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Engenho de histórias de Dona Passa

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Parque Industrial

Parque Industrial

Um vaga-lume no meio da noite

Crítica a partir do espetáculo Engenho de histórias de Dona Passa, apresentado por Renata Ferreira na programação da ALDEIA JIQUITAIA – MOSTRA CULTURAL DO SESC TOCANTINS em 23 de novembro de 2022 na cidade de Gurupi/TO.

Por Clóvis Domingos

Enquanto eu fiquei alegre, permaneceram um bule azul com um descascado no bico, uma garrafa de pimenta pelo meio, um latido e um céu limpidíssimo com recém-feitas estrelas.

Resistiram nos seus lugares, em seus ofícios, constituindo o mundo pra mim, anteparo para o que foi um acometimento: súbito é bom ter um corpo pra rir e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo alegre do que triste. Melhor é ser.

(Momento. Adélia Prado)

Adentrar no engenho de histórias de Dona Passa é vivenciar uma experiência fantasmática. Destaco nesse solo da atriz Renata Ferreira a iluminação com seu tom sépia que nos convida a testemunhar algo do campo do inacreditável: é como se de uma fotografia muito antiga saltasse do papel envelhecido uma figura com voz, movimento, presença e vida. Uma espécie de aparição que nos rouba o sossego, causa estranhamento e familiaridade, uma sensação de estarmos diante de alguém que conhecemos, como se nossas avós ali estivessem encarnadas. Dona Passa metaforiza o arquétipo coletivo das nossas anciãs com suas rezas, conselhos, provérbios, ladainhas e causos. Nesse espetáculo de alta voltagem mítica e emocional construímos juntos um engenho das memórias.

A encenação é minimalista e confidencial e o foco recai na atuação precisa e minuciosa da intérprete que, através dos recursos de mímesis corpórea, diante de nós se transforma numa mulher cujo tempo do corpo passou, mas a imaginação não passa, resiste. A construção da personagem em cena revela a capacidade que o artista de teatro tem de se tornar outro e fabular mundos diferentes e impensáveis. Pelo exercício da ficção podemos por alguns momentos descansar de nossas identificações e experimentarmos nos vestir com outras narrativas. Renata Ferreira utiliza um dispositivo poderoso e que depois produz o efeito desejado: primeiro temos a entrada no palco de uma mulher jovem usando sua roupa cotidiana para depois testemunharmos sua transformação na simpática idosa. Não há truque de magia, mas técnica. Assim Dona Passa nasce através desse parto cênico e umbilicalmente nos envolve com suas histórias.

“Tudo passa”, mas Dona Passa ainda continua aqui comigo e com ela pude aprender que o excesso de luz também cega (“não existem mais bruxas e assombrações, tudo é explicado hoje”), que é preciso habitar a escuridão da vida e do mundo, abraçar as sombras, amar o desconhecido, sustentar os mistérios.

Uma réstia de luz também é farol capaz de abrir caminhos através de pequenos lampejos.

Engenho de histórias de Dona Passa é puro jogo, conversa boa, palavra dançada, cantiga ancestral, velhice e infância, lucidez e inocência. Aguça nossa escuta e amplia nossa sensibilidade. Apresentada no palco do Centro Cultural Mauro Cunha (na cidade de Gurupi, Tocantins), encontrou nas crianças ali presentes a cumplicidade necessária para a criação e manutenção de uma brincadeira de quintal. Era bonito ver a criançada disputando um lugar para estar junto daquela velha senhora, cuidando dela e também por ela sendo cuidada. Porque onde há fragilidade se convoca nosso gesto de responsabilidade.

O tempo de duração de uma vela flamejante

De alguma forma o espetáculo aborda o tema da solidão e em seu bojo alterna rigorosa pesquisa de interpretação com modos de improviso e interação com a plateia. Em nosso contexto atual marcado pela aceleração do tempo e pela pobreza das experiências, o trabalho nos provoca ao instaurar uma comunidade de ouvintes mediada pela força da oralidade. Dona Passa resgata a arte da narrativa cada vez mais extinta em nossa sociedade obcecada por imagens. São sussurros e vestígios do humano.

Por trás dos engraçados contos ofertados por aquela mulher de coluna envergada, uma dor trágica e fina vibrava, um arrepio de morte, um prenúncio do fim que a todos nós, está destinado. Mas com Dona Passa a vida insiste, pois ela é um pouco gente e também um pouco bruxa. Tem lá suas artimanhas e armadilhas para germinar belezas e colher delicadezas. Moradora de outros tempos, lá na Aldeia Jiquitaia deu o ar de sua graça. E graças a ela saímos do teatro mais aliviados e como ela dizia: “abençoados”. Penso na literatura do escritor moçambicano Mia Couto: “abensonhados”. Voltei para o hotel trazendo algumas folhas de chá de melissa que ela gentilmente nos ofertou para acalmar os nervos.

Para finalizar: Engenho de histórias de Dona Passa parece alcançar o “grau zero” do teatro: uma história, uma personagem, uma atriz, o palco e o público. Uma forma singela de celebrar os encontros. Pois enquanto Dona Morte não vem a Dona Vida segue com essa dona que nos “passa”, nos ultrapassa: Dona Palavra.

Fevereiro / 2023

Teatro como gesto de aproximação

Por Julia Guimarães

Crítica do espetáculo “Macbeth 22”, visto durante a temporada de estreia na Funarte-MG, no dia 05 de fevereiro de 2023, em Belo Horizonte.

Desde que assisti, no FIT-BH 2006, à inesquecível encenação de “Ensaio.Hamlet” – da carioca Cia. dos Atores –, percebi que o jogo de entrar e sair da ficção poderia funcionar como dispositivo poderoso para aproximar o público de uma obra aparentemente distante de seu próprio universo. Na montagem, a peça de Shakespeare era levada à cena, como o próprio nome diz, sob a estética processual de um ensaio.

Em “Macbeth 22”, criação de Mariana Muniz e Maurílio Rocha, existe uma aposta semelhante, no que se refere ao desejo de trazer a tragédia shakespeariana para mais perto dos espectadores. Em um cenário minimalista, que alude sutilmente à floresta andarilha do texto original, Mariana Muniz explora o diálogo direto com a plateia como modo de fazer do teatro um gesto de aproximação.

Na dramaturgia do espetáculo, criada por Muniz em parceria com David Maurity, a conversa com “Macbeth” é tecida sob a forma de um livre comentário. Por exemplo, ao contextualizar e justificar para o público certas escolhas da montagem, ao narrar passagens da trama no lugar de encená-las, ao criticar a peça original, ou, ainda, ao aludir a memórias de infância. Trata-se de um diálogo que se assemelha, em alguma medida, a princípios relacionados ao gênero do ensaio.

Para Lehmann[1], o chamado “ensaio cênico” seria definido como uma espécie de “reflexão pública sobre determinados temas”. O que Mariana Muniz faz no palco, com o uso de uma atuação extremamente empática e que valoriza sobremaneira as palavras ditas, é justamente compartilhar suas inquietações diante da peça que ela simultaneamente encena. A liberdade de aproximar “Macbeth” a outras produções artísticas – como as canções “Help”, dos Beatles ou “Vampiro”, de Caetano Veloso, executadas ao vivo pelo músico Maurílio Rocha – deixa entrever as escolhas afetivas dos criadores em seu olhar sobre a tragédia do dramaturgo inglês. Aliás, também vinculado a essa estratégia de aproximação, o convite proposto aos espectadores, durante o prólogo, para que imaginem juntos a história a ser contada, embora seja recurso recorrente no teatro contemporâneo, não deixa de funcionar como a construção de um significativo elo convivial entre palco e plateia.

Os comentários presentes na dramaturgia ajudam, ainda, a produzir camadas de mediação diante da obra. Trata-se de um enquadramento que permite, por exemplo, que a atriz interrompa um monólogo da emblemática personagem Lady Macbeth para sublinhar concepções problemáticas acerca do gênero feminino no teatro de Shakespeare; ou, ainda, que ela possa refletir criticamente sobre a visão redutora do autor em relação às personagens mulheres de suas tramas, constantemente vinculadas a dois grandes protótipos: o da bruxa e o da virgem.

É essa liberdade para dessacralizar tanto a tragédia de Macbeth quanto o legado do dramaturgo inglês – muitas vezes cultuado na crítica literária como semideus – o aspecto que mais colabora para fazer “Macbeth 22” ressoar em plateias atuais. Também em semelhança com “Ensaio. Hamlet”, o diálogo com a cultura pop materializa essa livre aproximação, seja ao vestir rei e rainha com coroas promocionais de uma famosa marca de hambúrguer (e, assim, evidenciar o aspecto de banalidade associado à tirania) ou ao invocar a wikipédia a fim de comentar, sob a forma de um hiperlink cênico[2], a importância do reinado de Elizabeth I para se compreender as contradições existentes entre gênero e poder em diferentes épocas.

Ao ressaltar, em algumas passagens, qual é o corpo que vai narrar a história de Macbeth – não um corpo neutralizado em suas características biossociais, mas o corpo de uma mulher branca – Muniz também alude a algumas de suas escolhas cênicas. Se a problematização acerca das questões de gênero surge como fator importante para atualizar a obra em sua versão 2.2, as provocações levantadas no prólogo acerca da relação entre branquitude, poder e tirania acabam não tendo reverberação no decorrer do espetáculo.

Esse é um aspecto que poderia projetar complexidade sobre as aproximações entre o texto original e a política contemporânea. Como o próprio título sugere, uma das apostas da releitura é a tentativa de pensar o Brasil de 2022 e, portanto, o Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro. Trata-se de um paralelo que encontra ecos em reflexões públicas recentes, como a do professor de literatura João Cezar de Castro Rocha, em artigo[3] no qual comparou o ex-presidente a três personagens tirânicos de Shakespeare – Ricardo 3º, Saturnino e Macbeth.

De fato, a presença em cena de um governante que não mede esforços nem reconhece limites para se perpetuar no poder possui semelhanças evidentes com a realidade brasileira recente. Trata-se de uma constatação amplamente disseminada, mas que não surge acompanhada de um exame sobre o lugar da culpa nesse possível paralelo e tampouco provoca a plateia a repensar sua própria posição em contextos de poder concebidos de forma mais sistêmica e menos personalizada (tal como ocorria, por exemplo, no espetáculo “A floresta que anda”, uma livre adaptação de “Macbeth” dirigida por Christiane Jatahy na década passada).

A respeito dessa aproximação com o Brasil contemporâneo, são também os momentos de partilha íntima – como a hesitação entre contar ou não essa história ou o relato sobre os gatilhos detonadores do processo de criação –que estabelecem alguns dos elos mais interessantes entre a macro e a micro-história. Neste gesto de aproximação, a trilha sonora executada ao vivo por Maurílio Rocha, somada à cumplicidade entre músico e atriz em uma sutil contracena trazem um viés performativo que ajuda a manter forte a conexão com a plateia. Após alguns anos de suspensão do teatro presencial, nada melhor retomá-lo com ênfase em aspectos que apenas a copresença pode proporcionar.

[1] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

[2] Viabilizado pelo uso de um projetor em cena com ilustrações associadas ao histórico do reinado de Elizabeth I.

[3] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/05/ tiranos-de-shakespeare-explicam-golpismo-debolsonaro.shtml

Fevereiro / 2023

Ru Na Acesa

o ruína acesa foi criado em abril de 2017 por Amilton de Azevedo com o intuito de ser uma plataforma de crítica cultural inicialmente voltada apenas à obras teatrais, durante a pandemia também passou a acolher textos sobre trabalhos virtuais, filmes e séries.

manter a ruína acesa. a ideia que o nome do projeto carrega traz consigo uma referência à efemeridade do teatro: uma chama que consome à si mesma. a escrita crítica emerge, então, como possibilidade não apenas de registro, mas de recriação da obra. assim, ruína acesa é uma possibilidade de reverberar acontecimentos cênicos; analisando-os criticamente a partir de suas próprias propostas. a crítica configura-se, assim, como diálogo, reflexão e, fundamentalmente, como cúmplice do fazer artístico.

cinco agitadores e uma polifonia dissonante

Por Amilton De Azevedo

Quando Bertolt Brecht escreve A Decisão, em 1929, inicia sua dramaturgia com a fala do Coro de controle, voz ligada ao Partido Comunista da União Soviética, afirmando aos Quatro agitadores que estiveram em missão na China para a difusão dos ideais revolucionários que também neste país a revolução está em marcha, e as fileiras de combatentes estão organizadas. Na obra que encerra a Trilogia dos afetos políticos da Cia de Teatro Acidental (formada em Campinas, SP), a dramaturgia de Artur Kon inverte esta chave; em E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis, o trabalho não foi bemsucedido: também neste país (como em todos os outros) a revolução é uma ideia distante. As fileiras de combatentes estão totalmente desorganizadas, aliás quase não há combatentes.

O texto de Brecht, com sua estrutura de duplo julgamento (um coro do Partido julga quatro agitadores que, no trabalho clandestino de incitar a revolução, se veem forçados a julgar e executar um camarada, que deve aprender a morrer), foi ele mesmo submetido ao julgamento implacável da direita tanto quanto da esquerda anti-stalinista, considerando ainda que o próprio Partido condenara a peça, negando ver nela narradas práticas comparáveis às suas, conforme as palavras de Kon no prefácio da publicação da Trilogia dos afetos políticos (Javali, 2022).

A percepção desta peça didática (Lehrstück) como espécie de propaganda dos ideais comunistas inclusive foi pauta dos questionamentos relacionados à atuação de Brecht diante do Comitê de Atividades Antiamericanas (HUAC), como mostra o depoimento registrado em 30 de outubro de 1947, onde o artista alemão defende que A Decisão é uma adaptação de uma obra do teatro Nô e que o Jovem Camarada não foi assassinado, mas passou por, de certa forma, um suicídio assistido: He killed himself. They supported him, but of course they had told him it were better when he disappeared, for him and them and the cause he also believed in.

No mesmo depoimento, Brecht aponta que A Decisão acompanha de forma próxima uma antiga história que mostra a devoção para com um ideal até a morte (follows quite closely this old story which shows the devotion for an ideal until death). Essa sucinta apresentação da obra que serve de base para o trabalho da Cia de Teatro Acidental traz consigo uma série de complexidades e nuances – talvez muito maiores do que uma leitura realizada com pressupostos assertivos sobre o que quer dizer o teatro brechtiano poderia apontar.

A própria ideia de peça didática é, conforme mais uma vez o prefácio de Kon para a publicação das dramaturgias da Acidental, um termo que já traz em si uma polêmica entre quem acusa o proselitismo redutor e autoritário e aqueles que viram nesses experimentos a parte mais atual da obra de Brecht: jogos abertos à intervenção de cada grupo que os aborda, pois não visam a educar o público, mas os próprios atores, que não aprendem uma doutrina pré-determinada, mas um pensar dialético em ação (até eventualmente divergindo do texto).

Pois o que Kon faz, alinhado à encenação dirigida por Maria Tendlau de E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis, é precisamente reelaborar o texto de Brecht dialeticamente a partir do confronto com ele e com os tempos que correm. A investigação da inação contraposta ao modelo de ação brechtiano se afirma desde as primeiras palavras – senão diante da própria escolha do título – da obra: Temos muito o que dizer, queremos comunicar. Há que comunicar uma morte, a morte de algo que não necessariamente sabemos o que é.

No pensamento visual de Renan Marcondes, a Cia Acidental distribui suas peças, pistas e evidências como que num tabuleiro. As escolhas da interpretação apontam continuamente para a necessidade de comunicar e a angústia da incerteza em torno do que efetivamente dizer; a distribuição dos textos corrobora uma intenção de produzir coralidades dentro da contemporaneidade virtual (com fronteiras cada vez mais tênues entre atuação digital e ações concretas) que inevitavelmente se dissolve em uma polifonia dissonante na coletividade cênica proposta, entre identidades particulares e marcadores bem definidos.

Em cena, Kon, Chico Lima, Mariana Dias, Mariana Otero e Ma Zink são as peças deste jogo cujo tabuleiro se desmonta antes mesmo de que se faça possível compreender as regras daquilo que ali se movimenta. Ali, são agitadores, coro de controle, jovem camarada, camponeses, juízes, executores; e fazem do público cúmplices, de algum modo, daquilo que nem se sabe, daquelas tantas desculpas que se pedem, do tanto que se move sem de fato mover nada.

A Cia de Teatro Acidental, aliás, durante toda a Trilogia dos afetos políticos, manteve em suas realizações uma importante percepção: a adaptação/atualização de um discurso cênico demanda uma renovação também formal. Assim, ao trazer A Decisão cem anos adiante, enquanto espelha seus quadros investiga o que se pode fazer a partir do que ali se apresenta.

Quando Brecht fala dos Ensinamentos dos clássicos, a Acidental evoca Bernard Koltès: é como se a solidão dos campos de algodão, dos escritos do francês, encontrasse hoje enquanto possibilidade apenas uma antinegociação; um fracasso da ação, um fracasso do desejo. No teatro besta confessado por Kon no prefácio já citado, nessa busca pelo pior teatro do mundo, E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis se permite habitar consistentemente esse não-saber, compreendendo-o como necessidade nevrálgica para uma esquerda, um progressismo, que se observa e se autodiagnostica, fazendo do coletivo algo que os força ao esforço de abrir mão das certezas em prol de um processo aberto ao imprevisto, ao desconhecido.

Basta olhar para a janela (ou para a tela de nossos celulares) para notar que de muito pouco vale estarmos certos de nossas razões – Afinal, o saber que já dominamos não tem adiantado muito para dominarmos igualmente os rumos do mundo… Aliás, cabe apontar aqui para a insistência deste texto trazer reiteradas vezes as palavras de Kon: a publicação da editora Javali alinhada à estreia de E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis se mostra mais do que oportuna, auspiciosa. Viabilizado pelo Prêmio Zé Renato de Teatro para a cidade de São Paulo, da Secretaria Municipal de Cultura, o livro é um bonito e marcante momento para quem acompanha as produções do teatro de grupo paulistano: nele, verificase o alinhamento entre proposições ético-políticas e os desenvolvimentos estéticos resultantes das pesquisas de um coletivo teatral.

Seguindo nos quadros de Brecht revisitados por KonTendlau-Acidental, a Anulação, o segundo de A Decisão, já traz outro bom nó: ali, O Diretor da Casa do Partido afirma aos agitadores que eles não têm nome nem mãe, são folhas em branco sobre as quais a revolução escreve as suas instruções. Que a partir deste momento vocês não são mais ninguém, a partir deste momento, e talvez até o seu desaparecimento, vocês são operários desconhecidos. Pois em E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis este é precisamente o momento da autoafirmação da identidade; Eu sou uma mulher negra/ Eu sou uma mulher branca/ Eu sou um homem branco trans/ Eu sou um homem branco cis etc.

O etc. da publicação parece se evidenciar como chave para o entendimento: na dialética proposta pela Cia de Teatro Acidental, não se trata de apresentar métodos corretos de entendimentos e lutas pelo que se acredita ser certo no mundo, mas pelo contrário. Nesta espécie de peça didática, o aprendizado está no movimento de não-saber. De se manter em dúvida, compreendendo que a superficialidade com a qual muitas vezes se encara a racionalidade é tanto sintoma quanto causa; tanto culpa quanto responsabilidade. O convite é atropelar tudo que é raso no que diz respeito aos afetos.

No debate entre A pequena e a grande injustiça, quarto movimento da Decisão, um jogo onde a Acidental tenta mobilizar a plateia – e a tentativa pode ser vista como constrangedora, e o envolvimento pode ser visto como constrangedor. Falar de tribunal das redes sociais pode soar como um lugar comum, mas não se pode também ignorar esses novos parlatórios e suas pretensas horizontalidades e potências de construir armadilhas e oposições muitas vezes falaciosas. Se em Brecht os agitadores solicitam ao camarada a distribuição de panfletos político-ideológicos bem demarcados em torno de suas proposições, em E se a porta cair o que se distribui ao público são desenhos de colorir. Ali estão aristocratas em guilhotinas e imagens associadas à propaganda comunista, mas o que isso quer dizer?

E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis diverte enquanto traz à tona a desconfortante percepção de que faltam combatentes e sobram culpas. São tentativas de construção de um nós emaranhadas numa feitura e desenlace de nós. A decisão paira no ar: juízes, carrascos e vítimas coletivamente preferindo não existir diante do desmontar dissonante de um tabuleiro cujas regras, mesmo bem compreendidas, parecem fazer do próximo movimento do jogo uma dolorosa impossibilidade.

E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis

Cia De Teatro Acidental

Texto Artur Kon

Direção Maria

Tendlau

Elenco Artur Kon, Chico Lima, Mariana Dias, Mariana

Otero E Ma Zink

Janeiro / 2023

Interlocutores

Clayton Mariano E Janaína Leite

Pensamento Visual

E Fotos Renan Marcondes

Concepção Sonora

Cia De Teatro

Acidental E Elias

Mendez

Cenotécnico Guilherme Schultz

Iluminação Cauê Gouveia

Colaboração

Teórica Alessandra

Affortunati Martins

Produção Anacris

Medina como olhares tanto

Por Amilton De Azevedo

Durante um mês deste início de 2023, no Teatro Paulo Autran e no Auditório do Sesc Pinheiros, divididos por três andares, duas obras coexistem em temporada –como tantas vezes acontece. O que chama a atenção neste momento é a possibilidade de observá-las em perspectiva curatorial, sendo tal programação definida de forma consciente ou não. Às sextas e sábados, quando amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético] se aproxima de seu final no imenso teatro do subsolo, no terceiro andar está começando o Solo de Marajó.

Enquanto o trabalho apresentado no Paulo Autran é o decantar de um projeto artístico-pedagógico idealizado pelo Sesc São Paulo, com extensa ficha técnica dividida em uma série de núcleos criativos, técnicos e de apoio –que, conforme o programa aponta, trabalharam de forma circular e horizontal – além de uma grande quantidade de atuantes selecionados a partir de chamamento público, no auditório o espectador se vê diante de apenas um ator e o palco nu. Então, qual o sentido de aproximar tais encenações? Seria simplificador dizer que trata-se do tema; mais adequado, pensar em seus olhares – ambos miram um tanto, de formas singulares e radicalmente distintas.

Solo de Marajó, criação de Alberto Silva Neto (dramaturgia, iluminação, encenação e direção) e

Claudio Barros (dramaturgia, figurino e atuação), do Grupo Usina (PA), é um representante – tantas vezes solitário – dos teatros do Norte do país a se apresentar em palcos sudestinos. Na análise de Kil Abreu para o Cena Aberta, além das leituras sobre a cena, o leitor pode encontrar uma contextualização importante em torno desta questão – e também um apontamento sobre a qualidade que existe mesmo onde nossa “vista” não alcança: entende-se, tantas são as condições na contramão: a deficiência das políticas públicas locais e o chamado “custo amazônico” – uma conta em que se mostra o quanto é dispendioso cruzar o país vindo de cima para apresentações em outras praças. Mas o fato de não estar à vista das outras regiões não quer dizer que uma parte do melhor teatro brasileiro não esteja lá.

A obra baseia-se no romance Marajó (1947), do também paraense Dalcídio Jurandir, que compõe o chamado Ciclo do Extremo Norte, sendo o segundo de dez livros que apresentam um quadro da Amazônia paraense provavelmente desconhecida – se não ignorada –por grande parte de nós, sudestinos. E não apenas a realidade, mas também sua literatura, suas criações, seus imaginários que vão além do que geralmente se espera, sejam em estereotipias pejorativas – como quando se insiste em falar de um brasil profundo, por exemplo –ou naquelas que fazem das matas (e as amazônias certamente são mais do que concebemos como matas) espaço idílico de resgate e invenção.

Silva Neto e Barros adaptam o romance de modo a fazer de suas cenas quase que capítulos, episódios de narrativas vivenciadas por diversas personagens cujas relações se revelam no caminhar deste Solo de Marajó. No texto já citado de Kil Abreu, Solo de Marajó e a lenta vazante das marés amazônicas, o crítico aponta para o fato de que a dramaturgia, voluntariamente ou não, se inspira no plano livre dalcidiano, que mescla o andamento dos fatos na vida ordinária dos personagens à reflexão íntima e, ainda, que se pode perceber um recorte nas escolhas do texto: o drama das mulheres do andar de baixo.

Para dar vida a essas vidas, Barros faz de seu corpo e voz veículo de poesias e dores. Intérprete de grande precisão, move-se no palco como se Solo de Marajó fosse uma grande coreografia – o que, inclusive, poderia convidar a iluminação a outras possibilidades para além do blecaute que marca o encerramento de cada narrativa, para que o público pudesse acompanhar os passos de Barros nas transições gestuais de cada uma das caracterizações e marcas de cena. Nesse sentido, ainda que salte aos olhos a qualidade técnica do ator, não se trata de obra formalista: o que grita no trabalho do Usina é o abandono, o desamparo, as cicatrizes coloniais que se mantém desde muito; na época retratada por Jurandir, na época da escrita do livro, nos tempos que ainda correm.

A complexidade está imbricada em uma teatralidade do simples. Nas violências que correm em texto e subtexto, em ausências e partidas. São precisas as escolhas do como contar, do como representar, do que se faz presente no palco e o que se constrói entre narrador e plateia, evocado no invisível que é matéria da cena. Da poesia de duas luas aos rostos que permanecem vistos nas águas, Barros povoa o ar que preenche a sala com a leveza do que é grave, movendo águas há muito paradas mesmo no correr do rio.

Alguns andares abaixo, no mesmo prédio, as amazônias são inspiração para amazonias, grafada sem acento, como que ação, sinfonia, também dissonância; distâncias, espelhamentos e aproximações neste gesto de ver a mata que te vê, entre jovens das margens (e do centro, também por vezes periferia) da cidade de São Paulo e as imensidões das margens dos rios e igarapés que cortam a floresta.

Se Solo de Marajó é encenação de longa trajetória, estreado em 2009, realizado no escopo de um grupo independente com mais de trinta anos de pesquisa e criação, por artistas de grande experiência, amazonias –ver a mata que te vê [um manifesto poético] é fruto de ação sociocultural, pedagógica e artística gestado no contexto de uma das mais fortes instituições do país – o Sesc São Paulo.

Assim, vale dizer aqui com todas as letras de que o presente texto não ambiciona tecer nenhum tipo de comparação entre os trabalhos, por ser nítido que tratamse de obras de naturezas radicalmente distintas. De todo modo, cabe falar de ambos em uma mesma reflexão por conta, novamente, da programação da unidade Pinheiros, cuja curadoria acabou por oferecer a seu público dois espetáculos de teatro com relações diretas com a região Norte do país, seus biomas e seus modos de vida.

No farto programa de amazonias – ver a mata que te vê, as intenções e ambições do projeto se apresentam de forma cristalina. Sua relevância é inegável, especialmente no que diz respeito à marca que uma experiência de tal dimensão deixa nas jovens pessoas atuantes envolvidas no processo formativo de pesquisa e encenação – cujas reverberações oxalá serão vistas nos palcos e espaços culturais de suas regiões e da cidade como um todo. Também em seu conteúdo, de denúncias urgentes (como são tantas nestes tempos).

Neste sentido, já é possível refletir em torno dos efeitos e alcances deste manifesto poético. Considerando se tratar de temática amplamente divulgada em veículos de imprensa, pode-se pensar que muitos dos dados apresentados são de conhecimento público – ainda mais considerando o público que frequenta os teatros do Sesc São Paulo. Isso não diminui a importância, no sentido de que muitas vezes é fundamental insistir em localizar questões histórica, demográfica e estatisticamente.

No que diz respeito à encenação, Maria Thaís opta por uma organização fragmentada, compondo amazonias de uma forma (inescapavelmente?) plural. O risco assumido é de um andamento inconstante, em quadros que tateiam muitos possíveis, de modo que pode causar a impressão que os sobrevoa de maneira panorâmica.

Uma análise do que se vê na cena é indissociável do subtítulo da obra: [um manifesto poético]. Talvez não se possa, mesmo, olhar para amazonias como se mira um espetáculo tradicional. Seu caráter formativo (de artistas, de públicos) parece mesmo o ponto focal do projeto, de visível relevância pedagógica e sociocultural.

Porém, insiste-se numa espetacularidade, numa teatralidade que soa excessiva em suas materialidades cênicas, como se aqueles corpos e corpas em pesquisa e ação não fossem o bastante para levar ao palco suas narrativas. A simultaneidade de ações e composições traz uma curiosa beleza, ora como coletividades que pulsam em distintas frequências, ora como desfiles que se permitem um risco de quase (quase!) cair em lugares comuns. O sudeste tipicamente exotifica o tanto que compõe o imaginário e o universo amazônico, e é importante implicar-se nestas amazonias. Ao mesmo tempo, qual a relação entre o desejo de falar e a necessidade de construir espelhamentos?

Por um lado, os paralelismos podem ser percebidos positivamente. Em texto publicado no Ecoa, Trudruá Dorrico escreve que essa presença indígena, quilombola, e branca dissidente que resiste pela floresta é um manifesto contemporâneo que convida a plateia a refletir sobre o próprio bioma em que vive, resistindo às mesmas corjas extrativistas. Observando as amazonias neste sentido, há uma rica e fortuita possibilidade de identificação. Maria Thaís, em entrevista ao Farofafá, também diz algo neste sentido, ao falar sobre o olhar que move o trabalho – um olhar para os modos de vida, para a diversidade que as amazonias, as diferentes formas de existir, de cultivar a floresta, de manter a relação com o mundo, estão expressas nos povos que ali habitam. A diretora artístico-pedagógica aponta que com certeza essa diversidade, essa multiplicidade, a mata, a floresta como lugar que expressa pra gente essa diversidade, ela está absolutamente associada aos modos periféricos de existência e que a gente com certeza vai identificar também nos jovens da periferia paulista.

A tensão proporcionada pelas proximidades e distâncias resulta em momentos marcantes de amazonias, como a cena da mata-cidade-mata, onde urbanidades transbordam pelas tantas margens do país. Por outro lado, a associação entre a cidade de São Paulo e os modos de vida da floresta é por vezes frágil, gritando as inatingíveis dimensões de lançar olhares para tanto, de modo que a própria encenação parece abandonar as fricções possíveis para então debruçar-se na mata que é – e menos na que te vê.

Há, assim, algo de desencaixe entre conceito, contexto e realização. Se nas coralidades e movimentos se pode perceber aos poucos as tantas singularidades que compõem o coletivo artístico, uma espécie de opulência nas construções cênicas parece depor, por vezes, contra a própria matéria prima que constitui não apenas a encenação, mas o projeto como um todo. São muitas as parcerias e é evidente que a troca foi intensa e extensa entre as muitas pessoas envolvidas na criação; a sobreposição entre camadas de processo e de cena não é sempre harmônica, ainda que por muitas vezes sim – e o efeito na plateia, de deslumbramentos e reconhecimentos, é indiscutível.

Este texto poderia ser dividido em dois, tecendo uma crítica a partir de Solo de Marajó e outra a partir de amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético]. Porém, pareceu fortuito abordar as duas obras em uma mesma reflexão, inclusive para contar às pessoas que vivem ou estão de passagem por São Paulo que há, em um mesmo edifício, na região do centro expandido, acessível por diversos modais do transporte público, duas possibilidades de fruir experiências teatrais pautadas pelo Norte brasileiro – seja como intenção, seja como origem.

A iniciativa do Sesc São Paulo, nesse sentido, é louvável, ao simultaneamente pautar uma obra paraense e outra que se lança a construir aproximações entre as amazônias e a existência sudestina. Ao mesmo tempo, faz pensar, para além do custo amazônico, em torno dos circuitos de (in)visibilidade produzidos e reproduzidos neste país de dimensões continentais, onde os fluxos de capital simbólico muitas vezes seguem reproduzindo os de capital financeiro.

Por fim, há de se lembrar também de que projetar expectativas sobre quais teatros e quais temas devem ser abordados por artistas e trabalhadores da cultura de distintas regiões do país é uma prática colonialista que deve ser abolida. Viabilizar produções de localidades diversas é compreender a diversidade possível dos impulsos criativos de seus realizadores.

Dessa forma, como o presente texto fala, entre outras coisas, de um espetáculo concebido no Pará, parece fazer sentido encerrá-lo citando e celebrando três nomes: o primeiro, já citado, é Kil Abreu, que dispensa apresentações pela relevância de sua trajetória como curador e crítico, figura nevrálgica para o desenvolvimento das teatralidades contemporâneas paulistanas e atual editor do Cena Aberta. O ruína acesa lembra também de Rudinei Borges dos Santos, em cuja escrita poesia e dramaturgia conversam como velhos pescadores à ver o sol se pôr na beira de um rio que corre, e de Paloma Franca Amorim, que, além de já ter colaborado com este site, é autora de 7PISOS, ao lado do Grupo Folias, dentre tantas outras realizações de grande impacto e relevância em várias linguagens artísticas.

Olhar o tanto é fazer ver o que já nos circunda.

Janeiro / 2023

Satisfeita, Yolanda?

O blog Satisfeita, Yolanda? é um espaço para críticas, entrevistas, reportagens, bastidores. E, principalmente, para dar continuidade e repercussão ao processo de criação da arte teatral. As Yolandas – Ivana Moura e Pollyanna Diniz –são jornalistas pernambucanas, apaixonadas por teatro.

Os paraquedas coloridos do Gambiarra

Crítica dos espetáculos O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Avós

Por Ivana Moura

Em meio à pandemia e ao descaso do antigo governo federal com a cultura, quatro artistas confinados num sítio em Gravatá, no interior de Pernambuco, acionaram – em julho de 2020 – , os paraquedas coloridos (imagem-proposta de grande força vital de Ailton Krenak). Essa visão diz muito das nervuras desses últimos anos no Brasil e da postura dessa trupe – o ator Cláudio Ferrario, a atriz Olga Ferrario, o músico Hugo Coutinho e a cineasta Dea Ferraz – que criaram o Cineteatro Gambiarra. O projeto marca neste janeiro sua despedida do formado unicamente virtual com a exibição ao vivo pelo YouTube dos espetáculos A Reinvenção da Palavra, Avós, O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Martelada.

O título escolhido para o coletivo traduz alguns dos procedimentos do grupo e experimentos propostos.

Gambiarra é um ato de improvisar, de encontrar soluções materiais para resolver (ou remediar) uma questão. É também um mecanismo de subversão, com criatividade, dentro do sistema capitalista.

Existe uma intimidade entre essas pessoas, de afeto e amor, pois se trata de um coletivo artístico-familiar.

Olga é companheira de Hugo e filha de Cláudio, que é companheiro de Dea. E para animar essa festa ainda tem o menino Davi, que enfrentou a pandemia, e o pequeno Tom, que chegou há pouco, rebentos de Olga e Hugo.

A trupe investiu dois anos e meio nesse formato híbrido, entre imbricações de teatro, cinema e tecnologia, com a produção de seis montagens, que renderam cerca de 30 sessões e mais de 4 mil espectadores pagantes. É evidente que nas primeiras exibições os afetos eram mais inflamados, existia uma sofreguidão por parte do público, o que podia ser conferido nos debates calorosos após as peças.

O palco do Gambiarra ganha dimensões diferentes a cada peça. Além da disposição das cenas, a câmera faz os pequenos milagres do cinema com teatro. Em Avós, o espaço passeia espiralado no tempo. O voal, o caminho de pedras e as luzes amarelas contribuem com o clima de mergulhos ancestrais, no solo de atriz Olga Ferrario. É o primeiro texto de Olga, com contribuição da atriz Lívia Falcão (sua mãe), de Dea Ferraz e da jornalista e poeta Sílvia Góes.

A câmera da cineasta Dea Ferraz se multiplica em dramaturgias. Com seus planos-sequências, closes, enquadramentos e zooms, ela sinaliza possibilidades, registra imagens e insinua composições, com o sangue correndo acelerado nas veias do ao vivo, da respiração ligeira, do risco. A ação de Dea sintetiza as tramas desse teatro de quatro artistas para administrar tantos desafios.

Nos relatos das avós, as palavras se alojam em lugares diferentes do corpo e se inquietam e mudam de lugar e viram lampejos. Os depoimentos dessas avós.–materna e paterna – foram colhidos em momentos distintos. A atriz faz um mergulho do que ela chama dentro. A intérprete assume qualquer coisa de uma ou de outra. Repete frases soltas, assume no corpo ancestralidade.

“Isto não é uma história”, avisa Olga. As falas são entrecortadas, confundem os fios do percurso. Existe uma evidente escolha pela leveza, sem perscrutar grandes depressões ou agonias. A vida segue um fluxo de lutas, de pequenas alegrias, As avós foram boas parideiras, Olga também teve seus filhos Davi e Tom de forma rápida e natural. Isso é pontuado na peça entre idas e vindas.

Os olhos da atriz ficam maiores para fazer confidências. As conversas gravadas com as duas mulheres se cruzam no presente futuro para tratar do passado das suas lidas. Hugo Coutinho cuida do ambiente sonoro, da trilha, da iluminação, acrescentando outras camadas a essa viagem ancestral.

Fertilidade, feminino, fluxos, água, essas ideias e imagens se sucedem e propõem ao espectador que acrescente suas próprias memórias e desejos enquanto o espetáculo anda. E dá uma vontade de correr para o colo da avó, ou sentir saudade.

O Último Encontro do Poeta com a sua Alma integra a Trilogia das Dualidades do ator e dramaturgo Cláudio Ferrario. As duas personagens entabulam um diálogo que vai do raso ao profundo. E embora não se sustente em profundidades filosóficas, se alarga na tensão dos questionamentos sobre a morte, a criação artística e as escolhas.

Nessa peça, Ferrario parte da premissa de que existe uma Alma como ser independente da pessoa em si. No caso do Poeta, elas convivem em íntima ligação, mas não se misturam, têm posições próprias e algumas divergências.

O Poeta fica sabendo que lhe restam poucas horas de existência na Terra. A Alma, interpretada por Olga Ferrario, propõe que nesse tempo eles façam juntos uma espécie de inventário, avaliando a trajetória.

A dramaturgia textual se aproxima dos autos vicentinos, no eixo da sátira e da lírica. E por uma perspectiva moral. Mas também carrega uma agitação interna dos teatros de rua, apresentados em feiras populares.

Os diálogos utilizam expressões populares como “… a porca torce o rabo”, “… alma sai pela boca” como mecanismo de adesão do público (esses ditos populares nem sempre funcionam, ou pelo menos, não provocam o efeito esperado em todos os momentos) . O Poeta e sua Alma passeiam de um tema de conversa a outro: tempo, vaidades de artista, significados de sucesso, honestidade artística, inferno, vender a alma ao diabo. Às vezes intensa, outras enfadonha, é a narrativa desse percurso.

A peça fecha com uma moral edificante da poesia, do teatro e do futuro.

Quem inventou a palavra: Deus ou Capeta? É a pergunta que gera A Reinvenção da Palavra, a primeira montagem do Cineteatro Gambiarra, uma adaptação da peça de teatro A Invenção da Palavra, de 2015, que teve encenação de Moncho Rodriguez.

Martelada encena as narrativas fantásticas de Martelo, o Mateus de Cavalo-Marinho mais antigo em atuação em Pernambuco Ele aponta que foi três vezes ao inferno e voltou para contar as histórias.

Essa temporada gratuita foi patrocinada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE). Neste 31 de janeiro é exibido o último experimento, Martelada, pelo YouTube do Cineteatro Gambiarra: https://www.youtube.com/@cineteatrogambiarra

Janeiro / 2023

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