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Parque Industrial

Por onde andava Pagu?

Por Heloísa Sousa

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“O capitalismo nascente de São Paulo estica as pernas feudais e peludas. Descreve a mais-valia, arrancada por meia-dúzia de grossos papa níqueis, da população global dos trabalhadores do Estado, através do sugadouro do Parque Industrial em aliança com a exploração feudal da Agricultura, sob a ditadura bancária do Imperialismo”. (Trecho do livro “Parque Industrial: Romance Proletário” de Mara Lobo / Patrícia Galvão).

Em fevereiro de 2023, a Oficina Cultural Oswald de Andrade (SP) recebe a temporada gratuita de “Parque Industrial”, um espetáculo dirigido por Gilka Verana que também assina a adaptação deste, que é um livro lançado por Patrícia Galvão (Pagu) em 1933, sob o pseudônimo de Mara Lobo. A peça traz em cena um elenco com sete atrizes, além de outras mulheres artistas profissionais compondo cenografia, iluminação, projeção e direção musical que também jogam em cena e em tempo real.

A primeira questão relevante sobre esta peça é a escolha da encenadora em trazer ao teatro uma obra da icônica Pagu. Figura constantemente invisibilizada dentro da arte e da política, Pagu foi diretora de teatro, tradutora, militante, ativista e agitadora político-cultural, ainda no início do século XX. Tem sua trajetória marcada por ineditismos e posicionamentos enfáticos, tendo sido a primeira mulher presa política no Brasil, além de ter tido envolvimento ativo no Movimento Antropofágico que marca o Modernismo Brasileiro. Declaradamente comunista, desde jovem, Pagu reivindicava sua voz no teatro, na literatura e na política, embora, ainda hoje, seja um nome muito pouco citado quando o assunto é teatro político brasileiro, feminismo e cultura, mulheres encenadoras e outras tantas temáticas onde ela poderia ser referenciada. Seu constante apagamento só não é mais notável e sublinhado pelo recorte de gênero, porque outros artistas e pensadores como Augusto Boal também não recebem a devida atenção nos espaços de formação e discussão sobre teatro no Brasil. Em 2022, passamos pelo centenário da Semana de Arte Moderna (movimento, por si só, contraditório em muitas camadas políticas e culturais) e percebe-se algumas iniciativas muito pontuais na tentativa de trazer Pagu de volta ao centro para se pensar esse momento histórico.

Debruçar-se sobre Pagu é deparar-se também com sua opacidade. Neste caso, o movimento não é de um “resgate histórico” e muito menos de uma “homenagem” à artista, mas sim de uma reativação de seu gesto artístico, de uma reinterpretação de suas linhas e reorganização material do que ela havia pensado. “Parque Industrial” foi um romance escrito quando Pagu tinha apenas 21 anos de idade e, também por isso, carrega muito de um impulso jovial e experimental da artista. Assistir a peça “Parque Industrial” nos impulsiona nesse reencontro com a artista e com a obra. Pagu escreve um romance de força atemporal, com uma linguagem subversiva e descrições críticas sobre o sistema capitalista e a luta de classes; tem-se uma obra literária com um ritmo peculiar e com um abordagem radicalmente de esquerda; e isso, Gilka Verana soube perceber muito bem ao trazer essa obra ao palco.

O livro escrito por Pagu é um enfrentamento direto ao discurso moralista e à burguesia paulistana em ascensão; uma resposta rápida e certeira ao hiperdesenvolvimento de São Paulo no início do século XX, a maior cidade do país crescendo vertiginosamente em cima da miséria, da exploração e da desigualdade entre o povo brasileiro (uma realidade que não mudou muito, não é mesmo?). A hipocrisia e a riqueza predatória é o terreno que apoia a industrialização de São Paulo. Sob uma perspectiva marxista-leninista, Pagu engata um romance-denúncia que instiga a possibilidade de um povo tomando consciência de si enquanto classe e enquanto possibilidade de reforma. O livro é também desafiador pela sua forma, escrito em um fluxo intenso e ritmado que cria um cruzamento entre a prosa e a poesia; Pagu parece estar se importando pouco com alguma narrativa articulada ou envolvimento catártico com as personagens. Se a denúncia é mais evidente, ela opta por palavras substantivas ou adjetivas ordenadas que criam uma paisagem sensorial e crítica. A autora desenha também uma burguesia caricata, imoral, cheia de vícios e desejos pela exploração; mas esse desenho é debochado. E não um deboche que sugere o riso, mas um deboche sério e agressivo na sua forma de ridicularizar. É esse tom que Gilka captura para conseguir encenar a versão teatral de “Parque Industrial”, percebendo com assertividade e sensibilidade o gesto político e feminista de Pagu; seguido pela versatilidade com a qual as atrizes em cena dão conta desse contorno estético, transitando entre narradoras, comentadoras e jogadoras das cenas.

E esse é o outro ponto mais notório dessa peça, o quanto a diretora consegue se aproximar de Pagu e criar uma ponte certeira entre a autora, o grupo de mulheres que encenam essa obra e o cenário do teatro político brasileiro no século XXI. Estamos diante de uma adaptação que evidencia o pensamento e articulação política de Pagu através da arte e não vacila nas visões moralistas sobre essa personalidade que a condena às narrativas em torno do seu gênero. Junto disso, parece evidente um movimento de observar novamente o passado para criar paralelos com o momento presente, como quem denuncia que estamos revivendo algo porque não assimilamos com criticidade e força suficientes as violências marcadas na história.

Uma das questões que aparece no livro “Parque Industrial” e que se torna central para o desenvolvimento da peça teatral de Verana é o foco no proletariado. Inspirada na luta e no discurso de Rosa de Luxemburgo, ativista marxista alemã, as obras (livro e peça) se concentram na representação do povo e de suas formas de organização, evidenciando a luta de classes como sendo basilares para se pensar uma análise crítica das consequências do desenvolvimento do capitalismo em países de terceiro mundo. Pagu faz então um outro recorte, ainda mais radical, ao pensar o proletariado feminino e todas as peculiaridades sofridas por mulheres operárias em razão de seu gênero.

Mas, ao invés de ser apenas uma panfletagem feminista rasa, as obras mostram a indissociabilidade entre o capitalismo, o patriarcado e o racismo; estruturas e narrativas que se apoiam uma na outra para fincar sua hegemonia e hierarquias entre os gêneros. Além disso, as obras ainda criticam o feminismo liberal e os equívocos de suas pautas que apenas privilegiam mulheres burguesas.

Das peças que tenho assistido recentemente com abordagem política e estreadas no atual contexto de ascensão da extrema direita no Brasil, em sua maioria opta-se por representar e criticar as figuras autoritárias, desde os políticos, aos militares, às classes mais altas e abastadas. Como por exemplo, “Verdade”, de Alexandre Dal Farra (SP), “Ubu: O que é bom tem que continuar” com direção de Fernando Yamamoto (RN), “Ubu Rei” com direção de Gabriel Villela (SP) e “Dr. Anti” da Cia Extemporânea (SP). Em “Parque Industrial”, o povo, finalmente, ganha representação e complexidade, as personagens de mulheres apresentam uma diversidade de realidades a partir de camadas interseccionais que mostram formas distintas de vivências oprimidas. Mais ainda, mostra também a indignação, o cansaço e algumas formas de organização a partir da raiva, fazendo com que palavras como “comunismo”, “partido”, “revolta” e outras políticas de organização ecoem como derivadas do desejo do povo.

(Pagu)

Não há uma protagonista delineada na peça, as atrizes saltam entre diversas personagens e unem-se até para representar corpos específicos, a coletividade torna-se presente como estratégia de encenação e como discurso. Não é à toa, e nem inocentemente, que tenhamos que aguardar uma peça teatral dirigida por uma encenadora e baseada no livro de uma autora, duas mulheres, para ver a retomada da representação do povo no teatro que parecia estar, até então, ausente. Se a presença maciça de mulheres na equipe técnica do trabalho é reverberação da ótica feminista de representação desse proletariado, implica também nas narrativas e realidades que se constroem ao redor disso.

Na peça, ficamos diante não apenas da indignação e da organização dessas mulheres trabalhadoras contra a burguesia e os senhores do capitalismo, mas também nos deparamos com situações de suas vidas pessoais e de seus relacionamentos. Enquanto espectadora, as cenas que mostram apaixonamentos, amizades escolares entre garotas, maternidade e violências domésticas me incomodam por parecer que nós, mulheres, não conseguimos desviar nossas histórias desses enfoques (na cinebiografia de Marighella, dirigida por Wagner Moura, por exemplo, vemos muito pouco do desenvolvimento da história pessoal da figura; os homens consegue dedicar-se a política sem “desvios” afetivos e familiares). Por outro lado, algum breve momento de reflexão já é suficiente para lembrarmos que essa dissociação, no caso de mulheres trabalhadoras e/ou militantes, é quase impossível. As figuras femininas são constantemente interpeladas pelo seu gênero, seja pela necessidade de validação masculina, pela opressão machista, pela maternidade compulsória ou pelo contrato matrimonial. Mulheres são capturadas da atividade política para serem submissas às atividades domésticas e isso também constrói-se como uma estratégia do sistema capitalista e patriarcal. Logo, as personagens transitam freneticamente entre a revolta popular e a revolta doméstica.

No entanto, o que é certeiro no livro de Pagu é a forma como a autora torna evidente a equivalência entre as crises “pessoais” e as crises políticas dessas mulheres, mostrando que quaisquer “escolhas”, desde a maternidade até o matrimônio, atravessam diretamente a luta de classes e a opressão. E ela faz isso pela forma da linguagem, não se perdendo numa extensa narração ou descrição desses encontros interpessoais. Talvez, nesse sentido, a encenação pareça conseguir fazer menos do que o livro, ao dar a ilusão de que Corina é um indivíduo com questões pessoais a lidar e portanto, que há uma protagonista na peça, ao invés de evidenciá-la como pura representação de uma classe. Mas, até mesmo essa crítica a faço com dúvidas. Será mesmo que vejo Corina como personagem em suas crises pessoais porque é assim que é mostrado ou porque nosso olhar massacrado pela lógica liberal percebe a vida de uma mulher como consequência unilateral de suas escolhas individuais?

É o dinheiro, um dos signos máximos do capitalismo, que determina como tal mulher irá viver e a quais afetos ela tem direito. Esse é um retrato cru da miséria das mulheres, assim como da mesquinharia da burguesia que algumas mulheres também participam. São as estruturas sociais, políticas e econômicas que determinam as subjetividades dessas mulheres. Pagu quer dar conta da variação dessas experiências subjetivas: as personagens se apaixonam, são enganadas, sofrem com o pai agressor, sofrem com o marido agressor, são traídas, são abandonadas, engravidam, abortam, são exploradas no trabalho, são assediadas, o sofrimento da mãe que não consegue alimentar o filho, a cidadã agredida pela polícia, e o desejo, a sexualidade, a prostituição.

“O pessoal é político e o político é pessoal”, frase que marca o movimento feminista já na década de 1960 é uma frase que precisa estar na memória do espectador ao assistir “Parque Industrial”, sob o risco de distorcer a realidade apresentada em cena. Poderíamos dizer também que, no caso do proletariado feminino evidenciado nas obras, o político interdita o pessoal e o pessoal interdita o político. E essa interdição é um fato determinante. Não à toa, projeta-se em cena falas da ex-presidente Dilma Rousseff e da vereadora Marielle Franco, ambas interditadas em suas ações políticas, seja pela destituição do cargo ou por assassinato.

A dificuldade de uma mulher tornar-se uma figura reconhecidamente emblemática no cenário político é reforçada pela opressão nos espaços privados, pela interdição constante, pela invisibilização do seu pensamento e apagamento da sua memória. Isso aproxima Dilma Rousseff, Marielle Franco, Rosa de Luxemburgo, Patrícia Galvão, Gilka Verana e todas as outras mulheres artistas envolvidas nessa criação e muitas outras, assim como as personagens que elas interpretam. Não à toa, são elas também que tentam articular algum tipo de representação do proletariado, também invisibilizado quando se fala de política, ainda mais numa operação que tenta legitimar apenas as falas e ações institucionais e a recusa à organização do povo. Em contrapartida, observando os próprios contornos do teatro que vem se operando em São Paulo nos últimos cinco anos, são também as encenadoras mulheres que vem trazendo ao centro não apenas as discussões feministas e coletivizadas, mas também uma construção de imagens que variam em si fazendo a teatralidade operar pela reorganização cênica constante dos elementos presentes no palco.

A falar da teatralidade da peça “Parque Industrial: Romance Proletário” é inevitável não citar a exatidão da cenografia e dos figurinos, ambos assinados por Silvana Marcondes que consegue evidenciar tais elementos como signos tanto da classe trabalhadora quanto da peça teatral, como um sistema repleto de engrenagens a serem jogadas a favor da experiência cênica. Em contrapartida, é justamente nas cores blocadas, nos objetos encaixados e na proliferação de elementos em jogo que a peça distancia-se de uma abordagem realista (estética tão bem articulada pelo teatro burguês), e parece tatear algum tipo de amadorismo. Há uma emotividade, um engajamento articulado em cena que parece convidar o público, constantemente, para algum tipo de empolgação catártica junto com uma verbalização política direta sem recorrer a nenhum virtuosismo. Se por um lado, essa abordagem pode causar algum tipo de estranhamento, por outro lado, se observarmos o teatro que Pagu buscava articular, essa aparência amadora é totalmente coerente. Expor uma realidade, equilibrando crueza e poeticidade, são evidentes no livro de Pagu e na encenação de Verana; porque existe uma urgência por essa exposição.

Talvez, a questão ainda não resolvida nesse teatro político seria justamente a representação mimética do conflito. Ocupa-se tanto tempo reproduzindo e denunciando uma sequência de sofrimentos coletivos das personagens que culmina no retrato da revolta, sem delinear ao público um espaço para teatralizar as pautas políticas; embora essa lacuna esteja evidente no próprio romance escrito por Pagu. Perdese a oportunidade de discutir politicamente algumas questões minuciosas, de tornar evidente a forma como se articula um pensamento, uma contranarrativa, ou o próprio comunismo. “É impossível que os proletários não se revoltem”, escreveu Pagu junto com o alerta de que a luta é coletiva, e não individual, e portanto torna-se necessária a organização em partidos, movimentos e sindicatos. O povo é oprimido e portanto o povo se revolta, quase em uma resposta automática e agressiva. Mas, o povo também elabora pensamento, articula outras narrativas e consegue denunciar falácias que tentam justificar as opressões e explorações. O capitalismo se sustenta por fazer acreditar que determinada ideologia é coerente, causal e justificada do ponto de vista lógico e emocional; mesmo que pareça cruel, ele nos diz que não há outra forma possível. E o pensamento comunista se apoia justamente na desarticulação dessa lógica e de suas consequências emocionais, a revolta popular é o meio, a consciência de classe e transformação social é o fim.

Fevereiro / 2023

Brincadeira de criança, como é bom!

Por Quemuel Costa

Desde 2016, uma vez por ano os Clowns de Shakespeare realizam o Laboratório da Cena, curso de duas semanas sediado em Natal/RN que reúne gente de todo o Brasil (e de fora dele também) para viver um processo que aproxima os participantes do modo de trabalho do grupo. O processo criativo é condensado em duas semanas e o resultado final é sempre aberto para o público. Em sua oitava edição, com a proposta de explorar as possibilidades de criação de obras para as infâncias e juventudes, o experimento final do Laboratório da Cena 2023 intitulado “Rabiola” teve sua única apresentação realizada a céu aberto em 04 de fevereiro na Cidade da Criança.

Assim que cheguei à Cidade da Criança fui recebido por dois participantes do Laboratório em um triciclo que perguntavam “é pro teatro?” e em caso de resposta afirmativa, nos indicavam caminhar até “avistar a rabiola”, onde se iniciaria o experimento. Já na primeira cena foi possível observar que o experimento, por ser criado e ensaiado em um período extremamente curto, trazia em sua fruição alguns ruídos e fragilidades: pela distância que eu estava e por acontecer a céu aberto com todo o barulho que um parque em pleno sábado pode ter, pouco ouvi da primeira cena, que era realizada somente por um ator e aparentemente se tratava de uma introdução com indicações a respeito da obra. Me aproximei da “boca de cena” para ouvir melhor.

O experimento seguiu de maneira itinerante. Neste início passamos por três estações: na primeira, nos deparamos com trabalhadores que operavam de maneira mecânica e repetitiva, na segunda com adultos viciados em celular e internet e na última com outros adultos extremamente cansados. É interessante observar que apesar da escolha de fazer um teatro pensado primeiramente para crianças, as temáticas dessas três cenas que abrem o experimento são sobre os adultos e seus modos de viver. Aqui também já é estabelecido um pacto entre público e atores que se seguirá por toda a obra: a participação desse primeiro é primordial para que ela aconteça em seu máximo potencial. Para sorte e melhor fruição de todos, o pacto foi bem sucedido e as crianças ficaram na “primeira fila” da plateia e participaram ativamente de todas as interações propostas. Na última estação, a dos adultos cansados (um beijo, Byung-Chul Han), fomos recebidos por duas figuras muito peculiares e extremamente animadas que nos mostraram os adultos cansados como um guia turístico mostra bichos em um zoológico.

Aqui o jogo era o seguinte: o público recebia dois comandos para se relacionar com esses adultos e ver suas reações, podíamos gritar “sextou!” e ver esses adultos que estavam extremamente exaustos e deitados no chão se levantarem, dançarem e se moverem de maneira extasiada ou pedirmos para eles brincarem conosco, o que os fazia voltar para o primeiro estado de cansaço e inércia. Aqui, diferente das duas estações anteriores, nas quais havia uma grade separando atores e público, não havia nada que impedisse a aproximação total entre ambos, o que gerou uma das imagens mais interessantes do experimento e que talvez condense uma de suas forças: as crianças literalmente entraram no espaço cênico (um gramado), se misturaram aos atores e passaram a compor a imagem que se formava, estabelecendo uma cena que radicaliza o convívio entre elenco e público.

A cena segue nessa proposta convivial, envolvendo cada vez mais o público. Uma das adultas cansadas é o ponto de ligação para a transição desse momento das estações para outro, no qual a narração ganha força e ficamos sabendo um pouco mais sobre essa personagem: é uma idosa que conta histórias, mas que está tão cansada que sempre dorme antes de terminá-las, o que muito aflige suas netas. As duas netas tiram a avó da estação dos adultos exaustos e a levam em um triciclo pelo Parque da Cidade. Em um determinado momento, uma das netas começa a contar que a avó, por ter demência e estar muito debilitada, passa a maior parte do tempo dormindo, mesmo com as inúmeras tentativas das netas de acordar e interagir com ela. E é aqui que mais uma vez somos convocados para a execução da cena, interferindo diretamente em sua forma: a neta nos conta que a única maneira de acordar a avó é colocando músicas de tango para tocar, então nos pede que batamos com a mão direita no peito continuamente para criar o ritmo da música enquanto ela canta a letra. A cena é um dos momentos mais bonitos e sublimes do experimento, e ao mesmo tempo, um dos mais tristes: mesmo com as batidas no peito do público e com o canto da neta, a avó não reage mais. O triciclo desliza pela rua sem ninguém pedala-lo enquanto a avó segue dentro dele imóvel, se distanciando de nós enquanto nem mesmo todo o envolvimento do público pode resgatá-la da morte.

Contrastando fortemente com essa, inicia-se outra cena da qual pouco pude entender e absorver de sua narrativa. Há dois atores representando duas crianças, um menino e uma menina. O menino procura e grita por sua amiga chamada Maria. A cena ocorre no gramado do parque e envolve vários cataventos enfiados no chão. É interessante que a cena da avó e essa tenham ocorrido em sequência porque acabam condensando e exemplificando o contraste no acabamento e na fruição do experimento. Enquanto em uma cena eu pude ouvir e entender tudo muito bem, na outra, pela sua formatação, pouco pude ouvir do que os atores falavam, principalmente por ser em um gramado que era mais espaçoso e mais barulhento do que a rua para os pedestres onde aconteceu a cena anterior. O experimento oscila diversas vezes entre esses dois tipos de cena e fruição, algumas com maior “acabamento” e outras com mais fragilidades e ruídos, o que se deve ao curto tempo em que são criadas e ensaiadas.

Apesar disso, a experiência geral do experimento não é prejudicada pelos momentos em que se relacionar com as cenas com menos acabamento se torna um pouco difícil, principalmente porque apesar dessas fragilidades o experimento encontra muita força na radicalização para a qual se lança no que diz respeito à interação com o público e experimentação das possibilidades de cena. Radicalizações essas que, pelo menos no nível que os experimentos dos Laboratórios das Cenas alcançam, não são tão frequentes na cena teatral natalense, nem mesmo nas obras mais recentes dos próprios Clowns de Shakespeare. Como exemplo da experimentação nas possibilidades de cena é possível citar a própria estrutura do experimento, que em sua sinopse afirma “como na composição de uma rabiola, que é formada por fragmentos de tecidos que permitem que a pipa ganhe voo, nosso resultado é composto de células que refletem sobre o fazer teatral para crianças” e traz diversas cenas que não necessariamente conversam entre si, muitas vezes se destoando e tendo um caráter independente, como a cena dos Vermes Infames, na qual uma banda punk rock formada por minhocas faz um pequeno show cantando músicas com fortes críticas aos humanos. Então, a ausência de busca por uma unidade dramatúrgica ou estética (exceção somente para as atuações, que acontecem sempre em um registro caricato e grotesco) possibilita ao experimento trazer cenas muito diversas, peculiares e até mesmo inusitadas, como uma espécie de cardápio teatral com diferentes formatos de cena, o que também aumenta as possibilidades de relação dele com o público, uma vez que a cada momento somos convidados a conviver com propostas de cenas diferentes entre si.

Fevereiro / 2023

Horizonte da Cena

O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Júlia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta editam o podcast do site desde 2020. A crítica como exercício de olhar e escrita sobre o mundo do teatro e o teatro do mundo; o crítico de teatro como um espectador interessado em afetar-se com o acontecimento teatral e problematizá-lo, colocando ideias em circulação para que encontrem outras, semelhantes ou distintas, sem assumir o papel de juiz ou carcereiro. Com essas premissas, o Horizonte da Cena abre-se à pluralidade de vozes dos seus colaboradores.

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