas. SELLETI, J. C.; GARRAFA, V. As raízes cristãs da autonomia. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 76. HABERMAS, J. Mundo de la vida, politica y religión. Madrid: Trotta, 2012. p. 125.
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É importante enfatizar que autonomia é um conceito cujas raízes estão firmadas na tradição cristã. Trata-se de uma concepção formulada a partir das reflexões de Agostinho sobre o livre-arbítrio. Mais tarde, a Reforma preocupou-se em debater a liberdade humana com respeito à salvação, compreendendo que o ser humano pode resolver os dilemas da salvação individualmente mediante a justificação pela fé em Jesus Cristo, sem a intermediação da Igreja (Rm 1,17; Rm 10,10, Tt 3,4-5). Nesse sentido, o fundamento da liberdade humana é Deus. O Iluminismo, em especial a partir da Filosofia de Kant, relacionou a autonomia com a liberdade de o ser humano valer-se da própria razão. Dessa concepção desenvolveu-se a noção de liberdade de consciência.265
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O processo de secularização possibilitou a identificação de uma linguagem comum que contribuiu para a superação das diferenças de fé, tidas como irreconciliáveis. Para isso, foi fundamental traduzir o núcleo universalista das diferentes convicções religiosas para os princípios dos direitos humanos e da democracia.267 A proclamação do princípio da liberdade religiosa, artigo X da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi um marco histórico importante desse processo. Mais clara e explícita foi a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de 1791, de Olympe de Gouges, que deixou exposta a exclusão das mulheres da cidadania. Ela chamou a atenção de que era necessária uma relação de igualdade entre homens e mulheres, pois as diferenças de sexo não deveriam justificar a exclusão das mulheres do poder político e do livre exercício da cidadania. Por causa disso, Olympe de Gouges foi condenada à morte na guilhotina. O princípio da liberdade religiosa possibilitou que minorias religiosas tivessem seus direitos associados à cidadania.268 O processo de secularização tem sido associado ao esvaziamento das religiões. Há um discurso recorrente que responsabiliza a secularização pela diminuição gradativa da participação das pessoas na Igreja e da perda do poder da religião na sociedade. No entanto, é preciso tomar cuidado com essa análise, pois o processo de secularização tornou visível as tensões resultantes de um tempo em que o poder eclesiástico abençoava as atrocidades da repressão política e da exploração social.269 O processo de secularização contribuiu para que as organizações religiosas repensassem sua presença na sociedade, refletissem de forma autocrítica sobre suas práticas e se abrissem também para os contextos históricos. Com a secularização, a própria teologia precisou ser repensada, e surgiram novas hermenêuticas bíblicas. As próprias tradições religiosas se pluralizaram, e a partir de então, dentro de uma única instituição religiosa, muitas vezes há ampla diversidade de grupos e experiências de fé. HABERMAS, 2012, p. 139. HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 187. 269 HABERMAS, 2012, p. 129. 267 268
É a partir desse processo histórico que precisa ser refletida a complexa relação entre políticas de educação confessionais, secularização e laicidade. Parte dessa relação complexa precisa ser interpretada à luz da compreensão inicial que se teve quanto ao significado da secularização. Desde uma perspectiva jurídica, a secularização foi entendida como “uma transferência compulsória dos bens da Igreja para o poder público secular”.270
É necessário, portanto, identificar caminhos que possibilitem ajustar a existência das comunidades religiosas em sociedades que vivam o processo de secularização que é sempre inacabado, pois a religião, ao contrário do que se imaginava, não se extinguiu. É possível pensar em educação confessional em sociedades secularizadas, cujos Estados se orientam por constituições liberais que estabelecem a separação entre religião e Estado, desde que as instituições educacionais confessionais tenham a capacidade de renunciar à imposição de suas verdades de fé, não queiram manipular a consciência de seus educandos e educandas e compreendam que desempenham seu papel social e religioso em sociedades plurais. A instituição educacional confessional precisaria levar em consideração que a consciência religiosa é desafiada a assimilar o encontro “cognitivamente dissonante”272 com visões de mundo, confissões e religiões diferentes da sua. Outro desafio é a adaptação à autoridade das ciências detentoras do monopólio social quanto ao saber produzido pela humanidade. Um terceiro desafio é ter a disposição de adequar-se aos princípios do Estado constitucional HABERMAS, J. Fé e Saber. São Paulo: UNESP, 2013. p. 5. HABERMAS, 2013, p. 6. 272 HABERMAS, 2013, p. 7. 270 271
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Essa compreensão deu margem a duas posições que historicamente foram conflitantes. De um lado, a interpretação de que a secularização teria “domesticado” a autoridade eclesiástica. De outro, a compreensão de que houve, por parte do Estado, a apropriação ilícita dos bens eclesiais. Ambas as interpretações erram ao considerar a secularização um jogo de soma zero entre as forças produtivas da ciência e da técnica e os poderes da religião e da Igreja, que compreendem que o modelo da apropriação forçada significaria a ruína de uma modernidade desamparada.271
laico, pois as instituições educacionais confessionais não podem ignorar que as visões de mundo são plurais.
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Desde o advento da modernidade, há certa tensão na relação entre fé e saber, que tende a se agravar. No entanto, é necessário preservar os laços da comunidade política. Em contextos de ciência e fé, é necessário compreender que, em sociedades seculares, as decisões e os princípios orientadores são definidos pela Constituição. Nos tempos atuais, alguns grupos religiosos tendem a reivindicar o direito de impor seus valores e concepções de mundo em nome da liberdade religiosa; porém a liberdade religiosa não pode ser reivindicada como direito absoluto senão na medida em que essa reivindicação ateste absolutamente sua conformidade aos direitos humanos. Reclamar seus benefícios é, para qualquer grupo, aceitar colocar-se na dependência desse sistema, desde que tal grupo reclame esse direito pela democracia, deve-se saber em que medida os valores que ele propaga e as práticas que realiza são compatíveis não apenas com o Estado de direito, mas também com o universo de valores que pode, unicamente, garantir-lhe o exercício efetivo do direito que ele reivindica. O desafio então é a discussão sobre uma definição prática dos limites aceitáveis da liberdade religiosa praticada em uma sociedade democrática. No contexto da educação confessional, tal debate precisa ser levado em conta. Em sociedades plurais, a liberdade religiosa não pode ser exercitada de forma a comprometer as demais liberdades individuais. 273
A Teologia política na educação A Constituição Federal brasileira estabelece a relação entre Estado e Religião. Vários princípios constitucionais consolidam o princípio da laicidade, entre eles os princípios da democracia, da igualdade e da liberdade religiosa. A Constituição Federal deixa claro em seu Artigo 19 que: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: HERVIEU-LÉGER, 2008.
273
I – Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.274
Conforme artigo 5, VI, da Constituição de 1988, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.
A lei garante que o Estado não intervenha nos sistemas de fé. A natureza laica do Estado brasileiro torna-o neutro em termos religiosos. Com isso, ele tem a função de mediar a relação entre as tradições religiosas, e não de apoiar confessionalidades religiosas específicas. Os artigos que tratam da liberdade de consciência e de crença asseguram a legitimidade das diversidades religiosas e das diferentes visões de mundo. A liberdade religiosa não deveria ser confundida com liberdade de promoção religiosa, em especial nos órgãos públicos. Também não deveria: “possibilitar a interferência religiosa e de seus sistemas de verdade nos atos civis de interesse público, em caráter de justaposição dos interesses privados da religião sobre os interesses do Estado e da sociedade como um todo”.275 A cooperação entre religião e Estado é aceitável constitucionalmente desde que esteja voltada para o bem comum, e não na promoção de suas convicções BRASIL. Constituição (1988). Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto Legislativo nº 186/2008. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. 275 STRÖHER, M. J. (Org.). Diversidade religiosa e direitos humanos: reconhecer as diferenças, superar a intolerância, promover a diversidade. 2. ed. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013. p. 70. 274
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A dimensão laica do Estado brasileiro garante que uma pessoa é livre se deseja ou não seguir uma religião. É tarefa do Estado garantir tratamento igual para todas as religiões, crenças ou convicções. Para ser coerente com a constituição, não deve existir tratamento privilegiado com essa ou aquela religião. Da mesma forma, o Estado não pode interferir na formação espiritual e na crença das pessoas, uma vez que a fé pertence ao âmbito privado do indivíduo.
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em particular. A dimensão laica do Estado brasileiro sob hipótese alguma pretende esvaziar ou expulsar a religião da esfera pública. Ao contrário, o Brasil não experimentou um processo de secularização que tenha relegado a religião única e exclusivamente à esfera privada. O espaço público brasileiro nunca deixou de ser religioso. A esfera pública sempre foi ocupada por procissões, oferendas, festas religiosas, feriados santos. A novidade talvez seja a pluralização do religioso na esfera pública. Não é mais possível falar de uma religião ou igreja. Hoje fala-se de denominação religiosa. Embora a Constituição brasileira seja clara quanto à relação Estado e Religião, na prática percebe-se ambiguidades na relação entre essas duas esferas. No caso brasileiro, nota-se a instrumentalização entre religião e política, e vice-versa, que tem como característica principal a defesa de valores morais conservadores, de um lado, e a defesa de interferência mínima do Estado na economia, de outro. A interferência mínima do Estado na vida das pessoas fomenta a maior influência religiosa na vida privada. Para alguns grupos, em especial cristãos, a sociedade moderna é vista como a grande inimiga, uma vez que liberalizou a família e a educação. Isso representou, na visão desses grupos, uma traição aos valores cristãos. Tais grupos preconizam o “reenvio para o domínio privado de questões que os movimentos de emancipação, nomeadamente de mulheres e dos homossexuais, remetem para o espaço público”.276 Nos Estados Unidos, esses grupos cristãos, formados por organizações como Maioria Moral, a Voz Cristã e a Mesa Redonda Religiosa, reivindicam “simultaneamente, a cristianização das estruturas do Estado, como por exemplo, as da educação”.277 Para eles, o retorno da “ordem perdida” passa pela menor intervenção do Estado na vida privada, por uma articulação entre a ética cristã da responsabilidade e pela economia de mercado. Isso está ilustrado no resgate feito por Santos de parte do discurso do presidente do Instituto para a Economia Cristã (IEC), sr. Gary North, que apresenta os objetivos do Instituto: O IEC destina-se a defender que a ética bíblica requer inteira responsabilidade pessoal, e esta ação humana responsável floresce SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2013. p. 66. SANTOS, 2013, p. 66.
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mais produtivamente num enquadramento de governo limitado, de descentralização política e de interferência mínima do governo na economia.278
A questão que poderia ser colocada é se haveria nesse fenômeno alguma crise de identidade do Cristianismo. Tal crise não seria tanto em relação à mensagem cristã, mas sim dos indivíduos e das instituições que o representam.279
Pergunta-se pelo papel das instituições confessionais de educação nesse contexto. Está claro que, como organizações religiosas, têm um importante papel a desempenhar? A questão é se a sua atuação contribuirá ou não para fortalecer e ampliar espaços plurais de participação e se conseguirá ou não atualizar seus valores e seus princípios de modo a contribuir para a construção de espaços seguros de diálogo, tão necessários para a superação de intolerâncias, preconceitos e discriminações.
SANTOS, 2013, p. 67. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1998. p. 316. 280 A Teologia Política não representa uma nova disciplina e nem comporta uma neopolitização da teologia. Sua pretensão é tornar a palavra cristã socialmente eficaz. Ela busca categorias que contribuam tanto para iluminar as consciências quanto para transformá-las. Surgida no contexto europeu, são expoentes da Teologia Política Metz, Moltmann, Dorothe Sölle. Importante diferenciar a Teologia Política da Religião Política, desenvolvida por Carl Schmitt, que sustentou a tese, no contexto do nacional socialismo alemão, de que os conceitos mais significativos da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados. Por exemplo: o Deus onipotente que se tornou legislador onipotente. Para saber mais sobre Teologia Política, ver GIBELLINI, 1998, p. 301-321. 281 GIBELLINI, 1998, p. 321. 278 279
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Outra questão que permanece em aberto é se tal fenômeno poderia representar uma tendência inversa da teologia política.280 Dizemos tendência inversa porque a relação entre teologia e política na América Latina está fortemente relacionada à Teologia da Libertação ou ao conceito protestante da responsabilidade social das Igrejas que, assim como a teologia negra nos Estados Unidos e a teologia feminista, chamam a atenção para as injustiças, exclusões e violências geradas pelas estruturas sociais, econômicas e culturais. Nesses casos, é preciso considerar a necessidade e importância de uma consciência política da teologia cristã.281
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As lamparinas necessárias para iluminar o caminho Nessa complexa conjuntura que envolve a relação entre religião, política e educação, pergunta-se pelos enfoques bíblicos que poderiam orientar a relação entre fé cristã e direitos humanos. Os textos bíblicos apresentam a realidade da pobreza, mas também refletem sobre as causas do empobrecimento e da riqueza. Os textos bíblicos reivindicam a superação das estruturas injustas. A postura dos textos bíblicos não é nem de fatalidade e nem de conformismo, mas enfatizam a esperança e a necessidade de transformação. Um exemplo é o de Deuteronômio 15,11, que diz que sempre haverá pobres na terra. Esse mesmo texto é recuperado por Jesus em Marcos 14, 7, que conta a história da mulher em Betânia. Em Marcos, destaca-se não uma ideia fatalista de que não pode haver mudanças estruturais, mas indica e realiza a crítica social que exige transformação. Para haver mudanças econômicas, é necessário que as dívidas sejam perdoadas e os bens, divididos (At. 4,34).282 Na perspectiva das desigualdades de gênero e do racismo, a bíblia oferece caminhos interessantes. O Primeiro Testamento, em Juízes 19, denuncia as estruturas e práticas culturais e religiosas que violentam e matam as mulheres. Recupera-se Gálatas 3, 38, que afirma que em Cristo não há distinção das pessoas. Não há judeu nem grego, nem escravo nem liberto, nem homem, nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus. Também não nega e nem esconde o protagonismo das mulheres (At 16,13). Para cristãos e cristãs, a Bíblia pode oferecer caminhos e alternativas para a intepretação das presenças de Deus nos diferentes períodos históricos. É necessário, no entanto, olhar para os textos bíblicos problematizando as relações sociais, econômicas, políticas e religiosas de poder. A suspeita é sempre um ingrediente necessário quando se relaciona Bíblia e realidade social.
REIMER, I. R.; REIMER, H. Defesa da dignidade humana em textos bíblicos. In: REIMER, I. R. (Org.). Direitos Humanos: enfoques bíblicos, teológicos e filosóficos. Goiás: Ed. da PUC; São Leopoldo: Oikos, 2011. p. 44.
282
Considerações finais É importante que a cada dia possamos criar espaços seguros e confiáveis de diálogo sobre os temas que fazem parte da complexidade das relações humanas e das relações com o Sagrado. A valorização e o respeito às pluralidades e diversidades que constituem a vida contribuem para o encontro de um Cristo que se torna reconhecido no rosto das pessoas que estão à margem da sociedade, tanto em função da condição econômica e social quanto pela identidade racial ou sexual. A evangelização exige que se redescubra a liberdade de Deus para amar incondicionalmente. Não é tarefa de quem evangeliza dizer quem será ou não será amado por Deus. Também não é tarefa de quem evangeliza realizar o proselitismo impositivo.
A educação desempenha papel fundamental para isso porque é um instrumento privilegiado para o fortalecimento de valores capazes de promover o diálogo, o compromisso com processos democratizantes, o olhar crítico sobre a cultura, entre outros. O papel da religião na educação deveria ser fortalecer tais ambientes. Nesse sentido, muito mais do que oferecer ensino confessional, talvez o caminho fosse olhar para o papel relevante das tradições de fé na promoção e no fortalecimento de caminhos capazes de democratizar as democracias tanto nas instituições religiosas quanto nas seculares.
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A Igreja, enquanto comunidade de pessoas que creem em Jesus Cristo é desafiada a constantemente deixar-se interpelar pelo seu mandato primeiro, o de proclamar a Boa Nova, isso significa anunciar a compaixão, o diálogo, o perdão, a superação dos extremismos e dos preconceitos.
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ZYLBERSZTAJN, J. A laicidade do Estado Brasileiro. Brasília: Verbena, 2016.
UMA GESTÃO EDUCACIONAL ILUMINADA POR PRINCÍPIOS PASTORAIS Denilson Aparecido Rossi Kleberson Massaro Rodrigues
Introdução
Tais organizações sem fins lucrativos têm como “produto final” um paciente curado, uma criança que aprende, um jovem que se transforma em um adulto com respeito por si; ou seja, um ser humano mudado.283 A instituição sem fins lucrativos não está meramente prestando um serviço. Ela não quer que o usuário final seja um usuário, mas sim um executor. Ela utiliza um serviço para provocar mudanças em um ser humano (...). Ela cria hábitos, visão, compromisso, conhecimento. Ela procura tornar-se parte do receptor, ao invés de uma mera fornecedora. Até que isso aconteça, a instituição sem fins lucrativos não teve resultados; ela teve somente boas intenções.284
DRUCKER, P. F. Administração de Organizações Sem Fins Lucrativos: princípios e práticas. 4. ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1997. 284 DRUCKER, 1997, p. 40. 283
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As instituições confessionais têm sido desafiadas a desenvolver estratégias de gestão para se adequar aos novos contextos da contemporaneidade, levando em consideração a relevância do equilíbrio entre Missão e Negócio. Pela própria essência e razão de ser, essas organizações são responsáveis por se manterem fiéis a seus princípios fundacionais, dentre os quais o desafio principal é o de garantir em suas estruturas o serviço ao Evangelho, ao Reino de amor e à justiça.
Contudo, as Organizações Confessionais não podem prescindir de uma gestão que busque equilíbrio e sinergia entre Missão e Negócio, mesmo porque a ineficácia e a ineficiência em um desses campos tornam-se um imperativo certo para a falha no alcance da missão ou não ter receita suficiente para mantê-la perene.
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Nesse sentido, assume-se o propósito neste capítulo de desenvolver e proporcionar uma reflexão capaz de correlacionar ideal pastoral e gestão, tendo em vista corroborar o desenvolvimento de pessoas íntegras e a formação de cidadãos éticos e solidários em vistas da transformação da sociedade. Pretende-se refletir sobre uma forma de gestão confessional, apresentar alguns princípios pastorais, e contribuir para a reflexão de um processo de gestão integrado e revelador da confessionalidade dessas organizações sociais em busca da obtenção dos seus resultados harmonizados com a Missão e o Negócio.
Gestão confessional As organizações do terceiro setor,285 com a finalidade de atender exclusivamente às demandas sociais, apresentam uma das grandes realidades econômicas no Brasil e têm abrangido campos não explorados pelos setores público e privado.286 É imprescindível então que as Organizações Confessionais sejam geridas profissionalmente, para que sua missão de fato se realize e assim possa atender à sua razão fundacional. Durante décadas, muitas dessas organizações acabaram por demonizar práticas de gestão, com o discurso de que estavam deixando sua identidade fria e sem sentido. Por outro lado, muitas delas, ao se profissionalizarem, incorporando práticas e ferramentas de gestão modernas, terceirizaram sua ação pastoral apenas a áreas específicas, isentando-se da confessionalidade na própria gestão. Terminologia sociológica designada à parcela da sociedade civil formada por Organizações Não Governamentais (ONGS) com objetivo de contribuírem com o desenvolvimento social sem a obtenção de lucro, ou seja, as organizações do terceiro setor são sem fins lucrativos. 286 RODRIGUES, K. M. O trabalho voluntário e sua gestão: um estudo de caso em hospital comunitário. 2014. 102 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Escola de Negócios, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba. 2014. 285
A polarização MISSÃO OU NEGÓCIO em nada contribui para a finalidade de tais organizações. Muitas delas, ou acabaram fechando as portas por falta de receita financeira, ou, na corrida obstinada pela profissionalização da gestão, tornaram-se organizações que traem os próprios propósitos de missão e evangelização. Por isso é necessário ter sensibilidade suficiente para compreender as ferramentas de gestão disponíveis e utilizá-las, para que as finalidades pastorais sejam atingidas.
A gestão em Organizações Confessionais deve ser profissionalizada a fim de garantir a sua missão. A gestão se encontra em um movimento acelerado de busca pela profissionalização no terceiro setor.288 Contudo, é preciso ter cautela antes de implementar quaisquer estratégias, práticas e ferramentas de gestão, pois como elas são, por vezes, provenientes de organizações do primeiro e segundo setores, podem gerar “esquizofrenia” interna em sua cultura, potencializando desentendimentos, contradições quanto à própria missão e adoecendo pessoas, sendo assim necessário um estudo minucioso para que essas práticas estejam alinhadas à essência e à identidade organizacionais. Observa-se na administração de organizações certa tendência em considerar o conjunto de teorias e abordagens gerenciais como algo comum, que pode ser aplicado a todos os tipos de organização. Nessa perspectiva, ocorrem generalizações e simplismos nos processos de gestão.289 A gestão está se desenvolvendo em Organizações Sem Fins Lucrativos de todos os portes, e deve dominar as técnicas e ferramentas para que os gestores não sejam seus RODRIGUES, 2014, p. 20. SOARES, A. C. A. A.; MELO, M. C. O. L. Gestão do Terceiro Setor: uma prática social? Revista de Gestão da USP, v. 17, 1, p. 1-11, 2009. 289 RODRIGUES, 2014. 287 288
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É conhecida no terceiro setor a necessidade de melhores práticas de gestão mais vinculadas às suas características identitárias, ou seja, relacionadas a sua natureza, haja vista que muitas destas práticas são provenientes das organizações dos demais setores trazidas por profissionais com experiências anteriores nas esferas pública e privada. Por isso é possível afirmar que um dos grandes desafios do terceiro setor é no campo da gestão.287
reféns, em detrimento da missão organizacional.290 As características, a identidade e a natureza das Organizações Sem Fins Lucrativos devem ser levadas em consideração antes de quaisquer tomadas de decisão na gestão e posicionamentos estratégicos.291
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Dois aspectos são de crucial importância nas organizações do terceiro setor: a) o valor produzido por organizações sem fins lucrativos encontra-se na realização dos fins sociais, e não na geração de receitas; e b) organizações sem fins lucrativos recebem receitas de outras fontes que não as de compras de produtos por seus clientes.292 A dificuldade em administrar ONGs reside justamente no fato de essas organizações não terem fins lucrativos, terem serviços de cunho social e, principalmente, alimentarem sua motivação nos valores associados à sua missão.293 Contudo, é importante ressaltar que a pretensão da Gestão em Organizações Confessionais é trabalhar a MISSÃO E NEGÓCIO de maneira genuína, equilibrada, integrada e sensata, a fim de proporcionar vida plena tanto à comunidade interna, com religiosos, leigos e colaboradores, quanto à comunidade externa, que é o público-alvo de sua missão. No Planejamento Estratégico de Organizações Públicas e Sem Fins Lucrativos, as tarefas gerenciais realizadas no desenvolvimento da estratégia têm a finalidade de garantir a qualidade, reforçar o desempenho, apoiar as mudanças tecnológicas e administrativas, obter feedback sobre quão bem as estratégias estão funcionando e estar preparada para mudar a estratégia quando as condições a justificam.294 A legitimação das práticas gerenciais no terceiro setor é necessária para aprimorar o gerenciamento das organizações, reforçando a necessidade de mecanismos de gestão eficazes e compatíveis com a realidade delas, para que sua missão e seus objetivos sejam atingidos. Sendo assim, visando garantir a sobrevivência e fidelidade aos propósitos das Organizações Sem Fins DRUCKER, 1997. RODRIGUES, 2014. 292 MOORE, M. Managing for value: organizational strategy in for-profit, and governmental organizations. Nonprofit and Voluntary Sector Quaterly, v. 29, p. 83-204, 2000. 293 BRYSON, J. M. Strategic planning for public and nonprofit organizations. San Francisco: Jossey-Bass, 2004. 294 BRYSON, 2004. 290 291
Lucrativos, é necessário buscar meios e ações estratégicas compatíveis com sua própria natureza.295 As Organizações Confessionais no ramo da educação, saúde, comunicação e em tantos outros encontram-se inseridas nesse cenário, e urge repensar sua forma de gerir o negócio de maneira a não desconsiderar sua Missão, tampouco esvaziar-se de sentido.
Princípios pastorais
Antes de voltar para junto do Pai, Jesus ordenou aos seus discípulos: “Ide por todo o mundo, e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). O apóstolo Paulo, em sua Primeira Carta dirigida à comunidade de Corinto, demonstrou ter entendido perfeitamente a orientação do Mestre ao afirmar: “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; é, antes, uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9,16). Em consonância com o referencial bíblico, compreende-se que a missão primeira da Igreja é a evangelização, isto é, anunciar o Evangelho de Jesus Cristo a todos os povos. Servindo-se dos diferentes meios e/ou processos, é responsabilidade e dever da Igreja levar a luz de Cristo a todos. Conforme o Decreto Ad Gentes [AG 5]: Obediente ao mandato de Cristo e movida pela graça e caridade do Espírito Santo, a Igreja cumpre sua missão quando em ato pleno se faz presente a todos os homens ou povos, a fim de levá-los à fé, à liberdade e à paz de Cristo, pelo exemplo de vida, pela pregação, pelos sacramentos e demais meios da graça.296 FALCONER, 2000; HUDSON, 1999 apud SOARES; MELO, 2009. CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Ad Gentes: sobre a atividade missionária da Igreja. 7 dez. 1965b. (grifo nosso).
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Ao abordar o tema da pastoral, deve-se considerar os múltiplos elementos que o compõem, desde as origens bíblicas até as mais atuais reflexões teológicas. Entretanto, a propósito do texto em pauta, pretende-se salientar apenas dois princípios, considerados aqui fundamentais para que uma pastoral seja efetiva nos meandros organizacionais: evangelização e cuidado.
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Ainda sobre a missão da Igreja, conforme a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi [EN] 14, “evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar, ser o canal do dom da graça [...]”.297 Sentindo-se responsável com tamanha missão, logo no primeiro ano de seu pontificado, o Papa Francisco lançou a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium [EG]. No referido documento, o pontífice convida os cristãos e as comunidades cristãs a terem a coragem de sair de sua comodidade para levar a luz do Evangelho aos mais diversos recantos e às mais longínquas periferias da humanidade. “Cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20).298 Anunciar o Evangelho desencadeia na pessoa e na comunidade uma alegria missionária: A alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade dos discípulos, é uma alegria missionária. Experimentam-na os setenta e dois discípulos que voltam da missão cheios de alegria (cf. Lc 10,17). Vive-a Jesus, que exulta de alegria no Espírito Santo e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10,21). Sentem-na, cheios de admiração, os primeiros que se convertem no Pentecostes, ao ouvir ‘cada um na sua própria língua’ (At 2,6) a pregação dos Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a frutificar” (EG 21).
Nessa perspectiva, entende-se que toda e qualquer ação pastoral precisa estar imbuída do compromisso com a evangelização. Portanto, as Instituições que estão vinculadas à Igreja têm por missão primeira o dever de evangelizar. Dentre outros elementos, o que diferencia uma Organização Confessional e garante a singularidade de sua identidade é, de fato, o compromisso e a fidelidade à sua missão evangelizadora. Pensar uma ação pastoral numa escola, unidade social educativa, faculdade e universidade confessionais é, PAULO VI, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, 8 dez. 1975. D FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013.
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sobretudo, pensar em estratégias de como levar a luz do Evangelho para esses espaços, visando implantar neles o Reino de amor e justiça e alegrar o coração de todos que a ele pertencem de algum modo. As pessoas, as estruturas e os processos devem estar a serviço do Evangelho de Jesus Cristo. Outro aspecto fundamental e intrínseco à pastoral é a lógica do cuidado. A esse respeito, ressalta-se o como. O pensador alemão Martim Heidegger faz menção à fábula/mito de Higino para ilustrar o sentido do cuidado em relação à vida do ser humano.
Para além do senso comum, a ideia de cuidado está na essência do ser humano; remete ao “ser-no-mundo-com-outros”, compreende a constituição ontológica do “ser-aí” no mundo. Pode-se dizer que cuidar é próprio do ser humano e, ao mesmo tempo, necessário para que este tenha vida em abundância.300 Interpretando o pensamento de Heidegger, Leonardo Boff comenta: “O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 266. HEIDEGGER, 2011.
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Certa vez, atravessando um rio, Cura (cuidado) viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a dar-lhe forma. A cura pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a Cura quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o nome. Enquanto Cura e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi a Cura quem primeiro o formou, ele deve pertencer a Cura enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve chamar-se Homo, pois foi feito de húmus”.299
de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento com o outro”.301
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Segundo as narrativas dos evangelistas, Jesus é o modelo de cuidado. Há inúmeras passagens bíblicas que descrevem Jesus voltando sua atenção para as pessoas e demonstrando atitudes de envolvimento com o outro para garantir-lhe uma vida digna. João, em seu Evangelho (cf. Jo 9), descreve a atenção de Jesus para com um homem cego e a atitude de voltar-se para o outro e curá-lo, isto é, cuidado. Na sequência, o evangelista mostra que os fariseus não admitem a cura e acabam por expulsar o homem que havia sido curado. Ao saber disso, Jesus volta-se aos fariseus e apresenta-lhes a parábola do Bom Pastor (cf. Jo 10,1-5). Todavia o grupo dos fariseus reage, demonstrando não entender o discurso. Então Jesus é mais explícito: Em verdade, em verdade vos digo: eu sou a porta das ovelhas. Todos quantos vieram antes de mim foram ladrões e salteadores, mas as ovelhas não os ouviram. Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; tanto entrará como sairá e encontrará pastagem. O ladrão não vem senão para furtar, matar e destruir. Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor expõe a sua vida pelas ovelhas. O mercenário, porém, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, quando vê que o lobo vem vindo, abandona as ovelhas e foge; o lobo rouba e dispersa as ovelhas. O mercenário, porém, foge, porque é mercenário e não se importa com as ovelhas. Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem a mim, como meu Pai me conhece e eu conheço o Pai. Dou a minha vida pelas minhas ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco (Jo 10,7-16a. Grifos nossos).
Diferentemente de outros líderes de seu tempo, ao apresentar-se como modelo de pastor, Jesus não está preocupado em manter as ovelhas presas em seu redil. Pelo contrário, Ele coloca-se como a porta que dá acesso tanto para quem quer entrar quanto para quem deseja sair. Sua maior preocupação é que todos tenham vida em abundância. Mais do que pensar no salário, como BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
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é caso dos mercenários, Ele está comprometido com os seus, a ponto de lhes dar a vida. Seu interesse é salvar o outro, ao invés de usurpar-lhe. A atitude de cuidado e defesa da vida, por parte do Bom Pastor, desencadeia relações de proximidade e confiança. O envolvimento de responsabilização pelo outro proporciona e fortalece o conhecimento recíproco. Ademais, ao dizer “tenho ainda outras ovelhas” (Jo 10,16a), Jesus evidencia que seu pastoreio é para todos, e não apenas para alguns poucos privilegiados. Portanto, uma pastoral que tem Jesus Cristo como modelo de cuidado deve ser promotora de vida digna para todos; trabalhar com as perspectivas de liberdade e de alteridade.
Provocações para a busca de uma gestão iluminada por princípios pastorais
Cultura e Clima Recursos financeiros Gestão de: Pessoas Processos e projetos
Embora nem sempre seja feita a distinção dos conceitos entre cultura e clima organizacionais, inclusive são apresentados como sinônimos em alguns estudos,302 é necessário pontuar a existência de distinções bastante significativas mesmo que apresentem similaridades. KATZ, D.; KHAN, R. L. Psicologia social das organizações. São Paulo: Atlas, 1985; PUENTEPALACIOS, K. E. Abordagens teóricas e dimensões empíricas do conceito de clima organizacional. Revista de Administração, USP, v. 37, n. 3, p. 96-104, 2002.
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Mais do que apresentar receitas prontas, pretende-se trazer à tona algumas provocações inerentes à possibilidade de uma gestão iluminada pelos princípios pastorais anteriormente mencionados. Gerir uma organização não é tarefa das mais simples. São necessárias habilidades e competências para atingir os objetivos pretendidos em seu planejamento estratégico.
Cultura organizacional e clima organizacional são dois conceitos cujas semelhanças podem ser justificadas pela compreensão de que são elementos de um mesmo cenário (e.g. organização), porém não é o mesmo fenômeno.303
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A cultura organizacional é composta por um conjunto de normas, valores, crenças, mitos, rituais e regras que são estáveis ao longo do tempo, e definem os padrões de comportamentos esperados dos colaboradores, ou seja, a importância da cultura organizacional está no fato de nortear o comportamento e o desempenho esperado de seus atores organizacionais.304 O clima organizacional se refere às representações compartilhadas das percepções dos colaboradores sobre o agir da organização, assim, essa percepção define as características que distinguem a organização das demais, e também influencia o comportamento dos colaboradores. Porém, o ponto central da gestão do clima organizacional é desenvolver a integração entre as pessoas e os processos internos da organização.305 Para que uma organização tenha a cultura pretendida, é necessário que gestores e colaboradores tenham coerência e alinhamento entre falar e agir, para que assim a mensagem percebida seja uníssona. Missão, visão e valores têm de estar em estreita ligação com o Planejamento Estratégico da Organização tanto permeando-o quanto sendo mobilizado por ele, para que a cultura pretendida esteja encarnada não apenas nos elementos estéticos (ambiência, mobiliário, simbologia, entre outros), mas também nos éticos (comportamento dos colaboradores). Há cinco elementos principais a serem potencializados para uma eficaz gestão da cultura: a) Atração e seleção de colaboradores com o perfil técnico e comportamental pretendidos; b) Comunicação interna que informe a todos, de várias maneiras, a missão e os valores institucionais; PUENTE-PALACIOS, 2002. JAMES, L. R.; JONES, A. Organizational climate: a review of theory and research. Psychological Bulletin, v. 81, n. 12, p. 1096-1112, 1974; TAMAYO, A. Valores organizacionais. In: TAMAYO, A.; BORGESANDRADE, J.E.; CODO, W. (Org.). Trabalho, organização e cultura. Rio de Janeiro: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia, 1998; PUENTE-PALACIOS, 2002. 305 FOREHAND, S.; GILMER, H. Environmental variation in studies of organizational behavior. Psychological Bulletin, v. 62, n. 6, p. 361-383, 1964; JAMES; JONES, 1974. 303 304
c) Formação e desenvolvimento periódicos de gestores, colaboradores e consultores externos sobre a cultura e os elementos identitários da organização; d) Pesquisa de engajamento e clima, para mensurar focos satisfatórios e insatisfatórios apontados pelos gestores e colaboradores; e pesquisa de satisfação dos serviços prestados ao público-alvo da missão; e) Dispensa de gestores e colaboradores desalinhados com a cultura pretendida, seja pelo viés técnico ou, principalmente, pelo viés comportamental. É relevante questionar se os elementos acima indicados garantem que a luz do Evangelho e o cuidado pastoral permearão tanto a cultura quanto o clima organizacional, para que a missão não seja desconsiderada.
O uso dos bens da instituição diz muito sobre ela. Gerir tais recursos requer considerável responsabilidade e profissionalismo, pois, se por um lado a organização gasta dinheiro e energia sem critérios definidos, por outro pode economizar de maneira míope. De fato, não é incomum organizações comprarem produtos e serviços mais baratos de outras organizações que não cumprem suas obrigações legais, sociais e ecológicas. Um exemplo disso são as Instituições Confessionais, que compram por preços baixos tijolos de olarias, as quais exploram o trabalho infantil ou terceirizam trabalhos a empresas que quarteirizam serviços a empresas que exploram os trabalhadores ou, ainda, estabelecem parcerias com instituições ecologicamente irresponsáveis, que não cumprem aspectos legais e não têm controle na emissão de gases poluentes. Algumas práticas são imprescindíveis na gestão dos recursos financeiros: a) Estabelecer critérios, regras e fluxos claros para o uso dos bens; b) Implantar meios de controle e gestão financeira; c) Garantir a transparência na prestação de contas; d) Estabelecer critérios para fazer parcerias com empresas ou organizações fornecedoras de produtos e serviços, aceitando apenas as sustentáveis no campo social, econômico e ecológico;
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Gestão de Recursos Financeiros
e) Zelar pela perenidade da instituição por meio da sustentabilidade econômico-financeira em curto, médio e longo prazos; f) Garantir a conformidade com a legislação vigente e com os órgãos regulamentadores. A respeito da gestão dos recursos financeiros, é importante questionar: Os valores do Evangelho são defendidos? A dignidade das pessoas é garantida? É capaz de relativizar o lucro para garantir a fidelidade da missão?
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Gestão de Pessoas A pessoa é o bem mais precioso que uma Organização possui. Ora, se a finalidade de uma Organização Confessional é uma criança alfabetizada, um paciente curado, embora a infraestrutura seja fator importante para tais cuidados, a pessoa humana na figura dos colaboradores internos constitui o fator essencial nesse processo. A gestão de pessoas não é tarefa das mais simples, pois, por melhor que seja um gestor na liderança de pessoas, os seres humanos são diversos, com individualidade e necessidades exclusivas, desejos, anseios, sonhos, limitações e potencialidades. Apesar de algumas ferramentas serem imprescindíveis na gestão de pessoas, muitos gestores as negligenciam, não propositalmente, mas porque as desconhecem ou têm receio de utilizá-las por não serem desenvolvidos para tanto. Tais ferramentas essenciais são: a) Descrição de cargo: em que consta a descrição da missão, atribuições da função, desafios e pré-requisitos para o cargo. A descrição orienta tanto o gestor quanto o colaborador sobre as principais responsabilidades a serem desenvolvidas pelo colaborador, além de auxiliar no processo de recrutamento e seleção de novos colaboradores que ocuparão tal cargo. b) Acompanhamento nos primeiros 90 dias: saberes e competências técnicas e comportamentais são distintos em cada novo cargo. Por isso é imprescindível traçar um plano de formação e desenvolvimento para todos e quaisquer colaboradores que ocupem novas funções, sendo eles novos na organização ou não.
c) Avaliação de desempenho: nas organizações sem fins lucrativos confessionais, não é incomum os colaboradores passarem anos a fio sem nenhum tipo de avaliação quanto a seu trabalho e comportamento. Por meio de um instrumento próprio, que pode ser dinamizado de diferentes formas (Avaliação de desempenho 90º, 180º ou 360º), a avaliação é feita para registrar o desempenho de cada colaborador em relação às suas competências técnicas e comportamentais, por meio de autoavaliação do profissional e avaliação do gestor por meio de conversa, com feedback, franca, transparente e sincera, apontando com dados e fatos toda a performance do colaborador.
e) Plano de Desenvolvimento Individual: assim como a Avaliação de Desempenho, o Plano de Desenvolvimento Individual indica os pontos a serem desenvolvidos tanto nas competências técnicas quanto comportamentais. É fundamental que o gestor alinhe e gere com o colaborador um Plano de Desenvolvimento em três campos distintos: formação formal; troca de experiências com outros colaboradores; e formação de desempenho para outra função. • formação formal: a quais livros, vídeos e cursos devem ter acesso para um desenvolvimento mais eficaz; • troca de experiências com outros colaboradores e áreas: qual troca de experiências deve haver, de quais áreas deve se aproximar, com quais gestores e colaboradores deve conversar para entender processos, procedimentos, políticas; • Formação de desempenho para outra função: tem por objetivo desenvolver um colaborador em outra função, em outra “cadeira”,
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d) Feedbacks informais: conversas entre gestor e colaboradores realizadas em qualquer momento do expediente com o objetivo de indicar as qualidades e esclarecer os pontos a desenvolver do colaborador, a fim de calibrar entendimentos sobre posturas e entregas esperadas naquela função que se desenvolve. O ideal é as conversas serem registradas, para haver um histórico sobre o desenvolvimento do colaborador.
ou seja, por um período determinado, o colaborador deverá realizar atividades de outras áreas.306
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f) Formação e desenvolvimento do grupo de trabalho ou comunidade interna: estabelecer um programa de formação e desenvolvimento para os colaboradores e gestores a fim de levar a organização para onde se pretende. Tal programa deve ter foco em categorias distintas: identidade e missão, competências comportamentais, competências técnicas, processos, políticas, novos projetos, etc. Além disso, devem ser estabelecidos: o público que se pretende atingir, os temas a serem trabalhados, carga horária, indicadores de aprendizagem, como devem ser feitas as avaliações do programa, etc. O manejo adequado dessas ferramentas demonstra o cuidado da organização com as pessoas que compõem as equipes de trabalho. Para que a gestão seja permeada pela vitalidade pastoral, é preciso estar atento para que os valores do Evangelho estejam presentes em cada programa de desenvolvimento individual e coletivo. Se isso não for possível, não se pode garantir fidelidade à missão.
Gestão de Processos e Projetos Como toda gestão está inserida em uma determinada organização, todos os processos e projetos devem necessariamente estar alinhados e em estreita sintonia com a missão e os valores institucionais pretendidos, e os resultados devem ser avaliados segundo esses princípios fundantes. Missão e valores institucionais
- Planejamento estratégico - Processos - Projetos - Políticas
Resultados
Processo avaliativo
As Organizações Sem Fins Lucrativos Confessionais podem incorrer em grande erro ao buscar profissionalização da gestão se não perceberem que o É importante que a organização dialogue com um responsável jurídico trabalhista a fim de se precaver e resguardar as condições para não gerar passivos trabalhistas.
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processo avaliativo tem de contemplar sua gênese. Do contrário, a organização estará se traindo e divergindo do que assume como propósito social. Ao propor um novo processo ou projeto, a organização deve ter como base os seguintes pontos: a luz do Evangelho será ofuscada? As pessoas continuarão sendo cuidadas, e assim ter garantida uma vida digna? Mais do que limitar-se à execução de processos e projetos estanques, uma gestão em pastoral deve embeber-se da proposta do Concílio Vaticano II, conforme Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS 1): “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.307
No intuito de contribuir para o desenvolvimento de pessoas íntegras e a formação de cidadãos éticos e solidários em vistas da transformação da sociedade, o objetivo principal deste texto foi desenvolver e proporcionar uma reflexão capaz de correlacionar ideal pastoral e gestão sustentável. Inicialmente, procurou-se demonstrar que a polarização MISSÃO OU NEGÓCIO em nada contribui para a finalidade das Organizações Confessionais, pois muitas delas, ou acabaram fechando as portas por falta de receita financeira, ou, na corrida obstinada pela profissionalização da gestão, deixaram de ser fiéis aos próprios propósitos de missão e evangelização. Tendo presente esse desafio, o equilíbrio entre missão e gestão profissional de modo genuíno e integrador, foram apresentados os princípios de evangelização e cuidado, considerados fundamentais para que uma pastoral seja efetiva nos meandros organizacionais. Esses princípios, independentemente das ferramentas de gestão a serem utilizadas, são imprescindíveis a uma Organização Confessional para que permaneça fiel à sua missão de corroborar a construção do Reino de Deus, que é necessariamente reino de amor, de justiça e de vida em abundância para todos. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. 7 dez. 1965a.
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Considerações finais
Na última parte do texto, refletiu-se a respeito de algumas ferramentas, habilidades e competências que envolvem a gestão de cultura e clima, recursos financeiros, pessoas, processos e projetos, essenciais para um processo de gestão integrado e revelador da confessionalidade dessas organizações sociais para obter resultados harmonizantes com a Missão e o Negócio. Sobretudo, procurou-se evidenciar a necessidade de se estar atento para que o excesso de preocupação com a eficiência organizacional e a sustentabilidade financeira não sufoquem a profecia da missão institucional.
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3. PISTAS PARA A PRÁXIS DA PASTORAL NO CURRÍCULO
ECOLOGIA INTEGRAL E EDUCAÇÃO: UMA PERSPECTIVA CRISTÃ, À LUZ DA BÍBLIA E DO ENSINO SOCIAL DA IGREJA Marcial Maçaneiro308
A ecologia como paradigma
Doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Docente do Programa de PósGraduação “stricto sensu” em Teologia da PUC-PR. Consultor teológico do Instituto Ciência & Fé da PUCPR. Membro do Grupo de Pesquisa: Fé cristã e contemporaneidade / Sub-grupo 2: Ecoteologia, Religião e Consciência Planetária (FAJE, Universidad Pontificia Javeriana, PUC PR). Autor de “Religiões & Ecologia” (Edições Paulinas). Religioso da Congregação dos Padres do Coração de Jesus (dehonianos). 309 WHITE, L. The historical roots of our ecological crisis. In Science, New York, n. 155, p. 1203-1207, 1967. 310 JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Mater et Magistra. 15 maio 1961. 311 JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Pacem in Terris. 11 abr. 1963. 312 DERR, T. S. Écologie et libération humaine. Genève: Labor et Fides, 1974. 308
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Há décadas, a Ecologia deixou de ser compreendida como uma seção da Biologia, restrita às Ciências Naturais, e tornou-se um paradigma transversal e inclusivo. Em 1968, o historiador Lynn White questionava a responsabilidade do pensamento cristão ocidental na corrida exploratória da Natureza: até que ponto o domínio do ser humano sobre as demais criaturas – citado no Gênesis e interpretado de modo instrumental – teria agravado a crise ambiental?309 Por vinte anos, essa mesma indagação foi partilhada por historiadores, teólogos e educadores, favorecendo alguns resultados: crítica à exploração irracional da Natureza, releitura dos textos bíblicos sobre a Criação, avaliação do papel das indústrias nos casos de depredação e poluição ambiental, promoção de uma espiritualidade ecológica, e menção de questões ambientais nos documentos do Ensino Social da Igreja. Já na década de 1960, o Papa João XXIII incluiu preocupações ambientais em suas encíclicas Mater et Magistra (MM 195-198)310 e Pacem in Terris (PT 101-102)311; na década seguinte, Thomas Sieger Derr propôs a aproximação entre Ecologia e Teologia,312 apontando para o que hoje denominamos Ecoteologia. Tais iniciativas
se intensificaram com a aproximação de diferentes linhas de pensamento, preocupadas com a habitação humana na Terra. Assim emergiu, a partir dos anos 1970, o paradigma ecológico de contornos multidisciplinares, envolvendo a Biologia, a Geologia, a Climatologia e a Genética, no debate com as Tecnologias e os Governos.
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Novos ensaios Importa observar que essas diferentes implicações entre a Ecologia, as demais ciências e a industrialização não ocorrem de modo simples e linear, mas de forma complexa e tensa, pois requerem a revisão dos modos de produção, autocrítica científica e elaboração de novas leis, com foco na sustentabilidade da vida das espécies e no estabelecimento de economias mais inclusivas. Para dar conta desses requisitos, ensaia-se uma Epistemologia Ambiental313 que inclua a objetividade das Ciências Naturais314 e a preocupação ética,315 trazendo a Ecologia para o diálogo inter-religioso316 e a educação.317 Notemos que a Ecologia não perde seu campo específico de estudo biológico; ao contrário, amplia-se e estabelece conexões com a Moral, a Economia e a Teologia, a ponto de adjetivar essas realidades: hoje se propõe uma Ética Ecológica,318 uma Economia Ecológica319 e também uma Teologia Ecológica.320
Por trás dos adjetivos, a questão substancial É interessante notar o duplo processo de adjetivação ocorrido no campo ecológico. De um lado, conforme dito anteriormente, a Ecologia adjetivou a Ética, a Economia, a Teologia e as demais esferas de saber e governança. LEFF, E. Saber ambiental. Petrópolis: Vozes; PNUMA, 2011. KÜNG, H. O princípio de todas as coisas: ciências naturais e religião. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. 315 BOFF, L. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. 316 MAÇANEIRO, M. Religiões & Ecologia. São Paulo: Paulinas, 2011. 317 UNESCO. Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável 2005-2014. Brasília: UNESCO; OREALC, 2005. 318 HAERING, B. Livres e fiéis em Cristo. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 157-195. v. III. 319 DALY, H. E.; FARLEY, J. Ecological economics. Washington: Island Press, 2004. 320 SUSIN, L. C.; SANTOS, J. M. dos (Org.). Nosso planeta, nossa vida: ecologia e teologia. São Paulo: Paulinas, 2011. 313 314
Trata-se da afirmação substantiva da Ecologia como paradigma atravessador ou fecundante desses campos da vida e do conhecimento. Por outro lado, a Ecologia tem sido adjetivada por essas esferas, revelando sua complexidade enquanto Ecologia Ambiental, Ecologia Humana e Ecologia Social – entre outras adjetivações. Nesse caso, afirmam-se de modo substantivo o Meio Ambiente, a Humanidade e a Sociedade, tomados como foco ou dimensão prioritária para a Ecologia. Esse duplo processo nos indica a superação do modelo cartesiano de Ciência (marcado pela disjunção entre Humanidade e Natureza) e a emergência, em vias de consolidação, de um modelo complexo de Ciência (marcado pelas múltiplas conexões entre Humanidade e Natureza). Daí outros três adjetivos propostos na contemporaneidade, a evidenciar esse modelo: Ecologia Profunda,321 Ecologia Complexa322 e Ecologia Integral.323
CAPRA, F. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 2000. MORIN, E. Science avec conscience. Paris: Fayard, 1982. 323 FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Loyola, 2015. cap. IV. 324 apud PENA-VEGA, A. O despertar ecológico. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 103. 321 322
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Cada uma dessas adjetivações indica a questão substantiva que está no centro das propostas, sejam teóricas, sejam práticas. Por vezes, o centro é ocupado pela Ecologia com seus componentes e dinâmicas: solo, clima, ar, espécies, comunidades vitais, propriedades biológicas e ecossistemas, com foco na grandeza objetiva da teia vital. Por outras vezes, o centro é ocupado pela complexidade humana, com seus componentes e dinâmicas: consciência, cultura, moralidade, sociabilidade, habitação, criatividade e gestão, como foco na grandeza subjetiva (consciente-criativa) da pessoa humana em sociedade. Temos, assim, as três principais variáveis de toda equação ecológica: Natureza, Humanidade e Sociedade, reciprocamente implicadas. Não há como promover a Ecologia Ambiental sem considerar a habitação humana da Terra, onde se cruzam demografia, cultura e tecnologia; como também não é possível cuidar da Ecologia Humana sem considerar a disponibilidade de recursos naturais do meio vital e suas conexões ecossistêmicas. Como insiste Morin: “A natureza está no homem; o homem está na natureza”.324 Ambos formam uma totalidade dinâmica, plural e complexa – de grandezas
distintas, mas interconexas – à semelhança de uma rede de muitos nós, tensa e extensa, na qual todas as linhas tremem ao mínimo toque.
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Atualidade da “teologia da criação” A teologia da Criação se elabora a partir da Palavra de Deus, não tanto enquanto relato factual de como tem sido o surgimento e desenvolvimento das espécies, mas enquanto narrativa de sentido que nos revela o porquê da criação cósmica e humana do ponto de vista do Criador, o qual tudo fez com “beleza e bondade” (tov em hebraico: Gênesis 1) e modelou a humanidade “à sua imagem e semelhança” (Gênesis 1,26). Essas narrativas não se restringem ao Livro das Origens (= Gênesis), mas se encontram em outros livros do Primeiro ao Novo testamentos, numa dinâmica de releitura continuada: • Gênesis 1-2: Deus se manifesta nas criaturas, dotadas de bondade e beleza; a vida é disposta ordenadamente, cada ser ocupando seu lugar no cosmos; a pessoa humana possui dignidade específica, com a responsabilidade de zelar pela Criação; as espécies convivem na casa comum; o mundo se apresenta como jardim fecundo e variado. • Levítico 25,1-7: Deus estabelece o repouso da terra (atividades agropecuárias) para renovar o solo, suprir os aquíferos, preservar as fontes e o verde, numa dinâmica de criação contínua. • Salmos 8, 19 e 104: dignidade e inteligência do ser humano, intérprete do Cosmos; reconhecimento da Criação como Palavra de Deus (revelação cósmica do Criador); sabedoria e generosidade de Deus em criar, manter e distribuir os bens da Criação; em seu mistério, a vida se apresenta como livro aberto ao conhecimento e reverência do ser humano. • Sabedoria 1,7 e 11,24-26 e 13,5: presença do Espírito de Deus no cosmos; valor das criaturas aos olhos de Deus, amigo da vida; as criaturas remetem ao Criador e O dão a conhecer (raciocínio analógico). • Eclesiástico 17,1-12: Deus cria o ser humano à sua imagem, com criatividade e inteligência; pelos sentidos e pelo discernimento, a pessoa humana é qualificada para promover o bem e praticar a justiça.
• Eclesiástico 18,1-14: o conjunto da Criação (formas de vida no tempo e espaço, com sua complexidade) escapa à percepção humana; criado da Terra, o ser humano pode errar em suas buscas e degradar-se; mas o Criador lhe outorga graça e misericórdia, educando-o pacientemente. • João 1,1-5: Deus cria todas as coisas, no macro e no microcosmo, pela potência de sua Palavra (dabar em hebraico; logos em grego); em todas as coisas Ele se pronuncia; por isso o universo é inteligível ao ser humano, que o interpreta e nele incide com sua criatividade. • João 5,17: Jesus afirma a ação criadora e renovadora de Deus no universo, como cuidado permanente pela vida; todo dia é dia da Criação, dimensionando até o repouso sabático.
• Colossenses 1,12-20: Deus criou tudo pela sua Palavra, aquela mesma Palavra (logos) que se encarnou em Jesus Cristo; Ele é, pois, a imagem visível do Criador, revelação de Deus ao homem, e do homem a Deus; na plenitude de sua Páscoa todo o universo é recriado e unificado. • 2Pedro 3,5-13: Pedro discerne o mistério da Criação, perceptível nos sinais do tempo e do espaço; recorda as antigas cosmogonias da Terra tirada do abismo aquoso; fala dos elementos (água, terra e fogo); supera a cronologia habitual dos calendários e aponta para uma esperança: novos céus e nova terra, onde reinará a justiça. • Apocalipse 21,1: numa afirmação sintética e solene, revela-se enfim o novo céu e a nova terra, tendo por capital a “nova Jerusalém” (Yir’shalom = Yeru’shalaim: lugar da plenitude, em hebraico): cidade aberta às nações, realização de todas as esperanças, termo de chegada da humanidade caminheira no tempo.
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• Romanos 8,19-23: embora complexa e extensa, a Criação ainda está se fazendo, a cada êon (unidade de tempo, no curso dos séculos); isso implica processos, transformação, aprimoramento do mundo, à semelhança de um parto; nós humanos participamos diretamente nesse processo criativo, por nossa corporeidade; quem preside esta criação contínua é o Espírito Santo (pneuma criador): ele atua no tempo que envelhece e faz surgir o novo, qual “parteiro” de novas primícias.
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A partir do século XX, essas narrativas foram aprofundadas mediante a análise hermenêutica, ganhando uma nova abordagem: não apenas a interpretação histórico-literária que estuda o gênero textual e os elementos míticos ali contidos, mas também a interpretação antropológico-semiótica, que mostra o cosmos como revelação do Criador, o valor sagrado da vida e o estatuto do ser humano como cocriador e cuidador da Terra. Essa abordagem se desenvolveu ainda mais com as leituras ecológicas da teologia da criação, feita ecumenicamente por autores evangélicos, reformados, católicos e ortodoxos.325 Para a educação cristã, há seis tópicos propositivos para conteúdos e ações: a) Visão sacramental e dinâmica do Universo: O cosmos (com todos os corpos siderais) e a natureza (com sua biodiversidade) são uma expressão eloquente da bondade, sabedoria e beleza de Deus. Juntas, as criaturas siderais e terrestres formam uma sinfonia cósmica: sinalizam a glória de Deus e cantam seu louvor. Do corpo humano (microcosmo) à imensidão das galáxias (macrocosmo), toda a Criação se reveste de sacramentalidade, enquanto sinal visível das qualidades invisíveis do Criador. Os astros, a terra, as águas, o corpo e o próprio tempo se tornam epifania do mistério divino, lugar de sua revelação. A isto se acrescenta a visão eminentemente dinâmica da Criação: a cada aurora, as esferas do tempo e do espaço giram; os astros cumprem sua órbita; o ciclo lunar e solar recomeça; as estações se sucedem; as gerações nascem; a vida se faz História. Para a fé cristã, tudo está em movimento: a evolução da Natureza é a face manifesta do mistério da Criação, cuja extensão nos escapa. b) Destinação universal dos bens da natureza: Terra, água, ar, clima, sementes, fármacos e identidade genética são valorados como dons do Criador e patrimônio universal da comunidade humana. Tais componentes da vida têm primazia sobre os interesses particulares, mercadológicos e bélicos: não devem se reduzir a mercadoria, validados por sua mera utilidade, usados como recurso de guerra, nem administrados como privilégio de alguma elite. Afinal, são bens cf. HAERING, 1984; MOLTMANN, J. Doutrina ecológica da criação. Petrópolis: Vozes, 1993; ZIZIOULAS, I. A criação como eucaristia. São Paulo: Mundo e Missão, 2001.
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recebidos da natureza e destinados à sobrevivência das gerações, presentes e futuras. Ao valor material e funcional desses bens, a fé cristã acrescenta o valor da dádiva que os qualifica como dons do Criador para todas as criaturas. Portanto, os recursos naturais necessários à vida e à sobrevivência têm estatuto de bem comum e direito humano.
d) O ser humano como cocriador: A fé cristã propõe o antropocentrismo ético, com base na responsabilidade humana pela vida na Terra. Busca-se superar o paradigma técnico-instrumental que pensava a cultura como “vitória sobre a natureza”, fomentando a exploração inescrupulosa do planeta. A humanidade coabita a Terra como espécie peculiar, capaz de intervir e interagir com o meio ambiente. Podemos depredar ou preservar, destruir ou construir.
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c) Desenvolvimento ecologicamente sustentável e socialmente justo: A sacramentalidade da natureza não significa que ela seja intocável, como um acervo estático. Pois a Criação é dinâmica, num processo de complexidade e regeneração na direção do pleroma (a coesão de todas as coisas no Cristo Cósmico). O ser humano se insere nesse dinamismo criador como sujeito responsável, convidado por Deus a guardar, cultivar, aprimorar e partilhar os bens da Criação, com operosidade e zelo. Respeitar a natureza é respeitar a vida, gerenciando responsavelmente o que a Terra nos dá: climas habitáveis, colheitas e rebanhos, aquíferos, propriedades terapêuticas, fontes de energia e coexistência das espécies. Daí o conceito de desenvolvimento ecologicamente sustentável e socialmente inclusivo: colher, produzir e distribuir os bens para todas as populações, com tecnologias e políticas que evitem a escassez e permitam a renovação dos recursos naturais, evitando a fome e a miséria em relação ao futuro. Isso inclui preservação, pesquisa, reciclagem, gestão de reservas, produção de energia limpa, combate à poluição, reflorestamento, segurança alimentar, saneamento para todos e sobriedade no consumo, de modo que o cuidado ambiental se processe junto com o cuidado social.
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O fato de sermos seres originais, dotados de arbítrio racional e habilidades técnicas não nos coloca acima da teia da vida, nem nos legitima como exploradores unilaterais. A fé cristã, hoje, se empenha na correção hermenêutica e prática daquela postura “dominadora”, pretensamente baseada numa ordem divina, para consolidar a postura “diaconal” em relação à Natureza: “cultivar e guardar o jardim” (Gênesis 2,15). e) Conversão de paradigmas: A crise ecológica mostrou a força e a fragilidade que coexistem na Terra. A combinação entre razão instrumental, exploração irresponsável dos recursos naturais, ambição de lucro e consumismo tem causado danos terríveis ao planeta e às espécies (incluindo a nós, humanos). A Teologia bíblica da Criação – relida em suas coordenadas originais – nos interpela a mudar de paradigma: passar da postura unilateral do “dominar”, para a postura interativa do “cultivar” (Gênesis 2,15). Isso nos leva à reeducação de hábitos e padrões: superar o estilo de vida consumista e alheio à crise ambiental e assumir o estilo convivial, comprometido com a vida na Terra. f) Estratégias ecológicas: Os princípios anteriores se refletem em estratégias operacionais. Dentre estas, a fé cristã valoriza especialmente: educação ambiental que inclua o redimensionamento de hábitos, a valorização dos produtos artesanais e orgânicos, o uso sóbrio dos recursos naturais e a partilha de bens; iniciativas ecológicas pessoais, comunitárias e governamentais planificadas; políticas públicas adequadas (gestão de recursos hídricos, controle de poluentes, segurança alimentar, produção de energia limpa, tecnologias de solução ambiental); a “ecologia humana” (inclusão de minorias étnicas, acesso aos recursos naturais, direito à terra, atendimento a migrantes, superação da miséria e da fome); desarmamento e concentração de investimentos na ecologia; pesquisa e uso pacífico de energia nuclear e outras, de fontes alternativas (vento, sol, ondas do mar).
A “ecologia integral” no ensino social da igreja
Em nossos dias, Papa Francisco dá novo impulso à questão em sua encíclica Laudato Si’ (LS: Louvado sejas, meu Senhor) sobre o cuidado da casa comum, a Terra. Ele parte, especialmente, da “relação entre a natureza e a sociedade que a habita” (LS 139). No curso da argumentação, o Papa recolhe a contribuição dos documentos anteriores (cf. LS 3-10), entra no debate contemporâneo sobre a presença humana nos ecossistemas (cf. LS 140), defende a promoção de uma “cultura ecológica”, na qual dialogam as ciências e os saberes das populações locais (LS 143) e expõe – pela primeira vez num documento pontifício – a noção de “ecologia integral” (LS 137). A “ecologia integral” proposta por Papa Francisco reelabora a compreensão das encíclicas anteriores com uma evidente revisão de paradigmas, com o propósito de oferecer um enfoque conectivo e não fragmentário da questão ecológica (cf. LS Capítulo IV). A “ecologia integral” é uma noção-chave da argumentação do Papa: fundamenta-se na complexidade da vida na Terra, com seus elementos objetivos (espécies, recursos naturais e ecossistemas) e subjetivos (liberdade, criatividade e uso humano do planeta), e explicita a JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Centesimus Annus. 1 maio 1991.
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Como dissemos antes, desde a década de 1970 a Ecologia tem sido adjetivada com novas qualificações, à medida que se aprimora o conhecimento das comunidades vivas do planeta (biocenoses) e como estas interagem com a população humana (antropocenose). Fala-se de ecologia científica: relativa à biosfera e suas conexões entre terra, oceanos, clima e dinamismo das espécies; de ecologia ambiental: relativa à organização dos ecossistemas e à manutenção de seus recursos; de ecologia humana: relativa à demografia, às condições da vida humana no planeta e ao uso social e econômico dos recursos naturais; e também de ecologia complexa: relativa ao conhecimento interdisciplinar da relação humanidade-natureza, articulando biologia, antropologia, sociologia e bioética numa nova epistemologia científica. João Paulo II, por exemplo, tratou de ecologia humana, ecologia ambiental e ecologia social na encíclica Centesimus annus [CA] n. 37-38.326
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dimensão ecológica da economia, da política, do direito, da educação e da cultura. A visão ecológica de Papa Francisco qualifica-se de integral porque articula humanidade, sociedade e natureza de modo conjuntivo: de um lado, distingue esses fatores, sendo cada qual um fio na teia de vida; de outro, mostra como estão conectados entre si, como fios entrelaçados na mesma teia vital. Papa Francisco não distingue “ecologia ambiental, econômica e social” (LS 138-141) para dividi-las de modo estanque, mas para demonstrar como se implicam mutuamente na ecologia complexa do planeta, onde habitam múltiplas espécies – entre as quais a espécie humana. Se antes compreendíamos o planeta em ótica disjuntiva, separando humanidade e meio ambiente, com técnicas de exploração da natureza para fins de consumo (conforme a racionalidade instrumental), hoje somos interpelados a uma visão conjuntiva, reconhecendo a imbricação entre humanidade e natureza, e explicitando a dimensão ecológica que interliga o conjunto da vida social, política e econômica (conforme a racionalidade ecológica). Papa Francisco nos diz: A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial. (LS 111).
Limites do paradigma tecnocrático e conversão ecológica Papa Francisco avalia atentamente as condições atuais do planeta sob os efeitos da exploração e da industrialização. Ele reconhece os benefícios da
Em seu discernimento, Papa Francisco vai dos efeitos às causas da crise ecológica moderna, percebendo em suas raízes um problema de paradigma: uma visão de mundo que fragmenta a realidade, ao separar humanidade e natureza com o muro das tecnologias de produção. Isso teve dois efeitos nocivos: desconectou as pessoas da natureza e as acostumou a modos de vida cada vez mais artificiais; e tratou o planeta como estoque de recursos a ser explorado e capitalizado, em função de uma economia que maximiza o lucro (cf. LS 190-191). De fato, a modernidade urbana e industrial se projetou a partir das posições filosófico-científicas de Descartes e Bacon (século XVI). Para Descartes, a pessoa é “coisa pensante” (definida pelo intelecto), distinta da natureza que seria “coisa extensa” (concebida como uma grande máquina). Segundo Descartes, o objetivo da ciência é nos fazer “senhores e donos da natureza”.327 Bacon, por sua vez, desvinculava Deus e natureza como realidades apartadas, enfatizando o ser humano como fonte do seu próprio “saber de domínio”; pois “o império do homem sobre as coisas depende totalmente das artes e das ciências” (aforisma 129)328. Essa forma peculiar de antropocentrismo nutriu a DESCARTES, R. Discurso do método. Tradução Maria Ermantina. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 119. 328 BACON, Francis. Novum organum, ou, Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Nova Atlântida. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. 327
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indústria e da tecnologia para as pessoas e as sociedades (cf. LS 102-103), mas adverte quanto às ambiguidades do “tremendo poder” da ciência e da tecnologia, aplicável tanto ao bem quanto ao mal, dependendo dos valores e interesses daqueles que o exercem (LS 104). Do lado positivo, temos “a transformação da natureza para fins úteis”, proporcionando “remédios a inúmeros males que afligiam e limitavam o ser humano”, com “progressos alcançados especialmente na medicina, engenharia e comunicações” (LS 102). Do lado negativo, há “bombas atômicas”, o uso das tecnologias pelos “regimes totalitários”, os “instrumentos [de guerra] cada vez mais mortíferos” (LS 104), alimentados por uma postura de “uso e domínio” da natureza (LS 11), que provocou a degradação ambiental e social da vida no planeta (cf. LS 43-47). Afinal, entre humanidade, natureza e sociedade há uma interação profunda, não apenas nos níveis biológicos e climáticos, mas também econômicos e geopolíticos (cf. LS 138-140).
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“razão instrumental” (LS 210) que dimensionou nossa relação com a natureza ao longo da Revolução Industrial, aliada à busca do progresso ilimitado e à economia de mercado focada no lucro e na especulação. Isso se complicou ainda mais com a leitura parcial do Gênesis: destacamos o “dominar” (Gn 1,28) e esquecemos o “guardar” (Gn 2,15) que o Criador nos havia confiado em relação à Terra (cf. LS 66-67). Esse conjunto de fatores proporcionou o estabelecimento do paradigma tecnocrático: o ser humano se concebe como sujeito de domínio e de manipulação; tudo o que está fora de sua constituição lógico-racional é tratado como objeto; a disjunção entre humanidade e natureza se torna hábito cultural; e o conhecimento acaba promovendo “técnicas de posse, domínio e transformação” (LS 106). Essa postura instrumental da ciência e da técnica se aliou à visão “de um crescimento infinito ou ilimitado”, com o “falso pressuposto de que existe [no planeta] uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem facilmente absorvidos” (LS 106). Papa Francisco reconhece os avanços da física, da biologia, da medicina e da informática, mas observa que o paradigma tecnocrático afetou seriamente os ecossistemas por ser “um paradigma homogêneo e unidimensional” (LS 106), que privilegia os interesses dominantes e descuida da complexidade da vida planetária. De fato, as ciências e tecnologias se concentraram no uso instrumental da natureza, comprometendo a diversidade e o limite dos ecossistemas, sugando os recursos da Terra numa velocidade agressiva “que contrasta com a lentidão natural da evolução biológica” (LS 18). Ao desconsiderar a conexão entre sociedade e natureza, entre economia e ecologia, a razão moderna mostrou, paradoxalmente, sua parcela de irracionalidade: buscou o lucro à custa da exclusão social, concentrou a renda de muitos nas mãos de poucos, condicionou os governos com interesses econômicos, perverteu a escala de valores ao colocar a economia acima da ética. Com o passar do tempo, esta postura gerou uma cultura do descarte repleta de resíduos ambientais (lixo, poluição, envenenamento: LS 20-29) e resíduos sociais (trabalho escravo, tráfico de pessoas, descarte dos pobres: LS 123).
Visando à superação dessa irracionalidade e de seus danos, Papa Francisco propõe ao ser humano “uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro de um lúcido domínio de si” (LS 105). Ele apregoa uma “cultura ecológica” (LS 111) e invoca outra racionalidade capaz de sanar os efeitos desastrosos dos processos anteriores: a racionalidade ecológica, mais atenta à relação entre humanidade, natureza e sociedade; baseada na interação das espécies e dos ecossistemas; focada na sustentabilidade do presente e do futuro do planeta; que promova a conversão ecológica da moral, da política, da economia, da educação e da espiritualidade.
Considerações e perspectivas para a educação
A constituição pastoral Gaudium et Spes (GS) já havia esclarecido que o “domínio [humano] sobre a natureza” e a diretriz bíblica de “submeter a terra” dizem respeito ao conhecimento e ao trabalho, às ciências e às técnicas (cf. GS 33-34 e 53), mas não legitimam a exploração desmedida dos recursos naturais por parte da humanidade (cf. GS 34). Em prevenção do egoísmo e da injustiça, o documento diz que o conhecimento e a produção (industrial) devem se orientar a dois fins: glorificar o Criador e contribuir ao bem comum (cf. GS 34). O Concílio compreende o trabalho como participação humana na “obra do Criador” (GS 34) e apela à responsabilidade pessoal e coletiva de toda ação para com a natureza, para o bem das gerações de hoje e de amanhã (cf. GS 34). Disso decorre o compromisso de “governar o mundo em justiça e santidade” (GS 34), com a “solicitude” e “esperança de uma nova terra”, da qual nossos esforços pelo justo desenvolvimento já representam “um esboço” (GS 39). O Papa Bento XVI, por sua vez, na encíclica Caritas in Veritate (CV),329 destaca o nexo entre “desenvolvimento” e “relacionamento do ser BENTO XVI, Papa. Carta Encíclica Caritas in Veritate: sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade. 29 jun. 2009.
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Educar para a concepção cristã do trabalho
humano com o ambiente natural”: pois “este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a humanidade inteira” (CV 48). Em linha de princípio, Papa Francisco se posiciona em continuidade com esses pronunciamentos feitos. Contudo, sua reflexão traz algumas ênfases particulares, que nos permitem avançar na revisão crítica do que ele denomina “excesso antropocêntrico” ou “antropocentrismo desordenado” (LS 116 e 118, respectivamente):
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Educar para o cuidado ecológico As três “relações fundamentais e interligadas [relações com Deus, com o próximo e com a terra” (LS 66) narradas no Gênesis] romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós: essa ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas” (LS 66). Assim se “distorceu também a natureza do mandato de dominar a terra (cf. Gn 1,28) e de a cultivar e guardar (cf. Gn 2,15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito (cf. Gn 3,17-19)” (LS 66). Essa relação deve ser sanada “através da reconciliação universal com todas as criaturas” (LS 66) consumada em Cristo e renovada continuamente pelo Espírito de Deus (cf. LS 80). Partindo dessa leitura teológica e moral das primeiras páginas da Bíblia, Papa Francisco argumenta: Foi dito que a narração do Gênesis, que convida a “dominar” a terra (cf. Gn 1,28), favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia, como a entende a Igreja. Pois se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que – do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra – se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do
mundo (cf. Gn 2,15). Enquanto “cultivar” quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, “guardar” significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de protegê-la e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras (LS 67).
Educar para o reconhecimento do valor das criaturas
Hoje, a Igreja não diz, de forma simplista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas, “se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser úteis”. O Catecismo [da Igreja Católica] põe em questão, de forma muito direta e insistente, um antropocentrismo desordenado: “Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas” (LS 69, grifos do autor).
Mais adiante, Papa Francisco aponta o Criador como referência originária e valorativa das criaturas: “Na tradição judaico-cristã, dizer criação é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, no qual cada criatura tem um valor e um significado” (LS 76). Assim, a “novidade
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“Ao mesmo tempo em que podemos fazer um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus” (LS 69). E, em coerência com a correção hermenêutica assumida na encíclica, Papa Francisco prossegue:
qualitativa” do ser humano não nos permite desprezar as demais criaturas, nem valorizá-las na medida estrita de nossos interesses: Seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como objeto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade (LS 82).
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E mirando ao fim último da Criação, o Papa diz: A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal. E assim juntamos mais um argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina (LS 83).
Pois na complexidade do universo “cada criatura tem uma função e nenhuma é supérflua” (LS 84). Como letras vivas de um texto, ou notas sonoras de uma melodia, as criaturas formam, com a humanidade, o “livro” da Revelação divina e o “hino” de júbilo a Deus (cf. LS 85). “Por isso, precisamos individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações” (LS 86).
Educar para as conexões entre ecologia e humanidade Papa Francisco nos adverte que “não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia” (LS 118). Por outro lado, pondera que não se corrigirá o “antropocentrismo desordenado” substituindo-o pelo “biocentrismo”: isso levaria o planeta a “um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas
existentes, mas acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o mundo se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade” (LS 118). E observa: “Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não podemos nos iludir de sanar a nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais” (LS 119).
Isto nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental (LS 139).
apud PENA-VEGA, 2005, p. 71.
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Entre tais relações fundamentais estão: nossa relação transcendente com Deus-Amor, o Criador de todas as coisas (cf. LS 119); e nossa relação com os demais seres humanos, a começar dos mais fragilizados, em reação à cultura do descarte que gera exclusão social (cf. LS 123). Ambas, articuladas entre si, participam da nossa relação com a natureza, voltada à integridade dos ecossistemas e à manutenção da vida como um todo (cf. LS 131-132). Enfim, o nexo ecologia-antropologia se verifica particularmente nas relações entre “a natureza e a sociedade que a habita” (LS 139). Nesse sentido, Papa Francisco se aproxima da máxima ecológica de Edgar Morin: “a humanidade está na natureza e a natureza está na humanidade”,330 como lemos na encíclica:
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Educar para a compreensão ecológica do bem comum O primado do bem comum sobre os bens privados é um dos pilares da Doutrina Social da Igreja. Como já dizia João XXIII, na encíclica Mater et Magistra (MM), o direito de todo homem a usar dos bens naturais e materiais para seu sustento tem prioridade sobre qualquer outro direito de natureza econômica, e mesmo sobre o direito de propriedade (cf. MM 43). Pois o bem-estar geral e o direito individual de uso dos bens da natureza devem se adequar entre si, mediante uma real e eficaz distribuição dos mesmos bens, segundo a justiça (cf. MM 74). Também Gaudium et Spes volta ao tema, convocando os trabalhadores, cientistas, técnicos, educadores e governantes a promover melhores condições de vida para todos (cf. GS 57), com uso de recursos e tecnologias nos limites do bem comum (cf. GS 59). O fato de que “o domínio crescente do homem sobre a natureza” constitui a “base da economia moderna” (GS 63) pede a elaboração ética e política de um novo humanismo, que beneficie o desenvolvimento humano integral (cf. GS 59) e assuma o ser humano como centro e fim da atividade econômica (cf. GS 63). Gaudium et Spes manifesta clara preocupação pelo destino universal dos bens terrenos (cf. GS 69), pela demografia (cf. GS 87) e a sobrevivência das futuras gerações na Terra (cf. GS 70). Após o Concílio, Paulo VI publica a encíclica Populorum Progressio (PP)331 e reafirma as declarações de Gaudium et Spes: “Deus destinou a terra e tudo o que nela existe ao uso de todos os homens e de todos os povos, de modo que os bens da criação afluam com equidade às mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade” (PP 22, citando GS 69). O tema é retomado por João Paulo II em Centesimus Annus (CA, parágrafos 6, 29, 30). Em continuidade, Bento XVI, na encíclica Caritas in Veritate (CV), cita “a proteção do ambiente, dos recursos [naturais] e do clima” como responsabilidade dos atuais governos e direito das futuras gerações (CV 50). Compreender os recursos naturais como bens destinados a toda a humanidade é uma explicitação crescente do magistério eclesial, enfim consolidada na encíclica Laudato Si’ (LS):
PAULO VI, Papa. Carta Encíclica Populorum Progressio. 26 mar. 1967.
331
O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. [...] A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos (LS 23 e 28). O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos (LS 30). O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para administrá-la em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros (LS 95).
Referenciais BACON, Francis. Novum organum, ou, Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Nova Atlântida. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
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Papa Francisco expressa uma concepção ecológica do bem comum, acompanhada de forte senso de justiça para com as populações pobres e marginalizadas do planeta: defende seu direito de acesso à água potável (cf. LS 29), demonstra a relação existente entre degradação ambiental e exclusão social (cf. LS 48-49), aponta a dívida ecológica dos países ricos para com os países pobres (cf. LS 51-52) e fomenta a globalização da solidariedade (cf. LS 52). A articulação da questão ecológica com a questão social é uma abordagem marcante da argumentação de Papa Francisco, que inscreve o acesso universal aos recursos naturais – a começar pelos mais necessitados – como direito humano (cf. LS 30). Diante da crise socioambiental de nosso tempo, ele diz: “As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS 139). Entendo que a educação, sobretudo a católica, é um espaço primordial para essa perspectiva.
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EDUCAÇÃO EVANGELIZADORA NO CONTEXTO DO PLURALISMO RELIGIOSO: CONCEITOS E PRÁTICAS Diogo Marangon Pessotto Osmar Aloizio Resende
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Introdução É possível, no currículo, a constituição de um diálogo evangelizador e inclusivo entre as expressões religiosas? Com essa motivação, propusemo-nos analisar os conceitos de pluralismo religioso e diálogo inter-religioso, vinculando-os ao processo educativo-evangelizador, a fim de apontar os principais desafios e alguns caminhos para um currículo evangelizador em diálogo. A relevância da questão está no fato de que a educação-evangelizadora se dá num contexto de pluralismo religioso. Um projeto educativo-evangelizador destinado apenas aos cristãos e/ou católicos estaria mutilado, pois seu caráter integral propõe os sentidos, valores e experiências do Evangelho a todos. Por isso, a análise contextual, conceitual e operacional da relação entre educação, evangelização e pluralismo é indispensável para que polarizações e reducionismos não a comprometam, seja por confusa compreensão, por fechamento identitário ou por homogeneidade estéril.
Pós-modernidade, pluralismo religioso e evangelização Uma compreensão honesta do pluralismo religioso hodierno decorre de uma análise da pós-modernidade, que, por sua vez, faz referência à modernidade como movimento histórico, social, cultural e religioso. Interessa-nos, pois, abordar a experiência religiosa dos sujeitos “moderno” e “pós-moderno”,
pois trazem à tona os contextos e características do pluralismo religioso atual. É nesse ambiente que a Igreja evangeliza, assumindo seus desafios como oportunidades de ressignificação do anúncio e atualizando suas formulações e práticas pastorais para os nossos dias.
Modernidade: deslocamento da religião A ideia de transformação é central para a compreensão da modernidade. Em primeiro lugar, como condição de possibilidade para novas formas de viver e representar a realidade. Em segundo lugar, como processo de transitoriedade e ruptura e como esfacelamento do sentido de continuidade histórica. O conceito de “secularização” e o binômio “razão-subjetividade” expressam a noção moderna de transformação em termos religiosos.332
Considerando tal ruptura, “não existe uma figura única da modernidade, mas duas figuras voltadas uma para a outra e cujo diálogo constitui a Modernidade: a racionalização e a subjetivação”.335 A fonte de sentido foi deslocada para o ser humano: não está mais em Deus, mas na razão como subjetividade. Se antes as normas e sentidos eram ditados pelo transcendente das instituições religiosas, agora é a racionalidade que ordena as escolhas. Acreditava-se SANCHEZ, W. L. Pluralismo religioso: as religiões no mundo atual. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2010. SANCHEZ, 2010, p. 30. 334 MARRAMAO, G. Céu e terra. São Paulo: UNESP, 1994. 335 TOURAINE, A. Crítica da modernidade. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 218. 332 333
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Quanto à secularização, temos que é o processo no qual a religião não é mais o principal critério para a compreensão do mundo. “Do ponto de vista político-institucional, a Igreja Católica Romana perde o lugar de matriz religiosa e tem seu papel político diminuído”.333 Consequências disso foram a separação Igreja-Estado e a progressiva autonomia das instâncias sociais em detrimento da esfera religiosa. O principal aspecto da secularização é a ruptura do monopólio de interpretação do mundo pela Igreja. A autonomização do social se dá pela afirmação do sujeito, que, valendo-se da razão instrumental, racionaliza sua compreensão de mundo, controla a realidade e domina a sociedade, sem recorrer à religião, cujo papel fora transferido para a ciência.334
que, com a modernidade, a religião desapareceria aos poucos. Contudo, a pós-modernidade se deu na contramão dessa pretensão a-religiosa.
Pós-modernidade: o retorno do religioso
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O conceito de “pós-modernidade” faz referência à época presente como catastrófica. Os mitos modernos foram destruídos, pois só nos trouxeram o desencanto. Restam-nos o pragmatismo cotidiano, a fragmentação social e a experiência emocional dos indivíduos. O capitalismo, pautado na razão técnica e na autonomia do sujeito, levou-nos ao vazio. O projeto pós-moderno é a criação de um novo mundo do nada, sem princípios e fins, no qual o valor é a ausência de valores. No âmbito religioso, a religião pós-moderna exerce no sujeito uma função terapêutica: resignação, alívio e uma gama de fantasias diante das adversidades sociais e da vida. Nesse sentido, presenciamos o retorno do religioso,336 que ressignifica os princípios modernos da individualização, subjetivação e privatização da religião. “O surto do sagrado é uma outra face da secularização da sociedade moderna e pós-moderna e não sua negação”.337 Proclamou-se o “fim do monopólio das tradições religiosas”. [...]. Já não são as Igrejas ou religiões institucionais que criam necessariamente o espaço da experiência religiosa. Antes, pelo contrário, elas perdem força e deixam o sagrado solto, entregue às vivências pessoais, individuais em processo crescente de privatização e individualização.338
A pós-modernidade é o período das novas formas religiosas. “Contrariamente ao pensamento clássico marxista, que assegurava o fim da religião, as interpretações atuais afirmam a substituição de uma situação inicial de monopólio religioso por uma outra de pluralismo”.339 Com isso, há uma inversão Thomas Luckmann aborda o retorno do religioso na pós-modernidade em sua obra “A religião invisível” (1967). Para o sociólogo, a atitude do bricolage, no âmbito das emoções e sentimentos do indivíduo, é o que dá sustentação ao processo religioso de constituição da visão de mundo. 337 LIBÂNIO, 1998, p. 61 338 LIBÂNIO, 1998, p. 61 339 MÓNICO, 2015, p. 2075 336
na relação sagrado-secularização: a secularização subjetiva privatiza o religioso. A sensação é de inundação religiosa, de caráter imanente.340 Na esteira de Peter Berger, Martelli afirma que as consequências do pluralismo religioso são comparadas às do livre mercado para a economia, dando origem ao mercado religioso. “No plano individual, a secularização é a perda de plausibilidade da religião institucional pela visão do mundo pessoal”.341 O pluralismo religioso, então, não se identifica com discursos universais. Em geral, o indivíduo escolhe crenças e valores contraditórios entre si.
Em suma, tanto mais forte é esse surto religioso privatizado e individualizado quanto mais a modernidade se caracteriza pelo movimento de pluralização, gerando os mais diversos pluralismos. As ofertas crescem. As possibilidades de escolha aumentam. E também as combinações religiosas possíveis são ilimitadas.343
Logo, o pluralismo religioso diz das experiências vivenciadas tanto nas grandes religiões como nas novas formas religiosas sincréticas. Individualismo e combinações religiosas constituem o pluralismo religioso pós-moderno.
LIBÂNIO (1998) MARTELLI, 1995, p. 292 342 MARTELLI, S. A religião na sociedade pós-moderna: entre secularização e dessecularização. Tradução Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995. 343 LIBÂNIO, J. B. O Sagrado na Pós-Modernidade. In: CALIMAN, C. (Org.). A sedução do Sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 61-78. p. 62. 340 341
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Há autores que veem aí uma nova fase da secularização moderna. Na pós-modernidade, a secularização se esgota. O pós-moderno não traz as oposições da modernidade. É, antes, pós-secular, dessecularização. Nesse sentido, o futuro da religião está na vitalidade das pequenas comunidades emocionais religiosas (Hervieu-Lègier); ou ainda, a religião continua a existir na pós-modernidade como depósito cultural de símbolos e crenças (Vattimo); e por fim, a religião católica é antimoderna porque é ultramoderna, dizendo algo do homem para o homem, com sentido e em diálogo (Maritain).342
Evangelização e pluralismo religioso: contextos e desafios
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A Igreja não dialogou efetivamente com a sociedade moderna. Por sua vez, a sociedade pós-moderna não oferece respostas às questões humanas fundamentais. Em contrapartida, a modernidade – com os avanços científicos e o respeito à liberdade religiosa – e a pós-modernidade – com o retorno do religioso e a valorização das diferenças – formam um contexto sociocultural de abertura para a evangelização. Nesse sentido, as épocas de crise são uma oportunidade de reavaliação e criatividade quanto ao modo de ser Igreja.344 Com isso, também o cristão, embora reconheça ter uma vocação meta-histórica, que o faz viver diferentemente neste mundo, não deixa de ser deste mundo, [...]. Desse modo é sempre a partir de uma realidade concreta que deve viver sua fé. Nessa realidade que constitui o seu mundo, [...] se encontra não só determinada sociedade, mas também determinada configuração eclesial, determinada expressão teológica, determinada ação pastoral, todas intimamente conexas e se apoiando mutuamente.345
A marca da cristandade torna o pluralismo religioso um desafio para a evangelização. Naquele período, de Constantino a meados do século XX, o Estado e a Igreja detinham a palavra, e a doutrina católica era a referência para a organização social. “A quase ausência de sérios desafios não estimulava seja um questionamento, seja um aprofundamento dela. Tudo era aceito, [...], já que pertencia à cultura hegemônica da época”.346 Por essa influência, a evangelização, em muitos casos, apresenta-se como manutenção da comunidade eclesial exclusivamente pela moral e pela distribuição dos sacramentos. Outro desafio premente: rejeitar as expressões autênticas do Cristianismo em prol de uma homogeneidade das expressões religiosas. Isso seria prescindir do testemunho vivo das comunidades animadas pelo Espírito. “Não se MIRANDA, M. F. A Igreja numa sociedade fragmentada: escritos eclesiológicos. São Paulo: Loyola, 2006. MIRANDA, 2006, p. 193. 346 MIRANDA, 2006, p. 197. 344 345
pode silenciar a particularidade das verdades e das práticas cristãs, diluindo o Cristianismo no que dele foi acolhido pela cultura ocidental”.347 Nesse sentido, “como pode a fé cristã ser acolhida numa sociedade onde reina o pluralismo de concepções de vida e de definições de realidade?”.348 A fé cristã não pode renunciar à salvação que oferece a todos. Por isso, dois desafios sintetizam as interpelações do pluralismo religioso à fé cristã. 1) O desafio teológico. Como pode o Cristianismo pleitear a salvação de todos em Cristo se vivemos num ambiente religioso plural, de diferentes e contraditórios caminhos de salvação? 2) O desafio pastoral. O pluralismo e a diversidade não nos permitem considerar um Cristianismo monolítico e homogeneizante. Por isso, o desafio pastoral está especialmente no campo da evangelização, numa ação pastoral atenta às exigências e complexidades atuais.349
O desafio teológico se refere à universalidade da salvação em Cristo. Assim, a Igreja se questiona sobre sua relação com as religiões não-cristãs sem abdicar da verdade cristã. O posicionamento teológico eclesial sobre tal relação se expressa numa teologia das religiões, que articula evangelização e diálogo.
Teologia das religiões e modelos teológicos A Teologia das Religiões, que se desenvolveu amplamente a partir do Concílio Vaticano II, resulta da proximidade entre Cristianismo e religiões, do testemunho dos membros das religiões, da relativização religiosa, da relação missão-pluralismo. Discute “se uma religião é depositária da revelação e se pode ser considerada mediação salvífica”.350
Ibid., p. 265. Ibid., p. 265. 349 Ibid. 350 MIRANDA, M. F. O encontro das religiões. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 26, n. 68, p. 9-26, jan./abr. 1994. p. 11. 347 348
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Teologia das religiões
Para fugir de um certo dogmatismo, que esteve, por vezes, presente na reflexão cristã do passado, buscam-se padrões ‘de fora’ que permitam avaliar a verdade de uma religião. [...]. Neste sentido teremos sempre uma pluralidade de teologias das religiões, elaboradas a partir de pressupostos diferentes.351
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Isso exige do Cristianismo uma autocompreensão quanto à sua pretensão de verdade e universalidade e a busca do sentido, função e valor das religiões na História da Salvação. Quanto aos modelos teológicos que tratam do valor salvífico das religiões temos uma divisão tripartita.352 O eclesiocentrismo afirma a exclusividade da salvação operada por Cristo na Igreja. Segundo Ferreira,353 o conhecimento cristão de Deus é o único válido nesse caso, para o qual está fora da salvação quem não admite a Revelação. Contudo, não se justifica tal radicalismo. A participação da Igreja no plano da salvação “se dá por meio de sua presença no mundo, da palavra proclamada, dos sacramentos celebrados e do testemunho coerente e eficaz”.354 Se Cristo é a salvação, a Igreja é “sacramento da salvação”, servidora de Cristo. O cristocentrismo aceita a salvação nas outras religiões, mas não sua autonomia salvífica. Tal posição procura “conciliar a vontade salvífica universal de Deus com o fato de que todo homem vive e se realiza como homem dentro de uma tradição cultural, que tem na religião respectiva sua expressão mais elevada e sua fundamentação última”.355 Esse modelo teve no Vaticano II espaço privilegiado para seu desenvolvimento na teologia católica. A noção de “hierarquia de verdades” do Decreto Unitatis Redintegratio (n. 11) indicou o mistério de Cristo como critério primordial para a gradação dos dogmas da fé. Assim, as religiões relacionam-se com o mistério de Cristo em primeiro lugar, e só depois com o mistério da Igreja. Acerca da unicidade e universalidade da salvação em Jesus Cristo, é seu fundamento o mistério da encarnação. O Cristo encarnado é a plenitude da MIRANDA, 1994, p. 11. Ibid. 353 Esta e as demais citações idênticas são trechos da pesquisa não publicada do Dr. Antonio L. C. Ferreira, “A unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo em Jacques Dupuis e na Dominus Iesus”, de 2009. 354 FERREIRA, 2009, p. 6. 355 MIRANDA, 1994, p. 13. 351 352
revelação, a verdade definitiva da fé. Portanto, o cristocentrismo postula a participação e inclusão das religiões na única e universal salvação em Cristo pelos valores e práticas consonantes com o Evangelho, vivenciados com retidão e sinceridade por seus membros, alcançados, por isso, pela graça redentora.356
O Concílio Vaticano II Uma das questões referidas à Igreja no Concílio Vaticano II era a da sua relação com as religiões não-cristãs e as diversas expressões religiosas.360 Para isso, o Concílio redigiu três documentos que preconizam o diálogo, a relação, a cooperação e a comunhão: Decreto Unitatis Redintegratio,361 sobre a MIRANDA, 1994. Ibid., p. 14. 358 Ibid., p. 14. 359 FERREIRA, 2009. 360 Nossa exposição tematiza o diálogo inter-religioso, que discerne como a Graça de Deus opera no coração dos membros de outras tradições e como podemos atuar juntos no testemunho da verdade, da justiça, da paz, da promoção humana e do cuidado ambiental; tudo isso como missão, anúncio e testemunho de fé pela presença evangélica cristã. Já o ecumenismo é resposta ao dom da graça de Deus, que chama os cristãos à unidade em Cristo, no Espírito, com vistas à salvação de todos. 361 CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Unitatis Redintegratio: sobre o ecumenismo. 21 nov. 1964. 356 357
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Já o teocentrismo visa à superação do cristocentrismo por meio de duas posições. Para a primeira, Jesus Cristo é o paradigma dos mediadores de salvação, mas não o único. Se Cristo não tivesse existido, não ficaríamos sem a salvação, mas apenas sem seu mediador perfeito. Para a segunda, Cristo não é reconhecido como “constitutivo nem como normativo para a salvação do homem”.357 Não podemos julgar os desígnios salvíficos de Deus e o valor de salvação das religiões. Toda religião tem a mesma finalidade para o teocentrismo. Deus em si é inacessível; conhecemos dele o que se manifesta na experiência humana transcendente e nas imagens de Deus. O teocentrismo é insuficiente ao afirmar uma noção indeterminada de Deus,358 ao passo que, para muitos teólogos dessa linha, um ser histórico e condicionado, Jesus Cristo, não pode ter relevância universal. Desse modo, propõe-se um pluralismo de princípio: Deus quis todas as religiões como caminhos autônomos de salvação. A verdade passa, então, por uma religião de estados de ânimo subjetivos. Dada a relatividade das experiências, seu critério é pragmático e terapêutico, imanentista.359
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unidade cristã; Declaração Dignitatis Humanae,362 sobre a liberdade religiosa; e Declaração Nostra Aetate,363 sobre o diálogo inter-religioso. Deteremo-nos nesta última, cientes de que uma recepção plena do Vaticano II privilegia o ser dialogal e relacional da Igreja. A redação de Nostra Aetate [NA] nasceu do esquema Decreto sobre os Judeus e demais não-cristãos, de 1964. Definiu-se o documento como Declaração, tratando das grandes religiões, em especial do Judaísmo. Também razões teológicas motivaram tal opção, pois o texto deveria se articular com os demais textos conciliares. A Declaração, texto mais breve do Concílio, foi promulgada em 28 de outubro de 1965. Não era programática, mas de intenções: “a Igreja deseja aproximar-se das religiões, para promover o diálogo e a mútua colaboração”.364 Nostra Aetate tem retórica construtiva, que se concentra nos elementos de santidade e verdade das religiões, e não nas discordâncias. Afirma, pois, a necessidade de a Igreja dar maior atenção à sua relação com as religiões por meio de uma revisão eclesial. A origem e o fim do ser humano estão em Deus, “cuja providência, as manifestações de amor e auxílios para a salvação se estendem a todos, até que se reúnam todos os eleitos na cidade santa, iluminada pelo brilho de Deus sob cuja luz caminham todos os povos” (NA 1). Deus dispõe tais auxílios pela riqueza multiforme da graça na história. Logo, as religiões inserem-se no único plano salvífico. Por esses auxílios, são caminhos para o Absoluto, na verdade e na prática do bem. A Declaração também afirma o senso religioso dos povos, por meio do qual reconhecem a divindade na vida e nos fatos. As religiões são modos de viver que surgem do senso religioso, em conexão com a cultura, estruturando-se por noções apuradas e linguagem própria (cf. NA 2).365 Por essa razão, a Igreja “não rejeita o que é verdadeiro e santo em todas as religiões” (NA 2), ainda que haja incompatibilidades doutrinais. Contudo, anuncia Cristo como plenitude, o que lhe exige o diálogo e a colaboração com CONCÍLIO VATICANO II. Declaração Dignitatis Humanae: sobre a liberdade religiosa. 7 dez. 1965c. CONCÍLIO VATICANO II. Declaração Nostra Aetate: sobre a Igreja e as religiões não cristãs. 28 out. 1965a. 364 Esta e as demais citações idênticas são trechos ou conceitos com base no texto “Conheça o Documento Diálogo e Anúncio”, de 2014, elaborado pelo Prof. Dr. Marcial Maçaneiro para a disciplina Diálogo InterReligioso e Multiculturalidade, do curso de Especialização em Gestão de Processos Pastorais da PUCPR. Material não publicado. 365 USARSKI, F. Nostra Aetate. In: Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas, 2015. p. 666-671. 362 363
as religiões, “para que deem o testemunho da fé e da vida cristã, reconhecendo, servindo e promovendo os bens espirituais e morais, assim como os valores socioculturais presentes nelas” (NA 2). São apresentados os elementos de santidade e verdade das religiões hindu, budista, autóctones, muçulmana e judaica (cf. NA 2, 3, 4). Eis algumas conclusões de Nostra Aetate: 1) reconhecimento da função antropológica das religiões e seus valores: acolhida do mistério, sacralidade, ascese, oração, busca pelo definitivo. 2) Ênfase no aspecto pastoral e propositivo e numa renovada atitude eclesial frente às religiões. 3) O olhar positivo das religiões. 4) O diálogo e a colaboração pela paz. 5) O anúncio de Cristo no diálogo e respeito.
Diálogo e anúncio
Sobre Diálogo e Anúncio, “ao considerar a interação diálogo-anúncio na missão evangelizadora, ele enfoca de modo privilegiado a questão soteriológica, no âmbito das religiões”.369 Por isso, a unidade do plano da salvação em Cristo é a condição para o diálogo. De outro modo, o evento Cristo é abertura e não obstáculo ao diálogo. Ademais, a consideração positiva das religiões supõe um “estreito contato com elas” (DA 14) por meio do diálogo e da “correta CONGREGAÇÃO PARA A EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS; PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO. Diálogo e Anúncio. 19 maio 1991. 367 Nostra Aetate, Dei Verbum, Unitatis Redintegratio e Dignitatis Humanae. 368 Evangelii Nuntiandi, Redemptor Hominis, Dominum et Vivificantem e Redemptoris Missio. 369 MAÇANEIRO, 2014, p. 1. 366
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O documento Diálogo e Anúncio [DA], publicado pela Congregação para a Evangelização dos Povos e Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso,366 trata do diálogo inter-religioso e do anúncio de Cristo, recuperando os ensinamentos conciliares367 e os documentos papais posteriores.368 A adequada compreensão do diálogo inter-religioso, o equilíbrio entre diálogo e anúncio, o pluralismo religioso e as iniciativas religiosas conjuntas motivaram a redação de tal documento doutrinal e pastoral. O texto considerou as religiões que fazem referência à fé de Abraão, como o Cristianismo, e às grandes religiões. Os novos movimentos religiosos não foram incluídos, mas a doutrina-pastoral do documento orienta o diálogo nesse âmbito.
avaliação teológica destas tradições” (DA 14). Reafirmam-se, com isso, os valores humanos e espirituais das religiões. A salvação em Cristo “através de caminhos misteriosos” (DA 15) é, pois, universal. Isso vale:
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para todos os homens de boa vontade, no coração dos quais [...] opera a graça. [...], se Cristo morreu por todos e a vocação última do ser humano é realmente uma só, a saber, divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos [...] serem associados ao mistério pascal (Gaudium et Spes [GS] 22).370
João Paulo II diz da ação universal do Espírito Santo no mundo antes do Evangelho e hoje, também fora da Igreja visível (cf. Dominum et Vivificantem [DV] 53371). Tal ação se refere à presença misteriosa do Espírito no coração humano. Com isso, a base teológica do diálogo inter-religioso é cristológico-pneumatológica. A unidade da salvação se dá em Cristo, no Espírito, cuja ação misteriosa opera também naqueles que desconhecem a Cristo. A prática dos valores de suas religiões e o seguimento de sua consciência são respostas positivas dos membros das religiões à salvação. A relação Igreja-Reino de Deus também é pressuposto do diálogo inter-religioso, pois evidencia o caráter cristológico e inclusivo da salvação. A Igreja é germe do Reino, anuncia-O e aspira à sua perfeição definitiva, sendo que os membros das outras tradições religiosas são ordenados ou orientados [...] para a Igreja, enquanto ela é o sacramento em que o Reino de Deus está ‘misteriosamente’ presente, pois, à medida que eles respondem à chamada de Deus, sentida na sua consciência, são salvos em Jesus Cristo e, por conseguinte, já compartilham, de qualquer modo, da realidade significada pelo Reino (DA 35).
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. 7 dez. 1965b. 371 JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Dominum et Vivificantem: sobre o Espírito Santo na vida da Igreja e do mundo. 18 maio 1986. 370
Nesse caminho, a Igreja avança à plenitude da verdade, estabelecendo um diálogo de salvação com todos, à luz do diálogo que Deus estabelece ao longo dos tempos com a humanidade, oferecendo-lhe a salvação (cf. DA 38). Dentre as formas do diálogo, temos (cf. DA 42): a) diálogo da vida, aberto, solícito, na partilha das alegrias e tristezas. b) Diálogo das obras, na colaboração com o desenvolvimento humano integral. c) Diálogo dos intercâmbios teológicos, para a compreensão das heranças e valores religiosos. d) Diálogo da experiência religiosa, pela partilha das riquezas espirituais. O diálogo possui um sentido concreto e deve ser meio para a luta em favor dos direitos humanos, da justiça e da paz.
Diálogo e Anúncio trata do diálogo inter-religioso a partir da unidade da salvação e da abertura às religiões, o que explicita a “presença operante do mistério de Jesus Cristo para além dos confins visíveis da Igreja” (DA 50).
Currículo, evangelização e pluralismo religioso Como educar e evangelizar em diálogo, por meio do currículo, num contexto de pluralismo religioso? Como resposta, articulamos os contextos e conceitos apresentados, discutindo os principais desafios e alguns possíveis caminhos. MAÇANEIRO, 2014.
372
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Quanto à relação diálogo-evangelização, evangelizar em diálogo possibilita aos não cristãos explicitar a salvação recebida à luz do Evangelho. Por isso, diálogo e anúncio são faces da autêntica missão evangelizadora da Igreja. Convívio, partilha e cooperação não atenuam a mensagem cristã e nem levam à abdicação da fé.372 Antes, são “método de presença, de respeito e de amor para com todos os homens” (DA 39). O diálogo é também testemunho de Cristo, exigindo equilíbrio – abertura, acolhida, imparcialidade e cooperação (cf. DA 47) – e uma firme convicção religiosa – “isto não significa que [...] devam ser postas de lado as próprias convicções religiosas. Pelo contrário, a sinceridade do diálogo inter-religioso exige que se entre nele com a integralidade da própria fé” (DA 48). Por fim, supõe abertura à verdade, disposição aos valores positivos.
Para isso, assumimos currículo como “um artefato social e cultural”,373 sistema complexo, aberto, dinâmico, que expressa contextos, conhecimentos, valores, aprendizagens, experiências, identidades, conexões.
Questões desafiadoras
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Um primeiro desafio diz do caráter tecnicista do currículo, que preconiza em absoluto: ensino, aprendizagem, avaliação, método, eficiência e objetivos. Trata-se de uma educação cujo ideal é o progresso e o objetivo é a formação de profissionais eficientes, pela via da técnica. Sua teleologia é socioeconômica e pragmática. A sobreposição do cognitivo ao afetivo e dos conhecimentos e competências à relação com o saber pode levar à negatividade das experiências religiosas, que deixam de mobilizar o diálogo e articular os valores e sentidos do Evangelho com a vida. Que diálogo há entre as expressões religiosas num currículo enclausurado na razão técnica, comprometida unicamente com o sucesso acadêmico e profissional? Um segundo desafio: uma compreensão equivocada da ação educativo-evangelizadora com interlocutores de diferentes crenças ou que rejeitam a experiência religiosa até à negação de Deus. No projeto educativo-evangelizador, os fundamentos do diálogo inter-religioso subjazem às epistemologias dos componentes curriculares. Por isso, todo o currículo está aberto ao diálogo. O desafio está nos reducionismos e na inadequada compreensão acerca do diálogo inter-religioso, que pode levar à consideração de que apenas o ensino religioso é espaço para tal diálogo, por tratar do tema religião, ou de que o diálogo inter-religioso é uma modalidade de catequese ou mesmo justaposição de crenças. Os projetos educativos, também aqueles assumidos em perspectiva confessional, são salutarmente desafiados a considerar a pluralidade religiosa como elemento constitutivo e potencializador de sua missão. Particularmente em relação à escola católica, esta MOREIRA, A. F. B.; SILVA, T. T. da (Org.). Currículo, cultura e sociedade. 3. ed. Tradução Maria Aparecida Baptista. São Paulo: Cortez, 1999. p. 7.
373
tarefa não se resume a uma simples opção feita no plano pedagógico, mas vincula-se à sua natureza eclesial, desembocando no projeto de evangelização assumido pela mesma.374
Por fim, há o desafio de educar para a espiritualidade. Na perspectiva cristã, espiritualidade “é a fé feita experiência”.375 É a relação de amor e comunhão entre Deus e o homem. A ação educativo-evangelizadora se funda nessa espiritualidade, que indica a transcendência como essencial à fé, relação pessoal com o Deus revelado em Cristo. As experiências de transcendência marcam também as religiões. O Vaticano II afirma que os membros das religiões se indagam:
Nesse sentido, a espiritualidade integra o diálogo inter-religioso. No currículo, trata-se a espiritualidade como restrita às comunidades religiosas ou ao indivíduo ou é posta em diálogo, inclusive entre os sujeitos a-religiosos? Ainda que a espiritualidade cristã seja critério para o diálogo, as perguntas fundamentais são as mesmas, aproximando espiritualidade e currículo: valores, experiências e sentidos.
Itinerários educativo-evangelizadores: vias para o diálogo Os caminhos (vias) para o diálogo evangelizador no currículo em face do pluralismo religioso se constituem na relação entre a prática do diálogo e os COLET, R. F.; WOLFF, E. A dimensão ecumênica e inter-religiosa da Pastoral Escolar na Escola Católica: fundamentos teológicos e horizontes para a ação. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CATÓLICA, 3., 2015, Curitiba. Anais... Brasília: ANEC, 2015. p. 429-440. p. 430. 375 BOFF, C. M. Espiritualidade e pastoral. Sugestões para a pastoral da educação. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 75, n. 298, p. 369-389, abr./jun. 2015. p. 377. 374
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Que é ser homem ou mulher? Qual é o fim da vida? Que é bem e que é mal? De onde vêm a dor e o sofrimento? Que sentido têm? Qual o caminho para alcançar a verdadeira felicidade? [...]. Enfim, qual é o mistério final de nossa existência? De onde viemos e para onde vamos? (NA 1).
fundamentos do diálogo inter-religioso. Tais vias são itinerários de educação e evangelização, que, no campo do diálogo inter-religioso, são metodologias amplamente consolidadas, perfeitamente aplicáveis ao âmbito educacional.
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Via antropológica É o caminho da pessoa. Na tradição cristã, a pessoa humana é imago Dei. Sua dignidade está nesse princípio fundamental. Por isso, no centro da missão eclesial está o ser humano, que ocupa lugar proeminente no plano da criação e da redenção. O anúncio de Cristo e a afirmação da dignidade humana, sua promoção (Evangelii Nuntiandi [EN] e Evangelii Gaudium [EG]376) e desenvolvimento integral377 são indissociáveis. No que tange ao diálogo, Nostra Aetate explicita esse posicionamento ao concluir seu texto indicando a fraternidade universal e a reprovação de toda discriminação racial ou religiosa como motivações e efeitos do diálogo entre as religiões (cf. NA 5). Temos então a via antropológica como caminho de diálogo no currículo. Se todo currículo expressa uma visão de mundo fundada numa concepção de ser humano, o currículo evangelizador tem como base a perspectiva humanista cristã, que dialoga com as perspectivas antropológicas das expressões religiosas. Uma comunidade escolar, que se baseia em valores da fé católica, traduz na sua organização e no seu currículo a visão personalista própria da tradição humanista cristã, não em contraposição mas em diálogo com as outras culturas e crenças religiosas [...]. A sua característica confessional não deve constituir uma barreira, mas ser condição de diálogo intercultural, ajudando cada aluno a crescer em humanidade, responsabilidade civil e na aprendizagem.378
PAULO VI, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi: sobre a evangelização no mundo contemporâneo. 8 dez. 1975; FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013a. 377 Cf. Gaudium et Spes (1965); Populorum Progressio (1967); Sollicitudo Rei Socialis (1987). 378 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Instrumentum Laboris Educar hoje e amanhã, uma paixão que se renova. 7 abr. 2014. n. 6. 376
A via antropológica é a via da relação e da integridade do sujeito. Um dos motivos do diálogo entre as religiões no campo educativo é o reconhecimento do mistério do ser humano em consonância com o mistério de Deus.379 Para esse reconhecimento, não há que se abdicar de sua identidade religiosa. Nesse contexto, o currículo aponta o significado único de Jesus Cristo para o ser humano, em diálogo com os valores positivos das religiões. O diálogo pela via antropológica pode contemplar propostas curriculares que: privilegiem o lugar e o papel da pessoa nos objetivos educacionais; viabilizem tempo e espaço para a reflexão sobre a condição humana; proponham atividades-problema sobre as diversas concepções de ser humano; motivem os sujeitos à partilha sobre a relação ser humano-religião, sob o ponto de vista das experiências e dos valores.
Privilegia a ação humana em relação à caminhada comum dos homens e mulheres nas esferas política, social, ecológica, religiosa. Daí emergem algumas questões candentes: diferença, tolerância, paz, justiça, cuidado, respeito. Na tradição cristã, as dimensões antropológica e ética estão imbricadas, pois fazem referência ao princípio da dignidade humana. Entretanto, a via ética destaca a ação humana como promotora de transformação, paz, fraternidade e solidariedade. Cada sistema ético tem seus fundamentos em conceitos e pressupostos que, num esquema complexo e orgânico, constituem o conjunto de seus valores. Isso vale também para as religiões e demais expressões religiosas, em maior ou menor grau. As experiências originárias e os elementos fundantes das religiões explicitam sentidos e significados que, traduzidos para o âmbito da ação humana, resultam numa ética própria. Justifica-se, por isso, falarmos de ética cristã, ética judaica, ética budista... O diálogo, portanto, baseia-se na vivência e partilha dos valores ético-religiosos. As diferentes posições são contrastadas com os valores universais ou os ideais de uma convivência e uma sociedade autenticamente humanas. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Educar al diálogo intercultural en la escuela católica: vivir juntos para una civilización del amor. 28 out. 2013. n. 13.
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Via ética
No projeto educativo-evangelizador, a ética cristã é caminho para o diálogo na medida em que a categoria “Reino de Deus” contempla a vivência da justiça, da paz, da fraternidade e da caridade como critérios para a construção da civilização do amor. O Reino de Deus é o próprio Jesus Cristo, paradigma do diálogo pelo caminho da ética. Conforme consta no Documento de Aparecida (DAp):380
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O diálogo inter-religioso, além de seu caráter teológico, tem significado especial na construção da nova humanidade: abre caminhos inéditos de testemunho cristão, promove a liberdade e dignidade dos povos, estimula a colaboração para o bem comum, supera a violência motivada por atitudes religiosas fundamentalistas, educa para a paz e para a convivência cidadã (DAp 239).
Na prática, dá-se no currículo quando se relacionam objetivos, conteúdos e valores, isto é, conhecimento e vida social. A pretensa busca pela neutralidade nem sempre é válida, pois o processo de aprendizagem exige escolhas, posicionamentos e valorações. O salutar diálogo entre as expressões religiosas ilumina esse processo a partir dos posicionamentos éticos, da disponibilidade recíproca em acolher o outro, do respeito e da confiança, das convicções e da busca por ideais comuns. O contributo das religiões para a paz e para o bem comum torna-se efetivo quando se compreende que sua consecução está na cooperação e no “caminhar junto”.
Via solidária “Onde os cristãos e os outros colaboram em vista do desenvolvimento integral e da libertação da gente” (DAp 42). A via solidária é ativa, programática, interconfessional ou interinstitucional e se atualiza em espaços específicos, como o dos direitos humanos, da justiça social, da ecologia e das políticas públicas. É aí que as expressões religiosas encontram alternativas para a superação dos desafios e males que atingem especialmente as pessoas CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe: 13-31 maio 2007. 12. ed. São Paulo: Paulus, 2011.
380
mais vulneráveis e empobrecidas. Funda-se no serviço ao outro e tem sua efetividade garantida em virtude de seu caráter programático. Também no diálogo das obras afirma-se Jesus Cristo como modelo para a vivência da solidariedade. Seu ministério teve como centro o pequeno, o pobre, o esquecido, não como opção excludente, mas preferencial, tal como as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano381 e o Magistério recente tem expressado. O Papa Bento XVI afirmou: “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza”.382 A via solidária é um imperativo, pois, a exemplo de Cristo, todos são chamados a defender e promover a dignidade humana com palavras e obras.
Via espiritual É um autêntico caminho de educação à transcendência. No currículo evangelizador, a espiritualidade cristã destaca-se como fundamento do projeto de educação e evangelização e como abertura sincera ao outro pelo reconhecimento da pessoa como imagem e semelhança de Deus. Uma educação para o diálogo inter-religioso ou interconfessional – que inclua também os que se assumem como ateus – terá de levar o educando a perceber a riqueza e o privilégio de se viver em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). BENTO XVI, Papa. Discurso Inaugural de Aparecida. CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE, 5., 2007, Santuário de Aparecida.
381 382
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Toda a dinâmica curricular deve estabelecer diálogos, iniciativas, programas e projetos pautados na dimensão da alteridade e da solidariedade: tudo o que atenta contra o desenvolvimento integral da pessoa exige de nós uma atuação solidária efetiva. Muitas instituições têm em seus currículos espaços e tempos para o diálogo, organização e execução de ações de educação para a solidariedade. Fomentar o diálogo inter-religioso nesse contexto e compreendê-lo como pressuposto da educação solidária é potencializar a cooperação entre as religiões como caminho para uma nova sociedade. O currículo evangelizador, portanto, está centrado na relação fé e vida, que projeta para o diálogo e para a transformação da realidade.
um mundo que transborda sua experiência de transcendente em várias tradições espirituais.383
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A via espiritual, ou diálogo da experiência religiosa, caracteriza-se pela abertura ao transcendente, em que “pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas espirituais [...] no que se refere à oração e à contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto” (DAp 42). Essa abertura diz das perguntas fundamentais sobre os sentidos que orientam a existência, dado que a ciência não possui todas as respostas para tal. Logo, o diálogo da experiência religiosa é um caminho fecundo para a dinâmica curricular evangelizadora, pois O esforço do conhecimento e da pesquisa não deve ser separado do sentido ético e do transcendente. Nenhuma ciência verdadeira pode negligenciar as suas consequências éticas e não existe verdadeira ciência que afaste da transcendência. [...], ciência e transcendência não se excluem reciprocamente, mas se conjugam para uma maior e melhor compreensão do homem e da realidade do mundo.384
As diferentes tradições religiosas podem contribuir, a partir de suas experiências de transcendência, para o equilíbrio entre intuição e conceito, entre fé e razão. Tanto a espiritualidade cristã pode enriquecer as demais experiências de transcendência como estas podem favorecer uma espiritualidade cristã mais integral; e ambas propiciam um diálogo no qual todos, também os não crentes e ateus, possam perceber a relevância da transcendência como experiência humana de sentido e com o Absoluto. Numa instituição educativa que acolhe o pluralismo como riqueza, sem comprometer sua identidade evangelizadora, o currículo pode e deve sistematizar processos de educação para a transcendência. Propostas curriculares que vinculam conhecimentos a sentidos são caminhos para o diálogo na via espiritual, pois evidenciam o SOARES, A. M. L. S. Educação e Pluralidade Religiosa. In: FIGUEIRA, E.; JUNQUEIRA, S. Teologia e Educação: educar para a caridade e a solidariedade. São Paulo: Paulinas, 2012. p. 230-255. p. 246. 384 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Instrumentum Laboris, n. 2. 383
olhar de contemplação para a realidade, a sacralidade da vida, a conexão homem-natureza, as práticas religiosas, a oração.
Via convivial O diálogo da vida é de pessoa a pessoa; ocasional e permanente; próximo e afetivo. Tradução atual desta via é a “cultura do encontro”, sobre a qual o Papa Francisco afirmou na XXVIII Jornada Mundial da Juventude: “O encontro e o acolhimento de todos, a solidariedade [...] e a fraternidade são elementos que tornam a nossa civilização verdadeiramente humana. Temos de ser servidores da comunhão e da cultura do encontro”.385 Noutra ocasião, disse:
A “cultura do encontro” é expressão de um diálogo autêntico e aberto, para um enriquecimento mútuo, do qual a fraternidade e a comunhão são os efeitos visíveis. “Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana ou simplesmente – [...] – ‘estar aberto a eles, compartilhando as suas alegrias e penas’” (EG 250). Não necessita de espaço formal/institucional; não possui agenda prévia; e não busca outros objetivos que não o próprio diálogo e a partilha de vida. Por si só, a dinâmica educacional favorece o encontro e o diálogo. O convívio e a troca de experiências estão imbricados no currículo e nos processos escolares. Dado que o currículo é também contexto e experiência, potencializa-se a “cultura do encontro” quando o mesmo currículo torna tangível sua “parte vazia”, ou seja, o que não é planejável, controlável, mas que é vida, FRANCISCO, Papa. Homilia do Santo Padre: Santa Missa com os Bispos da JMJ, sacerdotes, religiosos e seminaristas. Catedral de São Sebastião, Rio de Janeiro, 27 jul. 2013b. 386 FRANCISCO. Discurso no Encontro com os Representantes da Sociedade Civil. Assunção, Paraguai, 11 jul. 2015. 385
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Para que haja diálogo, é necessária uma base fundamental, uma identidade. [...]. Além disso o diálogo pressupõe e exige de nós esta cultura do encontro. Ou seja, um encontro que sabe reconhecer que a diversidade não só é boa, mas necessária. [...]. Eu levo aquilo que é meu e vou escutar aquilo que o outro diz; aquilo que me enriquece no outro.386
afeto, partilha, percepção, amizade, sentimento. Se isso acontece no âmbito da experiência religiosa, temos um currículo que favorece o diálogo inter-religioso também na esfera do não formal. Em suma, o diálogo da vida assume importância cada vez maior no currículo quando é valorizado e percebido pelos sujeitos do projeto educativo-evangelizador como meio privilegiado de formação integral, de educação e evangelização.
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Considerações finais Reiteramos, em primeiro lugar, a complexidade do cenário religioso contemporâneo, marcado pela pós-secularização e pelo retorno do religioso sob formas privadas. É certo que hoje não partimos da aceitação universal do Cristianismo para educar e evangelizar. Porém, sentimo-nos impelidos a ressignificar a mensagem cristã, a fim de que ofereça respostas às contradições pós-modernas. Em segundo lugar, temos que o diálogo inter-religioso se fundamenta na verdade cristã como abertura ao diálogo. Especialmente a partir do Vaticano II, a Igreja afirma o caráter positivo das religiões e não entende ser detentora da salvação, mas servidora de Cristo, que salva a todos. Por isso, anuncia a Cristo, em diálogo, expressando a riqueza e profundidade do amor de Deus pela humanidade. Tais constatações levam as instituições educacionais católicas a constituir um projeto educativo-evangelizador que não só acolhe a diversidade religiosa como a percebe essencial aos seus processos. Isso fica evidente quando o currículo trata a questão religiosa como dimensão de diálogo e anúncio, oportunizando um diálogo efetivo por diversos caminhos, tendo o evento Cristo como abertura para tal. Portanto, o currículo evangelizador e inclusivo é possível porque tem a categoria de diálogo inter-religioso como subjacente a seu movimento.
Referências BENTO XVI, Papa. Discurso Inaugural de Aparecida. CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE, 5., 2007,
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ESPAÇOTEMPOS DA AÇÃO PASTORAL NO CURRÍCULO: UMA CHAVE MISSIONÁRIA PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA387 Glaucio Luiz Mota
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Introdução A história tem demonstrado, sobretudo na atualidade, que as concepções de espaço e de tempo têm engendrado as principais mudanças sociais no mundo. Na “modernidade líquida”,388 estaríamos num contexto em que o espaço e o tempo são voláteis e instáveis, impossíveis agora de ser pensados em separado, mas sim de forma complementar, a ponto de alguns autores e instituições, semanticamente, apresentá-los em forma de neologismo: “espaçotempo”.389 Nesse cenário, a educação não pode estar alheia a essa ressignificação do espaço e do tempo, uma vez que essa concepção tem influenciado as teorias de currículo, tornando o cotidiano da educação em espaçotempos390 de encontro das tradições, dos saberes e das diferenças culturais. Logo, o currículo se torna um espaçotempo de negociações culturais.391
Agradeço as reflexões de Ricardo Santos Chiquito quanto a alguns conceitos que ajudaram na reflexão deste texto. 388 BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. 389 Para o Projeto Educativo do Brasil Marista: “Espaçotempo é um continuum que se refere ao espaço e ao tempo de modo inter-relacionado. Nessa perspectiva, é necessário pensar fatos, processos, fenômenos e situações-problema considerando simultaneamente as especificidades espaciais e temporais. Ou seja, tudo – fatos, eventos, fenômenos, processos – acontece em espaços e tempos precisos e determinados” (UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Projeto Educativo do Brasil Marista: nosso jeito de conceber a educação básica. Brasília: UMBRASIL, 2010. p. 26). 390 ALVES, N. Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, I. B.; ALVES, N. (Org.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 391 BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2013. 387
Na educação católica, essa reflexão pode ser provocada pelo debate que estamos apresentando neste texto sobre a “pastoral no currículo”,392 ou seja, pela atualização das linguagens evangelizadoras nos espaçotempos de suas unidades educacionais católicas,393 fazendo-nos a seguinte pergunta: a pastoral tem seus próprios espaçotempos? Esse movimento da “pastoral no currículo” é a tentativa de ser a “Igreja em saída” e “com chave missionária” (Evangelii Gaudium [EG])394 na educação evangelizadora. Essa “chave missionária”, a fim de materializar a “Igreja em saída” na educação católica, perpassa pelo fortalecimento da ação pastoral no currículo das unidades educacionais. Mas essa “conversão pastoral” (EG) precisa ter não somente um foco celebrativo e catequético formal, mas também estar voltada para a sua transversalização em todos os processos pedagógicos da proposta educativa católica.
Para apresentá-los de forma didática, ao mesmo tempo entendendo-os como processuais e interconectados, assim serão descritos os espaçotempos da ação pastoral: a) espaçotempo catequético-celebrativo; b) espaçotempo do testemunho e da (com)vivência das religiosidades; c) espaçotempo da transposição didático-pastoral; e c) espaçotempo do ecumenismo e do diálogo inter-religioso.
Desde 2015, os pastoralistas das unidades sociais e educacionais da Rede Marista de Solidariedade, coordenados pelo então Assessor de Pastoral Glaucio Luiz Mota, da Diretoria Executiva de Ação Social dessa mesma rede, realizaram um processo de ressignificação da pastoral no currículo com a intenção de ampliar as reflexões sobre evangelização de forma interdisciplinar. A partir dessa intencionalidade, surgiram inúmeras reflexões, produções de conhecimento e instrumentais, sempre integrados às diretrizes institucionais e eclesiais. A síntese dessa trajetória foi sistematizada no documento: “Parâmetros para a Ação Pastoral: Evangelização nas unidades sociais e educacionais”, disponível em: <https://issuu.com/ grupomarista/docs/af_rms_parametrospastoral_a4_web>. 393 Sempre que for usada neste texto a definição “unidades educacionais católicas”, iremos considerar os colégios, as unidades sociais, as universidades e os demais espaços educativos católicos. 394 FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 nov. 2013. 392
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Tudo isso para não haver o risco de possíveis estagnações no processo da educação evangelizadora. E é por isso que propomos uma dinâmica que torne mais adequada a inculturação do Evangelho aos espaços e tempos educacionais católicos.
Todos esses espaçotempos contemplam a identidade confessional católica na perspectiva da eclesiologia do Papa Francisco que, por sua vez, retoma o Vaticano II. Todos esses espaçotempos estão transversalizados por essa eclesiologia, sendo que a diferença em cada espaçotempo está na linguagem apropriada para cada lugar da evangelização na educação católica.
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O espaço e o tempo na contemporaneidade A modernidade pode ser descrita como a “era hardware”, uma época “obcecada pelo volume” material. Essa obsessão permanece na contemporaneidade, mas agora integrada a outras características desse tempo, denominado “era do software”. Trata-se de uma era da eficácia, ou seja, da rapidez e da volatilidade, que Bauman denomina “modernidade líquida”.395 Vivemos um momento de instantaneidade, em que as certezas são relativas e os processos e as vivências são intensos e, ao mesmo tempo, efêmeros. Sensações de incompletude, de tempo perdido, mas também de desinteresse e falta de referência e espacialidade. “E em verdade a consequência lógica da irrelevância do espaço ainda não se realizou plenamente, como também não se realizou a leveza e a infinita volatilidade e flexibilidade da agência humana”.396 Dessa forma, a fluidez das relações revela certa liberdade contrastada com a incerteza, pois, se por um lado há uma sensação de leveza e liberdade, por outro ainda persiste a necessidade de controle sobre o Outro, sobre a vida de outros sujeitos e instituições. A dominação consiste em nossa própria capacidade de escapar, de nos desengajarmos, de estar “em outro lugar”, e no direito de decidir sobre a velocidade com que isso será feito – e ao mesmo tempo de destituir os que estão do lado dominado de sua capacidade de parar; ou de limitar seus movimentos ou ainda torná-los mais lentos.397 BAUMAN, 2001. Ibid., p. 138. 397 Ibid., p. 139. 395 396
Nesse ponto, ainda nos encontramos no que Bauman chama de “modernidade pesada”, ou seja, apesar de toda a fluidez da atualidade, alguns continuam presos ao modelo conservador de controle humano que herdamos de outras épocas. Historicamente, esse controle se focava na expansão espacial, uma vez que o tempo significava dinheiro e arma para conquistar e preencher espaço em curto tempo, pois quem detinha a forma de reduzir distâncias capturava o lugar em vantagem aos demais, tornando intrusos os que já estavam ali ou os que chegassem depois.398 Nascem, ou são reforçados nessa relação, as indiferenças, os estranhamentos, as inseguranças e os mal-estares.
O ponto de interrogação moveu-se do lado dos meios para o lado dos fins. Se aplicado à relação tempo-espaço, isso significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo (isto é, em “tempo nenhum”), nenhuma parte do espaço é privilegiada, nenhuma tem o “valor especial”.400
Portanto, estamos diante de um continuum,401 no qual o tempo é relativizado em detrimento do espaço, o espaço pode ser alcançado em tempos ainda mais rápidos ou a qualquer momento, mesmo que não seja alcançado fisicamente. Ao mesmo tempo, os espaços também são relativizados, afinal, podem ser ocupados e desocupados a qualquer momento conforme os interesses e desinteresses fluidos dos sujeitos e das instituições. Essa relativização, ou possibilidade epistemológica, apresenta uma nova relação entre tempo e Ibid. Ibid. 400 BAUMAN, 2001, p. 137. 401 Nessa relação de espaço e tempo, o continuum seria como um espaço constante num determinado tempo. 398 399
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Inevitavelmente, os estranhamentos se estabeleceram e se estabelecem em torno dos lugares nos quais as diferenças culturais do sujeito local entram em confronto com a cultura do sujeito global, e os papéis de ambos se confundem no tempo e no espaço. O espaço foi se tornando imprevisível, disputado, o tempo se tornando indeterminado, tornando esses contextos fontes para os novos paradigmas da “modernidade líquida”.399
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espaço, permitindo pensá-los conjuntamente como conceito integrado. Por isso, optamos pelo neologismo402 “espaçotempo”, na mesma lógica da descrição de Bauman: “tempo/espaço”.403 A descrição de Bauman sobre esse conceito contempla a necessidade de fundamentar esse neologismo para a sequência do texto. Mas isso não significa que essa seja a única fonte sobre o tema. De todo modo, essa referência serve como ponto de partida para a análise presente nesse texto. A partir dessa fundamentação e das provocações sobre o tempo e o espaço, surge a exigência de revisar nossas representações sobre essas noções, pois: “os lugares permanecem fixos; é neles que temos ‘raízes’. Entretanto o espaço pode ser ‘cruzado’ num piscar de olhos – por um avião a jato, por fax ou por satélite”,404 e, na atualidade, também pela internet. Desses exemplos, poderia optar por outros ou até por exemplos mais recentes – tecnológicos, quânticos, etc. –, mas decidimos pela metáfora do avião, a fim de ampliar e delimitar nosso entendimento sobre a noção de espaçotempo, já ensaiando a relação desse conceito com a educação. O avião, nessa metáfora, é como um saber interligado rizomaticamente405 a muitos outros saberes, históricos, recentes e/ou em criação. Os saberes também podem ser os próprios passageiros, ou os saberes que os passageiros carregam em suas “bagagens de conhecimento”. O avião corta um espaço, mexe com as nuvens, e a partir de então o espaço não é mais o mesmo, é suscetível ao seu movimento, à velocidade, à sua trajetória, às suas coordenadas, aos saberes e aos fazeres. Mas o espaço ou os espaços pertencem a um lugar estático, e esses espaços são reféns do tempo, ao mesmo tempo que o espaço influencia o tempo. Pode haver fricção, resistência, relações de poder, diante das diferenças culturais, no semiótico,406 nas linguagens que fazem o espaço interferir no tempo que será demandado, tornando-o passível de passar rápido, Criação de uma nova palavra ou significado novo, podendo ser constituída a partir de palavras e significados já existentes. 403 Bauman dedica o terceiro capítulo, “Tempo/espaço”, de sua obra “Modernidade Líquida” (2001) para explicar essa relação. 404 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015. p. 42. 405 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. v. 1. Na obra, os autores abordam a noção de rizoma como um sistema aberto, não ligado a conceitos prontos, mas a conceitos em constante criação e mudança. 406 Estudo das representações dos signos e das significações linguísticas ou não linguísticas. 402
ou ser demorado, ou ter um entretempo, uma ruptura, uma retomada, ou um continuum. Nessas trocas, ou até imposições de saberes, fazemos experiências, no fixar saberes, no hibridizar,407 no “interdisciplinarizar”, ou até mesmo no “transdisciplinarizar” saberes. Tempo e espaço se inter-relacionam, e é por isso que espaço e tempo podem estar interligados – na condição moderna e/ ou da pós-modernidade.408 Entretanto, talvez não fosse mais conveniente dizer que “só o tempo vai mostrar” ou que “só o tempo vai dizer”, porque o espaço nos mostra e nos fala também. Talvez seja mais apropriado, ou para que se possa melhor corresponder a essa complexidade, afirmar que o tempo e o espaço nos dirão o que foi, o que é e/ou o que será, ou melhor, o espaçotempo pode nos dizer o que foi, o que é e/ou o que será, numa tessitura contínua, numa rede espaçotemporal de saberes e fazeres.
A produção de conhecimento sofre impacto direto diante dessa nova perspectiva, uma vez que os lugares do determinismo e do absolutismo, dos discursos racionalistas sobre os saberes, são ressignificados pelos tempos e pelos espaços dos saberes e das culturas, até então invisibilizados, ou pelas novas traduções culturais. Logo, “a história da mudança social é em parte Para Hall (2015, p. 52), hibridizar ou o hibridismo são “cruzamentos e misturas culturais”. Comungamos da mesma noção de pós-modernidade apresentada por Mota neste livro, no capítulo: “Educação Católica e pós-modernidade: crises, contrapontos e aprendizagens nesse contexto”. 409 BHABHA, 2013. 410 Na desorientação no tempo e no espaço da contemporaneidade há, segundo Bhabha, “entre-lugares” em que se faz diferentes enunciações e subjetivações em contraposição à sujeição dos sujeitos. “Esses ‘entrelugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no alo de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 2013, p. 20). 411 Bhabha (2013) entende que o terceiro espaço é o interstício entre o significante e o significado, é o locus da enunciação, do hibridismo. 407 408
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Estamos situados, mas ao mesmo tempo deslocados, nas trocas diárias de saberes, e nos deparamos com constantes negociações culturais,409 mesmo diante de forças e de representações que ainda queiram insistentemente hegemonizar as culturas e o conhecimento. Dessa forma, vão se estabelecendo entre-lugares410 dessas negociações, como um terceiro espaço,411 ou espaçotempo em que os sujeitos e suas diferenças culturais traduzem e produzem novos conhecimentos, ainda que de maneira conflituosa.
apreendida pela história das concepções de espaço e de tempo, bem como dos usos ideológicos que podem ser dados a essas concepções”.412
Espaçotempo e educação
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Em meio a esse contexto, em que o espaço e o tempo exercem forte influência sobre a história e sobre a constituição da sociedade contemporânea, as agendas políticas e sociais são marcadas pelas relações estabelecidas a partir dessa lógica. Os lugares e os cotidianos das relações de poder e do saber são pautados não mais por interesses fixos e absolutos somente, mas por outros “elementos narrativos de linguagem”413 que desestabilizam o modo de pensar os espaços e tempos, sendo a educação um campo efervescente e legítimo desse movimento. A escola e a universidade, presentes na história e que não estão alheios aos movimentos societários, estiveram e estão diante da modernidade, seja a pesada e/ou a leve, seja a modernidade líquida414 e/ou da pós-modernidade.415 Por esse motivo, esses movimentos têm incidido diretamente nas tendências pedagógicas, nos modelos educativos, nas teorias de currículo, na didática, na formação de educadores, entre outros aspectos das comunidades educativas e, por sua vez, no cotidiano dos espaçotempos da educação. No campo da educação, são identificadas as tradicionais e as novas lutas sociais, demarcadas pelos modelos tradicionais, críticos e pós-críticos de pensar seus currículos educacionais,416 nos quais há valores, conhecimentos, saberes, costumes, práticas, visões de mundo e modos de ser sujeito. É nesse HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 25. ed. São Paulo: Loyola, 2014. p. 201. 413 LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1998. 414 BAUMAN, 2001. 415 LYOTARD, 1998. 416 Fundamentada em Silva (SILVA, T. T. da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014), Eyng apresenta o currículo tradicional como aquele que se fundamenta no conjunto de disciplinas preestabelecidas, enquanto que o currículo crítico tem sua teoria inserida nas lutas de classe e de libertação ao modelo econômico-capitalista, situados nas relações de poder. Já a teoria curricular pós-crítica enfatiza as subjetividades dos sujeitos e as suas traduções estabelecidas nas fronteiras culturais. Essa teoria considera as novas narrativas ou aquelas que são desconsideradas nas relações de saber-poder (EYNG, A. M. Currículo escolar. 2. ed. rev. atual. Curitiba: Intersaberes, 2012). 412
cotidiano diverso e em constante mudança que se “produz novas formas de apropriação do tempo e do espaço”.417 Nos modos de pensar que se expressam no cotidiano, as coisas se passam de modo diferente: nenhuma ordem, com pensamentos que se cruzam e que mudam de rumo o tempo todo, referindo-se a espaçostempos que não apresentam nenhuma lógica nas aproximações que fazem uns dos outros... A esses modos de pensar fomos chamando de ‘redes’ que, em nosso caso, dizemos ‘educativas’, já que nelas nos interessavam os processos e significações, os processos de aprendizagemensino, os processos curriculares [e de formações].418
Encontramos em Michel de Certeau420 uma saída para analisar a formalidade das práticas e a informalidade da vida no cotidiano, a partir da criatividade do sujeito, seja para controlar, seja para subverter os espaços e os FERRAÇO, C. E. Ensaio de uma metodologia efêmera: ou sobre as várias maneiras de se sentir e inventar o cotidiano escolar. In: OLIVEIRA, I. B.; ALVES, N. (Org.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 102. 418 ALVES, N. Redes educativas “dentrofora” das escolas: exemplificadas pela formação de professores. In: SANTOS, L. (Org.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: currículo, ensino de educação física, ensino da geografia, ensino da história, escola, família e comunidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 81. 419 CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2013. 420 O sacerdote Michel de Certeau foi um intelectual jesuíta com formação em História, Letras Clássicas, Filosofia e Teologia. É um dos principais teóricos do cotidiano. 417
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Sob esse viés, a educação nos remete a pensar nos cotidianos vividos e, por conseguinte, pensar a educação a partir das culturas que, de uma forma ou de outra, atravessam as práticas escolares ou ainda são (re)produzidas em tais práticas. Isso porque, em uma sociedade racionalizada com base no pensamento, normas e regras capitalistas e ocidentais fazem figurar nos espaços educativos práticas mais comuns, banais, ordinárias, mas também únicas, singulares e particulares. Embora haja um currículo tradicional, conseguimos encontrar sujeitos “praticantes” que produzem novos saberes e “artes de fazer” o cotidiano que podem ressignificar o currículo. São sujeitos que reproduzem ou subvertem tais “regras e normas para o consumo” das tradições e da racionalização do cotidiano.419
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tempos. “Essas maneiras de ‘fazer’ constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural”.421 Esses movimentos de negociações culturais no cotidiano constituem os espaçotempos422 que, por sua vez, são habitados pela pluralidade de sujeitos. É o lugar em que se constituem as táticas para romper com a educação racionalizante, por meio de novas significações e traduções, por vezes incoerentes, mas que sempre trazem alguma transformação. Mas, de todo modo, essas são possibilidades de emancipação que se vislumbram por meio da “politização das práticas cotidianas”. Essas possibilidades surgem por meio de táticas para enfrentamento das estratégias de poder e de controle dos sujeitos e do saber, tornando essas táticas em “acontecimentos habitáveis”, em novas realidades que podem emancipar os sujeitos em detrimento dos modelos racionalizantes do vivido no cotidiano.423 O sujeito precisa assumir a responsabilidade de compor as narrativas do cotidiano, e que essa transcendência emana de sua força interior, e não somente de uma força exterior providencial ou sobrenatural, ou seja, é necessário que também o imanente424 faça parte desse processo de transcendência que se dá no cotidiano. “O enfoque da cultura começa quando o homem ordinário se torna o narrador, quando define o lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento”.425 Afinal, educar – ensinar algo a alguém – é um encontro entre tempos, espaços e vidas diferentes, em diferentes sociedades. Assim, é uma relação de tempos e vidas diferentes, representadas por professores e estudantes, adultos, crianças e jovens. Experiência na qual professores e estudantes, adultos, crianças e jovens transformam e transformam-se. Por isso mesmo, parece CERTEAU, 2013, p. 41. ALVES, N. Cultura e cotidiano escolar. Revista Brasileira de Educação, n. 23, p. 62-74, maio/ago. 2003. Outros autores que pesquisam o cotidiano na educação também usam o conceito de espaçotempo como neologismo. Os estudos do cotidiano entendem a escola como um espaçotempo de redes de saberesfazeres (ALVES, 2001), numa tentativa de romper com a hierarquização dos conhecimentos e o egoísmo dos sujeitos que centralizam em si os saberes. 423 CERTEAU, 2013, p. 44. 424 Enquanto que o transcendente é a busca por superar e protestar contra os limites humanos, é buscar uma força maior – na teologia, é buscar Deus –, o imanente é a objetividade da vida aqui, no mundo, nessa realidade terrena. 425 CERTEAU, 2013, p. 61. 421 422
fazer sentido pensar a educação como um espaçotempo, como uma combinação de tempo e lugar, como algo que torna o ato educativo ímpar, como ímpar é essa conjunção de forças de tempo e lugar. No âmbito da aprendizagem, o tempo que transcende o kronos é o das relações. É kairós, o tempo das vivências que dá significado aos acontecimentos, atravessando a temporalidade cotidiana. É, portanto, um movimento aleatório, inesperado e expressivo da existência, não apreendido pelo planejamento racional, porque é imprevisível. E o espaço, que transcende o “ambiente físico”, é o que se converte em lugar com seus significados, representações, valores e estímulos.426
Penso nos currículos escolares como espaço-tempo de fronteira e, portanto, como híbridos culturais, ou seja, como práticas ambivalentes que incluem o mesmo e o outro num jogo em que nem a vitória nem a derrota jamais serão completas. Entendo-os como um THIESEN, J. S. Tempos e espaços na organização curricular: uma reflexão sobre a dinâmica dos processos escolares. Educação em revista [online], Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-260, 2011. p. 253. 427 A mistagogia “tem sua origem em dois vocábulos gregos: mystes, que significa ‘mistério’, e agein, que significa ‘conduzir’. Mistagogia vai adquirir o sentido de ‘conduzir através do mistério’, ‘iniciar ao conhecimento do mistério’” (COSTA, R. F. da. Mistagogia: um diálogo fecundo entre mística e pedagogia. Revista Pistis Praxis: teologia pastoral, Curitiba, v. 6, n. 2, p. 693-718, maio/ago. 2014. p. 696). Entendo que a mistagogia é um processo para os iniciados na vivência cristã, mas também é um processo continuado de vivência dos mistérios da fé. “Contudo, resgatar a mistagogia é também considerar os fatores que demarcam a cultura atual e os sinais de emergência de uma nova subjetividade, que traz consigo a gênese de uma dinâmica relacional. Nesse sentido, estamos diante de um momento privilegiado para a evangelização, em que a subjetividade está aberta a novas experiências estruturantes e que se dá conta de que é o encontro com o outro, consigo mesmo e com o mundo que a conduzirá à realização” (COSTA, 2014, p. 713). 426
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O tempo das relações no cotidiano dos espaços educativos precisa transcender o tempo racional e disciplinarizante, precisa considerar outros tempos, como o tempo e o espaço do vivido, das culturas, da vida e das subjetividades do sujeito. A pedagogia precisa encontrar-se com a mistagogia,427 ou seja, precisa encontrar seu sentido. O sentido da pedagogia não pode se confinar na mera reprodução de saberes e conhecimentos preestabelecidos, mas precisa considerar os saberes que emanam constantemente do cotidiano e das fronteiras culturais dos espaçotempos educativos.
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espaço-tempo em que estão mesclados os discursos da ciência, da nação, do mercado, os “saberes comuns”, as religiosidades e tantos outros, todos também híbridos em suas próprias constituições. É um espaço-tempo em que os bens simbólicos são “descolecionados”, “desterritorializados”, “impurificados”, num processo que explicita a fluidez das fronteiras entre as culturas do eu e do outro e torna menos óbvias e estáticas as relações de poder.428
Mesmo que insistamos na ideia de uma identidade fixa, é inegável que ela se transforme constantemente no cotidiano. As negociações culturais se estabelecem continuamente nas relações interpessoais. Nosso modo de ser e de pensar se transforma nessas relações, por menor que sejam essas mudanças. Nossos conhecimentos e saberes se constituem na relação com o Outro, logo, nossa identidade também. E essas relações não são diferentes diante das representações do currículo que produzimos. No currículo, o constante encontro de identidades de sujeitos e instituições se estabelece, e, desse encontro, seja intercultural ou de prevalência de uma hegemonia cultural, haverá em ambas as formas algum tipo de hibridização, mesmo que não se queira reconhecer ou invisibilizar esses movimentos de mudança. A ideia é que, a partir dessas negociações culturais, surjam processos de emancipação social no cotidiano da escola. Mesmo entendendo que esses processos não se deem de forma consensual ou de forma conciliada. Na articulação e confluência desses contextos, vamos situar os cotidianos escolares como entrelugares da cultura, buscando problematizar as possibilidades teórico-epistemológico-metodológicas que se criam redes cotidianas de usos, negociações, hibridizações e traduções entre culturas, expressando diferentes embates culturais.429 MACEDO, E. Currículo como espaço-tempo de fronteira cultural. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 32, p. 285-296, maio/ago. 2006. p. 289-290. 429 FERRAÇO, C. E.; NUNES, K. R. Currículos, culturas e cotidianos escolares: afirmando a complexidade e a diferença nas redes de conhecimento dos sujeitos praticantes. In: FERRAÇO, C. E.; CARVALHO, J. M. (Org.). Currículos, pesquisa, conhecimentos e produção de subjetividades. Petrópolis: DP et Alii; Vitória: Nupec/UFES, 2013. p. 90, com base em BHABHA, 2013. 428
Contudo, o currículo é um espaçotempo de encontro de culturas e de um inegável hibridismo. Nenhum sujeito ou saber passará pelos espaços educacionais e sairá da mesma forma. Então, qual é o papel da educação católica diante desses novos paradigmas? A Evangelização nesse contexto faz, quer ou não quer fazer negociações nas fronteiras do currículo? O papel da Inculturação do Evangelho é fazer negociações culturais? Qual é o papel dos educadores da educação católica nesse cenário? Qual é o papel da pastoral escolar e universitária nesse contexto?
No caso da educação católica, como podemos garantir a perenidade da identidade de sua proposta educativa, ao mesmo tempo que nos deixamos ensinar, evangelizar e ser evangelizados? Estamos dispostos a fazer esse movimento? Estamos indo ao encontro desse equilíbrio? O que estamos fazendo para que se efetive uma pastoral com chave missionária?
Os espaçotempos da ação pastoral Diante das dos mal-estares produzidos pela modernidade e pela pós-modernidade,431 a Evangelização e a Educação Católica não estão alheias e imu GARCIA, R. L.; ALVES, N. Sobre formação de professores e professoras: questões curriculares. In: LIBÂNEO, J. C.; ALVES, N. (Org.). Temas de pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, 2012. p. 506. 431 BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. 430
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Ao encontrarmos, todos – docentes, discentes, pais e responsáveis, outros trabalhadores da educação, comunidade circundante da escola – nos espaçostempos escolares, como aliás em todas as redes educativas, o fazemos tendo “encarnado” em nós todos os conhecimentos e significações que incorporamos em nossas redes de viver, conviver, fazer e sentir. Do mesmo modo, carregamos para elas muito do que aprendemosensinamos nas escolas e em outras redes educativas, pois como já dito e repetido em nosso texto, nesse processo instigante de troca de saberes, todos aprendemensinam, nos tantos momentos e processos de trocas, curriculares e de outros tipos de conteúdosformas.430
nes dessa conjuntura. A Igreja, já no Concílio Vaticano II, apontava uma série de proposições para enfrentar esses mal-estares, tanto modernos quanto pós-modernos, e apresentou uma retomada de uma Igreja feita com e para o seu povo, recolocando e empoderando o leigo no papel de protagonista.
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Junto desse movimento de abertura, surgiram de reboque possíveis mal-estares no campo das diferenças: teológicas, eclesiológicas, entre outras. “As diferenças entre as pessoas e as comunidades, por vezes, são incômodas, mas o Espírito Santo, que suscita esta diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo evangelizador que atua por atração” (EG 131). Um desses espaços no qual encontramos uma ecologia de saberes e, por consequência, também as diferenças, é o espaço educativo, e na educação católica, mesmo que a confessionalidade seja uma marca determinante na sua proposta pedagógica, essa dinâmica não é diferente. Mas essas diferenças e os possíveis incômodos podem ser transformados num “dinamismo evangelizador” (EG)? Todos os temas relacionados à educação – sejam os determinados pelas disciplinas, relacionados às culturas dos sujeitos da escola/universidade, ou as identidades das instituições de ensino – podem ter o mesmo grau de importância? O que pode ser negociável ou inegociável nessas relações? O currículo, ou seja, a identidade de uma proposta educativa, é um “espaçotempo de fronteira”, de “híbridos culturais”, no qual há um constante jogo de negociação de identidades, em que “nem a vitória nem a derrota jamais serão completas”.432 Nesse cenário de muitas possibilidades e saídas, o papel da Educação Evangelizadora pode ser o de favorecer espaçotempos que garantam o respeito e o diálogo com outras manifestações culturais e religiosas e, ao mesmo tempo, o de garantir a perpetuidade da identidade confessional da educação católica. Sendo assim, a opção pela noção de espaçotempos que apontamos corresponde a uma necessidade metodológica de maior aproximação com a prática pedagógica da educação católica, uma vez que os temas, os eixos, os planejamentos, os projetos contidos nos planos de ação pastoral podem não dar conta da complexidade que o currículo apresente, mesmo que seja o currículo MACEDO, 2006, p. 189.
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tradicional. Há uma possível tendência de as ações pastorais, nas unidades de educação católica, estarem focando somente os aspectos litúrgicos e catequéticos, de forma isolada, sem fazê-los dialogar com as outras áreas de conhecimento, ou que esse diálogo aconteça de forma fragmentada e pontual, com pouca integração ao cotidiano educativo dos estudantes e de suas culturas e religiosidades. O cotidiano escolar/acadêmico e seus espaçotempos reivindicam novas pedagogias que deem conta das contingências dos novos contextos educacionais e culturais, o que não é diferente para a educação católica, uma vez que
Nesse ínterim, quais são as nossas incapacidades de interação com esses novos fenômenos? Estaríamos nos refugiando na indiferença de nossas propostas pedagógico-pastorais? Em algum momento do nosso cotidiano educativo e pastoral corremos o risco de sermos uma espécie de proselitistas? Ou nossa proposta de evangelização pode estar educando com valores genéricos? Responder com sinceridade e profundidade a essas questões seria, juntamente com a atitude de humildade, um bom ponto de partida para avaliar se a educação católica está dando conta das exigências da contemporaneidade. Ou há alguma possibilidade de estarmos imersos em nosso preciosismo e autossuficiência? A ressignificação da prática educativa evangelizadora pode ser processual e interdisciplinar? Como fazer tudo isso sem descuidar da identidade confessional da educação evangelizadora? CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Educar hoje e amanhã: uma paixão que se renova. Instrumentum laboris. 2014. p. 14.
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o multiculturalismo e a multirreligiosidade dos alunos, que frequentam as escolas católicas, interpelam todos os responsáveis do serviço educativo. Quando a identidade das escolas enfraquece, emergem numerosos problemas ligados à incapacidade de interagir com esses novos fenómenos. A resposta não pode ser aquela de refugiar-se na indiferença, nem de adotar uma espécie de fundamentalismo cristão nem, por fim, aquela de declarar a escola católica como uma escola de valores “genéricos”.433
Um dos desafios mais importantes será suscitar nos professores uma grande abertura cultural e igualmente, ao mesmo tempo, uma grande disponibilidade para o testemunho. Isto para que saibam trabalhar conscientes e atentos ao contexto que caracteriza a escola e, sem tibieza nem integralismo, ensinar o que sabem e testemunhar o que acreditam. Para que saibam interpretar assim a sua profissão, é importante que sejam formados ao diálogo entre a fé e a cultura e ao diálogo inter-religioso.434
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Nesse sentido, o cotidiano das práticas educativas e evangelizadoras precisam ressignificar ou estabelecer os espaçotempos para que o educador/a possa fazer o “aprofundamento da sua fé, das suas convicções pessoais”435 diante dos desafios que podem ser encontrados nas unidades educacionais católicas. As universidades são um âmbito privilegiado para pensar e desenvolver este compromisso de evangelização de modo interdisciplinar e inclusivo. As escolas católicas, que sempre procuram conjugar a tarefa educacional com o anúncio explícito do Evangelho, constituem uma contribuição muito válida para a evangelização da cultura, mesmo em países e cidades onde uma situação adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade para se encontrar os caminhos adequados (EG 134).
Contudo, qual seria a resposta criativa da educação católica nesse contexto? Juntamente com os conteúdos determinados pelas disciplinas oficiais, a educação católica oportuniza a transversalidade dos valores cristãos em todos os processos do currículo das suas instituições. E, em boa parte das instituições católicas de educação, há uma organização que possui estrutura e capital humano para dinamizar e animar as ações evangelizadoras de suas escolas, contribuindo para a transversalidade dos valores cristãos mencionada. A Pastoral Escolar poderá vir a ser no cotidiano escolar não apenas um conjunto de atividades, responsável por um calendário CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 14. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 14.
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abarrotado de celebrações, encontros e outras ações, mas pela evangelização que atinja o coração dos alunos, professores, funcionários e famílias. Ou seja, uma concretização da proposta de Evangelho que inunde os corredores, as salas, sobretudo as pessoas, que partilham do convívio na instituição que porta o título de uma “Escola Confessional”.436
De acordo com o que já problematizei neste livro, a universalidade dos valores cristãos é um desafio numa sociedade multicultural, pois há necessidade de mudança de paradigma para o diálogo com as culturas e com as ciências por parte da Igreja. O Cristianismo produz seus saberes, mas, pela lógica da inculturação do Evangelho, tais saberes não podem ser absolutizantes, ou seja, precisam se inculturar.437
Pois “cada porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus, segundo a sua índole própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si” (EG 122). Ou seja, não há Evangelho sem a cultura de um povo, e todo povo tem direito de conhecer o Evangelho, num movimento ousado de diálogo intercultural. Mas que não haja um JUNQUEIRA, S. Pastoral escolar: conquista de uma identidade. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 10. MOTA, 2017, p. 17617.
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A Pastoral Escolar ou Universitária materializa a ação evangelizadora e promove a transversalização dos valores cristãos por meio de processos, projetos e ações na escola, na universidade católica e nas demais unidades educativas. O que as propostas de educação católica têm demonstrado é que essa transversalização pode acontecer sem estar integrada ao currículo e aos demais processos pedagógicos, como se a ação pastoral tivesse seu próprio currículo desarticulado. Talvez ter um currículo próprio não fosse o maior dos problemas, afinal a pastoral tem os próprios saberes acumulados e práticas constituídas. Mas, quando esses saberes estão à margem do currículo da escola/universidade, pode-se passar a ideia de que esses saberes são mais importantes que os demais, e cria-se assim um problema pedagógico-pastoral.
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movimento para instrumentalizar as culturas, com interesses meramente catequizantes e clericalizantes,438 disfarçados de insegurança e de um receio da perda da identidade. Diante desse contexto de inculturação do Evangelho e de diversidade cultural, cabem alguns questionamentos: de quais desafios em relação a esse cenário estamos falando? De quais saberes pastorais estamos falando? A pastoral deve ser catequizante ou mistagógica? Até que ponto a linguagem pastoral é acessível a todos os sujeitos das unidades educacionais católicas? Em que medida a verdade católica dialoga com a verdade do Outro, sobretudo o Outro não católico? Na troca de saberes com o Outro e nas intersubjetividades religiosas é preciso ter uma religiosidade hegemônica? Como promover o ecumenismo interno com os católicos que estão nas mesmas escolas e universidade católicas, mas que vivem e são Igreja de maneiras distintas por meio de vivências diferentes e/ou até híbridas? É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem sempre sabe aprender, com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda que sempre nos ultrapassa. Umas vezes, exprime-se de maneira mais direta, outras, através de um testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio Espírito Santo possa suscitar numa circunstância concreta (EG 128).
Podemos traduzir o que Papa Francisco quer nos dizer na seguinte perspectiva: dependendo do espaço e do tempo, as linguagens precisam ser ressignificadas, às vezes de forma mais direta, em outras, indireta. Essa lógica corresponde à necessidade de pensarmos a evangelização no campo da educação por meio de espaçotempos diferenciados. Em determinados lugares da educação católica, pode haver a necessidade de sermos diretos (explícitos) em relação à nossa linguagem evangelizadora, enquanto que, em outras, a linguagem precisa ser ressignificada, indireta (implícita). Afinal, não estamos mais no tempo medieval de conquista de espaço.439 Pois o processo é mais Que possui protagonismo somente do clero. De acordo com a problematização de BAUMAN, 2001.
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importante que os resultados, a realidade é mais importante que a ideia, a unidade deve prevalecer no conflito e o todo é superior à parte (EG).
Portanto, esse movimento da “pastoral no currículo” é a tentativa de ser a “Igreja em saída” e “com chave missionária” na educação evangelizadora. “Naquele ‘ide’ de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova ‘saída’ missionária” (EG 20). Essa “chave missionária” para materializar a “Igreja em saída” na educação católica perpassa o fortalecimento da ação pastoral no currículo de suas unidades educacionais, por meio da “conversão pastoral” inculturando o Evangelho em todos os processos pedagógicos. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de “saída” e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade (EG 27) “Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos simplesmente ficar cômodos sem provocar qualquer avanço e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja” (EG 129).
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A ação pastoral, como mediadora desses processos, é provocada pelo Papa Francisco com o seguinte apelo: “Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades” (EG 33). Logo, pensar a ação pastoral por meio de espaçotempos é o que apresentamos como ousadia,440 como criatividade, como tese para ressignificar linguagens da evangelização. “Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso aplica-se também à maneira de comunicar a mensagem” (EG 34). Pois, por mais que, ceticamente, não se acredite nisso, somente ampliaremos o alcance do Evangelho a lugares em que a Boa Nova não chegaria ou não chegou quando não limitarmos a ação pastoral ao espaçotempo celebrativo e catequético formal. Quando criamos outros espaçotempos pastorais, o Evangelho é capilarizado e, por consequência, a identidade confessional católica é fortalecida e ampliada.
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Há algum tempo se fala de uma “Escola ou Universidade em Pastoral”, por outro lado, também se fala de uma pastoral que precisa se pedagogizar. Essas conversões para uma concepção de pastoral no currículo é a consolidação de uma perspectiva há muito tempo almejada, que tem por objetivo tornar os processos evangelizadores ainda mais presentes em todas áreas, lugares, espaços e tempos do currículo das unidades educacionais católicas. Essa concepção que apresentamos considera que a ação pastoral tem seus próprios espaçotempos, ampliando seu lugar de atuação pastoral. Ou seja, sua atuação, que é comum no espaçotempo catequético, sacramental e celebrativo, é expandida para outros espaçotempos, ampliando as possibilidades evangelizadoras. Essa “saída”, além de exigir um diálogo com o pluralismo religioso presente no perfil das famílias e educandos (Evangelização Implícita), requer também uma especial atenção para a identidade confessional (Evangelização Explícita).441 Essa perspectiva de abertura só tem e terá sentido a partir de uma identidade educacional própria, por meio de um jeito católico próprio de educar; caso contrário, seria uma escola ou universidade como qualquer outra. Esse diferencial da educação católica está pautado no jeito cristão de educar, ou seja, tendo na Pedagogia de Jesus sua inspiração central. Ora, o cotidiano de Jesus era a rua, com o povo, em todo o lugar, em todo o espaço e em o tempo todo. Isso se dava por meio de vários aspectos, entre eles a escuta: “O que é que vocês andam conversando pelo caminho?” (Lucas 24, 17). Os enunciados de Jesus provocam a memória e novas significações nos discípulos que o acompanham pelo caminho. “Jesus explicava para os discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele” (Lucas 24, 27). Esses sujeitos fazem novas traduções sobre o que ocorreu, abrindo seus olhos para a realidade. Ao mesmo tempo, esses “sujeitos praticantes” criam e contribuem na narrativa proposta. “Eles, porém, insistiram com A evangelização implícita compreende a “presença testemunhal ou de empatia, relação dialógica ou de simpatia e identificação e reconhecimento dos valores da cultura como ‘sementes do Verbo’ [...]”. Já a evangelização explícita compreende “o anúncio amoroso e respeitoso da positividade cristã, mútua evangelização explícita ou reflexão crítica e apropriação ou assimilação sintética”. Todos esses passos pressupõem “o surgimento ou renovação de uma Igreja com rosto próprio, culturalmente nova” (BRIGHENTI, 2011, p. 178).
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Jesus, dizendo: ‘Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando’” (Lucas 24, 29). De fato, Jesus compartilha dessa narrativa num processo conjunto de educação. “Sentou-se à mesa com os dois, tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles” (Lucas 24, 30). O sentar-se junto vai criando um espaço e um tempo, eles vão praticando um cotidiano juntos, despertando para novas possibilidades de olhar seu contexto. “Nisso os olhos dos discípulos se abriram, e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles” (Lucas 24, 31).
Portanto, se estamos nesse tempo fluido em que os saberes estabelecidos precisam considerar os demais saberes dos sujeitos e das culturas, e que o espaço e o tempo precisam ser pensados como um continuum, cabe à educação católica localizar-se nesse tempo a fim de indicar saídas para as contingências educacionais contemporâneas, à luz da pedagogia evangélica de Jesus. Contudo, a educação católica e a ação pastoral realizada no cotidiano de suas unidades educacionais precisam, sem perder sua identidade e sentido, ressignificar sua prática. Essa ressignificação decorre em repensar os lugares da educação evangelizadora, não mais de forma estática e, por vezes, focadas somente no celebrativo. A pastoral tem os próprios saberes e seus os próprios espaçotempos.442 A descrição desses espaçotempos da ação pastoral já teve alguns ensaios realizados no artigo “Pastoral no currículo: recortes e possibilidades de espaçotempos evangelizadores” (MOTA, G. L. Pastoral no Currículo: recortes e possibilidades de espaçotempos evangelizadores. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CATÓLICA, 3., n. 1, 2015, Curitiba. Anais... Brasília: ANEC, 2015), apresentado no 3º Congresso Nacional de Educação Católica da ANEC; e no relato de experiência “Pastoral no Currículo: os espaçotempos pastorais na educação evangelizadora” (MOTA, G. L. Pastoral no Currículo: os espaçotempos pastorais na educação evangelizadora. In: CONGRESSO INTERNACIONAL MARISTA DE EDUCAÇÃO, 5., 2016, Recife. Anais... Brasília: UMBRASIL, 2016), apresentado no 5º Congresso Internacional Marista de Educação.
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Desencadeia-se aqui uma abertura para a emancipação desses sujeitos. “Então um disse ao outro: ‘Não estava o nosso coração ardendo quando ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?’ Na mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os Onze reunidos com os outros” (Lucas 24, 32-33). No entanto, ir para Jerusalém é a representação da emancipação dos sujeitos na pedagogia de Jesus, que provoca seus discípulos a pensar e mobilizar outros lugares e outros cotidianos para a partilha do pão, para a comunhão de saberes, para uma sociedade de espaços e tempos de caridade e de justiça.
Na sequência deste texto, apresentaremos o conceito dos espaçotempos pastorais, de forma atualizada, apontando pistas que podem revitalizar os segmentos de atuação da educação católica.
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Pastoral no currículo e seus espaçotempos: uma chave missionária? Pensar uma pastoral atuante no currículo é pensar uma pastoral integrada em todos os processos de uma unidade educacional católica. Somente uma pastoral imbricada no currículo pode dar vazão a uma Escola/Universidade em Pastoral. Mas, como já vimos, essa conversão para uma pastoral em “saída” e com “chave missionária” precisa da pedagogização da ação pastoral, de uma pastoral transverzalizada e que dialogue de igual para igual nos processos educativos. Contudo não se deve pensar que o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas fórmulas preestabelecidas ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo absolutamente invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito coletivo é o povo de Deus com os seus gestos e sinais inumeráveis (EG 129).
Ou seja, se estamos na escola/universidade, o anúncio precisa ser inculturado para essas realidades; caso contrário, a pastoral pode representar os “indesejáveis” no currículo. Muitas vezes, achamos que o problema está no professor, no estudante que não quer “aceitar Jesus”, que não compreende a pastoral. Mas será que o problema não estaria em nossas linguagens e “fórmulas preestabelecidas”? Para essa problematização, a fim de combater as possíveis estagnações que persistem no lugar da educação evangelizadora, propomos uma dinâmica adequada à inculturação do Evangelho nas unidades educacionais católicas.
Trata-se de uma dinâmica que apresentaremos de forma didática, ao mesmo tempo entendendo-a como processual e interconectada. O que apresentamos na sequência são os espaçotempos da ação pastoral: a) espaçotempo catequético-celebrativo; b) espaçotempo do testemunho e da (com)vivência das religiosidades; c) espaçotempo da transposição didático-pastoral; e c) espaçotempo do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. Todos esses espaçotempos contemplam a identidade confessional católica na perspectiva da eclesiologia do Papa Francisco que, por sua vez, retoma o Vaticano II. Todos esses espaçotempos estão transversalizados por essa eclesiologia, sendo que a diferença em cada um está no cuidado para que se tenha linguagem apropriada para cada lugar da evangelização.
Espaçotempo catequético-celebrativo
A educação católica tem sua identidade e pedagogia delimitada, mas também disputa espaço no currículo. “É urgente redefinir a identidade da escola católica para o século XXI”.444 Logo, esse é um espaçotempo que se permite cultivar o campo litúrgico, catequético e sacramental, como elementos explícitos da catolicidade presentes na proposta educativa, para todo aquele que queira aderir a ela, a fim de constituir ou aprofundar a identidade católica de estudantes, famílias, educadores e da comunidade em geral. CIPRIANI, R. Manual de sociologia da religião. São Paulo: Paulus, 2007. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 10.
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Nesse espaçotempo, a identidade católica dos sujeitos da comunidade educativa, por meio do compromisso institucional que assumem,443 é demarcada pelas oportunidades que a instituição dispõe para o aprofundamento na fé católica e no carisma das respectivas organizações e congregações católicas que administram os espaços educativos católicos. Trata-se do espaçotempo de autêntica catolicidade e que explicitamente expressa sua identidade confessional. Nesse espaçotempo não há necessidade de decodificar a mensagem do Evangelho, dogmas e doutrinas católicas em detrimento da diversidade religiosa, pois aqui os interlocutores participam por adesão e opção pessoal ao catolicismo.
Nesse espaçotempo, os seus interlocutores buscam aprofundar sua fé no catolicismo por meio de projetos, grupos de reflexão e do carisma institucionais, na celebração eucarística, na catequese, entre outras ações evangelizadoras explícitas. A catequese oferecida nas unidades educacionais católicas deve ser um lugar de mistagogia renovada,445 com a devida progressividade formativa no processo de educação na/da fé, seja para o iniciado no Evangelho, seja para aqueles que desejam aprofundar sua fé.
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A liturgia torna belo a ato de evangelizar com seus tempos, seus ritos e sua simbologia. Ao mesmo tempo, faz memória do Cristo, que é o sentido da caminhada e pelo qual se faz o seguimento. Também é espaço de celebrar as conquistas e avanços dessa caminhada evangelizadora. O Sacramento é o impulso e a certeza de estarmos conectados com a Igreja e com o Reino de Deus. É no sacramento que a palavra de Deus se concretiza e a vida eclesial se consolida: “todos podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam fechar por uma razão qualquer” (EG 47). Cabe à pastoral um forte sentido de acolhida e aconselhamento para que ninguém fique de fora da Igreja e de sua comunhão. Por outro lado, há uma riqueza de formas de ser e de viver a Igreja. Há diferentes cenários eclesiais,446 nos quais os interlocutores da evangelização expressam suas diferentes formas de seguimentos a Jesus. Enquanto reforçamos a opção pela Eclesiologia de Papa Francisco, que retoma o Vaticano II, é imprescindível acolher e problematizar os diferentes cenários e formas de ser Igrejas que encontramos nas unidades educacionais católicas. Afinal, é papel imprescindível situar e encaminhar os que procuram a fé católica, a fim de que possam encontrar acolhida e lugar na Igreja. “Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com “O encontro catequético é um anúncio da Palavra e está centrado nela, mas precisa sempre duma ambientação adequada e duma motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes, da sua inserção num amplo processo de crescimento e da integração de todas as dimensões da pessoa num caminho comunitário de escuta e resposta” (EG 166). 446 LIBÂNIO, J. B. Cenários da Igreja: num mundo plural e fragmentado. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2012 445
Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida” (EG 49).
Espaçotempo do testemunho e da (com) vivência das religiosidades
SIMMEL, G. Religião: ensaios. São Paulo: Olho d’Água, 2009. v. 1. TILLICH, P. Teologia da cultura. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. 449 GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. 450 CONGREGAÇÃO PARA EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 14. 451 LE BRAS apud CIPRIANI, 2007. 452 HERVIEU-LÉGER, D. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008. 447 448
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Esse não é um espaçotempo formal, mas de encontro com a produção fenomenológica das religiosidades, fruto dos encontros dos sujeitos, católicos ou não, que partilham seus valores por meio de atitudes, de gestos e da expressão dos valores universais, que também encontramos no Evangelho. Compreende-se aqui que essas religiosidades são formas que favorecem a sociabilidade entre os sujeitos e que esses fenômenos produzem cultura447 e conhecimento. A religiosidade é produto e produtora de cultura,448 e parte de um sistema cultural.449 Sendo assim, esse é um espaçotempo de testemunhos singulares e da (com)vivência dessas religiosidades que podemos encontrar no cotidiano das unidades educacionais católicas. “Em muitos países, a população das escolas católicas é caracterizada pela multiplicidade das culturas e das crenças, por isso a formação religiosa nas escolas deve partir da consciência do pluralismo existente e saber constantemente atualizar-se”.450 Essa consciência que precisa permear a formação religiosa da educação católica pressupõe o diagnóstico, o mapeamento e o reconhecimento do chão das religiosidades que se constituem nas unidades educacionais católicas. Por consequência, esse espaçotempo pode ser entendido como lugar da pesquisa, da identificação das práticas religiosas,451 favorecendo uma evangelização com mais efetividade, no sentido de ter ações bem direcionadas para o anúncio do Evangelho, ao mesmo tempo que se respeita o pluralismo religioso. Ou seja, é o espaçotempo onde os sujeitos reorganizam suas atividades religiosas no contato com a unidade educacional católica,452 lugar que deve favorecer o testemunho da caridade, valor presente em muitas culturas e religiões.
Diante desse pressuposto, o espaçotempo do testemunho e da (com)vivência das religiosidades é onde pode acontecer o encontro espontâneo das singularidades religiosas dos sujeitos da comunidade educativa. Nessa lógica, as religiosidades como culturas produzem e podem produzir conhecimentos, cabendo à pastoral o papel de identificar e de acolher as experiências religiosas pessoais, como objeto para o seu planejamento, a fim de ressignificar sua linguagem para acolher as diferentes religiosidades presentes na escola/ universidade.
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Espaçotempo da transposição didáticopastoral É importante deixar claro que a transposição do Evangelho e dos saberes pastorais acontecem em todos os quatro espaçotempos indicados neste texto. Mas, de modo específico, estamos falando aqui sobre o espaçotempo das transposições que acontecem no campo da didática e do planejamento dos educadores,453 de modo especial na relação interdisciplinar entre os saberes pastorais com os conhecimentos científicos. O espaçotempo da transposição didático-pastoral tem como base o conceito de transposição didática de Yves Chevallard,454 o qual considera não haver somente o conhecimento científico como referência para estabelecer o conhecimento escolar, mas um conjunto de outros saberes que podem fazer parte dessa composição. Esse espaçotempo tem esse conceito como ponto de partida, mas não se resume a ele, uma vez que, a partir da transposição, consideramos também as possibilidades de recontextualização dos discursos pedagógicos,455 da tradução das políticas de currículo456 e do conhecimento em rede457 como forma de transcender o contato inicial dos saberes pastorais Quando falamos de educadores/as, estamos nos referindo não somente aos professores, mas a todos os profissionais envolvidos direta ou indiretamente nos processos de ensino e aprendizagem das unidades educacionais. 454 Abordado por LOPES, A. C.; MACEDO, E. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011. p. 95-99. 455 BERNSTEIN, B. B. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle. Petrópolis: Vozes, 1996. 456 LOPES, A. C.; CUNHA, E. V. R. da; COSTA, H. H. C. Da recontextualização à tradução: investigando políticas de currículo. Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 3, p. 392-410, set./dez. 2013. 457 ALVES, N. Tecer conhecimento em rede. In: ALVES, N.; GARCIA, R. L. O sentido da escola. 5. ed. Petrópolis: DP et Alii, 2008. 453
com os demais saberes no currículo das unidades educacionais católicas. Ou seja, optamos pela noção de transposição para facilitar as narrativas iniciais entre a pastoral com as demais áreas de conhecimento. Um paradigma a ser quebrado com essa aproximação é em relação ao equívoco de entender que a pastoral não tem condições de contribuir para o processo de planejamento e didática, uma vez que o educador pode entender que a pastoral atue somente no espaçotempo catequético-celebrativo. Aqui se faz uma provocação para que os saberes pastorais possam se relacionar com os demais componentes curriculares e linguagens no/do currículo, contribuindo para o fomento da ética nos projetos pedagógicos e na produção de novos saberes fundamentados nos valores cristãos.
A proposta nesse espaçotempo é evidenciar as linguagens e as significações dos saberes acumulados pelas práticas pastorais da Igreja, na intenção de materializá-las no cotidiano pedagógico e didático. Isso pode se concretizar por meio de projetos, ações, acordos pedagógicos, planejamento e sequências didáticas, mas com cuidado para evitar uma imposição catequizante. Nessa perspectiva, o paradigma catequizante pode encontrar um contraponto nesse espaçotempo, pois os saberes de pastoral não teriam papel totalizante, mas de total diálogo e colaboração com os outros saberes. Embora, assim como nos outros espaçotempos, nesse também se catequize, há uma diferença de linguagem para que essa transposição não vire uma imposição, mas que se torne um processo de acesso aos valores cristãos de maneira interdisciplinar e com didáticas apropriadas.
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Quando algumas categorias da razão e das ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos de evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez assumido, não só é redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo (EG 132).
O anúncio às culturas implica também um anúncio às culturas profissionais, científicas e acadêmicas. É o encontro entre a fé, a razão e as ciências, que visa desenvolver um novo discurso sobre a credibilidade, uma apologética original que ajude a criar as predisposições para que o Evangelho seja escutado por todos (EG 132).
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Entendemos que esse alcance do Evangelho pode se dar quando se subsidia o educador na sua projetualidade, contribuindo em suas sequências didáticas e fortalecendo a ideia de conhecimentos em rede. A intenção é que os temas abordados pela pastoral possam encontrar espaço e tempo dentro do conjunto de conhecimentos escolares, acadêmicos e científicos, ensinados pelos profissionais da educação católica. Essa premissa não resolveria, mas pode responder a duas preocupações: i) quando o educador católico não compreende seu papel evangelizador no currículo de uma unidade educacional católica, uma vez que pode entender seu papel como de catequista. Mas, quando seu papel fica claro, há uma possibilidade de que esse profissional crie um senso de corresponsabilidade pastoral pela evangelização; ii) situar o educador que não é católico, mas que, com profissionalismo, credenciou-se para compor o quadro de uma unidade educacional católica. Além da dúvida sobre seu papel, há também a necessidade de situá-lo dentro da identidade confessional, afinal, nem sempre será possível encontrar somente bons profissionais católicos, e porque também não parece pertinente excluir profissionais não católicos dos processos seletivos. Para ajudar nessas preocupações, ressaltamos a formação continuada dos educadores como base fundamental para efetivarmos boas transposições. De fato, não se deseja que nas escolas católicas exista “uma dupla população” de professores; pelo contrário, é necessário que um corpo docente homogêneo, disponível para aceitar e partilhar uma definida identidade evangélica, e um coerente estilo de vida.458 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 14 e 15.
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Por isso, é necessário ter um grupo de educadores/as comprometidos/as com os valores evangélicos, para que, mesmo que alguns não sejam católicos, possam manifestar e favorecer a manifestação desses valores no cotidiano das unidades educacionais católicas, encontrando sentido na corresponsabilização pela educação evangelizadora. Portanto, esse é um espaçotempo com característica de evangelização implícita que pode permear a sala de aula, os projetos e as demais ações pedagógicas, e das demais áreas. É promover a pauta da ética dos valores cristãos no currículo para preencher sua parte vazia,459 por meio das linguagens e das significações dos saberes acumulados pelas práticas pastorais da Igreja, em diálogo com os demais saberes e culturas.
Espaçotempo do ecumenismo e do diálogo inter-religioso Como indica a Congregação para a Educação Católica, há um desafiador cenário de pluralismo religioso e, diante disso, uma atitude coerente, não só em respeito, mas também por complementariedade, é favorecer o diálogo entre as diferentes igrejas cristãs e demais religiões dos territórios nos quais as unidades educacionais católicas estão inseridas. Isso porque uma comunidade escolar, que se baseia em valores da fé católica, traduz na sua organização e no seu currículo a visão personalista própria da tradição humanista cristã, não em contraposição mas em diálogo com as outras culturas e crenças religiosas.460 JUNQUEIRA FILHO, G. A. Linguagens geradoras: um critério e uma proposta de seleção e articulação de conteúdos em educação infantil. Cadernos de Educação (UFPel), Pelotas/RS, v. 12, n. 21, p. 81-100, 2003. 460 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 8. 459
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Esse espaçotempo terá também a tarefa de desmistificar o estigma de que a pastoral somente “reza e toca violão”. A pastoral também faz isso, e entende que a oração e a música são essenciais na evangelização, mas não se resume nisso. Logo, encontramos aqui a oportunidade de dar credibilidade e reconhecimento profissional ao pastoralista, para que seja considerado como educador, pesquisador e produtor de conhecimento.
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Conforme a Redemptoris Missio,461 essa intencionalidade de diálogo é para identificar o que há de comum entre as igrejas e religiões, e assim aproximá-las para ações em conjunto. Por consequência, nesse espaçotempo não se quer propor uma mera tolerância, mas promover a complementariedade por meio de ações comuns em favor da dignidade humana e da solidariedade. Ou seja, o diálogo que se faz e que se pretende fazer nesse espaçotempo nada tem a ver com renunciar a convicções e da identidade confessional, muito pelo contrário, servirá para reforçá-la. Isso porque, uma vez que acontece, essa aproximação pode promover a revisão de suas práticas e da linguagem evangélica e eclesial, a fim de torná-la ainda mais acessível. Ou seja, podemos apresentar o Cristo de forma ainda mais universal, sem perder a profundidade do anúncio. O fato que os alunos de numerosas escolas católicas pertençam a uma pluralidade de culturas pede às nossas instituições para alargar o anúncio e fazê-lo sair do círculo dos cristãos, não só com as palavras, mas com a força da coerência de vida dos educadores. Professores, dirigentes, quadro administrativo, toda a comunidade profissional e educativa é chamada a oferecer, na humildade e na proximidade, uma proposta amável de fé.462
Diferentemente do espaçotempo do testemunho e da (com)vivência das religiosidades, que é mais fenomenológico, esse espaçotempo tem um caráter de diálogo direto, tanto interno quanto externo, com as instituições e lideranças religiosas do território, para que sejam favorecidos projetos e ações sociais em favor da solidariedade e da paz social das comunidades, seja nos grandes centros, na periferia e nas regiões rurais. Aqui é um espaçotempo de evangelização implícita, por meio de um diálogo aberto. “Este diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, um dever para os cristãos e também para outras comunidades religiosas” (EG 250). JOÃO PAULO II, Papa. Redemptoris Missio: carta encíclica sobre a validade permanente do mandato missionário. São Paulo: Paulinas, 1991 462 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 2014, p. 8. 461
Muitas religiões e igrejas, por conta de divergências doutrinais, não dialogam e não convivem fraternalmente, além de haver também o desafio de considerar os agnósticos, os ateus, entre outros sujeitos que não institucionalizam sua fé. Além do mais, há religiões que sofrem preconceito e são “demonizadas”, a exemplo das religiões de matriz africana e indígena, resquício da opressão colonizadora e escravagista. Portanto, fazer diálogo não é fazer somente por diplomacia, mas porque é um imperativo desse tempo, a saída mais concreta e possível em tempos de intolerância e divergências sociais.
O que se propõe é uma grande virada para uma cultura de paz que pode ser capitaneada pelo ecumenismo e pelo diálogo inter-religioso. Isso está, também, muito evidente nos discursos e nas atitudes do Papa Francisco – uma das vozes mais autênticas em favor da paz mundial atualmente –, cujo principal meio para sua prática é o diálogo entre religiões e igrejas no mundo. E a educação católica precisa seguir esse exemplo.
Considerações finais A educação, de modo especial a educação católica, não pode ficar de fora desse movimento histórico, ou seja, não pode deixar de problematizar a concepção contemporânea de espaçotempo em seu currículo, pois pagaria o preço de estar à margem das exigências dos debates contemporâneos, fechando-se em si mesma. SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014. p. 130-131.
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Apesar dos reveses e das falhas (seletividade arbitrária, tentação de afirmar uma única verdade revelada, ausência de consequências práticas), os diálogos ecumênicos e inter-religiosos são o testemunho para a interculturalidade no domínio da religião. Se estes diálogos fossem mais coerentes e ativamente praticados, poderiam funcionar simultaneamente como uma poderosa memória e um campo de experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo concepções religiosas e não religiosas da dignidade humana.463
Devemos dispensar a preocupação de ocupar espaço, e ocupar-se em provocar reflexões críticas e éticas, pois o processo é mais importante que os resultados e é mais importante do que possuir espaços de poder (EG).
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Com essa inspiração, entendemos que o cotidiano da educação católica não pode ser um espaçotempo ocupado pela intolerância e pela falta de diálogo, mas por um processo educativo de Inculturação do Evangelho que considere as diferenças culturais dos sujeitos que adentram suas unidades educacionais. Por meio dos valores evangélicos, a educação católica pode propor uma interessante dinâmica de evangelização que ajude a formar não somente cristãos, mas cidadãos participantes e atuantes na vida social e política. Sendo assim, podemos encontrar nessa intencionalidade um equilíbrio na prática de uma educação integral que contemple a dimensão espiritual e a vida cotidiana, proporcionando acesso à dimensão espiritual de forma experiencial, e não por imposição. Tudo isso para que se favoreça uma experiência pessoal e comunitária com a pessoa e com o projeto de Jesus Cristo a todo sujeito que adentre as unidades educacionais católicas, ressignificando a comunidade de aprendizagem e de vivência da fé. Ao apresentarmos a tese de que a “pastoral no currículo” é uma chave missionária, queremos provocar a revisão do papel da ação pastoral na educação católica. Isso porque, em tempos de modernidade líquida, a pastoral precisa ser mais do que um grupo de “rezadores e tocadores de violão”, precisa consolidar seu papel de formadores, pesquisadores e produtores de conhecimentos. Para favorecer esse dinamismo pastoral, indicamos que a pastoral se manifeste no currículo por meio de espaçotempos pastorais, para que não seja compreendida somente no espaçotempo celebrativo e catequético formal, mas que formule uma pastoral com espaçotempos mistagógicos contínuos, por meio de uma pedagogia pastoral que conceba em sua prática o trinômio: “Igreja-Evangelho-cultura”.464 BRIGHENTI, A. A pastoral dá o que pensar: a inteligência da prática transformadora da fé. 2. ed. São Paulo: Paulinas; Valência, ESP: Siquem, 2011. p. 177. 464
Os espaçotempos pastorais são como mediadores entre a identidade confessional e a diversidade cultural, são chaves missionárias que localizam os interlocutores da evangelização, independentemente de suas crenças e modos de ser Igreja. “Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). Logo, o sentido missionário que se aplica aos espaçotempos da pastoral no currículo possibilita uma evangelização mais simplificada, mais delimitada, sem ser fragmentada, pois, mesmo dividindo os espaçotempos pastorais em quatro, eles se convergem, por vezes se hibridizam. Trata-se de uma experiência que acreditamos ser mais atrativa, mais personalizada, no sentido de que todos possam ser acolhidos na dinâmica da inculturação do Evangelho.
Uma vez que o currículo de uma unidade educacional é a sua identidade,465 e a pastoral é parte desse currículo como uma parte de um todo da proposta educativa católica, a Evangelização não se resumirá somente a um lugar, mas será força significativa em todos os espaçotempos pastorais do currículo. Esses novos processos pastorais indicados nesse texto ampliam ainda mais o acesso ao Evangelho, pois ao assumirmos essa “Igreja em saída” por meio de uma pastoral que não seja fechada em si mesma, Jesus Cristo se torna e se tornará ainda mais conhecido e amado.
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POSFÁCIO
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O presente trabalho Educação e Evangelização na Contemporaneidade toca em uma questão fundamental, visceral e crucial na relação cultura e fé. Fundamental porque diz respeito ao fundamento de ambas como sendo duas ricas expressões do espírito humano, e, nessa condição, constituem-se como produtoras de sentido que fundam novos itinerários de formação humana, retroalimentando-se em um círculo hermenêutico que relaciona sensibilidade e práxis. Tal relação é tão visceral que, em determinados momentos da história, não é possível dissociá-las, de modo que se pode, com isso, afirmar que um dos papéis fundamentais da cultura é a produção do bem comum em torno da unidade humana, e o mesmo, portanto, se pode dizer da fé. Uma fé e cultura que não consolidem a sensibilidade, a consciência e a prática em prol do bem comum pouco ou nada têm de pertinente ao mundo contemporâneo. Também se pode dizer que é uma questão crucial porque chega à falência de um modelo e ao mesmo tempo já sentimos os sinais de novos processos em andamento: a falência de uma concepção de cultura dominante e, consequentemente, na medida em que essa relação era visceral, se tem igualmente a falência de uma fé moldada em imperativos de dominação cultural, em que tradição religiosa e projeto civilizatório se confundem. Se o bem comum é o ponto de convergência entre fé e cultura, as contradições culturais e da fé na promoção do bem se desvelam desafios de ressignificação dessa época que sentiu no fim do segundo milênio, e ainda sente, como reminiscência simbólica, os riscos e fascínios que o totalitarismo ainda promove. À medida que tradições religiosas se tornam oficializadas por espaços geopolíticos, a fé deixa de ser pensada em categorias de cultura alternativa para ser concebida em forma de cultura dominante. O Cristianismo primitivo, por exemplo, convivia pacificamente com a cultura helenista, de modo alternativo a ela, para assumir os problemas da polis como seus e dilatar os valores profundamente humanos, sendo concebido como paideia cristã. Conforme é oficializado e realocado para um Cristianismo imperial, passa a
engendrar um pathos de intolerância que, em momentos de tensão política, aciona essa permissão à violência eliminatória da alteridade, conhecida no Ocidente como “herege”, adotando a exclusão como solução para os problemas.
Um exemplo disso é o problema da migração face as contradições culturais do Neoliberalismo. A cultura neoliberal promove uma compreensão de que o cidadão tem direito a todos os bens de consumo e serviços oferecidos pela sociedade contemporânea, desde que tenha renda. Por outro lado, essa mesma sociedade sugere ao cidadão que ela não precisa de mão de obra porque tem tecnologia. Há uma inevitável dinâmica de produção piramidal dos estratos sociais, com um alargamento na base dos menos favorecidos. A opção de um modelo econômico alternativo se esfacela simbolicamente com a queda do muro, em 1989, e com isso também vem à tona as reais condições dessa alternativa, o que revelava também um totalitarismo de esquerda na versão stalinista, face aos totalitarismos de direita do Nazismo e Fascismo. As formas de organização estatal de uma social democracia nos países em desenvolvimento também ficaram fragilizadas com a pouca alfabetização política de suas respectivas sociedades, incorrendo em uma fraca participação da população no controle social do Estado, em seu papel redutor de desigualdades sociais
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A crise cultural contemporânea inclui a crise da fé, que teve o mesmo itinerário, igualmente dominador, e com isso ambas tinham pouco a dizer às novas subjetividades que surgiram no início do Terceiro Milênio como formas de resistência e alergia às expressões totalitárias. Dessas resistências surgem novas sensibilidades contemporâneas, das quais decorrem novas gramáticas, como a dignidade humana universal, respeito à alteridade, especialmente as minorias, igualdade de gênero, redução da desigualdade social entre Norte e Sul, responsabilidade social do mercado, que são formas de produção de sentido para o enfrentamento desses sintomas sociais. Entretanto, apesar dessas novas gramáticas, coexiste um imaginário simbólico anacrônico que vê nesses mesmos sintomas problemas decorrentes da não aceitação de uma visão pretensiosa de cultura dominante, retroalimentada no senso comum, a cada obstáculo histórico que se impõe para a superação dos sintomas sociais, produzidos pelas contradições culturais deste Novo Milênio.
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pela promoção de políticas públicas. Tal ineficácia na base promove vulnerabilidade cultural a personagens carismáticos que se apresentam em formas de messianismos políticos. Com isso, a velha prática de respostas antigas para problemas novos se repete, e renascem antigos romantismos com pretensões puritanas e partidárias de um imaginário remanescente de épocas de Guerra Fria. Nessa bipolaridade também se instalou os sistemas de crença, como se a adesão a uma tradição implicasse igualmente uma opção político-partidária, pequenas variações entre os extremos, nas quais a pergunta pelo bem comum é substituída por quem detém maior legitimidade para governar uma nação. Questão em que os messianismos políticos acabam sendo reforçados por sistemas de crença pouco críticos quanto às heranças culturais de traços dominadores que são tributárias. Desse modo, a população migrante é considerada a causa do problema de ocupação de postos de trabalho ou recursos oferecidos para a redução da vulnerabilidade social, quando antes é fragilizada pelo próprio processo de concorrência desleal, quando não agravada pela exploração bélica de territórios geopolíticos estratégicos, e ainda mais ao envolver tais mecanismos em sistemas de crenças que rechaçam formas de racionalização. Em um mundo plural, em que a convivência cada vez mais próxima com as alteridades revelam por experiências concretas a comum dignidade humana, bem como nesse mesmo convívio se desvelam as contradições de todas as culturas, um desafio de promoção de interculturalidade se impõe às instituições produtoras de cultura, incluindo as instituições produtoras de cultura religiosa, como forma de superar pretensões dominadoras para se estabelecer uma cultura de paz, pelo reconhecimento do que há de melhor em cada cultura e comunidade de fé no modo de se concretizar no tempo e no espaço global e local, constitutivos da mesma comunidade geopolítica em torno da busca pelo bem comum. Evangelização e Educação como tarefas proativas da fé e da cultura se impõem como ações que podem contemplar essa consolidação da dignidade humana e a construção de um imaginário de reconciliação para o bem comum, como pauta do reconhecimento da interculturalidade para a interação entre formas de conhecimento, arte, sistemas de crença, princípios e valores
éticos, costumes morais, hábitos e competências que possam convergir para um mesmo horizonte de sentido. Face a tantos paradigmas culturais e de sistemas de crença, o bem comum e a interculturalidade como forma cultural de consolidação do bem comum se apresenta como hipodigma, ou seja, uma dimensão que permeia distintos paradigmas privilegiando o substrato comum entre as diferenças. Dito de outra forma, repensar o universal não como imperativo normativo de uma cultura dominante, mas como modo de atender à dignidade comum entre a complexidade de culturas diversas. Interculturalidade é o modo operacional de promoção de sensibilidades e práticas em prol da cultura da paz.
Entre as práticas a serem ressignificadas se impõem: o anúncio do Evangelho, como reconhecimento dos sinais do Reino de Deus presente em todas as culturas, e a interculturalidade, como consolidação de uma fraternidade universal realizada em uma particularidade comunitária; a mudança da postura institucional de um “poder pastoral” para um cuidado comunitário, que, quanto mais gratuito o senso de comunidade, tanto mais eloquente a dinamicidade evangélica; a ressignificação da cultura kerigmática de mero exercício retórico-apologético, para o despertar de uma cultura mistagógica, ou ainda, dito de outro modo, o abandono de um anúncio “pornográfico” da fé, enquanto tal adjetivo indica uma incapacidade de revelar o erotismo sedutor que habita na interioridade das relações, para um itinerário mistagógico de discernimento dos desejos mais profundos que habitam em cada pessoa,
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O resgate da fé como cultura alternativa que atende a esses desafios se consolida na compreensão de evangelização assumida pelo Concílio Vaticano II como um imperativo evangélico: “Buscai primeiro o Reino de Deus” (Mt 6,33). A categoria do Reino de Deus é a forma teológica do reconhecimento dos “sinais dos tempos” e sua gramática da dignidade humana, expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A evangelização a partir da centralidade do Reino de Deus é distinta da forma de cristianização do mundo assumida pelo projeto sociológico de Cristandade, o que reconfigura seu imaginário e sua compreensão de vários aspectos, a começar pelo abandono de uma pretensão dominadora do mundo, promotora de conflitos entre projetos hegemônicos.
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coincidentes da presença do Mistério divino constitutivos de um sentido e um projeto de vida, no qual se instala a produção de uma subjetividade agápica; a primazia da caritas como organon da mensagem cristã quanto às pretensões de verdade que em nome dela é condescendente com a violência. E em nome desse novo e arquetípico organon e do consequente discernimento da caritas é que se deve revisitar culturalmente o debate entre a bipolaridade política. Do ponto de vista das agendas políticas, poucas são as diferenças entre direita e esquerda, especialmente no cenário do hemisfério sul, e particularmente europeu, excluída as posturas mais radicais de ambos os lados. Algo na América Latina também pode ser experimentado, especialmente quando um projeto popular passa a se tornar projeto de permanência no poder. Contudo, a distinção a ser feita se dá por um recuo histórico-cultural no século XIX, no qual aquilo que se chamou de “direita” estava relacionado a um grupo social que via na desigualdade social algo “natural”, e o que se chamou de “esquerda” dizia respeito à compreensão de outro grupo que via tal desigualdade como um “produto social” a ser combatido. Este é um valor inegociável entre evangelização e educação, para além de qualquer divisão, quer superficial ou romântica de direita ou esquerda, que se impõe para a interculturalidade, a saber que o diálogo entre diferentes saberes, grupos e sensibilidades ao redor da questão do Reino de Deus não admite como natural a condição de desigualdade social, independentemente da orientação político e/ou partidária de alguém. Tal consideração visa evitar um “mal uso da abstração” ou ainda de hipostasear “macroentidades” que se tornam objeto de abstrações, como a Economia, a Filosofia, a Religião, a Ciência, a Esquerda, a Direita, e dessa maneira não são considerados os agentes efetivos, que são indivíduos situados no tempo e no espaço, vulneráveis às paixões, ao poder, à ganância, assim como por detrás dessas macroentidades há também pessoas virtuosas, boas e honestas, de modo que a reflexão a partir dessas abstrações não permite identificar os verdadeiros sujeitos, passando assim a uma lógica de rótulos que impede o diálogo efetivo e a uma discussão pertinente, como meta da interculturalidade. Longe de esgotar o assunto, o presente trabalho é apenas um ponto de partida, no qual os autores oferecem ferramentas teóricas para aprofundar o
debate, mapeando temas, problemas, delineando desafios e apontando pistas. O livro, nesse aspecto, não conclui, mas dilata a complexidade do assunto, convidando o leitor a novos passos em direção a esse horizonte que não se esgota, mas que vai doando beleza à medida que os olhos conseguem enxergar outro cenário, que somente a caminhada pode propiciar. Alex Villas Boas
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Sobre os autores Agenor Brighenti
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Padre da Diocese de Tubarão, SC. Doutor em Ciências Teológicas e Religiosas pela Universidade de Lovaina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), professor visitante na Universidade Pontifícia do México e no Instituto Teológico-Pastoral do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Presidente do Instituto Nacional de Pastoral da CNBB e membro da Equipe de Reflexão Teológica do CELAM.
Alex Villas Boas (alex.boas@pucpr.br) Pós-doutorado em Espiritualidade pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma; Doutor em Teologia pela PUC-Rio. Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR). Livre docente em Ética Teológica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Ana Carolina Dias Graduada em Teatro pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Especialista em Gestão Pastoral pela PUCPR.
Denilson Aparecido Rossi Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Especialista em Filosofia Clínica pelo ITECNE; Especialista em Formação Humana – Counseling pelo Instituto de Aconselhamento e Terapia do Sentido de Ser (IATES); Especialista em Docência no Ensino Superior pela Faculdade Padre João Bagozzi; Licenciado em Filosofia pela Faculdade
Padre João Bagozzi; Bacharel em Teologia pela PUCPR. Professor na PUCPR e na Faculdade Padre João Bagozzi. Assistente de Pastoral no Grupo Marista.
Diogo Luiz Santana Galline Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Especialista em Gestão de Processos Pastorais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Especialista em Adolescências e Juventudes pela UCB; Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário de Maringá (UniCesumar); Graduado em Farmácia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Assessor de Pastoral no Setor de Pastoral do Grupo Marista.
Diogo Marangon Pessotto
Edson Mendes (emendes@solmarista.org.br) Licenciatura Plena em Educação Física Escolar; pós-graduação lato sensu em Educação Física Escolar, em Pedagogia Gestora e em Doutrina Social da Igreja.
Glaucio Luiz Mota (glauciomota@hotmail.com) Mestre e Doutorando em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Coordenador Educacional na Diretoria Executiva de Ação Social da Rede Marista de Solidariedade. Especialista em Doutrina
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Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPT); Especialista em Gestão de Processos Pastorais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e Mestre em Teologia pela PUCPR, com pesquisa sobre o Espírito da evangelização na Evangelii Nuntiandi de Paulo VI e na Evangelii Gaudium de Francisco. Atua como Coordenador de Pastoral do Colégio Marista Paranaense, em Curitiba.
Social da Igreja na Contemporaneidade pela PUCMinas. Especialista em Juventude, Religião e Cidadania pela FACASC.
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda (klacerda@colegiosmaristas.com.br) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Especialista em Gestão Pastoral pela PUCPR e em Gestão de Educação Básica pela PUCPR. Gestora do segmento da Educação Infantil da Rede Marista de Colégios do Grupo Marista.
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Keles Gonçalves de Lima (keles.lima@solmarista.org.br) Licenciatura Plena em Pedagogia; mestrando do Programa de Pós-Graduação em Métodos e Gestão em Avaliação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenador de pastoral do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne, Florianópolis, SC.
Kleberson Massaro Rodrigues Mestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Especialista em Gestão em Psicologia Organizacional pela Faculdade de Administração e Economia (FAE); Especialista em Metodologia do Ensino Religioso pela Faculdade Padre João Bagozzi; Graduado em Pedagogia pela PUCPR. Diretor Regional na Diretoria de Ação Social da Rede Marista de Solidariedade
Lucas Fabricio De Francesco Souza Graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção (UNIFAI), pós-graduando no curso de Religião e Cultura pelo UNIFAI e no curso de Carisma e Princípios Educativos Maristas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Compõe a Rede Ecumênica de Juventude (REJU), trabalhando na garantia dos direitos das juventudes, principalmente pela garantia
do Estado Laico e a superação de intolerâncias religiosas, raciais, sexuais e de gênero. Atualmente atua como diretor do Centro Social Marista Itapejara, na cidade de Itapejara D’Oeste, PR.
Marcial Maçaneiro
Osmar Aloizio Resende Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com pesquisa sobre o diálogo entre diferentes credos no contexto do projeto educativo das escolas do Grupo Marista; Especialista em Gestão de Pessoas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Gestão de Processos Pastorais pela PUCPR; Licenciado em Filosofia pela Universidade Assunção. Atua como Coordenador de Pastoral dos Colégios do Grupo Marista.
Ir. Rogério Renato Mateucci Doutor e Mestre em Education Leadership Administration and Policies pela Fordham University, Estados Unidos; Graduado em Pedagogia. Trabalhou na direção do Colégio Marista de Londrina. Hoje atua na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) como Diretor da Área de Identidade e também é vice-presidente do Grupo Marista.
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Doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, Itália). Docente do Programa de Pós-graduação (mestrado e doutorado) em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Docente da Universidade de Medellín, no programa de especializações oferecido pelo Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), em Bogotá. Consultor teológico do Instituto Ciência & Fé da PUCPR. Leciona e desenvolve temas de Teologia e Ecologia, em parceria com pesquisadores da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE, Belo Horizonte) e da Universidade Pontifícia Xaveriana (Bogotá, Colômbia). Editor da revista Pistis & Praxis (PPGT, PUCPR). Autor e conferencista. Religioso da Congregação dos Padres do Coração de Jesus (dehonianos).
Romi Márcia Bencke
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Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Bacharel em Teologia pela Faculdades EST, São Leopoldo, RS. Secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil e integrante da Coordenação do Fórum Ecumênico ACT Brasil.