REVISTA BODISATVA EDIÇÃO 25

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bodisatva primavera - verão 2012 | n.25 | R$ 15,00

o olhar budista

entrevista lama jigme lhawang e a linhagem do dragão | lama padma samten em busca de uma vida sustentável | visão viagem as origens do budismo | clássico os três corpos do buda corpo kung fu, meditação em movimento

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Acesse o nosso blog! bodisatva.org

Expediente A revista Bodisatva é uma publicação do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB) Endereço: est. caminho do meio, 2600. viamão, rs. cep: 94515-000 tel.: (51) 3485-5159/(51) 8431-0380 Editores: LAMA PADMA SAMTEN, ANDIARA PAZ, CARMEN NAVAS ZAMORA E JOSÉ FONSECA Jornalista Responsável: THAREJA FERNANDES - DRT2833 Redação: IEDA DE ABREU Revisão: KARIN KALICHESKI Direção de arte: MARIANA AURÉLIO Diagramação e ilustração: GUILHERME ERHARDT Tiragem desta edição: 1500 EXEMPLARES Contatos com a revista: REVISTA@BODISATVA.ORG.BR Assinaturas: WWW.LOJA.CEBB.ORG.BR Editora responsável por essa edição: CARMEN NAVAS ZAMORA Créditos de Imagem Da esquerda para a direita, de cima para baixo: capa Ismael Villafranco | 4 Andreia Souza | 6 - 7 Drukpa Brasil | Andreia Souza | 8 Michael Rocha | 10 Andreia Souza | 1415 flickr: Suriya Donavanik | 16-17 wikimedia: Leonard G | aidenvironment.org | 18 flickr: Calsidyrose | 22 flickr: Ismael Villafranco | 26-27 wikimedia: Poco a Poco | flickr: Jeffrey Beall | 28-29 flickr: James Bowe | flickr: SvartaBaskern | 30 Monique Cabral | Mangala Shri Buthi | John Swearingen | 31 Arquivo CEBB | 32-33 flickr: square_eye | 34-35 Arquivo Pessoal | 36-37 Arquivo Pessoal | Melissa Flores | 38-39 Melissa Flores | Arquivo Pessoal | 54 Julia Folson Nossos agradecimentos a todos que colaboraram com esta edição.

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a trajetória mágica de um lama brasileiro

16 meditando a vida budismo e vida sustentável

24 capa manual para o bodisatva de hoje

34 visão peregrinos na rota dos budas

42 ação lições de um retiro de dois anos

46 clássico os três corpos do buda

52 aliás 54 corpo kung fu, meditação em movimento

56 bodisatva.org transformação de dentro para fora vida leve

58 ponto final voltando para casa

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Nesta edição

Carmen Zamora pesquisou o ensinamento das sabedorias búdicas nas gravações do Lama Padma Samten. O resultado você confere na matéria de Capa.

Guilherme Erhardt assina a arte desta edição. Também colaborou na entrevista com Lama Jigme Lhawang e na Capa, como tutor do CEBB.

Henrique Lemes é sociólogo e tutor do CEBB. Esteve em retiro por dois anos e escreveu sobre a experiência na seção Ação.

Flávio Depaoli é físico de formação, praticante de Kung Fu e de meditação, tutor do CEBB e entusiasta da Ciência em Primeira Pessoa.

Brenda Neves colaborou com opiniões ao longo do processo de edição. Também transcreveu e editou os textos das seções Ação e Meditando a Vida.

Teresa Bessil é tutora do CEBB e dedica tempo, energia e coração ao Darma. Ela escreveu o texto que publicamos na seção Bodisata.org.


reportagem manual para o bodisatva de hoje

editorial por Carmen Navas Zamora

Como ser capaz de ajudar os seres em um mundo que sofre rápidas mutações e, ao mesmo tempo, ser feliz? Será que existe no budismo algum ensinamento que dê conta desta delicada questão? Na busca da resposta, era natural que eu também procurasse ajuda, e foi o que fiz. Conversei com amigos, budistas ou não, e investiguei o que eles pensam sobre o ideal bodisatva e como colocá-lo em prática no mundo de hoje. A boa surpresa? Ouvi relatos de gente que ajuda os outros das formas mais inesperadas, sem trauma ou sacrifício, simplesmente porque a vida flui melhor assim. São pessoas que não estão à espera de uma condecoração. Elas ajudam e ponto final. A constatação, portanto, é que já existe em nós a semente de uma cultura de paz. Ela precisa, sim, ser regada. O ensinamento das cinco sabedorias, que procuramos descrever e detalhar na reportagem de capa, mostra formas de lidar com as dificuldades que enfrentamos, todos os dias, quando tentamos ajudar alguém. Se praticadas, contempladas e exercitadas, as cinco formas de inteligência positiva vão nos permitir andar no mundo com, no mínimo, um pouco mais de leveza. Na entrevista, contamos com o brilhantismo do Lama Jigme Lhawang, um brasileiro que teve a coragem de se lançar na aventura de aprender o Darma como monge, na Índia. Perguntado sobre qual seria a receita para seguir o caminho do bodisatva nos dias de hoje, respondeu que o termômetro de uma boa prática é o relaxamento, não o controle. Seu mestre, Sua Santidade Gyalwang Drukpa, sugere “notarmos

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que quando posicionamos nosso coração, percebemos o universo, nosso corpo e mentes se movendo naturalmente, sem esforço”. “Perceba”, diz ele, “se um leve sorriso dotado de um olhar profundo e compreensivo está manifestando-se espontaneamente”. Não que seja tarefa fácil manter a serenidade num momento em que a sociedade passa por profundas transformações, e nem todas com algum traço de bom senso. Na seção Meditando a Vida, Lama Padma Samten fala sobre os efeitos destrutivos de uma lógica econômica que não vê os seres em sua inteireza. Ele aponta para uma solução ainda possível: sentar em roda e sonhar outros rumos para nosso planeta, usando princípios de lucidez que já estão disponíveis. São os princípios da Terra Pura, uma possibilidade que podemos acessar a qualquer momento. Na seção Visão, invadimos as vidas de praticantes que buscaram inspiração e aprendizado na Ásia. Como eles realizaram esta busca e que obstáculos enfrentaram? Os relatos trazem a intensidade de quem desafiou as próprias certezas. Na seção Ação, Henrique Lemes foi nosso convidado para uma reflexão sobre o significado de entrar em retiro. Em conversa franca e profunda, ele desconstrói os aspectos idealizados do retiro, mostrando toda a angústia de “colocar a própria identidade em confinamento”. Veja ainda neste número o Clássico, com o ensinamento dos três corpos do Buda; a prática do Kung Fu, na seção Corpo, e as dicas de Ieda de Abreu na seção Aliás. Boa leitura!


a trajetória mágica de um lama brasileiro por carmen navas zamora colaboração guilherme erhardt e raquel rech

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O sorriso do Lama Jigme Lhawang é seu melhor cartão de visitas. Não que lhe faltem outros. Desde que partiu do Rio Grande do Sul, em 2003, com a determinação de se tornar um monge na Índia, ele impressiona pela dedicação em aprender e difundir os ensinamentos do budismo. Foi assim que dominou o idioma tibetano, avançou nas práticas de diferentes linhagens e guiou viagens de peregrinação de budistas brasileiros na Ásia. No ano passado, foi ordenado lama na linhagem Drukpa tibetana pelo líder espiritual da linhagem, Sua Santidade Gyalwang Drukpa, e pelo seu regente espiritual, S.Ema. Khamtrul Rinpoche.


entrevista Nascido Gabriel Jaeger há 32 anos, Lama Lhawang percorreu as diferentes paisagens do Brasil em maio e junho deste ano, oferecendo ensinamentos e, é claro, seu famoso sorriso. Viagens, caminhadas e meditações em contato com a natureza fazem parte de seu método. Ele oferece também uma visão de mundo especial, que aqui se materializou como o recém-criado Instituto Live to Love Brasil. Quando respondeu, por e-mail, a esta entrevista, ele lembrou que deu seus primeiros passos no budismo praticando meditação no Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), em Porto Alegre. “Em 1995, aos 14 anos de idade, quando procurava um local onde pudesse aprender a meditar e um professor qualificado que pudesse me ensinar, a Revista Bodisatva chegou em minhas mãos, com o endereço do CEBB”, lembra ele. A seguir, compartilhamos mais um pouco do que Lama Lhawang chama de “algumas reflexões sobre esta mágica trajetória”.

bodisatva: O que é ser um bodisatva nos dias de hoje, tempos pós-modernos de muita tecnologia, informação, remédios psiquiátricos, crises econômicas, etc. ? lama lhawang: Tanto Buda Sakiamuni, o grande pandita e mahasida indiano Nagarjuna, Acharya Asanga, mahasida Naropa, Guru Padmasambava e assim por diante, até os mestres de hoje, dizem que não há vaziez (em sânscrito shunyata) separada dos fenômenos e que não há fenômenos que estejam desassociados de vaziez. Reconhecer a vaziez é realizar a interdependência de todos os fenômenos. Realizar a interdependência é acessar diretamente a vaziez. Tudo está em constante união, não há uma verdade absoluta separada de nossa realidade relativa. Há duas palavras extremamente importantes na língua tibetana: dzinpa e jenpa. Dzinpa essencialmente significa agarrar-se a algo ou apreender

algo, e uma forma de traduzir jenpa seria aderir-se, prenderse ou fixar-se a algo. Tal como o grande mahasida Tilopa disse a seu discípulo Naropa: “Filho, não são as aparências que lhe prendem, mas sua fixação é que lhe aprisiona. Corte através de sua fixação, Ó Naropa!”. A cada instante em que nos aprofundamos nesta experiência, onde quer que estejamos, seja em casa com a família, no trabalho ou em retiro espiritual, usamos a oportunidade de acessar e nos familiarizarmos com esta realidade, de cultivarmos o sabor desta experiência. Nunca houve, não há e nunca haverá o nascimento de um bodisatva na ausência deste aprofundamento gradual do um-só-sabor de cada experiência, do reconhecimento de que samsara e nirvana são rótulos adicionais projetados por nossa mente dual naquilo que não pode ser descrito, explicado ou concebido. É entender, progressivamente, que o resultado está contido

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entrevista lama lhawang

À direita: Palestra do Lama Lhawag em Recife e ao lado S..S. Gyalwang Drukpa recebendo um grupo de peregrinos brasileiros guiados pelo Lama Lhawang.

no próprio caminhar, a cada instante, e não distante num ponto mais adiante. Distância e proximidade são projeções irreais de nossa mente conceitual. Enfraquecer este engano é o caminho do bodisatva, que transcende espaço, tempo, nome, forma, etnia, cultura e amplia nosso coração. Toda a crise externa ou interna está diretamente ligada ao acreditar e agarrar-se a este engano. Para sabermos se estamos no caminho certo, se nossa prática está funcionando, S.S.Gyalwang Drukpa nos aconselha a examinarmos “se uma tendência em deixar as coisas acontecerem, ao invés de empreender um grande esforço para que aconteçam, está surgindo.” Diz para notarmos que quando posicionamos nosso coração, percebemos o universo, nosso corpo e mentes se movendo naturalmente, sem esforço. Perceba, diz ele, se um leve sorriso dotado de um olhar profundo e compreensivo está manifestando-se espontaneamente. Se frescor e leveza impregnam e se

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expandem para o meio em que você vive tocando a todos que se encontram com você. Se a sensação de estar completamente interconectado com todos e com tudo está presente. Se frequentes episódios de uma apreciação profunda e tocante pelas coisas, pessoas e circunstâncias está se manifestando. Se há uma tendência de pensar e agir espontânea e naturalmente ao invés de agir a partir de medos fundados em experiências passadas ou expectativas com o futuro. Se uma habilidade de desfrutar cada instante como um surgimento milagroso está tomando conta de sua vida. Se uma perda de interesse em interpretar e julgar as ações dos outros, entendendo-os a partir de seus próprios contextos e pontos de vista, está fazendo parte de nosso dia a dia. Se a percepção de que o que vemos no outro começa a revelar nossas próprias lentes internas, que solidificam e cristalizam aquilo que não pode ser cristalizado, que por natureza não é sólido e fixo, está se mesclando com nossa prática espiritual.

Se um amor e bem-estar incondicional fundado na paz, no acolhimento, na aceitação, no entendimento e na abertura do coração está sendo vivido como nossa verdadeira morada espiritual. Por fim, nesta passagem tão rápida por este planeta, neste corpo e mente extraordinários, possamos usar esta rara oportunidade para usufruirmos de nossa natural capacidade de ampliar e espalhar amor, tocando a todos os que nos ouvirem, nos verem ou se lembrarem de nós. Ao entendermos nossos próprios corações, começamos a entender também o coração de nosso próximo, suas buscas, medos, expectativas, seu bom


coração. Se toda nossa ação de corpo, fala e mente estiver impregnada disto, não há nada a temer. A escuridão será naturalmente substituída pelo amanhecer da iluminação. bodisatva: Como é ser um lama brasileiro no Oriente? Faz alguma diferença? lama lhawang: Esta pergunta me traz a uma reflexão importante. Se olharmos profundamente e honestamente dentro de nossos corações, a sensação de fazer alguma diferença, ainda que sutilmente, estará apontando para a presença de uma identidade, uma noção de eu, outro, contexto, situações

favoráveis e desfavoráveis. Quando usamos a palavra lama, precisamos tomar um pouco de cuidado. O lama não pode ser brasileiro ou tibetano, de olhos puxados escuros ou redondos verdes. Este não é o lama. S.S.Gyalwang Drukpa, em uma instrução sobre guru yoga certa vez disse: “Se vocês acharem que estão fazendo lame Naldjor (guru yoga) com este ser sentado neste trono, se pensarem que o lama é esta pessoa em carne e ossos, gordo, magro, elegante ou deselegante, vocês estarão indo na direção contrária da prática espiritual. Se assim o fizerem, rapidamente estarão gostando ou não gostando do jeito do lama, do que ele fala, como ele faz as coisas. O apego, desejo,

inveja, aversão e assim por diante será sua prática de guru yoga. O lama é a sua verdadeira natureza. Os lamas externos são só símbolos, espelhos que refletem o verdadeiro lama dentro de você, são sonhos criados dentro do seu sonho para despertá-lo, não têm nenhuma realidade em si próprios, nenhuma identidade que os distingue das outras coisas e pessoas.” Entretanto, como um praticante espiritual, trilhando o caminho das instruções dos meus mestres de conexão, sinto um fluxo contínuo de bençãos e boa fortuna em poder estar próximo destes verdadeiros exemplos vivos de bondade, amor e sabedoria, aqui no

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entrevista lama lhawang

Oriente. Regozijo-me também ao perceber esta mesma boa fortuna e chuva de bençãos tocando profundamente o coração de pessoas no Ocidente, quando encontram seus mestres de conexão muito próximos, em seu próprio país, sua própria cidade, muitas vezes vizinhos dentro de uma mesma comunidade. Um raro milagre. bodisatva: O que o Lama pensa sobre as práticas preliminares formais do ngondro e como elas podem funcionar entre os alunos ocidentais? lama lhawang: Entendê-las como treinamento da mente é a chave. Não

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como um objetivo em si, não como uma acumulação a ser completada, mas como uma oportunidade de nascer novamente, com um novo olhar, uma nova perspectiva da realidade. A cada invocação, a cada prece, a cada mantra, estamos dando espaço para este nascimento, estamos nascendo como bodisatvas, como yoguis, como budas. Estamos nos familiarizando com o espaço criativo de nossa natureza, com sua capacidade de foco e realização natural. Estamos cultivando estas sementes, nos familiarizando com nossa própria natureza, que é nosso verdadeiro refúgio, que é nada mais do que bodichita, a mente do Buda. Nada mais do que

Vajrasatva, a natureza vajra (tal como um diamante) de nosso ser, presente na mandala da natureza dos fenômenos oferecida através de nossa visão pura, indissociável do repouso restaurador no coração de nosso guru interno e secreto. Através destas práticas, quando nosso ego vai se enfraquecendo, o céu vai se abrindo e demonstrando todo o campo de espaço de manifestação, livre e desimpedido. O caminho espiritual não é a complexidade de irmos freneticamente adiante para alcançar algo, mas sim o de darmos passos para trás, em direção ao reconhecimento da essência


À esquerda: Lama Lhawang admirando a vista no Solar Guadalupe, em Brasília.

búdica que já está presente e nos leva a um salto para a verdadeira liberdade. S.S.Gyalwang Drukpa diz que muitas pessoas estão mais preocupadas com o completar o número de acumulações que lhes foi dado, seja cem mil, um milhão, dez milhões, e pouco atentas ao propósito de tais acumulações, que é o de transformar nossa forma de olhar e experienciar o mundo e a nós mesmos. Ele diz que o ngondro deve ser empreendido como um treinamento da mente, uma forma de fortalecer nosso refúgio e nossa motivação altruísta, um método extraordinário de purificação de corpo, fala e mente e de união veloz com a mente e realização de nossos

próprios mestres. Entretanto, se não estivermos bem focados em nossa prática, em refletir, meditar e estabilizar cada palavra, cada aspiração e visão contida em nossa sadhana, retornaremos ao mestre após termos completado a acumulação sem qualquer sinal de avanço. Como resposta, ele nos dará as instruções novamente, e nos aconselhará a treinar a mente na mesma prática ou em uma prática diferente que se adapte melhor às nossas características e dificuldades, até a realizarmos. O ponto central é o transformar nossas formas de olhar e experienciar. O treinamento termina ou culmina quando despertarmos completamente, quando a iluminação florescer,

diz S.S.Gyalwang Drukpa. Todos os métodos ensinados pelo Buda estão presentes e incluídos dentro desta prática, como também todos os ensinamentos do Buda que tratam da disciplina (skt. shila), absorção meditativa (skt. samadhi) e discernimento (skt. prajnya) estão impregnados da essência do ngondro. O caminho completo, do início ao fim, está contido nesta síntese extraordinária dos 84 mil ensinamentos do Buda, surgida no contexto tibetano. Talvez o que nos obstaculize seja a ausência de uma compreensão mais profunda, não das características do dedo (método), mas para onde ele está apontando. A cada vez que nos dermos a oportunidade

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entrevista lama lhawang

de fitar a direção que ele esteja apontando, estaremos gradualmente despertando. “O Budismo não é uma religião. Portanto, todas as disciplinas e métodos que Buda ensinou não devem ser entendidos como mandamentos. Ao invés disso, devem ser compreendidos como uma ponte ou um remédio que é necessário por um certo período e para uma certa situação ou doença. O propósito último de qualquer que seja o Darma é o de perfurar o véu da mente conceitual,” nos ensina S.Ema. Khamtrul Rinpoche. bodisatva: Qual seria a chave para viver a relação mestre e discípulo de

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forma a avançar mais rápido na prática? lama lhawang: Não confundir o mestre com nossas projeções mentais. Olhar para seu professor como um espelho que reflete e revela aquilo que ainda precisa ser trabalhado, soltado, apertado, nutrido, enfraquecido e expandido. A função do mestre é proporcionar o olhar para dentro de nós mesmos, não para fora, onde nossas projeções usuais e hábitos mentais se encontram. Pedimos para nossos professores nos ajudarem a despertar, não a potencializar e preencher nossas carências, expectativas e medos. Os contratamos para que nos ajudem a destruir

aquilo que nos obstrui a este despertar – o nosso próprio autocentramento e o agarrarse às concepções limitadas de nossa mente conceitual. Um tempero adicional importante no desenvolvimento gradual desta relação é um bom senso profundo unido a uma partilha genuína de bondade, amor e alegria incondicionais. S.Ema. Khamtrul Rinpoche explica que “algumas vezes, damos desculpas com respeito à ausência de progresso, esforço e apreciação em nosso prática do Darma, tais como o tão falado tempos de degenerescência do Darma”, a sanga ou comunidade espiritual, nosso professor, ausência de tempo para práticas formais e assim


À esquerda: Final de retiro conduzido pelo Lama em Brasília. Algumas pessoas fazem um “V” com os dedos, repetindo o símbolo que S.S. Gyalwang Drukpa utiliza para “Vitória” sobre os obstáculos no caminho.

“A cada invocação, a cada prece, a cada mantra, estamos dando espaço para este nascimento, estamos nascendo como bodisatvas, como yoguis, como budas. Estamos nos familiarizando com o espaço criativo de nossa natureza, com sua capacidade de foco e realização natural”. por diante. Entretanto, a verdadeira prática do Darma acontece quando conseguimos perceber o Darma ou nosso mestre como um espelho que reflete a nós mesmos, onde poderemos ver que coisas precisamos melhorar. Sem este tipo de reflexão, não seremos capazes de progredir mesmo se estivermos rodeados 24 horas por dia, sete dias por semana, por perfeitos budas e mestres iluminados.” bodisatva: Existem grandes diferenças entre o budismo praticado no Oriente em relação ao Ocidente? Se sim, quais são? lama lhawang: O Darma que nos chega hoje

no Ocidente é a tradução do Darma que surgiu no Oriente. Estamos recebendo as palavras, a visão e os métodos ensinados por Buda e por grandes mestres posteriores a ele traduzidos em nossa língua, cultura e realidade atual. Neste nível, não vejo muita diferença. Um elemento muito visível, pouco presente no Ocidente porém impregnado no coração dos orientais, é o que chamamos de certeza, confiança, convicção, fé. Ouvimos as instruções, mas é muito raro sairmos aplicando imediatamente com total confiança, vigor e perseverança. O que nos obstaculiza? Quando saímos de casa para comprar água ou alimento, o que nos faz muitas vezes parar tudo que

estamos fazendo, pegar o carro ou caminhar e ir até o supermercado? Há uma certeza de que a água saciará nossa sede, de que o alimento satisfará nossa fome. Esta certeza, esta confiança nos movimenta, nos impulsiona a dar os primeiros passos, a trilhar o caminho. Se nossa prática espiritual não está andando como gostaríamos, talvez seja benéfico examinar se a verdadeira convicção sobre nossa natureza, sobre a eficacidade do caminho e seus resultados, está presente. Se não estiver, talvez seja interessante trabalhar na direção de tornar cada vez mais clara, óbvia e viva esta compreensão dentro de nossos corações e proporcionar um

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entrevista lama lhawang

espaço para ver se algo muda em nossa prática através disso. bodisatva: Como vê o surgimento dessa nova geração de mestres que deixam em segundo plano o aspecto religioso? lama lhawang: Cada elemento da teia da vida, cada surgimento, nasce fundado em uma rede interdependente viva, em movimento. Esse grande organismo vivo vai se ampliando e se renovando a partir da vibração de cada ponto em particular de sua rede. Nossos pensamentos emanam vibrações que se transmitem de ponto a ponto por toda a teia. Nossas aspirações e desejos profundos se espalham e se interconectam. A essência vital desta grande teia da vida é sua capacidade de criação, de transformação, de preenchimento e acolhimento. A partir deste centro vital, diferentes emanações surgem como expressões desta natureza, desta essência. Suas faces surgem na direta conexão

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com os outros pontos da teia, como uma demonstração da dança da criação, transformação, preenchimento e acolhimento do que é a sua natureza. Suas diferentes faces e diversificadas manifestações são expressões da bondade e vastidão de nossa natureza primordial, a essência divina deste vasto organismo. bodisatva: No contexto do Darma produzido aqui e também do budismo engajado, qual o significado da chegada da Live to Love ao Brasil? lama lhawang: O Live to Love é, como demonstra seu símbolo criado por seu idealizador, S.S.Gyalwang Drukpa, este coração vivo repleto de bondade, amorosidade e profundidade. Representa a profunda união de método e sabedoria, onde o caminho do amor se revela no caminhar, não em um resultado distante. O coração do Viver para Amar ou Live to Love é o reconhecimento de que tudo e todos são uma incessante

expressão do amor primordial, como uma dança mágica da criação divina. De forma mais profunda, Live to Love não é um movimento humanitário ou uma forma de budismo engajado. Viver para Amar é a expressão natural, viva, do acesso à bondade e amor presentes no coração de cada um de nós. Independente de nossas crenças, todos temos esta natureza de bondade e amor nas profundezas de nossos corações. Sentar é Live to Love, silenciar a mente é Viver para Amar, sorrir através do sorriso de nosso próximo é Viver para Amar, despertar sorrisos é Live to Love. Ouvir, aprender, compartilhar e apoiar os outros e a nós mesmos em tudo aquilo que produza contentamento verdadeiro, é Viver para Amar. A fundação internacional Live to Love fundada por S.S.Gyalwang Drukpa e seu nascimento em nossas terras como o Instituto Live to Love Brasil surge como mais um ponto de apoio entre muitos outros já atuantes em nosso país. Familiarizando-nos com


seu coração, proporcionará um novo nascimento, uma nova forma de viver, um novo estilo de vida para aqueles que ainda não encontraram uma fonte de apoio, como também naturalmente se unirá a outras iniciativas na mesma direção, dialogando e potencializando parcerias que fortalecem a realização de um mesmo sonho – uma vida mais saudável, mais significativa, repleta de paz, amor e compreensão. O papel do Live to Love é despertar estas sementes. E, individualmente ou em grupo, proporcionar que estas sementes se espalhem chegando às nossas famílias, comunidades, projetos individuais e organizações. Os nomes mudam, mas o coração mantém a mesma vibração do amor. S.S. o Dalai Lama expressa nossos anseios mundiais da seguinte forma: “O planeta não precisa de mais ‘pessoas de sucesso’. O planeta precisa desesperadamente de mais pacificadores, curadores, restauradores, contadores de histórias...” No caso de

nós, praticantes budistas, meditantes e yoguis, como se dá nosso engajamento nas atividades do Live to Love? S.S.Gyalwang Drukpa, o fundador da fundação Live to Love, diz que por muito tempo observou muitos de seus alunos e yoguis da Linhagem, após longos períodos de treinamento intenso no Darma através de retiros solitários em cavernas e eremitérios nas montanhas, retornarem para a vida em meio às pessoas, junto às demandas e desafios do mundo contemporâneo e se sentirem completamente desconfortáveis, aversivos, impacientes e incapazes de combinar e mesclar suas contemplações internas com o mundo externo. Sua Santidade percebeu que isto não era um bom sinal. Os efeitos de longos períodos de treinamento deveriam ser o contrário, deveríamos ser capazes de compreender o mundo e reconhecê-lo tal como é, uma dança mágica inseparável de nossa mente criativa, luminosa e toda acolhedora. Portanto, hoje, ele tem convidado seus yoguis e

estudantes a sairem de suas zonas de conforto espirituais, que muitas vezes se tornaram suas próprias prisões, a entrar em contato com o mundo, a mesclarem suas práticas e a visão do Darma com aquilo que “parece” ser não-Darma. Retiros são extremamente úteis, necessários e benéficos quando, aplicados da forma correta, forem capazes de proporcionar uma nova inserção, experiência e visão positiva no mundo em qualquer contexto e situação, diz S.S.Gyalwang Drukpa.

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budismo e vida sustentável por Lama Padma Samten

Quando trabalhamos com o tema ambiental ou, de um modo geral, com todos os temas de reorganização social, podemos partir de uma posição como se fosse uma posição derrotada. Porque vemos a sociedade andando velozmente, aceleradamente, em direções diferentes das direções da responsabilidade social, humana, psicológica, ambiental e até mesmo tecnológica. A sociedade aparentemente avança em uma direção muito perigosa, com muita força e muita velocidade.

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meditando a vida


Tenho acompanhado esse processo desde o final dos anos 1960. Nessa época, por volta de 1972, os países europeus já estavam em outra paisagem. Com 23 anos, tive a oportunidade de viajar por vários países europeus. Vi museus e outdoors trazendo a preocupação ambiental. Em um museu de ciência na Inglaterra, por exemplo, eles prepararam um espaço que simulava uma praia, com lixo esparramado. Já estavam apontando esse descuido, essa forma humana de poluir e criar obstáculos para os seres. De lá pra cá tivemos mudanças, como o meu mestre Chagdud Tulku Rinpoche costumava dizer: “As coisas boas melhoram, aumentam, e as coisas ruins também”. Algumas coisas ruins vão aumentar, mas algumas coisas boas vão aumentar também. Entre as coisas boas, tivemos, por exemplo, o despertar de uma nova consciência ambiental. Naquele tempo, o Brasil defendeu uma posição que hoje ninguém mais teria coragem de defender. Em 1974 foi feito um acordo nuclear com a Alemanha. Lembro que o general Ernesto Geisel declarou: “Pela vontade unânime do povo brasileiro, nós estamos criando um programa nuclear...”. Eu estava terminando, com os meus alunos do Departamento de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um estudo bem abrangente, uma pesquisa na área da energia nuclear. Levantamos a quantidade de acidentes e incidentes que já haviam ocorrido nos países que usufruíam desse tipo de geração de energia. E publicamos todos os resultados. Enviei o material para o professor José Goldemberg, à época presidente da Sociedade Brasileira para o

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Progresso da Ciência (SBPC). Imediatamente ele publicou a pesquisa na revista Ciência e Cultura, e assim foi criada a primeira comissão da sociedade brasileira para tratar da questão da energia nuclear. Fui convidado, então, pela SBPC, para representar essa sociedade recentemente criada. Fiz parte de todas as edições da comissão. Fui também consultor quando houve o acidente com césio radioativo em Goiânia. Esse foi um momento interessante, fui para uma posição acima dos gestores nucleares. Sempre me colocaram abaixo, naturalmente, pois era representante da oposição. Mas pela primeira vez, os governos precisaram me chamar e fui aos gabinetes dos tecnólogos dessa área. Trouxe essa reflexão inicial para nos animar, para não pensarmos que estamos com uma causa perdida na questão da educação. Vamos olhar agora o problema da macroeconomia. Podemos dizer que o capital internacional não tem problema nenhum em destruir um ambiente até o fim e depois,


simplesmente, trocar de ramo. Mas não vamos acusar só os americanos. Tenho acompanhado a questão ambiental da venda de madeira no Brasil há muito tempo. Até recortei a notícia do jornal quando foi fechada a última madeireira de Santa Catarina.

saqueadores da natureza É provável que os gaúchos estivessem em Santa Catarina antes de começar a obrigação do plantio de madeiras em reposição ao que é retirado das florestas. Eles simplesmente encerraram a produção ali e se transferiram para o Paraná. Agora os gaúchos, meus conterrâneos, estão chegando ao Pará. A madeira que o Brasil está usando agora vem do Pará. Para mim é uma coisa aflitiva imaginar que estou construindo no Recife com madeira do Pará. Eles vão desmatar, depois vão trocar de ramo. Esse é o pensamento do tipo destruidor. Não precisamos falar só do capital internacional, ou dos americanos e dos europeus,

podemos colocar essa questão do pensamento destruidor como sendo nossa também, do próprio ser humano. Esse comportamento negativo e aparentemente, vitorioso, está associado ao que podemos chamar de agronegócio. Ele vai destruindo a floresta amazônica, instalando novas paisagens. E os madereiros seguem assim, apesar de que hoje são um pouco mais regulados. Precisam cumprir a legislação e são vigiados por satélite. Lentamente está se formando um anel no entorno, o objetivo é minimizar a sua ação. Naturalmente, fazem lobby dentro do Congresso Nacional, alteram a legislação e se beneficiam de várias formas. Algumas vezes suas multas são perdoadas, mas acredito que nesse momento estão razoavelmente contidos. E assim, tentam se adequar a um novo formato, porque simplesmente não é mais possível viver desse modo, agindo com tal tipo de inteligência. Mesmo que haja uma pujança econômica, a situação é naturalmente insustentável.

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meditando a vida lama padma samten

“Talvez o grande mérito da última década tenha sido o surgimento da sensação de que podemos nos reunir em assembleias e dirigir nossos destinos”.

Percebam, não estamos no lado perdedor, estamos no lado que vai herdar o que sobrar, o que não for destruído. E teremos de gerar um conhecimento sobre como poderemos gerir uma economia de um modo mais sustentável, para produzir felicidade para as pessoas, um futuro para os nossos filhos e para as próximas gerações. Partimos de um quadro no interior do qual a sociedade se organiza para simplesmente saquear. Temos, seguramente, pelo menos cinco séculos de saques gerais. A história da humanidade nos últimos cinco séculos é essa, de saquear povos, saquear a natureza, saquear as montanhas, os rios, saquear de um modo geral, tudo com que nos deparamos. Tenho um amigo historiador que lançou um livro recentemente, com um prefácio do Leonardo Boff, muito interessante. Ele mostra como o Brasil já nasceu ajustado à economia globalizada. Quando o Brasil foi “descoberto”, ninguém perguntou para as pessoas que viviam aqui quais eram as suas prioridades. A prioridade

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era unicamente o capital internacional. Fomos colonizados pelo capital internacional da época, a Companhia das Índias. A divisão das capitanias hereditárias foi feita no papel. Sem conhecimento dos rios, dos povos e das aspirações políticas das pessoas que viviam no país. Os primeiros imigrantes eram administradores, todos eles fidelizados ao capital internacional e à gestão internacional. Falavam uma língua que ninguém entendia e que, aliás, tornou-se a língua vigente na nova terra. Eles trouxeram populações de outros lugares para viver no “novo” território e para trabalhar, trabalhadores internacionais que vieram forçados, pelo que se sabe. Vieram forçados e não tiveram voz ativa alguma nesse contexto. O que eles plantaram também foi trazido de outros lugares, essencialmente a cana-de-açúcar. De resto, tudo o que havia originalmente aqui foi saqueado, os minérios e as florestas. Toda tentativa de uma consciência local foi suprimida. Temos mártires de norte a sul do país, pessoas que pensaram de forma subversiva, ou seja, que fizeram um círculo como o nosso nesse novo projeto educacional, e que pensaram como poderíamos viver melhor. A questão que se coloca é: “Nós, o povo dessa terra, queremos fazer o que aqui?” Ainda privilegiamos as elites nacionais e internacionais, somos ainda, de uma forma não muito clara, colonizados por um pensamento externo. Desse modo estamos criando e sustentando a realidade do país. Talvez o grande mérito da última década tenha sido o surgimento da sensação de que podemos nos reunir em assembleias e dirigir nossos destinos. Isso é profundamente subversivo,


para usar uma linguagem dos anos 1960 e 70. É algo realmente novo. Tenho encontrado diversos grupos em diferentes organizações, algumas grandes, como a Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, a Braskem, o Votorantim. Converso com eles, sou constantemente convidado para diálogos. E quem me convida são os próprios gestores, pessoas como nós, seres humanos, que também querem fazer diferente. Mas estão dentro das organizações, não podem, não conseguem promover grandes alterações, porque as organizações onde estão inseridos já têm uma feição. E as pessoas que estão dentro desse processo têm de operar com uma determinada inteligência. Não há outra forma de gerir. Essa é uma questão que se coloca para todos nós.

novos eixos na educação Olhando essa situação nos damos conta de que os professores têm uma importância admirável. Eles estão lidando com as novas gerações, vão formar as pessoas que aceitarão ou não o que é colocado pronto para elas. Hoje encontramos muitas crianças que não estão se adaptando à escola. Talvez a gente não esteja entendendo bem o que isso significa. Porque também não sentamos em roda e pensamos propriamente como deveria ser a escola. As crianças estão mudando. E as escolas estão gerando adultos que talvez possam não se ajustar à forma como a sociedade está se mantendo. Ivan Illich, um pensador da década de 1960,

escreveu um trabalho muito importante chamado “Sociedade sem Escolas”, onde mostra o papel político da escola tradicional como sendo o papel de domesticação das pessoas. E assim, vejo o projeto do Curso Educação para Sustentabilidade, inspirado no Educação Gaia como muito importante, pois não se trata de domesticar, mas sim de emancipar os alunos. É maravilhoso que a gente consiga gerar isso, que possamos dar a nossa contribuição e que, através da nossa inteligência local, possamos passar a pensar globalmente de um modo mais lúcido. O ponto seguinte é: precisamos encontrar eixos referenciais para essa mudança educacional. Eixos que a gente não precise abandonar no futuro. Esse processo de assembleia torna necessário o estabelecimento de um eixo referencial através do qual possamos conversar com as pessoas em qualquer lugar. Vou trazer uma contribuição, mas vocês não precisam utilizar isso. Se encontrarem um eixo referencial melhor, eu mesmo vou adotálo. Esse eixo referencial foi utilizado por Sua Santidade o Dalai Lama. Não se trata de um referencial religioso. É um referencial de bom senso, uma percepção de como sentimos a vida, o mundo. De uma forma consciente ou não, buscamos a felicidade, buscamos ultrapassar o sofrimento. E de um modo geral, não apenas os seres humanos, mas os animais, as plantas, todos os seres têm esse referencial. Esse referencial é muito importante. O Dalai Lama costuma pergunta aos cientistas: “Qual é a base ética de vocês?” E eles olham com

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meditando a vida lama padma samten

“Precisamos ultrapassar a noção de que o mundo já está pronto e de que tudo se resume a ocuparmos postos de trabalho”. uma cara estranha. Os cientistas se movem, não precisam propriamente de uma base ética. Eles imaginam que o conhecimento, a ciência em si mesma, seja alguma coisa naturalmente pura e, assim, tudo aquilo que for criado dentro do que chamamos “ciência” esteja bem. Mas poderíamos fazer uma pergunta mais específica: “O senhor trabalha para a felicidade da população?” Acho que responderiam: “Não tenho bem certeza, mas decerto que sim”. Ou também poderíamos perguntar: “Você trabalharia para gerar sofrimento para as pessoas?” Certamente a resposta seria: “Ah não, isso não”.

A FELICIDADE EM QUESTÃO Nos anos 1970, no Departamento de Física da UFRGS, pesquisávamos sobre terras raras, um determinado tipo de material. Ninguém sabia muito bem por que realizávamos aquela pesquisa. Um outro professor nos esclareceu que as terras raras são utilizados para melhorar a economia de nêutrons nas bombas nucleares. Descobrimos que estávamos engajados no esforço de guerra americano. Recebíamos as verbas das agências de pesquisa americanas como se fossem algo muito bom para o nosso departamento. Por que estávamos fazendo aquilo? Porque não havia um conselho de ética. Temos um conselho de cientistas no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), no Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que julgam as verbas, mas eles mesmos não possuem um

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conselho de ética. Aprecia-se mais se a pesquisa é interessante dentro de uma aspiração por prestígio internacional. Ocorre o mesmo no cenário econômico. Se perguntarmos para as empresas: “Você está produzindo a felicidade para as pessoas ou está produzindo a destruição do ambiente?” Eles, provavelmente, diriam: “Olha, nós não entramos em questões políticas”. Também poderíamos perguntar: “E a escola, está produzindo o quê? Estamos produzindo a felicidade das pessoas?” Com essa pergunta, nos damos conta de que a escola se encontra atrelada ao esforço econômico. Treinamos pessoas que ao final do processo afunilam-se, dentro de uma inteligência que visa à ocupação de postos de trabalho, como se essa aspiração desse conta de todos os nossos anseios como seres humanos. Mas a escola, em algum momento, pensou no ideal de felicidade e de ultrapassar o sofrimento? Em algum momento se pensou sobre isso? Não se pensou, nem ao menos olhamos para as crianças, para apurar se a felicidade delas foi o resultado da nossa ação. Naturalmente, precisamos de uma visão econômica, uma visão de como andar no mundo. Mas precisamos ultrapassar a noção de que o mundo já está pronto e de que tudo se resume a ocuparmos postos de trabalho. Precisamos ultrapassar a visão de que somos derrotados quando não estamos preenchendo um desses postos. A questão humana é de grande importância. Por quê? Isso foi o que, na minha história pessoal, me levou a olhar o aspecto espiritual como um


foco. Percebi que, mesmo que a gente gere uma visão ecológica, se não gerarmos uma visão interna elevada, se não melhorarmos como seres humanos, não conseguiremos implantar boas ideias, mesmo que elas existam. Os professores são alimentados pela alegria que veem nos rostos dos alunos. Essencialmente, essa visão de que buscamos a felicidade e nos afastar do sofrimento, nós, os outros, as crianças, a sociedade como um todo, e que temos um destino positivo, e que podemos assumir isso na nossa mão, gerar o conhecimento que precisamos. Temos os mais diversos desafios locais. Mas em todos esses locais podemos produzir novos conhecimentos. Somos pesquisadores, inovadores, podemos produzir coisas inéditas. E, com certeza, operar com essa forma de mente é muito mais interessante. Educação para Sustentabilidade não é um processo de ensino, é um processo de geração de conhecimento. Todos geram conhecimento, todos são participantes. E aprendemos uns com os outros, o tempo todo. Ainda como um novo referencial, seguindo a inteligência reflexiva que estamos olhando, temos as tradições contemplativas, a sabedoria advinda da prática do silêncio. Após contemplar, silenciamos. Considero o silêncio como uma experiência muito importante no processo vivo do conhecimento. Se os alunos conseguem ficar em silêncio, ficam menos responsivos, aprendem a ver o estímulo ao redor e a não responder de imediato, de um modo compulsivo. Esse silêncio não é um amortecimento, não

é sonolento. É mais parecido com um silêncio do goleiro na hora do pênalti. Ele é aberto, receptivo e intenso, mas o aluno não se move, treinamos assim. Essa é a base mais profunda da inteligência. Essa capacidade de gerar o conhecimento e de parar diante das coisas é o que de fato produz o novo. De outro modo, seguimos simplesmente respondendo. A Educação Gaia é uma possibilidade de nos reconstruirmos, de aprendermos a olhar de forma ampla, aberta. E essa minha fala é no sentido de evidenciar que nunca estamos realmente derrotados, mesmo quando imaginamos que o sistema educacional falhou completamente. Texto baseado em palestra no curso Educação para Sustentabilidade, em Viamão, abril de 2012. Revisão e edição de Brenda Neves.

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manual para o bodisatva

de hoje

Com tanta compaix茫o pelos seres e desapego pela pr贸pria identidade, o bodisatva ofereceu o pr贸prio corpo para ser devorado por uma tigresa. Mas como podemos agir no mundo de hoje, fragmentados em muitas diferentes personagens? Qual a maneira de beneficiar os seres, mas sem ser devorado pelo orgulho, a tristeza ou a ansiedade?

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capa por Carmen Navas Zamora colaboração de Guilherme Erhardt e Luís Felipe Villas-Boas O bodisatva andava por montanhas remotas e viu uma tigresa faminta, com dois bebês-tigres. Não havia alimento algum por perto e a felina teria que devorar um deles, ou os dois, se quisesse sobreviver. Ele não tinha qualquer apego ou identificação com o próprio corpo. Colocou a cabeça diante dos dentes da tigresa e com isso resolveu a questão. Uma solução, sem dúvida, muito eficiente, embora talvez radical aos olhos dos seres comuns. Mas como cada um de nós pode fazer brotar o ideal bodisatva nos dias de hoje? No tempo em que esta história surgiu, não havia tantas pessoas cansadas do trabalho, estressadas pelo trânsito, obcecadas por consumo e autoimagem, decepcionadas com a política, ansiosas, deprimidas e dependentes dos mais variados tipos de substâncias químicas e situações.

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reportagem manual para o bodisatva de hoje

Em primeiro lugar, é preciso dar-se conta de que o pensamento de trazer benefícios a outras pessoas está presente em nosso cotidiano. Mais do que isso, a compaixão e o cuidado com o outro são a base de nossa existência. Os bebês não sobrevivem se não forem alimentados e protegidos. Em algum momento da vida, cada um de nós depende do cuidado de alguém. Em outras palavras, os seres humanos querem, precisam e se sentem contentes em ajudar uns aos outros. Na ciência, a importância da cooperação tem sido apontada pelo biólogo chileno Humberto Maturana, no que ele chamou de “biologia do amor”. Para ele, o “amor é um fenômeno biológico que não requer justificação” . Isto significa que os seres humanos interagem pelo simples prazer da companhia, da simpatia, do afeto, da preferência, mas, fundamentalmente, pela aceitação do outro. O pensador religioso Leonardo Boff vai além: “Não foi a luta pela sobrevivência do mais forte que garantiu a persistência da vida e dos indivíduos até os dias de hoje, mas a cooperação

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e a coexistência entre eles. Os hominídeos de milhões de anos atrás passaram a ser humanos na medida em que mais e mais partilhavam entre si os resultados da coleta e da caça e compartilhavam seus afetos. A própria linguagem que caracteriza o ser humano surgiu no interior deste dinamismo de amor e de partilha”, escreveu Boff. Outra boa notícia é que estamos mais organizados para agir. Se um turista hoje, passeando por um parque ecológico, avistasse uma tigresa com problemas, bastaria acessar uma das muitas entidades que, no mundo todo, agem para defender animais que sofrem abandono ou violência. Os exemplos são inúmeros. Navios desviam suas rotas em muitos quilômetros para resgatar embarcações em dificuldades no mar. Famílias distribuem entre a criançada da vizinhança as roupas e brinquedos que seus filhos já não utilizam. Pessoas separam uma parte de seu dinheiro e objetos queridos para doar às vítimas de desastres. O ensinamento budista das cinco sabedorias surge como um guia importante para trazer benefí-

cios a nós mesmos e aos outros, mesmo em nossas complexas bolhas de realidade. Tem sido oferecido pelo Lama Padma Samten em palestras e retiros em várias cidades brasileiras. Além disso, transformou-se num método para educar os alunos Escola Infantil Caminho do Meio, em Viamão (RS). Desde pequenos, meninos e meninas estão aprendendo a agir como bodisatvas, e seus professores e familiares passam pelo mesmo processo. Adaptamos a seguir alguns pontos fundamentais para quem quer entender a aflição do outro, e como ajudá-lo a se livrar dela. Para saber mais: livro Mandala do Lótus, do Lama Padma Samten.


1 acolha o outro como ele estiver

O acolhimento começa com um olhar para o outro em seu próprio mundo. Isso significa uma compreensão bem mais profunda do que julgar se o que o outro está fazendo é certo ou errado. O que nos parece errado faz sentido dentro de uma outra visão de mundo. Vamos nos movendo com a certeza de que chegaremos a algum lugar, embora, no mundo condicionado que os budistas chamam de samsara, não exista a solução perfeita e duradoura sonhada por muitos de nós. Como descreve o Lama Padma Samten: “Cada um de nós está preso num tipo de bolha diferente, atuando de uma forma própria, num mundo próprio. Cada um tem uma forma de viver no mundo e se manifestar, com

suas energias e seus movimentos. E por mais que cada um faça esforços dentro de seu mundo, as coisas não vão se resolver”. O problema é que, quando focamos a necessidade de conseguir coisas boas e nos livrar do que nos parece ruim, podemos olhar uns para os outros de forma utilitária. Isso acontece até nos relacionamentos de casal, ou dentro das famílias: de alguma forma queremos usar o outro para obter uma situação mais favorável para nós mesmos. Se isso se mostrar impossível, a relação pode azedar. Abrir mão desta forma de pensar é fundamental se quisermos verdadeiramente ajudar alguém. Por isso, é muito importante entender o outro

no mundo dele. Esquecemos qualquer tipo de expectativa ou papel que queremos que o outro desempenhe em nosso jogo. Que mundo este ser habita? Esta é a pergunta que nós nos fazemos. Um exemplo: quem olha para os filhos já querendo que no futuro eles sejam isso ou aquilo, está indo pelo caminho errado. O melhor é olhar para o mundo deles e ajudá-los nas boas iniciativas que eles tenham. Seria o caso de perguntar: “Filho, como vão o seu mundo e as coisas que você está fazendo”? Assim, a pessoa não vai se sentir cobrada a ser de um jeito ou de outro, a cumprir esta ou aquela expectativa.

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reportagem manual para o bodisatva de hoje

2 regue as qualidades positivas

Uma boa maneira de ajudar é ter um interesse genuíno pelo que acontece com o outro. Quando ficamos sabendo que alguém está com problemas, poderíamos ter o impulso de pensar: “Isso é lá com ele, eu aqui estou bem”. Em vez de seguir este raciocínio, experimente pensar: “Se as pessoas têm complicações sérias, isso é comigo, eu vou ajudar no que puder”. A humanidade não sobreviveria sem este tipo de inteligência. Nas famílias, é comum que os pais e mães alimentem e vistam seus filhos e se sintam bem por isso. Quando sabem de algum conhecido que adoeceu, as pessoas perguntam, telefonam, visitam. Se alguém passa na prova, dizemos “Parabéns”.

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Quando perdemos um ser querido, amigos nos apoiam com abraços, conversas ou pequenas distrações que vão nos ajudar a superar a tristeza. Tudo isso quer dizer algo mais do que simples convenções sociais. Existe uma consideração sincera pelo que se passa com o outro. Embora talvez fosse mais fácil não se incomodar com a situação, vamos buscar uma integração maior com o outro, afinal, de alguma forma nós somos iguais. Tudo que ocorre na vida de um ser tem consequências e sempre estamos interligados de alguma maneira, já que as separações são artificiais. Aqui focamos as qualidades positivas nas pessoas e nos motivamos a sustentá-las. Essencialmente podemos resumir em

que a alegria do outro é a nossa alegria. Essa forma de operar a mente diminui nosso orgulho porque conseguimos ver a igualdade de nós mesmos com as outras pessoas. Quando nos sentimos separados de outras pessoas, a partir disso começamos a ver as coisas como ruins ou boas, em superior e inferior. O orgulho nos blinda e perdemos a capacidade de aprender com os outros.


3 incentive uma compreensão ampla de mundo

Agora nos aproximamos de uma perspectiva mais pedagógica, incentivando que o outro aprenda como e por que sua vida se manifesta de determinada maneira, e não de outra. Se estamos lidando com crianças, encorajamos que elas utilizem a própria curiosidade para investigar o mundo. Os pequenos estão o tempo todo nos bombardeando com perguntas. Por que as abelhas fazem mel? Como surgiram os planetas? Em vez de trazer respostas prontas, é melhor examinar as possibilidades e opiniões existentes, comparar com a experiência que temos e tentar chegar às nossas próprias conclusões. Quando estudamos budismo, nós olhamos para as coisas e essencialmente entendemos as

causas do sofrimento, a base da compreensão das causas do sofrimento e como podemos ultrapassar essas causas. Entendemos as causas da felicidade e como encontrá-las. Isto significa que entendemos as Quatro Nobres Verdades, o Nobre Caminho Óctuplo e os 12 elos. Vamos acessar uma liberdade que nos permite compreender as situações. Também desenvolvo uma compreensão das outras pessoas, eu olho para elas e vejo como ajudá-las, minimamente que seja, vejo como brota essa sabedoria dentro de nós. Quando nos movemos por este campo, podemos descobrir respostas que estão dentro de nós e que podem mudar o que está fora. Esta inteligência pode ser bastante útil para

ajudar pessoas que estão se sentindo encurraladas em algum tipo de situação. Vivemos 24 horas por dia com nossas certezas inquestionáveis e raramente nos damos ao trabalho de investigar como elas surgem. Podemos explorar o terreno das possibilidades presentes na mente da pessoa: será que a solução que você imagina é mesmo a única possível? E se você buscasse mais informação sobre outras atitudes que poderia tomar? E se você pesquisasse mais este assunto? E se houver caminhos óbvios dos quais você ainda não se deu conta? São exemplos de boas perguntas que podem ser desvendadas quando estamos ajudando alguém.

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4 dê limites

A todo momento nos deparamos com intenções negativas e ambientes dominados por competição, em vez de cooperação. Mas, em vez de assumir uma postura de crítica, vamos desejar que as pessoas se livrem daquilo. Vamos sentir compaixão, sem considerar que se trata de algo que prejudica nossos interesses. Em certos momentos, devemos agir com rigor para evitar uma ação equivocada. Ou seja, chega a hora de dar o famoso limite. Mas atenção! Não vamos agredir o outro, esbravejar, reivindicar coisas dentro do eterno jogo de ganho e perda. Mais uma vez, é preciso estar atento ao nosso estado mental. Perturbação e agressividade não estão presentes, apenas o desejo de afas-

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tar o perigo da negatividade. “Todas as regras monásticas estão incluídas nesta forma de sabedoria, com o que se deve e não se deve fazer para evitar problemas entre os monges”, exemplifica o Lama Samten. Nas famílias, os limites podem estar presentes nas combinações entre pais e filhos sobre a hora de desligar a TV, o tipo de alimentação que vai favorecer a saúde, a necessidade de cooperar nas tarefas domésticas. Essas são combinações que podem encontrar resistências em pessoas da família. É preciso encarar estas resistências e estimular que se cumpram as regras, porque assim todos vão conviver com mais respeito e harmonia. A ação de enfrentar a nega-

tividade não significa que tenhamos que nos contaminar com ela. Se alguém está se afogando no mar e o salva-vidas age rápido para tirar o outro do sufoco, isso não quer dizer que o salva-vidas se afligiu ou se irritou. Pelo contrário, vamos perceber que se ele ficou imperturbável diante do pânico do outro e agiu somente para evitar que ele morresse, a missão foi cumprida. O mesmo acontece com o bombeiro que vai apagar um incêndio, ou com o obstetra que vai atender uma gestante que está muito nervosa. Se quisermos realmente ajudar alguém, temos que estar preparados para manter a calma nas emergências, mais ou menos como fazem estes profissionais.


5 liberte-se da tirania dos personagens

A liberdade natural da mente é a base que permite todas as manifestações de inteligências. Somos livres para nos construir e desconstruir com diferentes personagens. O problema é que nos fixamos de alguma maneira à própria situação do personagem e, quando ela se altera, vamos sofrer. Por isso, quando estamos ajudando alguém, precisamos identificar quando estivermos operando com rigidez. Percebeu? Então relaxe. Se levar a “tarefa” a sério demais, você ficará esgotado e triste e sentirá que esta missão não é para gente como nós. Nem sequer existe uma “tarefa”. Não precisamos ganhar nada, nem nos grudar a alguma coisa. Esta é uma sabedoria sutil e ao mesmo tempo transcendente.

Vamos transcender todos os aspectos transitórios, pois há uma natureza incessantemente presente, luminosa, que não é atingida pelas coisas. Uma boa analogia é pensar que não importa quantas ondas existam, o lago está lá. Esta região de lucidez, coragem, estabilidade, criatividade e segurança está presente em cada um. Desconstruir a relação que temos com os seres a quem ajudamos é fundamental. Se você ouve problemas sérios de alguém que está muito perturbado, imagine que aquela pessoa é livre. Ela não é do tamanho de sua perturbação – é muito maior. Terapeutas e psiquiatras precisam aprender a liberar seus pacientes da ideia de que são pessoas infelizes

e sem nenhuma chance de melhorar. O problema, por mais sério que pareça, não é o único aspecto da vida da pessoa. Se insistissem nesta ideia, os terapeutas rapidamente perderiam a energia e motivação. Em vez disso, é melhor pensar que as mentes são livres e que a suposta aparência de perda e desgraça não é uma realidade concreta. Dentro de nós, vamos encontrar respostas para tudo que vemos fora e cada uma destas respostas pode ser incrivelmente surpreendente.

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ajudar sem estar ajudando

No dia 15 de agosto deste ano, cerca de 5 milhões de pessoas receberam o seguinte recado de Sua Santidade, o Dalai Lama: “Quando eu acordo de manhã, faço um voto de ser útil aos outros”. Não, estas pessoas não estavam reunidas num lugar específico, ouvindo ensinamentos sobre compaixão. As palavras do líder budista chegaram via Twitter, uma das invenções pósmodernas que mantêm conectados, o tempo todo, milhões de usuários de telefones celulares e computadores. Os grandes mestres não se acanham diante das mudanças tecnológicas ou comportamentais de uma época; eles seguem trazendo benefícios aos seres, aproveitando as ferramentas de que dispõem.

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O Lama Dzigar Kongtrul Rinpoche , da tradição tibetana Nyingma, publicou recentemente, em sua página do Facebook, uma interessante descrição do que seria a vida do bodisatva de hoje: “Alguém que tem um meio de vida e talvez também uma família; que tem um caminho espiritual e que vive uma vida de serviço aos outros. Alguém que equilibra estas três esferas. Portanto, as demandas e situações da vida moderna estão incorporadas ao caminho espiritual dele ou dela, e não são vistos como separadas, ou em conflito com a prática e o serviço”. É comum encontrar nos ensinamentos advertências contra o orgulho que pode

atacar as pessoas altruístas. Primeiro, porque cooperar é natural, impessoal, é uma inteligência disponível para todos, e não uma característica de alguém. Segundo, porque sempre é melhor não construir uma identidade do tipo, “eu sou aquele que ajuda”. O mestre não-sectário Dzongsar Khyentse Rinpoche, conhecido por adaptar o ensinamento clássico aos dias de hoje, ensina que a melhor atitude “é ser completamente inútil, mas ainda assim governar um país”. Pessoas que se sentem fracas, atormentadas ou sem energia por ajudar os outros deveriam pensar melhor nas próprias expectativas. Estamos ajudando alguém, mas no fundo pensando mais em nosso próprio


Da esquerda para direita: Dalai Lama, Dzigar Kongtrul Rinpoche, Dzongsar Khyentse Rinpoche e Lama Padma Samten.

interesse? O ensinamento das cinco sabedorias deixa claro que a prática da cooperação nos traz grande alegria e coloca um brilho a mais em nossas atividades. Existem, no entanto, profissionais e voluntários que lidam diariamente com pessoas e ambientes em sofrimento, nas prisões, hospitais psiquiátricos, campos de refugiados, etc. Nestes casos, é comum que exista frustração por não ver qualquer efeito na ajuda que oferecemos, mesmo que utilizemos diferentes recursos e todo o nosso esforço.

cia, que nos libera da solidez. “Se aquilo não tem solução, está solucionado. Num sentido mais sutil, não existe a loucura, nem o estado psicótico, nada disto. A natureza da pessoa não é afetada, nem se ela morrer sob tortura, gritando. Precisamos entender o aspecto ilusório e onírico da realidade. Não podemos entrar na dinâmica do samsara que a pessoa está viv endo, ou perderemos a lucidez”.

O conselho do Lama Padma Samten para estes casos é que se use mais a quinta inteligên-

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peregrinos

na rota

dos budas

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visão por Carmen Navas Zamora Embarcar em uma peregrinação para a Ásia é como suspender temporariamente a nossa zona de conforto. Do outro lado do mundo, está uma terra repleta de povos, costumes, cheiros e sabores diferentes dos nossos. Também estão as cavernas, templos e paisagens que inspiraram os grandes mestres do passado. Como podemos usar os obstáculos para melhor aproveitar nosso tempo durante uma viagem de Darma? Conheça a seguir algumas histórias de quem encarou o desafio.

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visão peregrinos na rota dos budas

À esquerda: Geferson, que passou por lugares importantes para o budismo e também por situações difíceis. À direita: Sergio estudou o idioma tibetano para traduzir grandes mestres como Kenpo Karthar e Joaquim Monteiro (canto da página) estudou budismo por 18 anos.

Índia, junho de 2009. A temperatura era de mais de quarenta graus nas ruas de Deli e passava da meia-noite quando o gaúcho Geferson Vargas finalmente encontrou um hotel. Para quem nunca tinha saído do Brasil e não conhecia ninguém na cidade, tudo parecia estranho e um pouco ameaçador. Esgotado pelo calor e a longa viagem, bebeu um copo de água ofereciido na portaria. Deixou o passaporte com o porteiro e subiu para o quarto, cujo ar-condicionado não funcionava. Foi quando percebeu que tinha feito tudo errado. “Antes de partir, os amigos tinham enfatizado duas recomendações: beba somente água mineral e não entregue seu passaporte a ninguém”. “Pois em menos de quinze minutos eu tinha cometido os dois erros”, relembra ele,

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às gargalhadas. A reação foi cinematográfica: ele correu de volta à portaria, pulou por cima da mesa e arrancou o passaporte da gaveta onde o porteiro o havia guardado. “Gritei, num inglês muito precário e misturado ao português, que não deixaria meu passaporte com ele de jeito nenhum. O indiano deve ter pensado que eu enlouqueci”, conta. Embarcar numa peregrinação budista e aprender mais sobre o Darma nos países do Oriente é o sonho de muitos praticantes brasileiros. Mas o que realmente é preciso para seguir este caminho, além de tempo, saúde e algum dinheiro? A disposição de enfrentar os obstáculos com lucidez e humor é fundamental. O convívio com

a diversidade de clima, idioma, comida, roupas e costumes é apenas uma primeira etapa, mas pode ser suficiente para desanimar. Os luxos e diversões do Ocidente não são comuns nas comunidades de budistas no Nepal e na Índia, por exemplo. Até um simples cineminha com os amigos nem sempre é possível e caso se consiga, é bem provável que o filme seja produto de Bollywood, falado em hindi – sem legendas. Para Geferson, o choque da chegada à Índia é hoje parte de um divertido repertório de histórias de uma viagem que se estendeu até março de 2011. Durante este tempo, Geferson frequentou o Sarah College, em Daramsala, vinculado à tradição tibetana, conheceu budistas de todo o


mundo e recebeu ensinamentos de mestres respeitados. Mas nem todos os episódios foram divertidos. “O pior momento foi quando minha mãe morreu de complicações cardíacas”, lembra ele. “Eu não podia voltar ao Brasil, senão perderia o visto e todo o esforço para comprar a passagem e ser aprovado no Sarah. Tudo que eu podia fazer era sentar e rezar por ela”. O professor Joaquim Monteiro, ordenado monge na tradição Terra Pura e com dezoito anos de estudos no Japão, foi um dos pioneiros na experiência de trocar o Brasil pela Ásia. Ele começou os estudos no seminário budista de Kyoto entre os anos 1985 e 1987. Em seguida,

foi viver e praticar com os camponeses do norte do Japão. A partir de 1995, decidiu completar os estudos de mestrado e doutorado em estudos budistas na Universidade de Komazawa, entre 1995 e 2001. Sua principal recomendação ao viajante é manter a mente aberta e evitar todo tipo de julgamento e preconceito. “Por exemplo, é comum ver mestres e alunos bebendo e debatendo o Darma nas cervejarias. Quem tem uma visão muito puritana do budismo pode ter uma decepção séria com coisas assim”. Outra sugestão do monge é que o praticante fique atento ao que a linhagem Terra Pura chama de “encontros significativos”. São encontros com pessoas especiais, capazes de produzir

grandes mudanças na vida de alguém. Eles ocorrem ao longo da vida e vão definindo caminhos a serem seguidos. “É preciso perceber quando conhecemos pessoas assim, principalmente se são professores do Darma”, avisa. Ser perseverante e paciente é a recomendação do baiano Sergio Sena, que trocou o Brasil pela Índia em 2003. Aluno de Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche, Sergio interessou-se pela língua tibetana e foi estimulado pelo filho dele, Tulku Jigme, a prosseguir os estudos no Nepal. Mudou-se para Katmandu com Inez, então sua esposa, e teve que usar muita determinação para avançar nos estudos, já que a gramática é

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visão peregrinos na rota dos budas

À direita: Richerly enfrentou obstáculos para aprender pintura sagrada tibetana e Tiffani (ao lado) sofreu preconceitos por ser ocidental – mesmo assim, elas seguiram em frente. A stupa de Katmandu (foto maior abaixo) é um dos maiores centros de peregrinação do Nepal.

especialmente complexa. “A língua tibetana é muito difícil, na verdade é outro sistema de pensamento. Mas sabendo o idioma eu convivi com os tibetanos em suas casas, como amigos, visitando, comendo e bebendo com eles”, comemora Sergio. Ao fazer as malas e embarcar para uma permanência longa na Ásia, o praticante precisa estar pronto para encarar uma vida com algum desconforto e até perigo. Esta foi a experiência da pernambucana Richerly Fernandes, que deixou o Brasil em julho de 2009, com uma bolsa de estudos para aprender pintura sagrada tibetana (tangka) na Tsering Art School, em Katmandu, Nepal. Nas aulas

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com a professora Yangzom Tsering, todos realizam cerimônias (pujas) antes e depois de pintar. Ela tinha que manejar pinceis e tintas, sentada no chão, de pernas cruzadas, por longas horas. É considerado desrespeito parar o trabalho para esticar as pernas. “O pior era ter que viajar até a Índia periodicamente, a cada vez que o meu visto vencia. Cheguei a passar 12 horas dentro de um ônibus superlotado, e esta palavra na Índia tem um significado bem mais sério do que aqui. Tive que dormir agarrada à mochila e não pude ir ao banheiro”, lembra. Alguns anos antes de Richerly, outra brasileira tinha se aventurado na busca do conheci-

mento sagrado da tangka. A paulista Tiffani Hollack, hoje com 31 anos, foi a primeira aluna brasileira no Instituto Norbulingka, em Daramsala, Índia. Causou estranhamento até entre os professores, que eram especialmente severos ao julgar seu trabalho. Ela perdeu a conta de quantas vezes passou mal por causa da água não-tratada e da poluição do ar. Mas a viagem teve desdobramentos positivos e surpreendentes: Tiffani conheceu o tibetano Kelsang Gyatso, com quem teve um filho, Arion, hoje com 6 anos, uma prova de que a aventura valeu a pena. “Era um sonho estar ali, aprendendo tangka, então não importa se te chamam de “gringa” ou se você está com febre indiana por


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visão peregrinos na rota dos budas

meses, você senta e faz o sonho se tornar realidade”, simplifica. Depois de voltar ao Brasil, a artista liderou o trabalho de pintura do Templo Caminho do Meio e com frequência recebe convites para ensinar a técnica. O que era apenas sonho transformou-se em vida cotidiana. a viagem que não acabou Depoimento de Raquel Rech Embarquei sozinha para Delhi, com destino a Dharamsala, 10 dias antes de começar uma yatra (peregrinação) pelos oito locais sagrados da vida do Budha Shakyamuni. Queria ver, sentir e praticar o Darma na sua terra de origem e entender o feminino neste universo de mestres e gurus, quase todos em formas masculinas. Isso era o finalzinho de dezembro de 2009. Estive com o pessoal na yatra pela Índia e Nepal por um mês e meio. Depois, o grupo seguiu viagem e eu fiquei no local em que meu coração ficou. Parecia um lar conhecido em meio a esta morada maior na qual todos vivemos. Permaneci por um mês no Druk Amitabha Mountain (a Mon-

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À direita: Raquel aponta o caminho da caverna de Pharping, no Nepal, região em que fez retiro por dois meses. À esquerda: Perto de Katmandu, no Nepal, a Montanha Druk Amitaba é um importante lugar de peregrinação.

tanha Amitaba do Dragão), um monastério de monjas budistas de S.S. Gyalwang Drukpa, o líder espiritual da Linhagem Drukpa. O local, em Kathmandu, Nepal, havia sido apresentado para o grupo de brasileiros pelo então monge Tenphel (o gaúcho Gabriel Jaeger), agora Lama Jigme Lhawang. Lá permaneci em retiro aberto. Fazia os pujas todos os dias com as monjas e acabei atuando um pouquinho como acupunturista na Druk White Lotus Clinic (Clínica do Lótus Branco do Dragão), construída atrás do convento. A afinidade com as monjas ocorreu de forma natural. Sendo a única ocidental por ali naqueles momentos, mesmo com um inglês muito deficiente, acabei desenvolvendo uma conexão profunda com elas. Lama Jigme Lhawang estava saindo de um retiro em uma caverna isolada quando nos recebeu para a yatra. O brilho dos olhos dele, sua serenidade e alegria genuína eram impressionantes! Era evidente que havia alguma grande conexão com Lama Jigme Lhawang, com seu mestre, Sua Santidade Gyalwang Drukpa, e com esta

linhagem. Quando o mês de estadia no Amitabha terminou, no final de março de 2010, retornei ao Brasil sabendo que logo voltaria a vivenciar aquilo tudo mais de perto. Mas o logo veio antes do que minha mente poderia imaginar. Embarquei numa peregrinação (Eco Pad Yatra) pelos Himalaias do Sikkhim em dezembro de 2010, com Gyalwang Drukpa e suas monjas e monges. Foi uma experiência indescritível ver um Guru tradicional, que é chamado de o Grande Dragão, empoderando as monjas, incentivando sua autonomia, inclusive com as práticas de Kung Fu, foi surpreendente! Ele direciona sua ação também para a preservação da cultura dos Himalaias e caminha em peregrinação para recolher os plásticos que são atirados pelas beiras de belíssimas estradas e nas subidas das montanhas. Essa prática revitaliza a tradição dos antigos yoguis e yoguinis, mostrando que o budismo, antes de ser uma religião, é e sempre será uma prática do despertar em um tempo contemporâneo.

A experiência foi tão positiva que, com o incentivo e orientação de Lama Jigme Lhawang, ajudamos a trazer a ONG Live to Love, fundada por Gyalwang Drukpa, para o Brasil. Para mim é como compartilhar um pouco do que tive o privilégio de experienciar no Oriente. A yatra é permanente. E o viver para amar também!

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reportagem manual para de o bodisatva ação lições de um retiro dois anosde hoje

lições de um

retiro de dois anos

por Henrique Lemes

Falar de um retiro não é algo fácil, o tema é delicado, como ter um filho, creio que só quem já teve um sabe como é, não tem muito como contar. De um modo geral, as pessoas idealizam não só o retiro, mas todo o caminho espiritual. Há uma ideia assim, meio romântica, alguns imaginam que em um retiro começamos a ver coisas. Em Recife, uma pessoa me perguntou se eu havia recordado das minhas vidas passadas. Não me lembro do número do meu celular, como poderia lembrar as vidas passadas? As pessoas perguntam todo tipo de coisa, por causa desse romantismo, uma coisa um pouco perigosa em termos de prática. Creio que todos nós entramos imaginando alguma coisa, mas na verdade, nunca as coisas acontecem bem assim. Sempre há um javali (animal que representa a identidade ou ego, no ensinamento da Roda da Vida) querendo colocar uma medalha no peito, querendo alguma coisa. O centro da Roda da Vida está sempre rondando por ali. Mas a grande experiência do retiro é a experiência da morte. Chega um momento onde já

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não faz o menor sentido sustentar o javali. Você se dá conta, antes de mais nada, de que não é insubstituível. Penso que o grande mérito do retiro seja a sucessão de crises que precisamos ultrapassar para continuar a prática. Um retiro é uma grande sucessão de crises, umas depois das outras. E quando entramos em crise não temos mais nada para fazer senão a prática. Não tem como pegar um telefone e ligar para alguém, não tem como sair para dar uma volta, ou entrar no Facebook, ou ir ao cinema. Quando estamos aqui fora entramos em crise e saímos fazendo alguma coisa. Mas no retiro você não tem o que fazer. Não tem muita opção de manobra para a sua identidade dentro de um ambiente de retiro. Você coloca a sua identidade em uma situação de confinamento. Creio que o melhor modo de olhar essa experiência seja como uma plataforma de observação do samsara. Você começa a perceber muita coisa. Quando dizemos: “Fui para um retiro”, alguns imaginam uma coisa cósmica, mas você vai observar o samsara e não

outra coisa. E você só começa a entender porque olha muitas e muitas vezes. Parece um pouco frustrante esse modo de descrever, para quem tem uma ideia romântica. A grande vantagem é que você tem uma situação continuada, uma situação muito favorável para a prática. Você não precisa interromper para sustentar nada, a comida chega no horário, você não vai ao banco pagar a conta de luz, então você faz a sua prática repetidamente, sem interrupções. É um pouco como tocar um instrumento. Você repete muitas vezes, alterando as escalas, até que depois de treinar muitas escalas, você toca alguma coisa, é um pouco esse treinamento que fazemos lá dentro. Há dias em que você fica com vontade de se atirar pela janela, literalmente, há momentos nos quais você imagina que chegou no seu limite, que não dá mais. O javali quer dar uma volta, ele sabe que é domingo. Mas dentro de um retiro não tem domingo ou feriado, não tem nada. E isso para o javali é muito difícil. Você tem várias dessas crises, e quando olha


AÇÃO para o lado vê imagens como as da Roda da Vida ou Guru Rinpoche. Tudo nesse ambiente lhe remete de volta para dentro, é um tipo de confinamento interessante. Para quem quer ter uma ideia, é um pouco como o que é explicado no texto “Extraindo a Essência Vital”, do Dudjom Rinpoche. Quando o Lama Padma Samten nos apresentou esse ensinamento, ficou como livro de cabeceira, depois eu colocava até embaixo da almofada. Sempre que cansava, lia, de novo e de novo. Agora me lembrei de uma piada do Zen sobre um monge que após passar 10 anos em retiro tinha direito de dizer duas palavras para o mestre. Então na primeira entrevista ele disse: “cama dura”. E o mestre mandou ele de volta, por mais dez anos. Ele sai depois desse tempo, tem uma nova entrevista, onde novamente poderia dizer mais duas palavras, então ele diz: “comida ruim”. O mestre manda ele voltar, por mais dez anos. Depois desse tempo, em uma outra entrevista, onde poderia dizer mais duas palavras, ele diz: ”vou embora”. E o mestre resmunga... ”Sabia, ele

só fazia reclamar!”. Quem está em retiro sabe que essa piada faz muito sentido. Ouvi essa piada em um áudio que o Lama nos enviou e comecei a rolar de rir, passei dias rindo, é exatamente assim. Creio que uma das coisas mais interessantes sobre o samsara seja o fato de que, num certo sentido, ele nunca acaba. Algumas vezes nos afastamos de algumas paisagens, mas quando retornamos a elas os impulsos voltam. Em um retiro não vamos deixar de sentir as coisas, vamos ficar puxando as paisagens, de volta e de volta, até sentir tudo aquilo que elas nos despertam. As situações começam a ganhar uma certa leveza, começamos a vê-las como uma brincadeira, um jogo, por detrás de todas as nossas construções mentais. E assim vai ficando um pouco mais fácil, no sentido de ficar mais leve. Observamos cada vez mais profundamente as nossas estruturas de jogo, estamos nessa situação estrita, um ambiente fechado, vamos percebendo que o javali se torna, no mínimo, um pouco mais disciplinado. Há muitos efeitos colaterais.

Alguns bem positivos, porque nos tornamos gradativamente mais relaxados em relação à tudo que acontece. Quando você entra em um retiro de três meses, consegue manter as relações, os seus vínculos com o lado de fora. E as pessoas, também, ficam lhe esperando, como se você estivesse em férias, como se dissesse, vou até ali, mas já volto. Se você for entrar por dois ou três anos, as coisas são diferentes. Você se despede das pessoas sem saber o que vai encontrar quando sair. Soube esses dias que um ex-colega meu havia se suicidado. Você entra e se despede de fato, já entra meio morto. Uma instrução que o Lama me passou e que também observei no texto do Dudjom Rinpoche é no sentido de que devemos pacificar todas as nossas relações antes de entrarmos em um retiro. Por exemplo, fiz um levantamento de tudo que havia pegado emprestado, e devolvi antes de entrar. Você abandona uma porção de coisas antes de entrar em um retiro, esse é um pré-requisto para tudo funcionar, você não entra carregando

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reportagem manual parade o bodisatva ação lições de um retiro dois anosde hoje

muitas coisas. Creio que essa seja uma grande diferença em relação a retiros menores. Esses dias estava lendo uma instrução de Guru Rinpoche na qual ele diz que o ponto principal é se cansar do samsara. Se formos usar só disciplina, vai haver sempre uma sensação de culpa, como se houvesse uma ameaça externa, algo realmente capaz de nos derrubar. Se, por exemplo, alguém beber por perto você fica se sentindo mal, fica vulnerável. Mas quando você se cansa de algo, então aquilo já não importa mais, perde o interesse. Não tem o que combater, nem nada parecido com uma contenção ou disciplina. Aquela experiência já não lhe perturba mais. A experiência de retiro tem um pouco disso. Você vai se cansando do javali. As mortes que acontecem durante o retiro lhe dão esse cansaço. Você percebe como perdeu tempo. Há esse cansaço do samsara, não uma disciplina, nenhuma rigidez, você percebe que não tem nada para fazer diante das experiências de morte. Até que tudo fica mais fácil e você começa a desenvolver confiança.

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Eu entrei em retiro com a pessoa com a qual tinha um relacionamento, minha namorada foi para o retiro junto comigo. E ela segue ainda no Darmata em retiro. A princípio só eu entraria em retiro, as coisas não estavam muito bem, mas ok, já havia me programado assim. Quando o Lama a convidou para entrar no retiro eu achei horrível, achei o fim da picada. Estava estudando um texto do Dudjom Rinpoche, algo meio iogue, sonhando com um ambiente de caverna, muito silêncio. Então pensei, vai haver uma mulher do lado perguntando: “ e aí, meu bem, vamos comer o que hoje no almoço?”, achei muito estranho, achei o fim. Foi difícil para mim. Antes de entrar no retiro, li a biografia do mestre Dilgo Khyentse Rinpoche, isso é algo bacana para quem aspira entrar em retiro, ler a biografia dos mestres. Ele passou 20 anos em retiro, não seguidos, mas em várias etapas durante o curso da sua vida. Houve um retiro bastante longo, de sete anos, quando ainda era bem jovem. Assim que ele saiu o seu mestre disse que deveria se casar. E

ele não entendeu. Fiquei bem feliz, pensei comigo: “Esse é dos meus, ele também não entendeu”. Só que ele perguntou para o mestre por que deveria se casar, afinal ele era um monge. O mestre explicou que se ele arrumasse uma mulher e casasse, a sua prática seria mais forte do que a de cem monges bem disciplinados juntos. Claro, arrumou uma mulher para mandar! Então, comecei a achar a ideia de entrarmos juntos no retiro interessante. De fato, tivemos uma experiência muito intensa juntos, nesses dois anos. É como estar em um superlaboratório, vendo como funciona uma relação, você começa a ver toda a manipulação, toda a paranoia que pode envolver um casamento. Você fica do lado da pessoa 24 horas, de segunda a segunda, você não consegue olhar nem de um lado e nem de outro. E os ensinamentos ali, na sua frente. Todos os jogos começam a ficar claros, não é que você faz de conta que está vendo, você vê tudo, como você joga para seduzir, como você joga para controlar, como você joga quando sente apego, ou quando sente raiva. Há dias em


que você tem vontade de pular no pescoço da pessoa. E, no dia seguinte, vai para o reino dos deuses. E nada aconteceu de fato, só a sua mente se moveu, nada mudou. Assim comecei a me dar conta da coemergência, havia essa plataforma excelente para observar. É uma situação interessante, você não consegue esconder nada. Não tem como criar uma bolha particular, você está completamente exposto, não dá para manipular, se esconder, fingir... você pode fingir por uma semana, por um mês. Você começa a ver todos os seus jogos caindo. Por outro lado, ter uma companheira do seu lado é muito bom, muito reconfortante. Há esse duplo aspecto, como os dois lados de

uma moeda, há o desgaste, a paranoia e esse lado bom, do amparo. O cuidado com o corpo é muito necessário. Eu mesmo me dei mal nesse aspecto. Acredito que forçar demasiadamente o corpo seja algo mais ligado à identidade do que à realização. Uma das melhores maneiras de derrubar a identidade é com o corpo, é um pouco paradoxal. Quando você se machuca e não consegue mais sentar para meditar, você pensa: “Bom... agora acabou a minha carreira, abandonei tudo para estar aqui e agora não posso meditar, vou embora, não tem mais sentido nenhum”. Então você se dá conta do tamanho do buraco no qual estava enfiado. Qual a motivação que o levou até ali?

Se temos um cuidado excessivo com o corpo, desenvolvemos essa crença de que vamos conseguir alguma coisa com ele. Eu vi umas imagens do Buda Maitreya, sentado em uma cadeira, na época em que me machuquei, achei aquilo bem legal. Pensei: “Esse é dos meus”, mas na verdade, é bom cuidar do corpo. É necessário esse cuidado com a alimentação, com a saúde de um modo geral, fazer yoga direitinho, mas se não conseguir sentar em lótus, tudo bem. Importa a sabedoria primordial, você ver como as coisas são, o corpo é um veículo para que você veja isso. Você pode e deve ver isso quando está sentado, em pé, deitado, andando, de qualquer jeito. E quando alguma coisa grave acontece, você é desafiado a ligar a visão em várias formas. Esse é o barato da prática. As situações vão se tornando mais intensas, você não pratica para ficar imóvel, sentado, em posição de meditação.

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clássico budadarma clássico budadarma visão alternativas para a cultura tibetana

BUDADARMA

a luz dourada:

os três corpos do buda Ao ouvir o Buda profetizar que morreria em três meses, o Bodisatva Ruciraketu lhe perguntou: “Ó Honrado pelo Mundo, por que encurtar a duração de sua vida para oitenta anos? Você nos ensinou duas formas de desfrutar a longevidade. Uma é não matar os seres vivos e a outra é sustentar a vida dos outros pela caridade. Você não prejudica qualquer ser vivo e sempre fez o bem para os outros. Por que, então, sua vida será tão curta?” E o Buda respondeu aos que o rodeavam: “Ó filhos de boa família, ouçam e ponderem, todos os budas são dotados de três tipos de corpo. Apenas alguém completamente realizado alcança a suprema iluminação. Quem for capaz de compreender isso será capaz de transcender a ilusão. Os três corpos do Tatagata são o Corpo da Transformação, o Corpo da Fruição e o Corpo do Darma. “O Corpo da Transformação é o corpo terreno,

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manifesto do Buda, nascido neste mundo para o bem da humanidade, engajado na busca e na realização da iluminação. O Buda no Corpo da Transformação se dedicou a ensinar, a adquirir o poder de conhecer as capacidades individuais das pessoas e de revelar a elas o seu corpo físico. O Tatagata que vocês viram com seus próprios olhos é o Corpo da Transformação, que pode variar de acordo com as percepções de cada indivíduo. “O Corpo da Fruição é o corpo de meios hábeis, que tem por objetivo evitar um ensinamento direto sobre a verdade absoluta; também tem o objetivo de eliminar da mente a sensação de prazer ou aversão gerada pelo apego dos seres a um corpo carnal. Este corpo surgiu do voto original e da intuição do Buda. “Por último, o Corpo do Darma é o próprio Darma, a essência dos Corpos do Buda onde a verdade absoluta e a intuição da verdade ainda não são


clássico diferenciadas. Os dois primeiros corpos, Transformação e Fruição, são manifestações temporárias derivadas do Darmakaya (Corpo do Darma). Portanto, a doutrina budista completa está inclusa e é atribuída ao Corpo do Darma. “Além disso, o Buda conhece a verdade através do poder do voto original. Portanto, seu conhecimento transcendental não implica em pensamento empírico, com um propósito, mas mesmo assim conduz múltiplas atividades espontaneamente. O sol e a lua não têm objetivo específico. Seus raios e um espelho são igualmente destituídos de propósito. Porém, os três juntos produzem espontaneamente as imagens das coisas como elas são, como refletidas em um espelho. Aqui a verdade da imagem das coisas é comparada ao sol e à lua, a intuição da verdade é sua luz e o poder do voto é o espelho. Apesar de o Darmakaya não ter pensamentos

intencionais, ele espontaneamente gera como imagens os Corpos da Fruição e da Transformação para o benefício das pessoas. “Assim como o espelho cria várias imagens ao refletir a luz, apesar de nada haver nele, os discípulos são guiados pela imagem do Buda produzida dentro do Darmakaya, que não possui forma alguma. Enquanto os Corpos da Fruição e da Transformação se manifestam de várias formas pelo poder do voto, o Darma transcende essas mudanças. Não há mudanças no estado transcendental. Apesar disso, diz-se que o Tatagata é impermanente e não permanece no nirvana. Por quê? Os dois primeiros corpos são provisórios e surgem frequentemente neste mundo, mas eles não têm forma permanente e assim, naturalmente, entram no estado de nirvana. Por outro lado, não se pode dizer que o Darmakaya permanece no nirvana para sempre, porque

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clássico budadarma clássico budadarma

não se pode dizer que este terceiro corpo compreende as duas características, ou seja, os dois corpos que surgem ao longo da história e aquele que o transcende. Em resumo, o Darmakaya é tríplice e ao mesmo tempo um só. É uno, porém tríplice. Manifesta-se através da mudança, porém é imutável. Não se transforma, porém manifesta-se na mudança. “Quem não conhece as três formas de existência não pode ver os três Corpos do Buda. Os três são as formas da existência imaginária, da existência dependente e da existência perfeita. A natureza imaginária das coisas se refere ao fato de a consciência da pessoa comum estar sempre presa devido a suas próprias inclinações, como o homem que imagina uma cobra ao olhar para uma corda e se amedronta. A natureza dependente das coisas se refere à realidade ensinada pelo Buda de que todas as coisas surgem devido a múltiplas causas e condições e, portanto, é uma configuração temporária, apenas útil para compreender que a corda é uma forma temporária da substância do cipó. A natureza perfeita das coisas aponta para a verdade de que apesar de as coisas serem de uma natureza transitória e imaginária, sua verdadeira base formativa e causal deve ser entendida como inseparável de sua forma empírica de manifestação, e assim a verdade absoluta é intuída no mundo transitório. O Corpo da Transformação é um meio hábil para instruir as pessoas que estão presas nas formas imaginárias. O

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Corpo da Fruição é o Buda visto por aqueles que intuem a natureza dependente das coisas. O Darmakaya é o Buda conhecido apenas pela pessoa iluminada que mergulha completamente na natureza do Darma e que intui o absoluto dentro das formas temporárias do mundo. “Três tipos de consciência humana tornam difícil para uma pessoa comum enxergar os três Corpos do Buda. O primeiro tipo responde aos eventos externos e consiste de seis formas de consciência, que são a visual, a auditiva, a olfativa, a gustativa, a tátil e a mental. Este tipo percebe coisas externas e é atraído por elas, o que resulta em delusão. O segundo é a consciência do ‘eu’ que depende da terceira consciência e subjaz a todas as paixões. O terceiro é a consciência que constitui a base última subjacente à operação conceitual anterior. Quem vê a realidade como ela é, e assim aniquila todas as delusões, é capaz de ver o Corpo da Transformação. Além disso, ao aniquilar as fontes das paixões, será capaz de ver o Corpo da Fruição. E por último, ao praticar o caminho mais elevado, aniquilando o agente fundamental da consciência, será capaz de ver o Darmakaya. “Todos os budas compartilham as mesmas atividades no Corpo da Transformação, a mesma intenção no Corpo da Fruição e a mesma essência no Darmakaya. O Corpo da Transformação é manifestado de acordo com as várias inclinações das pessoas e é, portanto, definido como múltiplo. O Corpo da Fruição se


“Assim como o espelho cria várias imagens ao refletir a luz, apesar de nada haver nele, os discípulos são guiados pela imagem do Buda produzida dentro do Darmakaya, que não possui forma alguma”. manifesta em uma única forma em resposta à intenção única dos discípulos e é, portanto, definido como único. O Darmakaya corporifica o estado que transcende todas as formas, não pode ser entendido através de formas e é, portanto, definido como não sendo um ou dois. “O Corpo da Transformação surge com base no Corpo da Fruição, e este surge com base no Darmakaya, que é a existência absoluta, não requer qualquer base e não depende de nada. “Esses três Corpos do Buda podem ser vistos como permanentes e como impermanentes. O Corpo da Transformação sempre transmite os ensinamentos da verdade, nunca exaure seus meios hábeis apropriados a várias condições e é, portanto, definido como permanente. Entretanto, por não ser o corpo fundamental e nem manifestar uma função superior, ele é definido como impermanente. O Corpo da Fruição nunca deixou de ensinar o Darma, é acessível apenas aos budas, sua função não se exaurirá enquanto a humanidade continuar existindo e, portanto, é definido como permanente. Porém, ele não é o corpo absoluto, não se manifesta em todas as coisas e, portanto, é definido como impermanente. O Darmakaya, obviamente não transitório e sem forma, é na verdade o corpo absoluto, fundamental, comparável ao espaço e, portanto, é definido apenas como permanente. “Não há intuição perfeita, separada da intuição

de um objeto particular. Não há um objeto universal separado de objetos particulares. Os fenômenos, suas naturezas e a intuição que os revela não são o mesmo nem diferentes. O Darmakaya consiste da intuição pura livre das paixões e da pura quiescência e é, portanto, puro e livre das paixões. “Além disso, o Darmakaya não pode ser descrito como existente ou inexistente, único ou não, mensurável ou incomensurável, luz ou escuridão. O Darmakaya está além da cognição humana. Sua base causal, esfera objetiva, faculdade cognitiva e função estão além do conhecimento humano. Quem compreender o significado disso tudo estará destinado a alcançar o estado de não-retrocesso no caminho para a iluminação, a se tornar um buda e atingir a mente do diamante, a mente dos budas, o verdadeiro Darma. “Além do mais, o Darmakaya é chamado de permanente, essência absoluta, bem-aventurança com relação aos estados meditativos e puro com relação à intuição. Assim, ele é imutável, independente, pacífico e puro. A partir da meditação no Darmakaya surge a compaixão. A partir da intuição do Darmakaya brotam todos os poderes. A meditação e a intuição atribuídas ao Darmakaya transcendem todas as formas e não são aprisionadas por qualquer forma. Assim, não carregam qualquer pensamento intencional em particular sobre o que deve ser feito. Visto que não pode ser determinado

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clássico budadarma clássico budadarma

como permanente ou como impermanente, ele é chamado de Caminho do Meio e transcende o ciclo de nascimentos e mortes. Ele é, de fato, a morada dos budas e bodisatvas. A morada dos budas, onde negatividades, sofrimento e forma foram todos purificados, é chamada de absoluto. Ela é como o ouro refinado que não possui manchas, porque a natureza do ouro não possui manchas. O ouro já é puro mesmo na pepita. Ele não é criado de outra forma pelos processos de refinamento, nem sua pureza é perdida quando está na pepita. O Darmakaya também é assim, pois ele é essencialmente puro. Mesmo quando surge em meio às máculas e se manifesta nos Corpos da Fruição e da Transformação, não se pode dizer que o Darmakaya perde sua pureza essencial. Por isto se diz que o estado de todos os budas é puro. Tomando outra analogia: alguém sonha que está atravessando a nado um grande rio e finalmente alcança a outra margem, mas quando acorda do sonho não encontra nem o rio nem a sua margem. Da mesma forma, quando alguém destrói as paixões não encontra mais o fluxo de nascimentos e mortes nem as margens da iluminação e da delusão. Apesar disto, o despertar do sonho não esvazia a presença da mente, e a exaustão das delusões não significa o esvaziamento da iluminação. A pureza da mente, como a do espaço vazio, permanece depois de tudo ter sido esvaziado e é a própria iluminação. Por isto

“Quem vê a realidade como ela é, e assim aniquila todas as delusões, é capaz de ver o Corpo da Transformação”. 48 50

se diz que a morada dos budas é pura. “O Darmakaya supera os obstáculos criados pelas paixões, manifestando-se no Corpo da Fruição, e também supera os obstáculos criados pelas ações, manifestando-se no Corpo da Transformação. Além disso, supera os obstáculos que impedem a intuição, manifestando-se como o próprio Darmakaya. Isto é comparável ao céu que mostra o relâmpago, e ao relâmpago que gera a luz. Além do mais, o Darmakaya se manifesta em sua forma essencialmente pura. O Corpo da Fruição se manifesta quando a intuição é purificada, e o Corpo da Transformação se manifesta quando a concentração é purificada. Os três Corpos do Buda são igualmente puros devido à realidade tal como ela é. A realidade dos fenômenos é encontrada em um único sabor universal; ela está livre do apego causado por todas as paixões e é a fundação absoluta de todos os fenômenos. Da mesma forma, os três Corpos do Buda, que são idênticos a esta fundação absoluta, são vistos como um e não são diferentes. “Se um leigo ou uma leiga mantiver a firme crença de que o Buda é o seu grande professor, compreenderá completamente que não há diferenças essenciais entre os três Corpos do Buda. Assim, quaisquer pensamentos errôneos que possam surgir em relação aos fenômenos serão totalmente eliminados. Ele ou ela compreenderá que não há dualidade nas formas


nem qualquer diferenciação na realidade. Assim, não será afetado(a) pelas paixões e será capaz de praticar o caminho genuinamente. A verdade das coisas como elas são, e a intuição desta verdade, são igualmente puras e levam à remoção dos obstáculos e à percepção espontânea da realidade como ela é. Isto é chamado de intuição suprema da talidade, forma da realidade suprema, forma correta de ver as coisas ou forma verdadeira de enxergar o Buda.” Ao ouvir estes ensinamentos, as pessoas se maravilharam e surgiu em suas mentes o pensamento de buscar o Darmakaya, que é eterno, e suas tristeza e dúvidas em relação à passagem do Buda foram dissipadas.

Primeira parte do capítulo 2, livro 6 , da obra budadarma, o caminho para a iluminação, tradução em andamento de Marcelo Nicolodi. Texto final de José Fonseca.

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clássico budadarma

aliás ali por ieda de abreu e carmen navas zamora

a grande aventura chamada yatra Dúvidas, emoções, cansaço, alegrias e principalmente muito trabalho: este é o saldo deixado por uma peregrinação à Ásia na vida da documentarista Melissa Flores. Mel, como chamam os amigos, está transformando em filme a viagem organizada em 2010, com a orientação do Lama Jigme Lhawang e a presença de cerca de trinta brasileiros. O filme Yatra, que deverá ficar pronto em 2013, é um exemplo de como a colaboração de um grupo pode transformar sonhos em realidade. O entusiasmo da sanga surgiu desde que Mel anunciou a ideia e pediu ajuda para a compra das fitas, nas quais gravaria os momentos da viagem. Na volta, ela partiu para o financiamento coletivo e conseguiu levantar 28 mil reais para as etapas de edição e finalização. “Assim como a

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viagem é uma prática espiritual, fazer o filme também. É um aprendizado constante! Acima de tudo, é um prazer e uma alegria. Cada vez que bate um desânimo, lembro que o filme não é meu, mas de todos que acreditam nele e isso me dá energia para seguir em frente”, comemora ela.

Melissa Flores é autora das imagens desta sessão e prepara o documentário “Yatra”, que conta a história de sua viagem.


aliás

iás aliás vale a pena

por que não?

sanga em crescimento

O website da sociedade alemã Berzin Archives (www. berzinarchives.com) é uma imperdível coleção de traduções e ensinamentos de Alexander Berzin sobre as tradições Mahayana e Vajrayana, com materiais das cinco linhagens tibetanas: Nyingma, Sakya, Kagyu, Gelug e Bon, além de comparações com o budismo Theravada e o islamismo. Alexander Berzin nasceu em 1944, em New Jersey, é mestre e doutor em línguas do Extremo Oriente, em chinês, sânscrito e estudos indianos. Morou principalmente em Dharamsala, Índia, onde estudou e praticou com mestres de todas as tradições do budismo tibetano. Seu professor principal foi Tsenzhab Serkong Rinpoche, falecido parceiro de debates e tutor assistente de Sua Santidade o Dalai Lama.

Em Portugal, a união civil entre pessoas do mesmo sexo é contestada por católicos, muçulmanos, judeus, hindus, evangélicos, menos por budistas, que defendem essa opção se ela “tornar alguém mais feliz” . Esta é a posição do presidente da União Budista Nacional, Paulo Borges, que contrasta com a dos diferentes líderes religiosos portugueses. Considerando os princípios do budismo de pretender libertar a mente do sofrimento, “se o casamento entre pessoas do mesmo sexo contribuir para torná-las mais felizes, então somos a favor”, afirma Paulo Borges.

Além da estátua de Buda mais alta do mundo, de 128 metros de altura, construída em Lushan, província de Sichuan, a China tem atualmente mais de 13 mil templos budistas. E de todas as variedades dessa religião, a tibetana é a mais popular, não só na região do Tibete, mas também na Mongólia Interior. Um estudo realizado pelo pesquisador Hongyi Harry Lai e publicado na revista dinamarquesa The Copenhagen Journal of Asian Studies explica que, desde 1979, apenas um ano depois da abertura econômica chinesa, o país experimentou o renascimento das religiões, especialmente do budismo.

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corpo kung fu, meditação em movimento

kung fu,

meditação em movimento por Flávio Depaoli Por volta do ano 525 depois de Cristo, um monge budista indiano conhecido como Bodidharma (Tamo, em chinês), deixou seu templo no sul da Índia e viajou para a China para difundir o budismo, que mais tarde ficou conhecido como Ch’an. Em determinado momento, Bodhidharma entrou em divergência com as ideias do imperador e resolveu se retirar para uma floresta vizinha, onde encontrou o templo Shaolin (construído por volta de 386-534 A.D. e famoso pelas traduções de manuscritos budistas para o chinês). Diz-se que ao ser recusado no templo pelo abade Batuo, devido ao seu modo peculiar de compreender o budismo, Bodhidharma sentou na posição de lótus e meditou na frente do templo por 9 anos. Após testemunhar tamanha realização, Batuo aceitou-o como seu mentor. Ao ingressar no templo, Bodhidharma percebeu que seus novos discípulos, embora fossem estudantes sérios de seus ensinamentos, não suportavam os longos períodos de meditação. Por isso, ele

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apresentou aos monges os “Shin Pa Lu Han”, ou as 18 mãos de Lou Han, originários do Yoga indiano. São movimentos baseados nos animais, nos elementos da natureza (água, madeira, fogo, terra e metal) e nos princípios que regem o universo (Yin e Yang). Foram desenvolvidos pelos mestres para aumentar o fluxo ch’i e superar as fraquezas do corpo. Assim nasce o kung fu.

da disposição, autoestima, memória e relaxamento. Passase a respirar de forma muito mais completa e consciente. Assim como Bodhidharma, podemos encontrar nesta escola milenar um poderoso complemento às praticas meditativas.

Além do aquecimento básico, que trabalha todos os meridianos, membros e órgãos do corpo, a prática é aprofundada a partir de exercícios específicos de mãos e pernas que depois serão reunidos nos diversos katis. O kati é uma sucessão de golpes de ataque e defesa, como numa coreografia, disposta de maneira lógica e que determina as características do estilo. Obedece a uma sequência ordenada para aprendizado de acordo com os estágios de evolução e complexidade do praticante.

A Serpente nos ensina a flexibilidade e resistência rítmica.

Os benefícios são percebidos rapidamente com o aumento

O Tigre nos ensina a força. O Leopardo nos ensina o poder.

A Garça nos ensina a graça e a harmonia fluídica. O Macaco nos ensina a agilidade e astúcia natural. A Águia nos ensina a garra e a precisão. O Louva-a-deus nos ensina a leveza. O Dragão nos ensina a cavalgar o vento.


corpo onde praticar: Existem várias escolas e estilos de Kung Fu, mas para encontrar qualidade é muito importante conhecer linhagens e referências. No Brasil destaca-se a escola sino-brasileira de Shaolin do Norte, dirigida pelo mestre chinês Chan Kowk Wai, que atualmente reside em São Paulo, tendo formado professores que lecionam por todo o Brasil. Confira no site www.sinobrasileira.org

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transformação de dentro pra fora Texto publicado no blog da revista Bodisatva por Teresa Bessil Muitas vezes dizemos que seres humanos são “bichos de relação”. Temos a vida norteada e sustentada por relações de todos os tipos: afetivas, profissionais, familiares, espirituais. Relações do passado, presente e futuro parecem construir nossas histórias. Muitas vezes nos sentimos marcados e até nos definimos a partir das relações. Conversamos sobre elas nas rodas de amigos, consultórios, escolas, no trabalho, na folia… Segredos, momentos de alegria e êxtase, noites insones. Ah, as relações… Como tranformá-las? Olhando de modo mais honesto, a maioria delas talvez tenha um tom utilitário. Oferecemos uma lista de necessidades a alguém, que nos oferece lista

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semelhante e negociamos. “Ok, amo você, aceito fazer o que me pede, caso você cumpra isso e mais aquilo…”. E seguimos, entre pequenas alegrias e grandes frustrações. Parece um jeito pouco hábil de ser feliz. S.S. Dalai Lama nos lembra que todos aspiramos encontrar a felicidade e ultrapassar o sofrimento. Será que podemos amar de modo mais profundo, tecer relações mais saudáveis, afinadas com nossas aspirações de felicidade? Uma das práticas mais comoventes que o budismo nos oferece é Metabavana – Meditação do Amor Universal. Tal prática tem se mostrado uma preciosa ferramenta que

opera em nossos corações e mentes, gerando espaços por vezes inusitados. A partir dessa prática geramos mundos nos quais as relações saudáveis e lúcidas são possíveis. A partir de ambientes sutis, descobrimos novos caminhos, novos modos de tecer as relações. Focamos cada pessoa, incluindo a nós mesmos, as árvores, os bichos… “Que meu filho seja feliz e ultrapasse o sofrimento. Que encontre as causas da felicidade e ultrapasse as causas do sofrimento. Que seus automatismos se dissolvam e surja nele um olho de lucidez instantânea diante de tudo e de todos. Que ele seja capaz de gerar benefícios aos outros e encontre nisso sua fonte de energia”.


bodisat va.org “Que meu filho seja feliz”. Parece incrível, mas raramente temos essa visão. Sentimos que amamos muito nosso filho, mas geralmente aspiramos que ele “se dê bem na vida”, que nos respeite, ou algo semelhante. De modo aparentemente “natural”, surgem em nossa mente algumas – ou muitas – condições que consideramos necessárias para seu bemestar, vitórias, conquistas, etc. E se tais condições não se manifestam, a relação desanda, a comunicação fica comprometida e a lucidez nos falta. Olhar para o próprio filho

a partir de outros referenciais pode mudar por completo uma rede de relações ligadas ao passado, presente e futuro. Descobrimos que nossas necessidades de controle, e todas as negociações e estratégias de controle podem cessar. A vida fica mais simples. As relações saudáveis vão surgindo aqui e ali, e um novo tecido humano se torna possível.

porque usamos palavras mágicas, mas porque nosso olhar constrói. Revela a coemergência operando. Mas isso já é outra história. Melhor experimentar. E se preparar para amar de modo mais profundo. Que todos sejam felizes!

A prática de Metabavana, aparentemente simples, tem restaurado relações de modo surpreendente. Funciona. Não

vida leve caraminhocas - relaxa

luísa levandowski

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ponto final

voltando para casa por José Fonseca Outro dia, Luis Sebastião, meu neto de quatro anos veio me visitar no Caminho do Meio. Como toda criança que gosta de se aventurar pelo mundo desconhecido, fez tudo a que tinha direito. Subiu a Avenida da Compaixão, correu pelo Caminho das Borboletas, passou pela escola, visitou o canil, experimentou todos os brinquedos da pracinha, explorou o entorno do templo e finalmente, satisfeito, resolveu voltar sozinho para casa. O único problema é que a casa dos avós não estava exatamente onde ele pensou que ela estivesse. Luis Sebastião não se abateu. Pelo contrário, passou pelo primeiro portão aberto e bateu à primeira porta, em busca de auxílio. E a sorte lhe sorriu. Quem veio abrir, solícito e generoso, foi Padma Yeshe, que não sabia quem era aquela criança. O menino também não conhecia aquele homem. Mas, os dois pareceram se entender desde sempre. Mais tarde, cada qual à sua maneira, ambos relataram o final dessa história com gosto de parábola que procuro reconstituir. -- Não estou perdido – disse o menino, tentando aparentemente evitar qualquer mal entendido – estou indo para a casa do meu avô. E completou: Sei onde é, mas não sei como chegar lá.

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Então, Padma Yeshe deu a Luis Sebastião uma resposta que considero perfeita. -- Eu não sei onde é, mas acho que sei como chegar lá. De mãos dadas, eles desceram a rua, um guiando o outro, e encontraram facilmente a casa desejada. O despertar da Mente que busca o caminho, acessível a todos nós independentemente de nossa habilidade, é um tema recorrente na literatura budista. Ela enfatiza, no entanto, que este despertar da mente que busca o Caminho jamais nos levará ao verdadeiro Caminho sem a orientação de um verdadeiro mestre. Por outro lado, a orientação de um mestre só pode ser eficaz para quem estiver munido de um espírito de procura verdadeiro e puro. Como o de uma criança.

Mestre Dogen Zenji diz que quem despertar para a Mente que busca o Caminho e se aplicar sinceramente à prática nunca deixará de se iluminar. Mas previne: mesmo quem se ilumina não deve cessar a prática como se tivesse alcançado tudo, pois a prática do Caminho não tem fim. Parece que no Caminho do Meio, em dias de sol, ninguém se perde. Sempre que um caminhante conhecedor de seu destino não souber como lá chegar e procurar ajuda, haverá de encontrar quem saiba chegar lá, mesmo sem conhecer o destino, para estenderlhe a mão.


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informações:

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Uma revista que fala em qualidade de vida: dessa e das pr贸ximas. Revista Bodisatva. Assine. loja.cebb.org.br bodisatva.org revista@bodisatva.org.br

O OLHAR BUDISTA

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