Ficha Catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP S237
Santos, José Henrique de Freitas; Riso, Ricardo Afro-Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira / José Henrique de Freitas Santos, Ricardo Riso. – Rio de Janeiro: Kitabu, 2013.
400p.; 14 x 21 cm
ISBN 978-85-67445-00-7 1. Crítica Literária 2. Teoria Literária 3. Literaturas Africanas I. Título II. José Henrique de Freitas Santos II. Ricardo Riso CDD 890 CDU 82.091
José Henrique de Freitas Santos Ricardo Riso
AFRO-RIZOMAS
na diáspora negra as literaturas africanas na encruzilhada brasileira
A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DOS AUTORES.
PROJETO EDITORIAL José Henrique de Freitas Santos e Ricardo Riso EDITORAÇÃO Vanessa Bomfim PROJETO GRÁFICO CAPA Pintura de Ricardo Riso, “Afro-Risomas: They´ll see how beautiful I am”. Acrílico sobre papel. 114 x 226 cm REVISÃO DE TEXTO José Henrique de Freitas Santos, George Mário do Espírito Santo Amorim, Maiana Lima Teixeira e Ricardo Riso
KITABU LIVRARIA NEGRA Ltda. www.kitabu.com.br kitabulivraria.wordpress.com kitabulivraria@gmail.com Twitter e Facebook: Kitabu Livraria DIREÇÃO EDITORIAL Fernanda Felisberto Copyright © Kitabu Editora, 2013 Coletivo Literário OGUM’S TOQUES NEGROS ogumstoques.com ogumstoques@gmail.com Facebook: Ogum’s Toques Impresso no Brasil
Agradecimentos
Este livro contou com o precioso apoio de Fernanda Felisberto e Heloísa Marconde da Kitabu Editora; do Coletivo Literário Ogum’s Toques Negros: Guellwaar Adún, Mel Adún, José Carlos Limeira, Lívia Natália, Eduardo Oliveira, Odú Comunicações, dentre outros; de Marciano Ventura, da Ciclo Contínuo, parceiro fundamental para a logística editorial; dos pesquisadores colaboradores participantes ou não que visualizaram e compartilharam as potências múltiplas dos afro-rizomas para o campo das Literaturas Africanas (de Língua Portuguesa) aplicadas ao/no Brasil. Aos familiares e amigos que acompanharam nossas angústias e anseios, entenderam nossas ausências e prestaram o incentivo necessário para darmos continuidade à tessitura desta obra. Um agradecimento especialíssimo para a Drª Moema Parente Augel que com sua experiência e observações quase que diárias tanto contribuíram para o desenvolvimento da obra. Sua empolgação com o projeto deste livro e tantas palavras de incentivo serviram como fios condutores para tecermos essa trama textual com coragem e certeza que estávamos fecundando outros caminhos. Este livro não seria o mesmo sem a sua presença intensa durante a sua confecção. Nossos sinceros agradecimentos.
“Eu me organizando posso desorganizar Eu desorganizando posso me organizar” (Chico Science & Nação Zumbi)
“I, too, sing America. I am the darker brother. They send me to eat in the kitchen When company comes, But I laugh, And eat well, And grow strong. Tomorrow, I´ll sit at the table When company comes. Nobody´ll dare Say to me, “Eat in the kitchen”, Then. Besides, They´ll see how beautiful I am And be ashamed, I, too, am America” (Langston Hughes)
‘Nous sommes de ceux qui refusent d’oublier. Nous sommes de ceux que refusent l’amnésie même comme méthode.’ (Aimé Césaire)
“Emancipate yourselves from mental slavery None but ourselves can free our minds” (Bob Marley)
Sumário APRESENTAÇÃO Henrique Freitas e Ricardo Riso ............................................................ 11 PREFÁCIO Moema Parente Augel ........................................................................... 17 AS LITERATURAS AFRICANAS NA ENCRUZILHADA: TEORIA, CRÍTICA E OUTRAS TENSÕES
Dez-a-fios epistemológicos para as Literaturas Africanas no Brasil
Henrique Freitas .................................................................................... 41
Contribuições de um romance angolano para a educação etnicorracial e descolonizadora do branco brasileiro Jesiel Oliveira Filho ............................................................................... 59
Para além de Ibérias e Américas: a emergência das Literaturas Africanas em Língua Espanhola Amarino Queiroz .................................................................................. 71
A lírica menor: por uma Teoria da Literatura das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Lívia Natália .......................................................................................... 89
CORPO, ESCRITA E MERCADO – DILEMAS DA AUTORIA E DA REPRESENTAÇÃO FEMININAS
Ler as mulheres das ilhas: línguas, identidades e poderes nas margens do mar da poesia – da aventura à tragédia Eurídice Furtado Monteiro ................................................................... 103
Percepções sobre a intimidade e o corpo feminino na literatura poética da Guiné-Bissau Miguel de Barros.................................................................................. 131
Múltiplas paragens do corpo intelectual: poéticas da diferença em Mel Adún, Ana Paula Tavares e Esmeralda Ribeiro Lívia Natália ........................................................................................ 143
Escritoras africanas negras e seu acolhimento pelo mercado editorial brasileiro: rastros afro-anglófonos, francófonos e lusófonos Fernanda Felisberto ............................................................................. 163
AFRO-RIZOMAS: AS MULTIPLICIDADES DESIERARQUIZANTES
A Coleção Nana & Nilo: uma imagem do pensamento afroperspectivista para a literatura infantil Renato Noguera .................................................................................. 177
Afro-rasuras: Que Negro é esse nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa? Ricardo Riso ........................................................................................ 195
A “lei da solidariedade” ou o gesto para a profanação do saber: um contributo para pensar a condição étnico-racial brasileira Lucilio Manjate ................................................................................... 221 PARA ALÉM DO CONCEITO DE LUSOFONIA
Topologias de pertenças na obra de Francisco José Tenreiro: entre a ideologia negritudinista e a mátria insular Inocência Mata ................................................................................... 239
Amílcar Cabral na poética crioula de Eneida Nelly
Dejair Dionisio . .................................................................................. 263
Percepções e contestações: leituras a partir das narrativas do narcotráfico na música rap da Guiné-Bissau Miguel de Barros e Patrícia Godinho Gomes ....................................... 275
Morro da Maianga: da poesia e da tradução cultural
Abreu Paxe . ........................................................................................ 283 REENCENAÇÕES LITERÁRIAS E ESPELHOS AFRICANOS
A Literatura de São Tomé e Príncipe no Brasil: Francisco José Tenreiro, presente Amarino Queiroz................................................................................. 303
Retratos de Luanda em cenários literários
Maria Nazareth Soares Fonseca . ......................................................... 319
Renascimento literário e a produção infanto-juvenil moçambicana: palavras que pulsam Maria Anória de Jesus Oliveira ............................................................ 337
Orfandade identitária e alegada (im) pertinência de uma poesia de negritude crioula: discursos da crioulitude e síndromas de orfandade identitária José Luis Hopffer Almada..................................................................... 355 Organizadores . ................................................................................... 393 Colaboradores ...................................................................................... 395
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Apresentação “Do rio que tudo arrasta, se diz que é violento, mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem”
Bertold Brecht
A Lei 10.639/2003 se constituiu como um marco fundamental para os estudos referentes às histórias e culturas afro-brasileira e africanas no Brasil, por instituí-los como compulsórios na educação formal no país. Mesmo ante a obviedade de que jamais alcançaremos efetivamente uma educação brasileira se o conhecimento que produzimos não for atravessado pelos saberes africanos, afro-brasileiros e indígenas (a Lei 11.645/2008 amplia esse debate incluindo como obrigatório também o ensino de história e cultura indígenas nas escolas), foi necessária a força de lei para que o Brasil começasse a “integrar” em suas malhas oficiais, pelo menos a partir de políticas governamentais e não governamentais mais amplas, a diferença que o constitui e pode torná-lo, para além das disposições geopolíticas do Estado moderno, na diáspora negra, na diversidade que o forma, aquilo que é. Nestes dez anos da 10.639/2003, tivemos conquistas significativas inegáveis, dentre as quais destacamos quatro que interessam mais diretamente a este livro: a implementação e a consolidação das ações afirmativas nas instituições públicas de ensino superior em todo o Brasil, abrindo margem agora para a importante pauta da pós-permanência qualificada (corresponde ao estágio em que a pós-graduação é uma das metas de formação para os jovens sob os auspícios dessa lei); o surgimento de muitos cursos de extensão, graduação e pós-graduação stricto e lato sensu, disseminando esses saberes africanos e negro-brasileiros em todo território nacional; o crescimento exponencial de publicações que tratam dos temas abordados pela referida lei, instituindo um segmento relevante do mercado editorial e, por fim, o fortalecimento, embora não ainda com a intensidade de que gostaríamos, do campo dos estudos das literaturas africanas e afro-brasileira. Atuando em universidades, na condição de pesquisadores, grupos de pesquisa, departamentos que
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trabalham com as literaturas africanas e afro-brasileira, núcleos e programas de pós-graduação que discutem a temática, qual foi a nossa resposta ao chamado da lei, ao fazermos o balanço, depois destes dez anos, para além de dissertações, teses e indicações de livros para os vestibulares? Que exercício autocrítico fizemos para pensar este indispensável campo do conhecimento? Na área da História, para contemplar a África em sua complexidade, intelectuais como Joseph Ki-Zerbo entendiam que era fundamental um abalo epistemológico, já que os saberes e o próprio tempo africano eram obliterados desde o método, desde as fontes, desde as ferramentas utilizadas para se forjar a História. Daí, tem-se investido na validação das fontes orais e se está produzindo uma inteligibilidade estratégica sobre elas, redimensionando a África na “Crônica Universal” realizada pela Europa. Nesse sentido, em que medida ao menos desconfiamos que o aparato teórico, crítico e metodológico que nos foi legado precisaria também sofrer esse abalo no campo dos estudos literários? O livro Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira, entre os mil platôs de Deleuze/Guattari e o saber não dialético (Paradigma Exu), de que nos fala em seus livros o filósofo Eduardo Oliveira, expresso no signo da encruzilhada, nasce exatamente das inquietações ante os questionamentos aqui postos. Os afro-rizomas subvertem a influência colonial portuguesa e rejeitam também a lusofonia como operador mito-monológico para a constituição das literaturas do Brasil e dos países africanos de língua portuguesa, reconfigurando as relações em jogo através de outras redes como os diálogos Sul-Sul. O termo afro que rasura a acepção de rizoma, acompanha a ressignificação da diáspora, no sentido de Hall (2011) e Gilroy (2012), procurando construir espaços simbólicos não necessariamente mapeados, mas que se colocam criticamente contra uma colonialidade do poder e do saber que reduz o texto literário a todos os perigosos centramentos que anulam a diversidade. Com isso, intentamos pensar caminhos possíveis para contemplar as pluralidades que desterritorializam as certezas no campo das literaturas africanas ante uma estrutura que é patriarcal, grafocêntrica, capitalista e branca,
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responsável também pelo racismo epistêmico1 atuante em nosso país. Afro-rizomas inclui uma multiplicidade de artigos, envolvendo trocas coletivas descontínuas, descentralizadas, dispersas, incorporando múltiplas áreas para compreender a expansividade do texto literário, enquanto linguagem do/no corpo, no graffiti, no rap, na oralitura, em formas às vezes não usuais... Entretanto, podemos demarcar alguns momentos que sedimentam a proposta que aqui se apresenta em forma de livro. O título deste livro que ora apresentamos – Afrorizomas – não é uma novidade, pois já se configuravam como afro-rizomas a dissertação de mestrado de José Henrique de Freitas Santos sobre a obra de Chico Science, publicada no formato livro em 2006, em que foi trabalhada a noção de sampler; o surgimento do blog de Ricardo Riso, no ano de 2007, já enunciava uma condição afro-rizomática com a proposta de divulgar, através de resenhas e artigos, outros nomes das literaturas africanas de língua portuguesa. Sintomática a atuação do blog Kukalesa, de Jesiel Oliveira Filho, referência obrigatória para pesquisadores dessas literaturas. A materialização do grupo de trabalho literalmente intitulado de Afro-Rizomas, coordenado por Maria Nazaré Lima, Jesiel Oliveira Filho e José Henrique de Freitas Santos, durante o Congresso de 2010 da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), foi um momento-chave para o fortalecimento e a aproximação efetiva e afetiva também de pesquisadores com essa perspectiva da diferença. O ano de 2011 mostrou-se especial para a consolidação das redes de pesquisadores dispersos pelo país, uma vez que Lívia Natália, Amarino Queiroz, Mel Adún, Guellwaar Adún, José Henrique de Freitas Santos, Jesiel Oliveira Filho, Ricardo Riso e pesquisadores africanos de diversos países encontraram-se no II Xirê das Letras, Congresso Internacional organizado pelo Departamento de Letras da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), na cidade de Xique-Xique, interior baiano. Naquele mesmo ano, Ricardo Riso publica duas antologias de poesia, uma cabo-verdiana e outra moçambicana. No ano seguinte, escritores e pesquisadores negros de Brasil e Moçambique, inclusive Ricardo Riso, Lucílio Manjate e Fernanda Felisberto, encontraram-se no Wanasema. 2012 marcou o início das atividades da
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Tais ações configuram-se como racismo epistêmico a partir da perspectiva de Renato Noguera, ao consider o processo de colonização do continente africano e o total descrédito dos europeus quanto aos saberes tradicionais das diferentes etnias africanas, desconsiderando suas filosofias e costumes, estereotipando-os e menosprezando-os. (NOGUERA, 2011).
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página Ogum’s Toques na rede social Facebook, e do blog do mesmo nome assinado por Guellwaar Adún, com a intenção de divulgar literatura negro-brasileira e demais literaturas negras da diáspora e da África, bem como também com o intuito de formação de público leitor para essas literaturas. Parte das pessoas mencionadas acima constitui desde então o coletivo literário Ogum’s Toques. A partir daí, atividades externas começaram a acontecer, como o evento Ogum’s Toques do/a Escritor/a, também com atuação política em defesa dos representantes da literatura negro-brasileira através de Nota de Repúdio denunciando a ausência de escritores negros, com exceção única de Paulo Lins, na seleção de autores para a Feira do Livro de Frankfurt, edição 2013. Esses foram alguns dos antecedentes que contribuíram para fortalecer o conceito de afro-rizomas entre os organizadores e articulistas deste livro que, para além da trajetória exposta, acumulada com participações em congressos e seminários, prefácios e posfácios de livros de autores africanos, buscou agrupar, oferecer o reconhecimento e dar visibilidade para os pesquisadores espalhados pelo Brasil e oriundos dos cinco países africanos de língua portuguesa que, através de uma rede intensa de diálogos, têm-se ocupado em pensar os diversos entraves e caminhos para a expansão das literaturas africanas no Brasil, contemplando possibilidades ainda pouco exploradas. Ressaltamos que a atuação coletiva desses pesquisadores é desierarquizada em intertrocas realizadas com frequência para discutir diversos temas, assim como autorreferente, uma vez que as citações mútuas para construção dos artigos são uma prática comum neste grupo: vamos ajudando um ao outro a pensar nas questões que consideramos importantes para o campo. Desta maneira, nessa troca e compartilhamento, amplia-se a visão restrita resultante de uma orientação eurocêntrica de enquadramento das literaturas africanas e da literatura negro-brasileira, a partir de outros referenciais epistemológicos e de produtores literários que fazem da experiência com a linguagem a ininterrupta desestabilização das certezas impostas por uma ideologia hegemônica – ideologia que se quer homogênea e formatada em grandes grupos representantes de enormes coletividades, asfixiando as diferenças e as identidades plurais dos diversos grupos étnico-raciais, em especial, dos negros.
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A opção editorial neste livro em não uniformizar a variedade linguística diatópica aqui expressa dos autores (são falantes da língua portuguesa em pelo menos seis países distintos, de regiões ainda mais diversas), tem a ver com o convite aos leitores ao exercício crítico da epistemologia afro-rizomática do linguajamento (o tema será explorado devidamente no primeiro artigo da obra). Assumimos aqui a paixão e os riscos desta opção que consideramos fundamental para que a diferença, sobretudo essa tão visível, tão orgânica que é a linguística, nos abale, nos (de)(trans) forme, nos desafie. Por fim, com perspectivas diversas, mas com um fio condutor bastante nítido, a questão racial, este Afro-Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira propõe a reunião de dezenove pesquisadores de catorze instituições comprometidos as linhas investigativas que tensionam o cânone, desvelam tramas que dificultam a circulação de outras bases epistemológicas, contestam leituras redutoras que não potencializam discussões para contemplar o conteúdo da lei 10.639/2003 e suas diretrizes, apresentam novas linhas teóricas, apontam ausências no mercado editorial, reivindicam outras literaturas africanas e investem no encruzilhamento da literatura negro-brasileira com as literaturas africanas, dentre outras questões. Afro-Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira é a primeira ação editorial, e não é mera coincidência que o livro saia sob a chancela da Kitabu Editora, que contempla exatamente este grupo de pesquisadores negros, convidados pelo reconhecido mérito de suas investigações e pela disposição política em atuar de forma descentralizada nesta rede que vamos tecendo por entre oceanos, dispostos à autocrítica e a desafiar-nos e desfiar-nos para pensar no devir das literaturas africanas no Brasil. Nossos votos de uma boa leitura. Com a palavra, nossos autores.
Os organizadores
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Prefácio O livro Afro-rizomas na diáspora negra é o resultado do trabalho conjunto de uma plêiade de autores, originários de diferentes recantos do vasto conjunto constituído pelos países que fizeram parte do império colonial português. São dezenove artigos enfeixados dentro de um amplo leque temático pertencendo, como os próprios articulistas, igualmente a diversas áreas do conhecimento e tendo como denominador comum a consciência das múltiplas raizes de que é composto o legado histórico espalhado pelo mundo, instrumentado pela língua portuguesa. A idealização e organização do projeto editorial são de responsabilidade dos professores e críticos literários Ricardo Riso (UCP/IPETEC) e Henrique Freitas (UFBA), antecedidas por um concerto de esforços e de iniciativas articulados por um punhado de jovens, imbuídos de energia emancipatória e de idealismo: o grupo Ogum’s Toques Negros, liderado por Guellwaar Adún. A edição está a cargo da Kitabu Livraria Negra, agora com a sua estreia como Editora. Ogum’s Toques Negros é um coletivo literário, do qual fazem parte Guellwaar Adún, (pseudônimo de Marcos Gonçalves da Silva), Mel Adún, Ricardo Riso, Henrique Freitas, José Carlos Limeira, Lívia Natália, entre outros, e que apresenta regularmente em seu site e na rede social Facebook textos de autores menos e mais conhecidos, tanto afro-brasileiros como africanos. O coletivo literário tem também atuação política. Atento à discriminação racial, participa de campanhas e atos políticos contra o genocídio da juventude negra e atua contra o epistemicídio, como por exemplo divulgando em larga escala uma Nota de Repúdio contra a seleção de autores brasileiros para a Feira do Livro de Frankfurt de 2013. Neste corrente ano passou a proporcionar o encontro do público soteropolitano com agentes da literatura negro-brasileira no evento denominado Ogum’s Toques do/a Escritor/a – apresentando tanto autores já consagrados, nomes históricos como Éle Semog, José Carlos Limeira, Abelardo Rodrigues, Oswaldo de Camargo, Miriam Alves, como jovens escritores (até o momento Cidinha da Silva e Elizandra Souza). Um dos projetos mais recentes do grupo é a atividade editorial, sendo a concepção de Afro-Rizomas seu primeiro resultado.
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O blog de Ricardo Riso, pseudônimo de Ricardo Silva Ramos de Souza, existe desde 2007, aberto primeiramente para, entre outras motivações, divulgar autores africanos de língua portuguesa, resenhar livros de autores não publicados no Brasil, passando a realizar noites de autógrafo com autores africanos (João Tala e Tânia Tomé) e a divulgar títulos, dentre outros, da União dos Escritores Angolanos e da editora Artiletra (Cabo Verde), ambas atividades em parceria com a Kitabu Livraria Negra. Em 2011, organizou duas antologias de poesia – uma de Cabo Verde e outra de Moçambique – com a apresentação de autores que pouco circulam no Brasil, publicadas na revista digital África e Africanidades. Esses jovens não se intimidaram em arriscar o conflito epistemológico que inevitavelmente teriam que enfrentar, agindo à margem das instâncias acadêmicas e das editoras consagradas, e estão entregando ao público ledor este Afro-Rizomas, testemunho da multidimensionalidade do diálogo Sul-Sul, afrontando de certo modo o status quo, ousando reformular padrões de transformação social e “desconstruir ajustamentos discriminatórios e preconceituosos”, como se expressou Florestan Fernandes, sustentados por ideias euro/brancocentradas, construindo práticas sociais alternativas, “pedagogias da descolonização e da diversidade”, para usar uma colocação de Muniz Sodré, aspirando a uma redefinição das estruturas sociais em que o espaço, voltado para o setor negro, seja reconhecido e encontre vez e voz. É uma iniciativa primeira, no campo editorial, a apresentação ao público ledor de tão numerosa coleção de ensaios sobre a literatura negro-brasileira da autoria de estudiosos negro-brasileiros (são onze artigos!), numa visão desde dentro, alguns dos quais também aqui tratam de diferentes aspectos das literaturas de países africanos. Da mesma forma, é algo inovador que ensaístas africanos se ocupem com textos de autoria negro-brasileira. É uma constatação generalizada que, mesmo com a vigência das leis 10.639/2003, e 11.645/2008 o ensino da literatura afro-brasileira é quase ignorado, sendo bem menos conhecida que a também pouco divulgada literatura africana. São muitas as omissões nessa magra oferta onde se deixam de lado nomes e questões relevantes para a sua produção, onde as dificuldades por que passa a iniciativa que contrabalance essa desigual relação tem sua razão de ser, uma vez que esses escritores e intelectuais negros não fazem parte dos meios hegemônicos, colocados às margens do tecido social. A perpetuação de
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uma estética branqueadora vem omitindo, silenciando, tanto pela falta de sistematização de seu estudo, quanto por entraves em sua divulgação e pelo limitado mercado editorial, os vínculos com essa literatura especificamente negra e visceralmente brasileira. A produção literária negro-brasileira incomoda e desestabiliza o divulgado conceito de identidade brasileira una e coesa, tornado indiscutível pela força da repetição, através de lugares comuns que se desejam verdadeiros, tais como “somos todos brasileiros” e “a literatura é uma só”. Como afirmou Boaventura de Sousa Santos em Pela mão de Alice, o genocídio que acompanhou reiteradamente a expansão europeia foi responsável também por um epistemicídio: “eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se foram as de conhecimento porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos.” Esse epistemicídio ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar ou ilegalizar experiências e grupos sociais que podiam constituir ameaça à expansão hegemônica e capitalista. Tal violência é considerada, comenta o autor de Pela mão de Alice, um dos grandes crimes contra a humanidade, causando indizível devastação na convivência comunitária, nos povos e grupos alvejados. Apesar de não ser completamente novo, pois sempre se registraram reações pautadas em revalorizar ideias, atitudes e comportamentos não hegemônicos, numa opção pelos saberes sepultados e pelas experiências e vivências oprimidas, marginalizadas, subordinadas, as reações contra tais iniciativas raramente são acompanhadas de aplauso ou reconhecimento pelas esferas dirigentes ou pelas elites. A possibilidade de uma comunicação horizontal entre diferentes mentalidades e posturas, sem hieraquia de valores, numa aceitação igualitária e democrática, tem sido inadmissível no campo das decisões institucionais e do discurso identitário brasileiro, embora a horizontalidade, segundo aquele pensador português, seja a condição indispensável da concorrência entre conhecimentos: Ao se escolher para Afro-Rizomas o diálogo SulSul, através da troca e da parceria entre afro-brasileiros e africanos da comunidade lusofalante, mas não luso-descendentes, os organizadores foram levados pela consciência de querer reverter séculos de silenciamento, de invisibilidade; de um apagamento que impossibilitou – e ainda dificulta – o diálogo entre negros brasileiros e negros africanos.
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Sei muito bem que não é nova a colaboração entre estudiosos brasileiros e africanos. O intercâmbio é dinâmico e cada vez mais abrangente – falo do campo dos estudos literários que melhor conheço. A excelente e vasta fortuna crítica que se pode arrolar no Brasil atesta o interesse de ambos os lados e seus positivos resultados. Em novembro deste ano de 2013, vai acontecer o V Congresso Internacional de Professores de Literaturas Africanas que é, ao mesmo tempo, o I Encontro da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos – AFROLIC – que se fundou justamente para encorajar e firmar tais intercâmbios. Não receio, entretanto, em dar o nome de silenciamento e de entrave ao fato dos afro-brasileiros serem ignorados e praticamente jamais convocados para encontros que se fazem cada vez com mais assiduidade entre estudiosos brasileiros e escritores africanos. Até agora, são raras – não desejo afirmar que inexistam – as obras em que a presença de articulistas africanos e afro-brasileiros se entrelace, em que as duas partes dialoguem na mesma publicação, sentem-se à mesma mesa de discussão e de debate. Existem, sim, antologias, e excelentes, com poemas ou contos de ambos os lados do Oceano; existem estudos, e excelentes, de literatura comparada cotejando autores negro-brasileiros e moçambicanos, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, são-tomenses. Mas, no campo do ensaismo africano- negro-brasileiro, Afro-Rizomas é pioneiro. Está rompendo a asfixia que descartou a possibilidade do mútuo conhecimento, que inviabilizou a parceria nas comunidades argumentativas. Afro-Rizomas conta com a presença de autores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, são-tomense, moçambicano e afro-brasileiros. Os articulistas não se limitam a um só núcleo temático, mas reúnem reflexões e análises multidisciplinares e é gratificante de constatar o mútuo interesse entre os estudiosos de ambas as margens do Atlântico, muitas vezes dentro do âmbito da literatura comparada. O livro está dividido em cinco eixos temáticos dos quais o primeiro, de natureza mais teórica, trata de críticas e tensões que envolvem o estudo das literaturas africanas: As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões. Abre essa primeira parte a contribuição de Henrique Freitas, docente da Universidade Federal da Bahia, Dez-a-fios epistemológicos para as literaturas africanas no Brasil. Um texto ousado e altivo, um texto necessário e convincente onde o autor alista uma dezena de
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questionamentos e reflexões desconstruindo certos fundamentos em que se baseiam os estudos das literaturas africanas no Brasil (e não só), alertando para o perigo do reducionismo e da aceitação acrítica das premissas eurocêntricas das teorias literárias e comparativistas centradas no estudo da literatura africana escrita em português. O autor apresenta dez desafios, de natureza teórica e metodológica, “que se colocam a partir do segundo decênio do séc. XXI para as literaturas africanas no Brasil, a fim de que seus estudos escapem à perigosa colonialidade do poder e do saber”, entre esses tópicos desafiantes, contam-se a teoria e a crítica literária, o cânone africano no Brasil; a questão da oralidade e da escrita na tessitura ficcional; o corpo como texto; o desafio das línguas nacionais; a defesa por um conceito de afro-rizoma; as literaturas africanas como devir. Jesiel Oliveira, também professor da UFBA, discorre nas suas “Contribuições de um romance angolano para a educação etnicorracial e descolonizadora do branco brasileiro” sobre as dificuldades que a camada hegemônica tem de aceitar a ascenção dos segmentos afro-brasileiros na sociedade, refutando a veemência crítica de certos articulistas. Ao lado disso, trata da posição contrária que preconiza o reconhecimento do Outro como fonte para aprendizados que estimulem a “invenção de outras possibilidades humanas”, assim como a vitalidade criativa e emancipadora que pode resultar da interação dialógica entre as diferenças, como é o caso de, entre outros muitos, Muniz Sodré. Esse conhecido professor e pensador preconiza com insistência “a superação das práticas de ensino-aprendizagem que reproduzem imaginários legitimadores de relações discriminatórias, paternalistas, exotizantes, ou de defensiva tolerância perante a alteridade.” No presente artigo, a reflexão do autor sobre a contribuição da literatura angolana, para uma tomada de consciência dos conflitos raciais no Brasil, é desenvolvida a partir do romance Yaka, de Pepetela, onde “adquirem contornos precisos as práticas e significações através das quais se articulam autoritariamente, nas relações entre brancos e negros, intimidade e tutelagem, sincretismo e alienação, engendrando os equilíbrios assimétricos entre identificação e exploração que também caracterizam as relações interraciais no Brasil”. Amarino Queiroz, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), nos transporta Para além de Ibérias e Américas, com uma contribuição importante e indispensável sobre a emergência das
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literaturas africanas de língua espanhola, quando faz o mapeamento dos espaços onde o espanhol é a língua de expressão para escritores que se reconhecem como representantes de minorias esquecidas e mesmo muitas vezes perseguidas em vários enclaves norte-africanos tais como ����������������������������������������� no Saara Ocidental, em campos de refugiados saarauis em Tinduf, Argélia, inclusive na República da Guiné Equatorial, país onde o espanhol figura como idioma oficial, sem esquecer o arquipélago das Canárias nem o território constituído pelas cidades de Ceuta e Melilla, enclavadas na costa mediterrânea de Marrocos. Amarino Queiroz se esmera em traçar um panorama amplo e elucidativo, com abundância de citações da produção poética de autores praticamente desconhecidos entre nós, dando a conhecer diferentes aspectos dessas literaturas esquecidas que são igualmente um instrumento de resistência face à perseguição política dessas populações minoritárias, oferecendo um aporte pioneiro para os estudos comparativistas. Lívia Natália, professora de Teoria da Literatura da UFBA, é uma das jovens poetisas baianas da nova geração que aflora em Salvador, trazendo novas perspectivas para a literatura negra feminina e ostentando uma sólida bagagem teórica. Ela comparece em AfroRizomas com duas contribuições ensaísticas, a primeira das quais tem como título A lírica menor: por uma teoria da literatura das literaturas africanas de língua portuguesa, onde a autora historia brevemente a evolução da literatura angolana, defendendo a ideia que a literatura toma para si uma função que ultrapassa os limites da estética para enredar-se na mensagem política de liberdade: “sobre o texto literário deposita-se a força de deslocamento do poder opressor e de abalo dos lugares marcados”. Detém-se na obra poética de Ana Paula Tavares, festejada poetisa angolana, que tem sua escrita marcada pela reflexão sobre o feminino a partir de um poderoso investimento na potência deslocadora e inventiva da escrita da história pela poesia, como Lívia Natália se expressa. Com referência à lírica menor, lembro a reflexão de Deleuze e Guattari onde afirmam que os escritores, ao utilizarem transgressoramente a língua oficial, subvertendo a sintaxe e emprestando-lhe um visual próprio, estão tomando uma postura política de rebelde independência, de clara contestação e de distanciamento anticolonialista, nacionalizando o instrumento herdado, praticando uma literatura menor, isto é, criando uma literatura capaz de subverter, na produção literária, a língua “maior” que
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é a língua do dominador (e do segmento dominante), verificando-se uma orgulhosa postura que ressalta a diferença e que procura seu próprio espaço. O segundo módulo enfeixa ensaios que se ocupam com Corpo, Escrita e Mercado – Dilemas da autoria e da representação femininas, com quatro textos de muita originalidade. Lívia Natália comparece mais uma vez com Múltiplas paragens do corpo intelectual: poéticas da diferença em Mel Adún, Ana Paula Tavares e Esmeralda Ribeiro, e contribui com um paralelo entre três poetisas, uma baiana, outra angolana e uma paulista, três espaços literários e estéticos muito diversos, embora com o denominador comum da insubmissão às regras preestabelecidas pelas instâncias que gerenciam o aparato teórico vigente, não preparado para aceitar vozes dissonantes. A articulista aqui aborda com eficiência um aspecto teórico sumamente instigante: a problemática da noção de representação, confrontada com “a circulação dos discursos” que se regulam por “mecanismos de exclusão, censura e interdição, a mecânica construída para silenciar a diferença” e “a alteridade incômoda”. Os exemplos apresentados reforçam a desconstrução do instrumental analítico utilizado pela crítica literária estabelecida, ao mesmo tempo em que ilustram como as assim chamadas “poéticas da diferença” dizem respeito a textos literários que investem em uma construção estética que destoa do estabelecido no cânone e daquilo que é tacitamente reconhecido como belo”. A tecitura poética de Mel Adún, Esmeralda Ribeiro e Ana Paula Tavares são exemplos admiráveis “daquelas nas quais se apresentam as demandas das minorias, e se organizam em torno da lírica contemporânea escrita por mulheres negras, na qual, a escolha temática, as opções estéticas e até a seleção vocabular apontam para o perfil de mulher que interessa ver representada”. A cabo-verdiana Eurídice Furtado Monteiro, em seu artigo Ler as mulheres das ilhas: línguas, identidades e poderes nas margens do mar da poesia – da aventura à tragédia, traz uma abordagem crítica e muito informativa sobre a poesia feminina, examinando tanto a poética como a trajetória das poetisas. Começa informando que, “tal como acontece no Brasil, a elite intelectual caboverdiana apregoa a ausência do racismo no arquipélago”, e documenta com o exemplo de diferentes poemas, essa afirmação. Desde os primórdios da literatura ‘insular’ e especificamente na poesia,
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já se registrava uma produção elaborada por mulheres ainda nos tempos coloniais, e essa presença foi e é extremamaente marcante e representativa. Ao longo de sua análise, a autora julgou importante reconsiderar tanto a pressão do sistema estético-literário, cultural e ideologicamente excludente num meio pequeno, como também a opressão estrutural e histórica numa sociedade marcadamente desigual, “sendo que a lógica de exclusão se estriba numa matriz de dominação, pela combinação das dimensões, entre outras, de género, classe ou região”. Emprestando especial relevo às poetisas, a articulista destaca-lhes a importância, pois “elas equacionam e articulam, de modo crítico ou conivente, a identidade nacional e a identidade de género, guindando também, para o debate público, algumas das questões menos abordadas, como sejam as relações de género construídas com base em desigualdades, e abrangendo problemáticas sempre actuais, tais como a violência doméstica, a prostituição das mulheres, a maternidade na adolescência, o peso da herança cultural, a família, a subversão cultural, a loucura, a sexualidade, as migrações, a exclusão política ou a (in)submissão no amor”. O artigo nos põe em contacto não apenas com as mais conhecidas e celebradas vozes caboverdianas, como Vera Duarte ou Dina Salústio, mas também com muitas outras, destacando a obra e a postura emancipatória de Eneida Nelly, já referenciada no artigo de Dejair Dionisio como “fulgurante poetisa”, jovem talento que aos 24 anos se suicidou, e que deu voz em seus poemas escritos na língua caboverdiana, às mulheres mais humildes e mais discriminadas, desfazendo “ a ponte que ilusoriamente insistia em separar a sabedoria popular do saber escolar, a tradição do cosmopolitismo ou as duas línguas do património cultural caboverdiano”, tendo também denunciado em seus versos a desigualdade entre as mulheres de diferentes classes sociais ou regiões do arquipélago. Através dessa poesia emancipatória e rebelde, as duas imagens opostas das mulheres caboverdianas é possível reconhecer por um lado, as badias do interior da ilha de Santiago, numa evocativa referência à tradição santiaguense, às revoltas campesinas e ao passado de escravatura; por outro, as mulatas do Mindelo, na ilha de São Vicente, ecoando a “doçura de Mindelo” e a sedução da “miss perfumada”. Miguel de Barros, sociólogo da Guiné-Bissau, é pessoa de múltiplos talentos e igualmente múltiplas atividades. Aqui nos contempla com seu artigo Perceções sobre a intimidade e o corpo feminino na literatura poética da
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Guiné-Bissau, tema ainda pouco encontrado na literatura da Guiné-Bissau. Ao buscar algumas das multifaces da mulher guineense, tal como ela é focalizada pelo eu enunciador, não seria possível deixar de levar em conta, mesmo que superficialmente, o ângulo do amor e da sensualidade. Embora no discurso literário guineense o desnudamento do sentimento amoroso não ultrapasse muito a contenção romântica e “bem comportada”, é na produção poética onde melhor aflora a subjetividade, e o texto é o território onde o perscrutar das emoções mais íntimas se manifesta, quando a voz poética reivindica para si mesma o espaço da palavra e da expressão de seus sentimentos e quando a sensualidade e a volúpia se fazem notar em muito belas metáforas. Ao lado da intenção de transmitir, através do discurso textual, uma mensagem reivindicatória e crítica, estão insinuando-se cada vez mais frequentemente, entre os poetas guineenses, vozes que avançam para além da simples emotividade, quando, até bem pouco tempo, mal ousavam exteriorizar confissões de suas pulsões eróticas. Na Guiné-Bissau, e não apenas lá, “moral e bons costumes” impostos pelo colonizador reprimiram historicamente o sexo e sua linguagem, perdurando nas cabeças internamente colonizadas e continuando a ter a Europa como o modelo civilizatório a seguir. “A sexualidade foi censurada pela sociedade estabelecida, pela escola e pela religião”, como afirmou o poeta brasileiro Cuti, em seu ensaio sobre o erotismo na poesia negro-brasileira; e o tom repressor que norteia essas instituições faz da linguagem relacionada ao sexo algo pesado, assustador, camuflado em expressões científicas ou jocosas (CUTI, 2000). Sendo claro que a literatura guineense sofre a influência de condicionamentos gerais da literatura ocidental, segundo Cuti (pseudônimo de Luiz Silva), ainda há palavras proibidas de adentrar a poesia que, para alguns, constitui um verdadeiro santuário da linguagem, distante da fala cotidiana. [...] Velado, um peso de moralismo seleciona vocabulário e temas“ (ibidem). Daí a grande importância da ousadia e da sinceridade de Huco Monteiro, poeta que só escreve na língua guineense, violando as regras da “lógica do império”, liberando-se das amarras da censura e da autocensura e enfrentando as convenções sociais. O poeta, numa postura griótica, assume uma atitude transgressora, tirando o véu da hipocrisia. Ao se passar em revista a produção literária guineense contemporânea, em especial a do século XXI, tem-se a grata surpresa de se verificar uma presença mais ex-
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pressiva de publicações literárias de autoria feminina. Além de comentar a poesia do eu enunciador masculino, o articulista exemplifica seus argumentos com versos de Odete Semedo, Saliatu da Costa, Filomena Embaló. Fernanda Felisberto, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), uma das proprietárias da Kitabu Livraria Negra/Editora, faz um estudo comparativista entre poetisas anglófonas, francófonas e lusófonas, um inventário preliminar das obras literárias publicadas por escritoras negras africanas, apresentando as obras afro-anglófonas, francófonas e lusófonas presentes no mercado editorial brasileiro. A articulista chega à conclusão de que o mercado editorial brasileiro desconhece praticamente a que os editores estão obrigados pela lei 10.639/03,��������������������� �������������������� uma vez que a publicação de autores afro-brasileiros se faz muito escassa, o mesmo acontecendo com escritoras dos diferentes países do continente africano, pois os livros que aqui nos chegam, embora numericamente de algum volume, se restringem a um punhado de nomes, quase todos de africanos do sexo masculino e luso-descendentes. O terceiro módulo do livro em pauta tem como subtítulo abrangente Afro-rizomas; as multiplicidades desierarquizantes, com três contribuições, a primeira das quais é do professor brasileiro Renato Noguera, da UFRRJ, intitulada A coleção Nana & Nilo: uma imagem do pensamento afroperspectivista para a literatura infantil. Trata-se do relato de uma experiência excepcional, digna de seguidores. Renato Noguera é professor da UFRRJ e autor de literatura infantil, atuando como pesquisador de análise e produção de recursos didáticos e paradidáticos para o ensino de filosofia. Noguera é autor da Coleção Nana & Nilo, algo inédito no Brasil. Filósofo que é, o autor segue um veio filosófico denominado afrocentrismo, um conceito não geográfico, um construto do conhecimento; basicamente, explica ele, ser um africano é ser uma pessoa que participou dos quinhentos anos de resistência à dominação europeia. Deve-se enfatizar que afrocentricidade não é uma versão negra do eurocentrismo, condenando inclusive a valorização etnocêntrica às custas da degradação das perspectivas de outros grupos. A Coleção Nana & Nilo, criação de Renato Noguera, é “um projeto de escrita para (com) crianças visando descortinar aventuras que possam revelar múltiplas perspectivas culturais, principalmente de matriz/ motriz africana”
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O projeto Nana & Nilo não se restringe à literatura, envolve uma gama ampla de plataformas, além da coleção de livros, site interativo, DVDs musicais, e também cursos de formação continuada para docentes da educação infantil e os primeiros anos do ensino fundamental. O artigo é amplamente ilustrado e vai encantar crianças e adultos pelas engraçadas e instrutivas estórias, pela originalidade da concepção e beleza das ilustrações. Ricardo Riso, pseudônimo de Ricardo Silva Ramos de Souza, comparece neste volume como autor de Afro-rasuras: que negro é esse nas literaturas africanas de língua portuguesa? no qual traça um mapeamento diacrônico dos principais movimentos no Ocidente organizados por lideranças negras inconformadas com o comportamento das sociedades dominantes que, desde os tempos da escravatura têm procurado invibilizar ou sufocar as identidades dos diferentes grupos afro-descendentes, numa luta pela valorização da identidade negra na diáspora. Começando com o principal divulgador do panafricanismo, William Edward Burghardt Du Bois, seguido pelo jamaicano Marcus Garvey, com milhões de seguidores pelo mundo, e fundador do jornal Negro World, ambos precursores da Harlem Renaissance ou Black Renaissance, e da Negritude. O Harlem é um bairro nova-iorquino onde a população negra vivencia menor discriminação racial, “favorável para valorização e celebração das manifestações culturais e políticas negras” e cujo mais conhecido representante é o poeta Langston Hughes. A Negritude, movimento literário, cultural, de claras conotações políticas, iniciado em França por Aimé Césaire, defendendo a afirmação identitária negra, alertando para a situação desigual do negro na diáspora e para a luta contra o colonialismo e desenvolvendo um ataque ideológico contra o humanismo ocidental. Suas bases ideológicas irão influenciar o pensamento independentista nos países africanos, sobretudo os que viviam na diáspora, assim como em Portugal, onde a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, passa a ter fundamental importância por acolher nas décadas 1940/50 universitários como Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Vasco Cabral, entre outros. Ricardo Riso se refere à primeira coletânea de escritores africanos de língua portuguesa, a pequena antologia Poesia negra de expressão portuguesa (1953), com seis poetas que internalizam as temáticas da Negritude a saber: Alda do Espírito Santo, Agostinho
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Neto, António Jacinto, Francisco José Tenreiro, Noémia de Sousa e Viriato da Cruz . O autor finaliza seu minucioso estudo com o subcapítulo “Afro-rasuras”, onde se refere a escritores contemporâneos de diferentes países africanos constituintes da comunidade dos que têm o português como língua oficial mas que muitas vezes priorizam as línguas étnicas, abrindo “rasuras” na poética dessas literaturas africanas em língua portuguesa, o que significa, segundo Stuart Hall, repensar e buscar “políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político e cultural”. Lucilio Manjate, professor da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique, é autor de ‘A lei da solidariedade’ ou o gesto para a profanação do saber: um contributo para pensar a condição étnico-racial brasileira. Trata-se aqui de um artigo diretamente ligado ao momento atual, pretendendo ser, como o autor mesmo expressa, “um contributo” de um professor estrangeiro, moçambicano, falando a nossa língua e partilhando com os brasileiros a situação de ex-colonizado, casualmente em visita e participante de eventos culturais no ano 2011 no Brasil. Um arguto olhar de fora que analisa sem predisposição, a situação de “profanação” dos saberes da alteridade negra brasileira, discriminada e subalternizada pela dominância branca. Esclarecendo que foi levado a certas reflexões a partir da “Nota de Repúdio” recém emitida por um grupo de ativistas negro-brasileiros por ocasião de um ato escancarado de preconceito e desrespeito à intelectualidade negra do nosso país, o articulista declara que pretende “discorrer sobre as possibilidades de uma “lei da solidariedade” como antídoto para essa miopia do Poder”. E para isso deverá apoiar-se, fundamentalmente, nos conceitos “epistemicídio”, proposto por Boaventura de Sousa Santos, e “comparatismo de solidariedade”, de Benjamim Abdala Jr. Manjate comenta que os efeitos que a lei 10.639/2003 pretendia alcançar não foram colmatados. O espírito dessa lei deveria ser o que determina que o Brasil ganhe a consciência de uma omnisciência histórica e cultural também negra, que diariamente se junta a todos os outros saberes, do branco, do índio e do mulato. E o professor moçambicano conclui: “Percebe-se que estamos perante um exemplo flagrante de um epistemicídio em relação à História e à Cultura não apenas negras, não apenas afro-brasileiras, mas brasileiras.”
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Como exemplificação prática do exercício da “lei de solidariedade” e seus efeitos, lança mão de três autores, oriundos de três diferentes países, cujas produções textuais se coadunam em parte ao sentido dessa teoria: Lívia Natália, com seu livro Água Negra, o moçambicano Nelson Saúte, no livro Maputo Blues, e do também moçambicano Rui Knopfli, no livro Mangas Verdes com Sal, cujos títulos podem funcionar, desde já, como metonímias de um etos particular, mas também universal. O quarto módulo da presente publicação tem como título Para além do conceito de lusofonia, e é aberto pela pesquisadora são-tomense Inocência Mata com um artigo sobre as Topologias de pertenças na obra de Francisco José Tenreiro: entre a ideologia negritudinista e a mátria insular. Francisco José Tenreiro, o mais insigne intelectual são-tomense da “Geração de Cabral”, tem sua personalidade, sua obra, seus saberes e viveres dissecados com sentimento e eficiência pela sua conterrânea e sem nehuma dúvida grande admiradora. A autora distingue as especificidades polifônicas e policromáticas do ilustre são-tomense: o poeta insular, amante da terra e da gente de seu chão, poeta metropolitano, homem do mundo, transitando nas duas vias de seu hibridismo e sua ambivalência; o enunciador lírico ou irônico, o negritudinista e o neo-realista, exímio tanto nos temas de predominância da afirmação cultural de uma insularidade africana quanto na reivindicação do solo pátrio; o homem das letras, o político, o cientista, geógrafo, historiador e sociólogo. Seu vasto e multifacetado labor reitera ter sido Francisco José Tenreiro um intelectual cuja obra poética, ensaística e cientíica é testemunho de uma época. Quando faleceu, aos 42 anos, “já havia deixado uma marca indelével nos movimentos culturais e intelectuais que, nos anos 40-50-60 fermentou na capital do Império entre os africanos das colónias portuguesas de África e portugueses que pugnavam contra a ditadura do Estado Novo (ainda que nem sempre contra o colonialismo)”, informa Inocência Mata. A articulista afirma ainda que, dentre os escritores que o antecederam ou dele foram contemporâneos, é Tenreiro que inaugura “a escrita de intenção literária de temática e “condição” são-tomenses” que “vai revelando que o espaço físico e a natureza, na sua exuberância e na sua magnificência, [...] passam a constituir lugares socioculturais e históricos denunciando, pela diferença, que o que se produzia era uma literatura de motivação são-tomense e não de gestação são-tomense.
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Inocência Mata encerra seu artigo com um estudo sobre dois poetas da atualidade, Fernando de Macedo e Conceição Lima que, cada um a seu modo, pela filigrana da arte poética, tornam visíveis outros segmentos da nação são-tomense. Dejair Dionisio, da Universidade de Cabo Verde, celebra a figura do grande líder da libertação nacional em Amílcar Cabral na poética crioula de Eneida Nelly, não sem antes deter-se longamente na narrativa das pressões que o povo sofreu sob o jugo colonial, a violência da invasão, travestida na palavra imigração, com a submissão e dominação dos grupos nativos, alijando-os da sua cultura e da sua identidade. Nesse contexto de submissão, perseguição, aliciamento e disfarçada revolta, avulta a figura inconteste do grande líder Amílcar Cabral. O articulista comenta que afinal não se presta a todos os autores e autoras do país a pecha da discriminação interna, da preferência pelos valores europeus em detrimento dos africanos, e nem sempre vale a afirmação que a poesia cabo-verdiana deu “as costas a África”, exemplificando pela obra poética de Eneida Nelly que, mesmo não sendo a única a escrever na língua caboverdiana, é um dos seus expoentes, tomando tal atitude por questões de convicção, de identidade e de posicionamento político, recusando a língua do colonizador. Essa recusa se reflete também em muitos outros escritores e o articulista lembra as palavras de Gilberto Freyre que, ao visitar o arquipélago, observou estar Cabo Verde mais próximo do Brasil do que de Portugal. Através da leitura da lírica da jovem poetisa Eneida Nelly, a referência ao herói “se transfigura pela voz poética de enaltecimento e significação de doação de Amílcar Cabral para a libertação do seu povo e denúncia da violência do que foi guerra colonial”, tema longamente abordado no início deste ensaio, de utilidade para o conhecimento da história de Cabo Verde e suas repercussões no Continente. Os guineenses Miguel de Barros e Patrícia Godinho Gomes escreveram juntos o artigo Percepções e contestações: leituras a partir das narrativas sobre o narcotráfico na música rap da Guiné-Bissau, um fenômeno cultural recente entre jovens da camada urbana sobretudo de Bissau e que atesta uma improvisação poética de surpreendente vitalidade e criatividade. Partindo da constatação da conturbação moral e psicológica ocasionada pela desarticulação política presente desde o conflito armado de 1998/1999 provocando profundas brechas nas estruturas sociais, administrativas, políticas, os
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autores pretendem neste artigo analisar os efeitos da propagação do narcotráfico no país, com a consequente expansão do crime organizado, face à ineficácia das estratégias de combate por parte das instituições, ao mesmo tempo em que apresentam o resultado de uma pesquisa de campo que documenta “formas inovadoras de construção de resistências através da emergência de um movimento contestatário na cidade de Bissau, resultado da articulação entre os músicos rap e a utilização das rádios, o que contribuiu para dar visibilidade às denúncias da sociedade civil sobre o fenómeno de narcotráfico na Guiné-Bissau.” Como em outros países onde esse gênero musicalnarrativo é exercitado, são muitos os temas abordados, sempre numa linguagem pitoresca, muito rápida e engajada; os autores detectaram os seguintes temas ou narrativas: narrativa da denúncia, narrativa da rota do narcotráfico, narrativa do protesto, narrativa do desassossego, narrativa da ação. A língua guineense é a usada pelos artistas, o que provoca um grande impacto e colabora para a difusão das mensagens veiculadas, potenciando a disposição à manifestação de protesto e insatisfação face aos muitos problemas que abafam a população. Abreu Paxe, escritor e crítico literário angolano, atualmente doutorando na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, traz uma contribuição com o título Morro da Maianga: da poesia e da tradução cultural, onde analisa o poema, “Noites de luar no Morro da Maianga”, de Mário António, autor também angolano, não sem antes proceder a uma exaustiva análise das muitas possibilidades de tradução e de compreensão do topônimo Maianga, suas ligações de significado com o kikongo, o kimbudu e as implicações culturais da tradução desse vocábulo para o português. O quinto e último módulo tem com título Reencenações literárias e espelhos africanos. Amarino Queiroz retoma aqui uma vertente das literaturas africanas que lhe é muito cara, A literatura de São Tomé e Príncipe no Brasil: Francisco José Tenreiro, presente. Convencido que, para “esboçar uma história da literatura nacional”, é inevitável a “compreensão da própria trajetória histórica do país”, o articulista elabora uma relativamente breve, mas necessária narrativa do desenrolar da colonização do Arquipélago. Dá ênfase à questão linguística e ao relacionamento com o Brasil e lança mão de importantes referências bibliográficas, introduzindo a contribuição inestimável de Francisco José Tenreiro não só como poeta mas
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como autoridade abalizada nas questões históricas de seu país que, no longo poema Romance de Seu Silva Costa, “sintetiza, com refinada ironia, a realidade sócio-cultural de São Tomé e Príncipe, valendo-se da memória dos diferentes ciclos econômicos de exploração agrária vivenciados pela ex-colônia, ao mesmo tempo em que torna evidente, também para os brasileiros, uma experiência por demais conhecida”. Depois de lembrar que a intensificação da produção de cana-de-açúcar no Brasil ocasionou a decadência dessa fonte econômica no Arquiélago, Amarino Queiroz refere-se à posterior introdução do plantio de cacau nas terras são-tomenses, sob condições de grande e cruel exploração dos trabalhadores por parte dos senhores coloniais, gerando reiterada tensão social. Tal como o “episódio de Pindjiguiti”, um protesto de estivadores na Guiné-Bissau, despoletou uma revolta que se tornou o marco para a tomada de conscientização do povo guineense e para o início da reação articulada contra o regime colonial, o episódio conhecido como massacre de Batepá representou o “ponto crucial” da insatisfação na ilha de São Tomé quando na localidade de nome Batepá, a 4 de fevereiro de 1953, alegando uma suposta rebelião tramada pelos naturais, um pelotão militar usou da força das armas provocando a reação imediata do grupo, potencializando a violência e resultando na “morte de mais de mil pessoas em menos de uma semana. Vários foram os registros literários que se reportaram à memória deste fato, incluindo-se aí desde a poesia de Alda Espírito Santo e Conceição Lima até o romance do escritor Manuel Teles Neto, Retalhes do Massacre de Batepá. Concretizado em versão cinematográfica pelas mãos do diretor angolano Orlando Fortunanto, além de Angola e São Tomé e Príncipe o filme de longa-metragem envolve uma parceria financeira e artística com o Brasil”. A insatisfação popular e a tensão política evoluiram durante a década dos 60, para recrudescer e radicalizar-se, ocasionando em 1972, “paralelamente aos outros movimentos que se organizavam nas demais colônias portuguesas, a criação do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe – MLSTP”, seguido da contra-reação de Portugal, “reforçando também o aparelhamento de sua polícia política, a PIDE”. Como nos demais territórios sob o calcanhar português, depois da Revolução dos Cravos, 1974, o ano seguinte festejou as independências das ex-colônias, com a proclamação oficial das independências nacionais de
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Moçambique (25 de junho), Cabo Verde (7 de julho), São Tomé e Príncipe (12 de julho) e Angola (11 de novembro). A Guiné-Bissau, pátria de Amílcar Cabral, tinha a todas antecedido, com a declaração unilateral de independência, em 24 de setembro de 1973. Embora os primeiros registros literários são-tomenses remetam aos poemas em forro de Francisco Stockler, Caetano da Costa Alegre (1864-1890) é geralmente considerado o primeiro poeta nacional de língua portuguesa, “calcadas na poesia de tradição oral, valendo-se ora de forma lírica, ora satiricamente, de questões relativas à diferença racial, (...) aos costumes cristalizados numa sociedade colonial assentada sobre a hipocrisia e a segregação, ou, ainda, às relações hierárquicas de poder na experiência entre o metropolitano e o colonizado, o mandatário e o subalterno.” Amarino Queiroz lembra que as festividades pelas comemorações relativas aos 90 anos de Francisco José Tenreiro coincidiram com as celebrações dos 35 anos de independência do país, em 2010, acentuando que no Brasil ainda não são frequentes os estudos sobre a literatura do Arquipélago. O articulista passa então a uma oportuna revisão da fortuna crítica em torno dessa literatura, com ênfase na produção brasileira, arrolando inclusive teses de doutorado e dissertações de mestrado. A tônica da análise crítica dessa produção recai naturalmente sobre aquele que é considerado o mais importante escritor são-tomense, Francisco José Tenreiro. Amarino Queiroz, observa, porém, que “os estudos tenreirianos no Brasil parecem privilegiar a trajetória humanística do autor, concentrando-se na apreciação crítica de sua obra poética, mas descuidando, talvez, a dimensão que lhe conferiram as outras áreas do conhecimento pelas quais transitou.” Concluindo, o articulista expressa seu desejo e sua esperança de que, essa literatura que contou com nomes tão relevantes e onde, passados os tempos mais graves de conturbações sociopolíticas, avultam nomes como Albertino Bragança, Sacramento Neto, Frederico Augusto dos Anjos, Aíto Bonfim, Fernando de Macedo, Maria Olinda Beja ou Conceição Lima, entre tantos outros, venha a ser mais conhecida e prestigiada nos estudos africanistas brasileiros. Maria Nazareth Soares Fonseca, professora aposentada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), faz um mergulho no passado para nos trazer o olhar do fora, o olhar do forasteiro que chega talvez desavisado, talvez cheio de expectativa, a
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esse recanto do continente africano e encontra Luanda, primeiro um povoado sem importância, aos poucos tomando contornos de cidade e de empório. Por muito tempo, o exotismo e o mistério das terras distantes despertaram a fantasia, a imaginação, a cobiça do mundo civilizado através de narrativas de viajantes, mercadores ou marinheiros. Desde o século XVI, fundada por navegadores portugueses em 1576, com o nome de vila de São Paulo de Luanda, chamada de “a cidade dos soldados”, “cidade feitoria”, cidade acampamento”, sobrenomes que mostram a impressão que se tinha à primeira vista e as funções que a ela na época se atribuía. E vão-se acumulando relatos sobre aspectos geográficos, sobre a terra e a gente dos lugares distantes, desvelando costumes, exaltando a natureza, criticando o que não se enquadrava no horizonte do narrador. Já no século XVI havia a divisão entre a cidade alta e a cidade baixa, tal como em Salvador. Na segunda década do século XIX, o viajante Douville admira-se por estar a cidade encravada em rochedos, estendendo-se como em anfiteatro, as ruas bem alinhadas e largas, impondo a admiração. A cidade ostentava a riqueza advinda do florescente tráfego negreiro. O viajante chama ainda a atenção para as “quitandeiras”, vendedoras enfeitadas de anéis, correntes, braceletes de ouro. Ele informa também sobre o comércio dessas mulheres, negras mais velhas e muito ricas, vestidas com “muito gosto” e cobertas por correntes e anéis de ouro. A Luanda observada por Silva Corrêa se expressava em umbundo e seus espaços eram ocupados pela multidão de escravos que transitava pelas ruas da cidade, em oposição às senhoras (brancas ou não) que viviam encerradas em casa. No final do século XIX, esclarece a professora Nazareth, “a cidade de Luanda era ainda “uma pequena urbe habitada por comerciantes e funcionários” e o comércio, os negócios, as exportações não ofereciam abrigo aos que “impelidos pelos mais nobres ideais”, buscavam “um estádio mais elevado da sua evolução”. Os textos selecionados por Gerald Moser e publicados na coletânea Almanach de lembranças - 1854 1931, em 1993, são da maior importância e a consulta a essa obra é fundamental para se possa conhecer algumas produções literárias de escritores que viveram em Luanda ou que trouxeram para os seus textos dados de uma época em que a cidade de Luanda era o principal centro de comércio em Angola. Além das obrigatórias descrições da paisagem, muito autores referem-se a usos e costumes locais, e
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são numerosas as passagens literárias com referência a mulher negra, a maioria das vezes de forma positiva, “linda, mimosa e bela”. O fato da escassez de mulheres europeias facilitou o contacto com as naturais do lugar, sendo frequentes as famílias mestiças. Segundo Nazareth Fonseca, “de certa forma, a política implantada por Norton de Matos, em Angola, atendia à arquitetura do mundo colonial que intentava construir “um mundo cortado em dois”, com clara distinção entre a zona habitada pelos colonizadores e a habitada pelos colonizados, regidas “por uma lógica puramente aristotélica, como bem acentua o martiniquense Frantz Fanon. O êxito da compartimentação permitirá que se acentue, “uma altercação biológica na sociedade mas também econômica” com “a chegada e fixação de um grande número de europeus” , a partir dos anos 1930, o que fará com que o elemento negro vá sendo marginalizado, observação feita pelo professor Fernando Augusto Albuquerque Mourão, em A sociedade angolana através da literatura. Sempre lançando mão de textos literários, a articulista vai acompanhando a evolução e a decadência da capital. Refere-se por exemplo ao conto de Luandino Vieira, “As fronteiras de asfalto”, do livro A cidade e a infância, que teve sua primeira edição em 1960. “O conto encena as divisões existentes na cidade em que a cor da pele passa a ser o código seguido para a distribuição dos espaços na cidade de Luanda. O asfalto e a rua de terra, metaforicamente, assumem os significados dos conflitos vividos no espaço urbano”, inclusive a velada denúncia ao colonialismo, apresentando a cidade dividida em duas. E a articulista conclui seu mapeamento afirmando que, “a partir do momento em que se fortalecem as ações contra a presença do colonizador em Angola e em África, é possível identificar, no espaço da literatura, uma tendência de recuperação dos traços africanos de Luanda. A literatura assume a memória dos bairros populares, mercados, largos e monumentos, evoca as representações presentes no imaginário luandense e busca reconstruir feições da cidade descrita por viajantes e historiadores e cantadas por poetas e ficcionistas”. A professora brasileira ��������������������������� Anória Oliveira, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), traz um aspecto pouco estudado na fortuna crítica das literaturas africanas: a publicação de livros destinados ao público infantil e juvenil. Seu artigo sobre o tardio começo da literatura para crianças e jovens em Moçambique, Renascimen-
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to literário e a produção infanto-juvenil moçambicana: palavras que pulsam, apresenta os resultados de uma exaustiva caminhada pela produção cultural em Moçambique, as dificuldades que as guerras independentistas e os conflitos subsequentes representaram, ocasionando uma sensível lacuna nessa produção. Tendo reunido um corpus de cerca de sessenta obras, informa que as primeiras publicações datam do final dos anos setenta, mostrando também os esforços dispendidos, a partir da década de 1990, para preencher esse quase vazio, referindo-se então a um verdadeiro “renascimento literário” para aquele setor. Procura fazer um mapeamento da oferta, procedendo a uma análise de alguns dos títulos, da produção literária não só pela temática como, também, pelos papéis atribuídos aos personagens, detectando nos textos as funções, ações e espaços sociais em que foram situados. Observa também que a produção literária destinada às crianças e jovens no Brasil e em Moçambique segue percursos distintos, dentro das respectivas conjunturas sócio-históricas. “Se, aqui, nos anos 70 e, principalmente nos anos 80, houve a eclosão da referida produção no mercado livresco, em Moçambique essa evolução” foi bem mais modesta. A autora informa, como uma amostra de colaboração entre os dois países, que o escritor Ziraldo foi chamado a Maputo, para “treinar moçambicanos na arte de escrever e desenhar para crianças”. Essa produção para o público não adulto, embora sendo tão recente, é abundante e conta com uma entusiástica aceitação, registrando-se anualmente um grande número de novas publicações. José Luis Hopffer Almada encerra Afro-Rizomas com um pertinente, revelador e extenso artigo Orfandade identitária e alegada (im) pertinência de uma poesia de negritude crioula: discursos da crioulitude e síndromas de orfandade identitária. Poeta e ensaísta, Almada destaca-se pelo olhar apurado e rigoroso, repleto de minúcias e informações, acerca da já mais que secular literatura cabo-verdiana de língua portuguesa. O competente trabalho desenvolvido posiciona-o como nome obrigatório para os pesquisadores da literatura do Arquipélago. No seu longo artigo, Almada conduz o público ledor a instigantes reflexões acerca da “desvalorização simbólica e repressão histórica das manifestações culturais de matriz afro-negra e da componente negra da crioulidade cabo-verdiana, escassos são os traços de africanidade e de negritude na poesia cabo-verdiana da época anterior à Nova
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Largada”. Para o pesquisador brasileiro, é um tema praticamente ignorado, uma vez que o predomínio/ fascínio das análises da poesia cabo-verdiana estão concentrados na influência do modernismo brasileiro, mais precisamente o pasargadismo de inspiração em Manuel Bandeira, na poesia, e nos romances regionalistas na prosa; sobre a geração da revista Claridade, a partir dos anos 1930, um macrotema que perpassa a literatura do país, porém que não pode ser alçado como se fosse monotemático, reduzindo e desrespeitando a pluralidade temática e estético-formal da literatura de Cabo Verde. O artigo de Almada possui o mérito de reavaliarmos a produção poética do país, assim como as disputas identitárias para afirmação da nação crioula, o que exige esforço do pesquisador para descobrir outros referenciais que não estão distantes, devido às suas importantes obras e personalidades literárias em diferentes momentos das letras. Cabe, porém, cabe a pergunta: o que conduz a ostracizar partes das obras de determinados autores, já que foram elementos essenciais nas suas atuações como cidadãos e seres políticos do tempo em que viveram? Por isso, a pertinência deste artigo ao apresentar o celebrado nativista Pedro Cardoso e a sua postura atenta aos movimentos pan-africanistas que vinham da diáspora. Almada recorda ainda, como uma confirmação, que Teixeira de Sousa, quando entrevistado por Michel Laban, mencionou Cardoso como o “Langston Hughes” cabo-verdiano. A transcrição do poema “Ode à África”, ainda que seja uma visão idealizada e estigmatizada por certo assimilacionismo, torna um bom exemplo da ação desse intelectual, cronista em vários jornais em que utilizava o heterônimo Afro, com destaque em especial sua coluna “A Manduco”, no conhecido jornal da época de mesmo nome (O Manduco). Outros momentos essenciais para a presença da negritude crioula na poesia cabo-verdiana encontram-se no pós-Segunda Guerra, com a criação dos partidos nacionalistas e da proeminente figura de Amílcar Cabral. Com esse grande líder, condutor da união para libertação de Guiné e Cabo-Verde, o pertencimento africano dos cabo-verdianos passa a ser exaltado, tendo como destaque nomes como Onésimo Silveira, sendo também de leitura fundamental o seu “Consciencialização da literatura caboverdeana”; mas, é com Mário Fonseca que se encontra uma poesia de forte cariz pan-africano, já na efervescência dos anos 1960 e das guerras nas então colônias por-
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tuguesas. Como exemplo, o articulista cita o poema “Eis-me aqui África”, do “continente meu/ tão perto do arquipélago/ (...) ínsula prisão”. Almada também destaca a produção em língua cabo-verdiana, tendo em Kaoberdiano Dambará o seu momento de enorme visibilidade durante a década de 1960, com o livro “Noti” (edição do PAIGC, 1966) que, “segundo T. T. Tiofe, representa ‘a primeira tentativa em livro de falar de Cabo Verde numa perspectiva africana”. Esse ensaísta e poeta, um dos heterônimos de João Manuel Varela, é responsável por “O Primeiro Livro de Notcha” que “constitui o primeiro livro de emersão poética total na História de Cabo Verde e de dissecação das raízes escravocratas da sociedade cabo-verdiana”. O longo estudo de José Luis Hopffer Almada apresenta um importante inventário de autores de língua portuguesa e língua cabo-verdiana que dialogam com perspectivas da negritude em suas obras, inclusive o próprio ensaísta enquanto poeta, o que torna seu artigo de extrema relevância para ampliar os olhares sobre a poesia cabo-verdiana e seus aspectos identitários como nação crioula e o seu componente afro-crioulo. Chegando ao fim dessa rápida caminhada por entre os diferentes capítulos de Afro-rizomas, só me resta desejar ao público ledor uma boa e proveitosa leitura. Moema Parente Augel
AS LITERATURAS AFRICANAS NA ENCRUZILHADA: TEORIA, CRÍTICA E OUTRAS TENSÕES
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões
DEZ-A-FIOS EPISTEMOLÓGICOS PARA AS LITERATURAS AFRICANAS NO BRASIL
Henrique Freitas
Iká kó dógba – Os dedos não são iguais1 (Mãe Stella de Oxóssi) Em matéria de religião, estou como Nietzsche, (embora não precise dele para nada) só acredito num deus que dance.
(Jorge Siqueira)
O mundo se despedaça outra vez e, como já advertira Chinua Achebe, o inimigo não é mais simplesmente o Outro colonial personificado: sua geografia, sua gramática, seu logos, mais que uma prótese identificável, tornou-se duplamente uma eficiente bússola de nós (como nó de uma rede e também como pronome pessoal); suas perversões normalizadoras, agora entranhadas como o estranho freudiano, íntimo e familiar, a qualquer gesto de afro-rasura nos ameaça com suas incertezas e falsas profundidades, cerceando os riscos necessários que precisamos sempre correr, para que as Literaturas Africanas no Brasil se tornem, intempestivamente, aquilo que são: devir. Nesse sentido, traremos, a seguir, sob a forma de tópicos, como fios aparentemente soltos que vão se entrelaçando, dez desafios (teóricos, metodológicos e críticos) que se colocam a partir do segundo decênio do séc. XXI para as Literaturas Africanas no Brasil, a fim de que o campo escape à perigosa colonialidade do poder e do saber2 sempre à espreita para docilizar no mesmo a diferença proliferante e interminável dos textos africanos.
1. Imagens e miragens da lusofonia africana Se o importante estudo formal das literaturas africanas passa a ocorrer nos centros universitários brasileiros de maneira mais sistemática no último quartel do século XX, a partir de derivações importantes que ocorrerão no campo dos estudos portugueses no Brasil (sob a rubrica de produções ultramarinas, coloniais ou de textos de ex-
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Esse micro-texto iorubano foi compilado na obra Ówe publicado pela yalorixá da comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá e hoje membro da Academia de Letras da Bahia, Mãe Stella de Oxóssi. Neste livro, o provérbio é acompanhado da seguinte interpretação proposta por ela: “Respeitar a própria individualidade é o primeiro passo para o aprendizado e respeito da individualidade alheia” (OXÓSSI, 2007). Aníbal Quijano e Walter Mignolo, pensando em especial a condição da América Latina em seus textos, articulam o conceito de colonialidade do poder e colonialidade do saber, a fim de corrigir o conceito de poder disciplinar foucaultiano. Para isso, evidenciam que os dispositivos panópticos do Estado Moderno ramificam-se em uma estrutura mundializada, derivada da relação colonial, colocando como centro do poder-saber a Europa e estabelecendo uma relação de centros/ periferias. A modernidade torna-se, assim,
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um projeto de dupla governamentalidade jurídica: primeiro, através da tentativa interna dos Estados-nação de controle das identidades por meio da promoção de políticas de subjetivação; segundo, por meio da governamentalidade exercida de forma exógena pelas potências hegemônicas “do sistema-mundo moderno/colonial, em sua tentativa de assegurar o fluxo de matérias-primas da periferia para o centro”. Os dois processos integram uma espécie de dinâmica estrutural. (LANDER, 2005)
pressão lusitana), o desafio do século XXI é escapar a essa importante estratégia que foi potência no momento de emergência dos estudos das africanas no País, mas hoje, sob este e novos signos como o da lusofonia, converge para perigosos monologismos teleológicos que reencenam Portugal como origem, centro e parâmetro desde a etimologia. A própria noção de literatura restringe-se, nesta lógica, a uma experiência artística específica de letramento formal em língua europeia, promovida pela empresa colonial e mítica portuguesa. Além de um gradativo processo de institucionalização e autonomização do campo, traduzido em Setores e Departamentos específicos de Africanas nas Instituições de Educação Superior, como loci voltados exclusivamente a elaboração de saberes que deem conta dos desafios aqui expostos, necessário se faz tensionar os perigosos centramentos (logocentrismo, etnocentrismo, falocentrismo, eurocentrismo, grafocentrismo, dentre outros) que comprometem o desenvolvimento de uma epistemologia liminar. Neste contexto, é preciso forjar os saberes nas margens e para as margens, a fim de dar vazão nas africanas às dobras que, em termos discursivos, não são abarcadas como a possibilidade de pensar estas literaturas em outras redes que não a da escrita lusófona. Eduardo Lourenço, mesmo na condição de uma espécie de teórico da lusofonia com diversas obras sobre o tema, aponta o caráter messiânico do destino que Portugal traçou para si e como esse imaginário ainda funciona como máquina problemática do mundo lusitano, produzindo as imagens e miragens inscritas num Tempo português singular: Vamos para o século XXI em carruagem-cama, indiferentes às tragédias do mundo e às nossas próprias. Os problemas caem-nos em casa já resolvidos. É o mundo que tem problemas não nós. Os portugueses que não pensam assim não são bons portugueses. Nunca o foram. Só a proteção e a glosa da nossa identidade mística lhes interessam. Como heróis de cavalaria em segundo grau, sujeitos de uma história virtual, entraremos no século XXI. E com ele, queiramo-lo ou não, na história real, a nossa, de pequeno povo e sonhos compensatórios, para que não nos demos conta disso. Será o fim do nosso tempo português e o começo do tempo de Portugal, um país como os outros a contas nunca certas com o tempo. Quer dizer, com a rugosa essência da realidade. (LOURENÇO, 2001, p.108-109)
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A lusofonia não se constitui nem para os portugueses interessados em um processo efetivo de autognose como um operador funcional, portanto utilizá-la para pensar as literaturas africanas sem rasurá-la, sem pôla em suspenso, é extremamente perigoso. Mesmo com esse gesto de deslocamento em torno da lusofonia, as implicações fugidias que ela impõe produzem, por um lado, uma extemporaneidade para a cultura portuguesa de recalque de seus traumas históricos e de sua condição periférica (não semi-periférica!) na Europa, e, por outro, a nostalgia da rearquitetura imperial de si em outras bases, oferecendo-se como eixo de poder-saber do Outro como risco constante à alteridade que nós, falantes da língua portuguesa fora de Portugal, somos. Alfredo Margarido, em a Lusofonia e os lusófonos: novos mitos portugueses (2000), aponta a lusofonia como pensamento-eixo da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) que visa a legitimar explicitamente a hegemonia do pensamento social português através de um projeto missionário neocolonial, agora calcado na língua. Ele critica a visão etnocêntrica da existência da alteridade no discurso lusófono apenas a partir do “encontro histórico” com Portugal que passaria assim a conferir uma dada historicidade ao outro, suprimindo na retórica um elemento-chave desse processo: a invasão e as violências dela derivadas. A lusofonia, sob sua ótica, funciona como ferramenta biopolítica de um racismo de Estado que apagou o passado opressor para recuperar a hegemonia, mantendo as perigosas distâncias etnicorraciais, recaindo, em especial, sobre os imigrantes uma perversa reordenação simbólica de ordem imperial: “doce paraíso de dominação linguística que constitui agora uma arma onde se podem medir as pulsões neocolonialistas que caracterizam aqueles que não conseguiram ainda renunciar à certeza de que africanos só podem ser inferiores” (MARGARIDO, p. 71). Basta acrescentar o termo “brasileiros” ao lado de africanos na observação de Margarido e teremos um quadro mais exato dos problemas sobre que ele discorre. Nem angústia da influência, nem parricídio inócuo em relação a Portugal: é preciso desafiar-nos no estudo das literaturas africanas a não cedermos às pulsões de torná-las repositório clínico da psicanálise mítica do destino português, nem na lusofonia, nem em nenhum outro (pré)conceito, reconhecendo os diálogos possíveis que como potência elas nos trazem, em especial nos fluxos que constituíram a diáspora africana no mundo, ainda pouco explorados.
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2. A teoria e a crítica literárias das africanas A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza
(Sérgio Vaz)
Assim como a História oral negro-africana foi responsável, nas figuras de Cheikh Anta Diop, Joseph KiZerbo e outros intelectuais, por forjar uma inteligibilidade para que a oralidade fosse privilegiada no campo da História a fim de conectar a África com o seu tempo e narrá-la como epígono da história do Homem, a contrapelo, portanto, da ideia de apêndice da Europa constante na pretensa História Universal, a teoria e a crítica literárias contemporâneas voltadas às literaturas africanas têm o desafio de dar conta, mutatis mutandis, do mesmo processo. A indissociabilidade da ética, da estética e do discurso de muitos textos africanos, pela sua expressão em diferença, põe em xeque uma dada abordagem do texto literário calcada em aparatos conceituais tradicionais, reduzindo-os ou condicionandoos a enquadramentos que provocam distorções para a apreensão da ficção, do drama ou da lírica africanas. Categorias herdeiras de uma experiência formalista e/ou estruturalista calcadas em sistemas (a própria noção de sistema literário), bem como as dicotomias fundadas na dobra discursiva dentro e fora: autor, leitor, narrador, personagem, dentre outros; ou de uma tradição marxista superestrutural e infraestrutural que a tudo explica, no seu ímpeto (supra)histórico, alicerçada ainda em dialéticas conformadoras de uma tensão produtiva, culminam em simulacros perigosos para o entendimento de um texto forjado em culturas nas quais, muitas vezes, a ecologia humana não pode distinguir, pela cosmogonia que a define, as dimensões: social, pedagógica formal, política, cultural, religiosa. Ainda que repouse como fetiche na abordagem tradicional das literaturas africanas a ênfase em sua importância social, como retórica reincidente que concorre para o esvaziamento de um labor formal em outras vias, é importante produzir uma inteligibilidade sobre a estética que atravessa o fazer literário e está vinculada a todas as dimensões já citadas. Ignorar estas particularidades não é ceder apenas à força da colonialidade do poder e do saber, mas provocar um epistemicídio ao reduzir tudo aquilo que escapa à semelhança à exatamente sua força de mímica. Um exemplo breve para exemplificar as discussões realizadas é a classificação corrente dos romances A fle-
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cha de Deus (2011) e O mundo se despedaça (2009) de Chinua Achebe como ficções de fundação nigerianas (fundam o quê? Que Nigéria, se eles operam na recusa em funcionar como marco monumental celebratório de uma geopolítca danosa à dinâmica cultural existente?), sem a desconfiança crítica de que isso fere o exercício literário do autor que conecta seu texto à vasta rede ancestral das tradições que os ratifica antes da pretensa tutela de qualquer olhar externo como civilização complexa, dotada de práticas culturais e literárias seculares da etnia ibo, portanto para além de disposições geopolíticas coloniais e pós-coloniais grafocêntricas avassaladoras que operariam com o aval missionário na chave do apagamento dessa outridade.
3. O cânone africano no Brasil Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo.
(José Carlos Limeira)
No Brasil, com o aval ou a conivência (silenciosa) institucional, um cânone etnocêntrico, grafocêntrico, falocêntrico e luso-africano instituiu-se, perigosamente, no campo das literaturas africanas, em contraponto: à complexidade das malhas literárias africanas; às leis 10.639/2003 e 11.645/2008, apesar de parecer paradoxal, já que nem como corpo, nem como discurso nas entrevistas, há um empoderamento da cultura negroafricana e afro-brasileira, das conquistas que representam as Ações Afirmativas, da mencionada força de lei que faz com que os textos desses mesmos escritores africanos circulem amplamente no mercado editorial brasileiro; por fim, como contraponto à diferença que ainda interroga essa pequena lista recorrente e exclusiva de escritores homens, já avalizados pela crítica europeia, não negros (nem como corpo, nem como discurso), de apenas dois países africanos, quando a África entra na cena literária no Brasil e a Academia tem uma grande responsabilidade nesse processo. As listas de obras para os vestibulares; as principais Feiras e Festas literárias brasileiras; os programas nacionais de livro didático; a menção à África literária nos livros paradidáticos; os autores privilegiados nos programas de disciplina da graduação e pós-graduação, irrefutavelmente, produziram um rígido cânone das literaturas africanas no Brasil que tem invisibiliza-
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do uma produção artística continental nos nossos importantes exercícios do ver para além dessa verdade.
4. Continuum oralidade e escrita na tessitura ficcional A escrita é uma coisa e o saber é outra. A escrita é a fotografia do saber, mas ela não é o saber em si. O saber é uma luz que está no homem. É a herança de tudo o que nossos ancestrais puderam conhecer e que nos transmitiram em germe, exatamente como o baobá, que já está contido em potência em sua semente.
(Tierno Bokar)
Apesar de se falar muito sobre a relação oralidade e escrita africanas nos textos críticos, há dois fatores que precisam ser destacados: o primeiro é o risco da dicotomização dogmática que fere a lógica linguística do continuum e interpenetração entre oralidade e escrita (MARCUSCHI, 2005), em vez de funcionarem simplesmente como opostos; segundo, os gêneros literários orais, mesmo quando apontados nas análises, não entram para serem efetivamente estudados no campo. Isso oblitera a percepção das literaturas africanas que se perfazem e ganham amplitude na contemporaneidade esgarçando a noção de literário, dentre outras expressões, como no rap africano - literatura negro-africana multimodal3 oriunda das ruas já conectada desde a forma com a sua dimensão diaspórica, mas que sequer é vista com suspeição pela crítica, acerca do seu estatuto literário. Isto vale também para os provérbios e outras formas orais. Ou seja, pelo exposto, vê-se que a oralidade validada na práxis dos estudos críticos das literaturas africanas é apenas a mimetizada nos textos escritos. Sobre os provérbios, Mãe Stella de Oxóssi, Iyalorixá que dirige a comunidade-terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, em artigo publicado no Jornal A Tarde em 9 de julho de 2011, na contramão dos estudos tradicionais da língua portuguesa e também dos estudos literários (o escritor Abreu Paxe é outro crítico que investe na exegese dos provérbios, a fim de, neste caso específico, reivindicar peremptoriamente seu estatuto ancestral literário), enfatiza a importância deles para as sociedades africanas e também para a educação formal brasileira, uma vez que são instrumentos condensadores de uma sabedoria secular que pode ser explorada, inclusive nas salas de aula. Ainda sobre a questão linguística, Amadou
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões
Hampâté Bâ também adverte para potência da oralidade em suas mais diversas manifestações, para além até de um código linguístico, ao se contemplar outros sons/ ruídos que constituem a performance comunicacional, principalmente quando esta envolve a produção de uma arte não alicerçada exclusivamente na escrita.
5. O corpo como texto Jogando uma pedra ontem, ele matou o pássaro hoje.
(Oriki de Exu)
...filosofar sobre o corpo não é o bastante, sejam os corpos dos partícipes das religiões de matriz africana, ou mesmo sobre o corpo dos orixás... É preciso filosofar desde o corpo e reconhecer que o corpo é filosofia encarnada e cultura, e literatura em movimento (OLIVEIRA, 2007, p.57).
Sem corpo, as literaturas africanas são amputadas, já que, nas cosmovisões africanas, ele congrega múltiplos significados, sendo a base da interação entre os seres. O corpo se apresenta ainda como ancestral, isto é, como uma anterioridade, já que ancestral nem sempre é o mais velho em termos etários. A ética, a estética, o conteúdo e a forma gravitam dessa maneira num xirê de sentidos. O tambor, outro elemento literário referenciado em muitos textos africanos, torna-se ele mesmo poesia suplementar do griotismo dos poetas africanos, conforme observa Hampâté Bâ, em Amkullel o menino fula (2003), mas também dos poetas afro-diaspóricos do canto-falado, que através de suas estratégias mnemônicas tecem as tradições, por meio da poesia dub e do rap, por exemplo, de acordo com as reflexões de Amarino Queiroz (2007). Paul Zumthor em Introdução à poesia oral (1997) afirma que a privação dos tambores pode mesmo fazer ruir uma tribo, por isso muitos povos escravizados na América foram proibidos de usá-los tão logo os senhores perceberam que havia uma gramática da resistência extremamente eficiente que era ininteligível e ao mesmo tempo perigosa para a manutenção da empresa colonial. Para Zumthor, a percussão constitui estruturalmente uma linguagem poética. Manipulado como é a regra, de forma expressiva, o som do tambor se enriquece de feitos de intensidade, de conotações melódi-
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Para Kress e Van Leuween (2001), as linguagens só se realizam através da constituição de textos multimodais. Dessa forma, as diferentes modalidades semióticas de representação e comunicação (visual, sonora, táctil, dentre outras) têm potencialidades e limitações de origem cultural e histórica para produzir significados. Cada uma das modalidades, nas suas especificidades, contribuiria com a interpretação do leitor.
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cas, que às vezes lhe permitem, como entre os Iorubá ou os Akan, revezar com o canto no decorrer da performance. É nesse sentido que privilegia a memória. Ele constitui uma tradição oral específica e privilegiada no seio da tradição: ele vence a distância, estendendo-se por 5, até 20Km; sobretudo abole o tempo, protegendo suas investidas (ZUMTHOR, 1997).
É por isso que o poeta José Craveirinha clama ao “Deus dos homens” como expressão máxima de sua lírica multimodal no poema Quero ser tambor publicado em Karingana ua karingana (1982): Oh! deixa-me ser tambor, só tambor!
6. O real em paralaxe na produção africana A Teoria dos gêneros literários sempre se ocupou do texto pensando-o a partir de categorizações, ora mais dogmáticas, ora mais fluidas, mas opondo-o sempre a um real homogêneo, tomado a priori a partir sempre do princípio monológico de verdade, sem desconfiar que, como o texto literário, o real também pode ser pensado a partir de gêneros, tarefa que, além de tensionar os conceitos de mímese, de verossimilhança, dentre outros, abre margem para outras perspectivas teóricas e comparativas. Nos estudos africanos e negro-brasileiros, o real é o último repositório, ainda intocado, da colonialidade de um saber logocêntrico que aprisiona a teoria e a crítica voltada às literaturas e culturas africanas e afro-americanas. Deslocamos todas as outras coisas, mas, a noção de real, seja nos estudos específicos ou contrastivos aparece como algo dado, não como algo que pode ser vazado a partir de uma teorização que, por exemplo, o pense em gêneros. Outra questão que retomamos é em que medida categorias como narrador, personagem, dentre outras, sobretudo da forma como a conhecemos, nos servem nos estudos africanos e negro-brasileiros, quando temos à nossa disposição operadores riquísssimos como a noção de griot (utilizada por um conjunto de pesquisadores e que pode ser pensado literalmente como categoria narrativa), encruzilhada, dentre outros, que vem aparecendo no campo. Aliás, talvez aquilo que Eduardo Oliveira cha-
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ma de Paradigma Exu seja o eixo para abalarmos esse real que figura monoliticamente colonizado e colonizante como produtor de experiências teórico-críticas. Apoiados por FANON (2008), acreditamos que talvez esta seja uma de nossas últimas trincheiras na descolonização mental crítica, que atenta a este a priori, desafia o real como profundidade, apresentando-o como superfície discursiva que se imiscui do outro lado da esfera ficcional como naturalmente seu oposto: eis a armadilha. É preciso descolonizar o real, livrando-o da desconfiança alegórica. E aqui não pensamos este real como colado a nenhuma ideia de essência, verdade ou profundidade: todas essas muletas da representação, esse espelho disforme no qual somos sempre a falta ou o excesso, já que não há ajuste completo neste jogo de imagens. A biografia nada convencional publicada no Brasil sob o título de FELA, esta vida puta, do músicovirtuose nigeriano Fela Kuti, escrita pelo intelectual negro-diaspórico de nacionalidade cubana radicado na Bahia, Carlos Moore, forja-se em observância a esse real multifacetado da cosmogonia africana no qual estava imerso o inventor do afrobeat. Além de uma rede polifônica de textos em diferença (entrevistas, narrativas dos encontros com Fela, trechos epistolares), o texto biográfico com sua estrutura dialógica, mas, ao mesmo tempo, potencialmente fragmentada, é um “monólogo ficcional” na voz do espírito da mãe de Fela, Funmilayo Ransome-Kuti. A exemplo de um quadro do pintor surrealista belga René Magritte, esta parte da obra intitulada Afa-Ojo (Aquela que comanda a chuva) parece carregar a inscrição “Isto não é ficção”, vez que sua veracidade real-ficcional transpõe na escrita de Shawna Davis (é ela a responsável por esta parte da biografia e não Carlos Moore, que franqueia a palavra a Davis para que o texto se encene), uma das dimensões mais fortes da biografia de Fela: a relação extrema que teve com sua mãe, mesmo depois da morte física de sua progenitora. As interações constantes que Kuti revela ter com ela, inclusive materializando-se na chuva, não são tratadas como devaneio do artista, ou como uma dimensão mística-folclórica de sua personalidade, vez que Moore e Davis sabem que os mortos integram como partícipes legítimos a esfera da vida comunitária na cosmogonia na qual boa parte dos nigerianos estão inseridos. Há uma diferença radical entre representar e reviver continuamente de forma literal a experiência como na esfera do real aqui apontada. Ademais o real
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em paralaxe aponta para uma mudança relacional constante tanto do “objeto” quanto do “ponto de vista” numa múltipla afetação nos exercícios do ver, eis outro de nossos desafios.
7. Estudos encruzilhados: literatura negrobrasileira e literatura africana Laroyê! 4
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Saudação a Exu!
A Literatura Comparada e/ou os Estudos Contrastivos serviram como eficiente chave para trazer as literaturas africanas para a cena educacional brasileira, em um momento no século XX que nem sempre se tinha à disposição espaços acadêmicos específicos para esta discussão, mas agora é preciso revisitá-los. Isto deve ser feito, no intuito de se verificar em que medida, ante a urgência que se coloca no Brasil e na África acerca da visibilidade do texto e do corpo negro-brasileiro e africano, os estudos literários podem contribuir para o não apagamento físico e simbólico dessa diferença etnicorracial nos circuitos literários de prestígio, como vimos ocorrer recentemente na Feira Literária de Frankfurt 2013 (dentre setenta escritores, o governo brasileiro indicou apenas um escritor negro e um índio para integrar a relação dos selecionados e financiados pelo Estado). A validação do texto negro seja africano seja brasileiro é desafiado nesta perspectiva a escapar à tradicional verificação do refluxo de experiências estéticas e discursivas europeias para só aí se aferir alguma qualidade literária. Se linguistas como Makoni e Meinhoff (2006) propõem a revisão do conceito de língua em África, suspeitamos que o de literatura, calcado nesta mesma língua produto de uma colonialidade do poder/saber, também precisa ser revisto. As leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que instituem o estudo de história e cultura africanas e afro-brasileiras no Brasil e no caso da última também a história e culturas indígenas, nos convocam a tensionar as literaturas africanas no Brasil exatamente pela clivagem recusada por uma tradição crítica no país e por escritores lusoafricanos, luso-tropicalistas, mestiço-discursivos: a questão etnicorracial. O argumento de que esta é uma questão delicada demais para pensar em África, ou que não é algo relevante para pensar no texto literário africano, cai por terra na contemporaneidade com a abor-
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dagem cada vez mais incisiva e fundamentada de escritores e escritoras africanos que carregam inscritos no corpo essa diferença, e, nesse sentido, suas abordagens buscam tensionar não só o cânone africano na África, mas o cânone etnicorracial brasileiro expresso na cultura brancocêntrica que figura como hegemônica e traduz-se também na (in)visibilização do negro na literatura e em posições de prestígio no País, contribuindo, de forma negativa, para as representações do negro moçambicano, conforme aponta Paulina Chiziane: Para nós, moçambicanos, a imagem do Brasil é a de um país branco ou, no máximo, mestiço. O único negro brasileiro bem-sucedido que reconhecemos como tal é o Pelé. Nas telenovelas, que são as responsáveis por definir a imagem que temos do Brasil, só vemos negros como carregadores ou como empregados domésticos. No topo [da representação social] estão os brancos. Esta é a imagem que o Brasil está vendendo ao mundo”, criticou a autora, destacando que essas representações contribuem para perpetuar as desigualdades raciais e sociais existentes em seu país.5 (CORREIO DA BAHIA, 17/04/2012)
Os estudos encruzilhados (estudos comparados negros que se perfazem no conflito, tomando a incoerência, o paradoxo, a tensão como força motriz) apontam como potência para uma arqueo-genealogia do saber na literatura ainda a ser explorada: Lima Barreto, Solano Trindade, Oswaldo de Camargo, Miriam Alves, Abelardo Rodrigues, Conceição Evaristo, José Carlos Limeira, Éle Semog, Cuti e outros e outras escritorxs negro-brasileirxs estão à nossa espera para pô-los em diálogo com a África Negra, investimento de toda uma vida de intelectuais como Joseph Ki-Zerbo e Abdias do Nascimento. Os estudos encruzilhados propõem uma dinâmica constante de abalo à normalização do campo, já que a filosofia do paradoxo que rege Exu é o logos da encruzilhada. Exu por sua vez impregna todos os seres vivos, ele é o princípio de individuação que está em tudo e a tudo empresta identidade. É o mesmo que dissolve o construído; aquele que quebra a regra para manter a regra; aquele que transita pelas margens para dar corpo ao que estrutura o centro; é aquele que inova a tradição para assegurá-la (OLIVEIRA, 2007. p.54),
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dessa forma “mantém um equilíbrio dinâmico baseado no desequilíbrio das estruturas desse mesmo sistema filosófico-ético” (Idem).
8. Linguajamentos: o desafio das línguas nacionais [...]o linguajamento é o momento no qual uma “língua viva” (como diz Anzaldúa) se descreve como um estilo de vida (“un modo de vivir”) na interseção de duas (ou mais) línguas. Nesse ponto tornam-se evidentes as diferenças entre o bilíngue e o bilinguismo, entre a política linguística e linguajamento: o bilinguismo não é um estilo de vida, mas uma habilidade. (MIGNOLO, 2003. p. 358-359) 5
Fonte: http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/ artigo/novelas-brasileiras-passam-imagem-depais-branco-critica-escritora-mocambicana/
Para Makoni e Meinhof (2006), não se pode deixar de reconhecer a função colonialista da L.A. (Linguística Aplicada), como tem sido feito em relação a seu papel na própria definição do que se considera como línguas na África. E essa crítica não cabe apenas a L.A. A justificativa da predileção pelas línguas europeias como fator geopolítico de unificação nos países africanos em um contexto pós-colonial é refutado veementemente por: escritores como Wole Soyinka que veem no gesto um ímpeto neo-colonial, ainda que não se queira propor a interdição da língua europeia (a questão é como em meio a muitas possibilidades linguísticas se constrói um regime de verdade em que apenas o uso da língua europeia pode destensionar as complexas relações que atravessam muitos países africanos no período pós-colonial e, em alguns casos, pós-guerra civil também); por críticos literários e acadêmicos que interrogam o campo dos estudos literários africanos em torno das línguas nacionais como Amarino Queiroz, Fernanda Felisberto e Ricardo Riso, bem como por sociolinguistas interessados nas relações de poder na linguagem como Florence Carboni e Mário Maestri que tem um importante trabalho, não especificamente sobre a África, mas sobre essas estratégias de dominação linguística que naturalizam hierarquias, intitulado A linguagem escravizada (2005). É chegada a hora do desafio de se contemplar as literaturas africanas em outras línguas europeias (inglês, espanhol, francês, dentre outras), mas sobretudo nas línguas nacionais, pois, se o campo das literaturas africanas no Brasil não for capaz de dar conta desta tarefa, terá falido em seu compro-
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misso ético e crítico de escapar ao etnocentrismo e logocentrismo que se instaurou na área: à deriva, na Nau que Ícaro toma de empréstimo a Odisseu, terá como único destino possível um sonho: a Ítaca Portuguesa. Pelas questões aqui expostas, a escritora guineense Odete Semedo em seu livro de poemas No Fundo do Canto (2007), não abdica da escrita em crioulo para alguns textos que integram o livro, acompanhados da tradução para o português, como recurso estético, discursivo e pedagógico para que a diferença linguística local vaze sua escrita, derramando em sua lírica, um convite contínuo à aprendizagem na relação Eu/ Outro, como nos mostra no poema Bu Tcholonadur (O teu mensageiro): BU TCHOLONADUR Ka bu larsi pertu mi rasta stera bu sinta
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N odjau ku rosu firidu na mostra foronta bu na ianda pes ka na iangasa tchon Pertu mi bu puntan n kontau puntan pa moransa di kasabi pidin pa n mostrau kaminhu sin susegu kurba di sufrimenti paki ami i bu tcholanadur Ka bu ndjutin pertu mi ka bu djubi e larma ku na rian na rostu nin ka bu purfia nha kombersa pa e nha fala tirmidu dibedjisa semprenti Pertu mi ka bu larsi bin... sinta, paki storia ka kurtu
(SEMEDO, 2007. p. 23)
No linguajamento6 poético de Semedo, vamos ecoando as vozes que vão proliferando a diferença
De acordo com Walter Mignolo o linguajamento, ato de pensar e escrever entre as línguas que também recebe o nome de bilinguajamento ou pluringuajamento, se estabelece como condição princeps para a ocorrência do pensamento liminar (produção epistemológica no limiar, no limite, nas margens, a partir de uma perspectiva subalterna).
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linguística em África e se o português até aqui foi a verdade normalizada em língua, é preciso ouvir com atenção o que nos diz a poeta nos últimos versos: “aproxima-te de mim / não te afastes / vem... senta-te que a história não é curta”.
9. Por um conceito de afro-rizoma As literaturas africanas de língua portuguesa e afrobrasileira derivam de relações diversas que perpassam não só a experiência colonial lusitana, mas a noção de diáspora, o processo de (re)invenção das tradições e a constituição de redes afro-rizomáticas que foram tecidas internamente e para além-mar, a fim de autogerir as identidades através das quais Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Portugal e Brasil representam-se e são representados na produção literária contemporânea escrita em língua portuguesa e também em outras línguas. O rizoma é um modelo genealógico da epistemologia de Deleuze e Guatari (1995). Adaptado da botânica em que os brotos de determinadas plantas podem tornar-se em qualquer ponto talo, ramo ou raiz, com autonomia em relação a sua localização arbórea, empresta sua forma fluida e descentrada ao sistema epistemológico em que não há proposições que se sobrepõem, nem dicotomias fechadas. Para Deleuze e Guattari, a estrutura do conhecimento não deriva, por meios lógicos, de um conjunto de premissas, mas sim se elabora simultaneamente a partir de todos os pontos em paralaxe. Mas, a estrutura rizomática não é necessariamente volátil ou instável, mantém linhas de relação entre conceitos que dialogam. Exije, porém, que qualquer modelo de ordem possa ser modificado: a organização dos elementos não segue hierarquias - com uma base ou raiz dando origem a múltiplos ramos -, mas, pelo contrário, qualquer elemento pode afetar outro. Se o rizoma opera a partir de uma lógica descentrada, pela qual não é possível demarcar sua origem de forma unilateral, nem tampouco pensá-lo a partir de uma teleologia, os afro-rizomas constituem-se como uma reversão da perspectiva que toma exclusivamente a influência colonial lusitana como determinante para a emergência das literaturas no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa, reconfigurando, desta
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forma, as relações em jogo. O termo afro, neste contexto, é ressignificado pela perspectiva da diáspora, que, de acordo com HALL (2003) e GILROY (2001), não se refere apenas à dispersão dos povos africanos pelo mundo, mas, principalmente, à construção de um novo espaço simbólico no qual a reversão da condição subalterna imposta pela escravização africana é realizada continuamente em campos como a música, a literatura e a produção cultural. Desta forma, assim como a literatura afrobrasileira soergue-se historicamente no Brasil afirmando uma estética negra em diálogo com a África, a partir do tensionamento de um cânone instituído que invisibiliza as produções e as representações negras, as literaturas africanas de língua portuguesa emergem também como escritas de si para além de uma circunscrição geopolítica, através de uma tessitura que opera entre tradições e modernidades, entre o local e o global, sem furtar-se a avaliar os projetos nacionais reservados aos países africanos. Ora, nesta dinâmica, a constituição da ideia de nação no período “pós-colonial” tanto no Brasil como nos países africanos de língua portuguesa contará com a importante contribuição da literatura no processo de invenção das tradições nacionais (HOBSBAWN, 1984) e de construção de identidades através das quais se representem o povo no intuito de que a imagem forjada não seja mero reflexo do Outro lusitano colonial. Os fluxos dispersos que vão atando e desatando os nós transnacionais de uma rede que não se encerra no Estado-nação e, na contemporaneidade, expande-se através dos mercados editoriais, de ações governamentais, da iniciativa individual de escritores e leitores, bem como da ampliação de sítios e blogues na internet sobre autores e textos ficcionais portugueses, africanos e brasileiros. A conformação de uma rede literária que passa a operar nas coletâneas, nas resenhas e em produções críticas sobre obras enfrenta o desafio de contemplar, na narração da nação nestes territórios, a alteridade que põe em xeque os valores etnofalogocêntricos. A experiência afro-rizomática dissemina-se linguajando a diáspora negra em expressões literárias convencionais e não convencionais, como na já citada poesia dub, no slam, na polirritmia da black eletronic, nas paredes-pontes futuristas suporte de uma literatura afro-graffiti que sequer ainda mensuramos em nossas páginas da crítica.
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10. As literaturas africanas como devir ou considerações finais para que as africanas tornem-se, nietzscheanamente, o que são A biopolítica, de acordo com Michel Foucault, consiste nas práticas governamentais que buscam racionalizar a saúde, a higiene, a natalidade, longevidade, a mortalidade e as raças, regulando o corpo coletivo identificado como população, através de um poder que atua sobre esses dados privilegiados “produzindo a vida” para alguns, e, ao mesmo tempo, “deixando morrer” programaticamente a outros, ocultando-se, apesar de tudo, sob um discurso de fatalidade. Devido a essa arquitetura perversa do biopoder, as escritas africanas no Brasil devem reivindicar para si a sua dimensão biopolítica exatamente através da escritura do corpo africano e negro-brasileiro nas malhas de seus respectivos textos que desnaturalizam tudo aquilo que se projeta de forma aparentemente acidental nos noticiários, nos boletins de ocorrência, batidas e blitzes policiais na invenção de um cotidiano cordial da convivência racial brasileira. Se a identidade se forma e se transforma na representação, como afirma Stuart Hall, a literatura é trincheira estética, mas também ética, contrária ao racismo de Estado expresso no biopoder que anula os corpos negros (e) africanos, seja no extermínio literal ou simbólico quando as línguas nacionais, a diversidade literária, a condição de escritor(a), o mercado editorial, a possibilidade do diálogo com a diferença, tudo isso é cerceado. Por, isso, os dez-a-fios epistemológicos aqui apontados são quimera biopolítica, porque podem operar em favor daquilo que a África pode tornar-se no Brasil como devir do que somos, não como fixidez, mas como força intempestiva: no tempo, contra o tempo e em favor de um tempo vindouro. Neste sentido, as literaturas africanas no Brasil não devem se constranger em também ser texto nas encruzilhadas com o Harlem Renaissence, com a Negritude, o Pan-africanismo, a literatura negro-brasileira e outras possibilidades de trânsito que escapem ao epistemicídio e ao racismo epistêmico que nos amputam como potência.
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