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#3 mar—abr 23
críticas
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Um Arquipélago para pensar o teatro
Nesta edição. A urgente “amazonização” da vida e a
guerra dos mundos, anunciada em chave experimental. O teatro como laboratório
da percepção - formas de ouvir a voz dos rios e seus parentes. Altamira. A história afetiva de um Belo Monte e a traição do
homem. No encontro entre arte e vida o
que pode a performance como política?
Radicalizar a experiência da recepção, construir a efemeridade dos atos. O
infinitivo projeta baratos estéticos: estar, ficar ou passar? Ser. O público. Tudo ou
nada. Significados, sentidos. Significados sentidos. Sentidos significados. O que
pode a performance como linguagem da provocação?
A velhice vista como condição de classe.
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Os horizontes estão no fim. O amor não é uma retórica. É um ato de solidariedade mútua. Por isso é revolucionário. Setentismos?
Não no país da sociabilidade fraturada. A cidade de São Paulo tem um dos maiores
contingentes de sem-teto do mund. Não é o passado. É agora.
O palco como espaço da memória. Chuá.
Os rios morrem de sede. Vivemos na água
por nove meses. Depois é que. A música das Minas Gerais embala os melhores afetos.
As crianças não são o futuro. São agora. Ou nunca.
A biografia cênica de uma madrinha trans. Os contos de fadas como modelo para a revisão histórica. As manas espatifando certezas. O drama alquimizado em (auto) ironia queer.
Um tempo novo se anuncia. Música, maestro. Algo se quebrou. Ou está. Se quebrando.
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A tragédia de Shakespeare re-habitada pelo olhar da artista mulher. As bruxas estão
soltas. Na fricção entre gênero e poder, qual
é o alcance da cena? O palco abre sempre as portas para o sentido esperado? O teatro às vezes diz “não, muito obrigado”.
Um imbecil com patente de capitão conduz aos caminhos do teatro paupérrimo.
Sempre à direita. Alfred Jarry faz o teste da
teatralidade. A prova dos nove é no tablado. Marx pelo avesso: a farsa prenuncia a
tragédia. Belas visualidades e efeitos não são
tudo. O teatro pode dizer, uma vez mais, “não, muito obrigado”. Responder ao fascismo não é fácil.
Há mais ou menos 15 dias Tom passeia
na minha cabeça. Sul-americanos são
aplaudidos em Paris. A homofobia bafeja na imensa sala de jantar do planeta. O
apagamento de si por si é tão cruel quanto o apagamento pelo outro. Todos os segundos
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do minuto vivem a eternidade da maçã.
Tempo da serpente nossa irmã. O que a gente não sabe é o lugar certo de colocar o desejo.
Saio de casa com pouco mais de uma hora de antecedência, pego o metrô... Foda-se EU. O teatro de vocação punk aposta na
coletividade. A lei do convívio pode ser a
desobediência. Uma vila antiga abriga o
furor juvenil. Olha, Leda, as belezas do tempo espiralar.
O que é necessário para se inventar um idioma? Tradução é traição. Tradução
é invenção. É bom sentir o vento fresco
soprando nos ouvidos da narrativa - o
público como testemunha. As mulheres entram no vão entre fatalidade e
estranhamento. Ensinam a viver com o corpo a experiência da origem.
O movimento físico é assinatura da vida.
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Violência e erotismo. A quietude esconde em silêncio os grandes tremores. Placas tectônicas. Eva dança entre melancias. Violência e terror na arena dos gestos.
O verão alucinado da baixa classe média. Um
Martins Pena revivido brada pela salvação do gênero, a comédia nossa de cada dia. Agora é tragédia e farsa, tudo junto e misturado.
Coração americano, acordei de um sonho estranho. Marx estava quase certo.
Os teatros da realidade e as realidades do
teatro em dois olhares sobre a vida privada. O hiper-realismo não é o realismo carola. É
uma cena de janelas abertas, a mostrar o o de dentro. Brecht fuma um charuto e olha, curioso, entre a aprovação e a dúvida.
Entre e fique à vontade.
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Projeto Arquipélago
Nos últimos anos, observamos a diminuição de espaços e o consequente esvaziamento da crítica teatral em grandes veículos de imprensa. Ao mesmo tempo, há a emergência de plataformas online, desde sites e blogs até perfis em redes sociais, produzindo valorosas reflexões críticas em torno da produção teatral no país. A internet possibilitou a multiplicação de vozes, construindo passo a passo um panorama mais diverso em torno da fruição, registro e análise da cena contemporânea. Assim, coletivamente lançamos o projeto Arquipélago. Com o apoio da produtora Corpo Rastreado, oito veículos receberão um aporte mensal para a publicação de duas críticas teatrais no escopo do projeto. Somos, neste primeiro movimento: Guia OFF, Farofa Crítica, ruína acesa, Agora, Satisfeita, Yolanda?, Tudo, Menos Uma Crítica, Horizonte da Cena e Cena Aberta.
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Neste nascimento, da emergência destas ilhas em rede, pensamos ser fundamental sermos também transparentes: ainda que a verba para a viabilização do projeto venha da Corpo Rastreado, não se trata de uma filiação dos veículos à produtora, de modo que todas as pessoas participantes seguirão seus próprios critérios e desejos na escolha das obras que terão críticas publicadas dentro do projeto arquipélago. Na ânsia de seguir construindo juntes, insistimos por sermos apaixonades pelo teatro. Pela reflexão, pelas reverberações, pela escrita em suas variadas formas. Insistimos em estar lado a lado com artistas, grupos e produtoras independentes, na batalha diária que é viver nesse país trabalhando com arte e cultura. Insistimos e desejamos estar perto; insistir juntes. É esta a paisagem. Venha e fique à vontade.
*A identidade visual do projeto foi feita pela designer Fernanda Ficher.
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Cena
Aberta “Cena Aberta – teatro, crítica e política das artes” é um site de crítica cultural com interesse no teatro e nas políticas públicas que envolvem as artes. Em perspectiva está a discussão das formas artísticas nos contextos do processo social. Recorrente no teatro popular, a ‘cena aberta’ é uma das características que definem historicamente as dramaturgias de contato livre entre cena e plateia. O site foi criado em Outubro de 2019 e é editado por Kil Abreu e Rodrigo Alves do Nascimento.
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Foto: Paula Halker
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Veraneio
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O alucinado ‘Veraneio’ da classe média Por Kil Abreu O escritor alemão Hans Magnus Enzensberger escreveu um livro de ensaios chamado “Mediocridade e loucura”, publicado no Brasil em meados dos anos de 1990. Lá ele usa estes qualificativos para caracterizar o horizonte de expectativas da classe média mundial. Não é preciso grande esforço para desconfiar da régua que igualaria, sob um mesmo rol de comportamentos, sociabilidades vindas de processos históricos e condições materiais de existência diferentes mundo afora. Não é fácil definir, em estruturas sociais diversas, o que seja tal classe. No entanto, a máxima cravada pelo ensaísta, de que “a classe média é a vanguarda da mediocridade” parece resistir, de fato, às diferenças regionais ao menos em dois sentidos: trata-se antes de tudo de parcelas da população que estão em maior mobilidade do ponto de vista da ascensão ou do declínio financeiro. E, mais, de pessoas que independentemente das condições objetivas de sobrevivência cultivam perspectivas de assento permanente quanto à propriedade dos bens de consumo e quanto ao alcance de certo comportamento típico, que as distinguiria dos andares de baixo da sociedade – mesmo quando lá estão as suas origens. A classe média é, então, um projeto de vida e uma condição instável.
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Este é um arco que dialoga perfeitamente com o retrato criado pelo dramaturgo Leonardo Cortez em Veraneio, espetáculo que fez temporada de estreia no Sesc Ipiranga e fará extensão, em Maio, no Teatro FAAP. Posto diante da conjuntura do Brasil de hoje, o efeito teatral do espetáculo se dá no descompasso entre projetos, condições e ideias das personagens. Vejamos: na trama pensada por Cortez o tempo é o atual, pós-pandemia. Em um final de semana a família reúne-se na casa de praia da filha incertamente rica, a produtora de televisão Hercília (Glaucia Libertini), para o aniversário da matriarca aposentada, Laura (Clarisse Abujamra). A elas juntam-se o filho mais velho, Mario Sergio (Leonardo Cortez), um funcionário pelego de empresa que na hora do salve-se quem puder sobreviveu entregando a cabeça do melhor amigo à chefia; também estão lá sua companheira Andreia (Tatiana Thomé), que anda entre os cuidados com os filhos, as descobertas de traições do marido e a procura por lições de autoajuda; e o filho mais novo, Silvio (Silvio Restiffe), um desnorteado candidato a cineasta e enjeitado filhinho birrento da mamãe, que planeja fazer o documentário da sua vida. A estes somase o bombástico Rubinho (Maurício de Barros), um malandro, um lorde das classes baixas, namorado de Laura. Rubinho é um inflamado egresso do sistema prisional, agora apresentado como professor de educação física, e que opera a psicanálise informal do grupo. É o aventuroso pacificador de conflitos mas também aquele que, nas circunstâncias, acende o
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fogo em que arderão os visitantes do parquinho. O talento, em chave cômica, para observar costumes e comportamentos – algo tão caro ao que venha a ser o “teatro brasileiro” – segue orientando a pauta de Leonardo Cortez. Em tempos de tantas novas frentes e experiências nascidas dos estudos teatrais, que por vezes desautorizam não só a ideia de gênero dramatúrgico como também a própria possibilidade da representação, é boa notícia que um dramaturgo insista no estudo das variações possíveis de uma forma popular tão atacada e ao mesmo tempo tão afim, por razões históricas, a representar as fraturas da nossa sociabilidade. Como um Martins Pena dos tempos atuais, ou um Mario Viana ou um Luis Alberto de Abreu – cada qual a seu modo e estilo – Cortez reafirma a tradição que nos oferece através da cena, na linhagem realista, um espelho para o país e as suas mazelas. Como sabemos e como era esperado, já há muito tempo as formas cênicas cômicas foram assimiladas ao repertório da cultura de massa, que tende a homogeneizar procedimentos e efeitos. No ponto mais alto da apropriação do teatro por mídias afins há uma inversão curiosa: se em um primeiro momento o rádio e a televisão imitaram a invenção teatral, houve uma passagem em que o teatro, por ordem da sobrevivência, passou a imitar a TV, com a transposição de certos formatos dos programas de humor para o palco. Por questões mais comerciais
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que artísticas pode-se dizer que uma parte do teatro cômico tornou-se refém da telinha. Isto não é bom nem ruim, por si. É a natureza do veículo e da sua linguagem, orientada pela urgência e pelo volume de produção, que tende a superficializar situações e a repetir soluções e efeitos. Mas, às pessoas interessadas na criação sobre as tábuas devem restar sempre algumas perguntas: no contexto, o que é, enfim, próprio do teatro? O que as linguagens do teatro têm a oferecer de volta à comédia, assim disciplinada? Se posto este dilema, Veraneio equilibra-se no fio da lâmina. Nos primeiros vinte minutos de peça temos a impressão de que estaremos diante de uma sitcom estendida, bem escrita, com ótimo efeito cômico, mas que poderia perfeitamente ser tomada como se estivéssemos na plateia da gravação de um programa de humor. O quiproquó familiar tem sido, aliás, um filão bem explorado nos programas televisivos. No entanto, no decorrer da história a plateia percebe que há tons e linhas a mais, a estender e a demarcar com contornos amplos a pintura do retrato, no andamento da trama tanto quanto no desenho das personagens. É quando o ‘disse-que-me-disse’ comezinho do desencontro entre parentes ganha a dimensão crítica que interessa e que oferece ao espetáculo a sua vocação propriamente teatral. Nesses termos, a teatralidade é alcançada por
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força de uma dramaturgia que tende a flertar com a caricatura. O caricato é aquilo que toma por base uma representação, por escolha, desmedida, quase sempre em busca da ironia. Faz sentido. Para encenar uma realidade já alucinada às vezes são necessários artifícios que exponham a alucinação no seu limite. Riso e melancolia Na montagem é isto o que acontece. Das interpretações em tom maior e falas superpostas ao cenário de casa de praia ‘típico’ pensado por Diego Dac, com suas poltronas kitsch de almofadas listradas, suas luminárias de vime e janelas para o mar – tudo é superlativo. Não seria justo, entretanto, debitar a fantasia desmedida de sujeitos em queda apenas na conta da pandemia. A pandemia dispara o estado alterado em que a vida se encontra. Mas as condições subjetivas não se inventam do dia para a noite. As consequências – econômicas, políticas, relacionais, afetivas – do período pandêmico são pano de fundo para a revelação de atitudes e visões de mundo que já estavam instaladas. A História não muda em dois, quatro anos. Aquilo tudo já estava latente. A paranoia de uma produtora aparentemente bem-sucedida no mundo da comunicação de massa, o drama de consciência de um funcionário arrivista que trai seus companheiros, a bolha imaginada de redenção pessoal de um artista bipolar ou, ainda, o grito de liberdade de uma matrona de meia idade e seu companheiro fora da
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ordem – todas essas são coisas que se justificam menos como consequência da crise sanitária e mais como a crise diante da própria condição de classe. Na trama, entre as idas e vindas da ação – cobranças mesquinhas de parte a parte, ‘ameaças’ de amor livre, vislumbres de um futuro incerto, e o cerco de vizinhos proto milicianos – o espetáculo parece reafirmar que no mundo da mercadoria há os que tentam ser, sem pudor algum, 100% mercadoria; e há os que, bem ou mal, resistem a sê-lo. No intervalo entre uma e outra coisa instala-se o conflito. Uma parte do desalinhamento que a peça atualiza dá conta disto, de uma tentativa de salvar laços afetivos interditados pelo que se impõe sobre a frágil solidariedade que se aponta: o desejo de posse, a ascensão a qualquer custo e o brilho pessoal. Esforços de re-união que tropeçam reiteradamente no fracasso ou na culpa. Não à toa um dos personagens grita, sempre que a temperatura ameaça chegar ao ponto do incêndio: “Aqui é família, porra!”. Que este personagem seja o ‘menos família’, o socialmente mais desajustado entre todos (e que, entretanto, traz as razões mais justas para a discussão) é dos achados mais irônicos e saborosos do espetáculo. O diretor Pedro Granato teve a melhor intuição ao retirar a peça de um realismo strictu sensu e aprofundar na cena os sentidos da alucinação geral. Para isso seguiu as coordenadas que já estão no texto, à espera de ativação. Não é só uma questão de
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respeito ao autor e sim de procurar as intensificações indicadas, a ponto de levar a representação às raias do patético. Assim, os argumentos e réplicas, já ligeiros na origem, ganham a urgência de vidas que, veremos, estão no limite das suas escolhas éticas. Não se trata apenas de criar movimento para ilustrar o desencontro, mas de levá-lo ao paroxismo, de uma maneira que a plateia compreenda, no riso, que as situações guardam um fundo de melancólico desespero. A encenação do caos requer simetria e cálculos, para que a sintonia fina da discussão não se perca. Daí a importância de um elenco experimentado. É uma peça exigente e na montagem tem a contrapartida bem afirmada do elenco. Todos os atores e atrizes aparecem em defesas exemplares das personagens. Embora o espetáculo seja fruto do que chamamos teatro “de produção”, as atuações, vistas no conjunto, lembram a afinação dos teatros de grupo, de artistas que estão há muito na convivência criativa. Sem demérito ao rendimento coletivo, é notável a grande empatia criada por Clarisse Abujamra e Maurício de Barros. Não só porque representam os dois personagens que são mesmo o filé da história, aqueles que nos redimem com alguma torta, imperfeita esperança, mas também porque são duas atuações irretocáveis – altamente risíveis, sustentadas e prontas a renovar o efeito dos tantos pontos de virada da peça. O elenco é, enfim, uma garantia.
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O espetáculo não sociologiza os seus temas, mas é possível ler nele entre outras coisas os burros n’água em que o projeto de classe média arregimentado pelas esquerdas e mesmo por uma fraturada social democracia resultou na América Latina. A superação do atraso, da pobreza, do terceiro-mundismo, nos foi sinalizada nas bases do reformismo permitido pelo capital: políticas sociais que se preocuparam, quando muito, com o acesso aos bens de consumo, bem mais que com a politização das gentes. Somos, nós e nossa compreensão do que seja o bemestar, frutos da distância quanto ao horizonte das transformações estruturais que a sociedade pediria se a pauta fosse a convivência justa. A falácia da livre iniciativa entre os despossuídos é o capítulo atual do processo. E só precariza ainda mais, com o verniz do ’empreendedorismo’, as muitas dobras da desigualdade. Veraneio é, pois, em certa medida, a hora do balanço interno a que se referia Enzensberger. E aí, sim, o argumento vale para todos e todas. É no caldo destas expectativas, total ou parcialmente fracassadas, que a cena navega. E nos convoca ao riso porque a mediocridade para a qual fomos arrastados é mesmo risível. Sob olhares e ouvidos mais atentos o humor alivia mas também apresenta a conta. Na forma retórica e exacerbada com que o cômico é representado no espetáculo não será exagero dizer que ali o riso, largo, tende a lamber os pés da tragédia. É só olharmos direito.
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Veraneio cumpriu primeira temporada no Sesc Ipiranga, de 20 de janeiro a 26 de fevereiro de 2023. Volta ao cartaz no Teatro FAAP a partir de 4 de Maio, às Quintas feiras.
Veraneio Idealização: Leonardo Cortez e Pedro Granato. Texto: Leonardo Cortez. Direção: Pedro Granato. Elenco: Clarisse Abujamra, Glaucia Libertini, Leonardo Cortez, Maurício de Barros, Sílvio Restiffe e Tatiana Thomé.
Figurino: Anne Cerutti. Cenotécnico: Roberto Tomasim. Costureira: Binidita Apelina. Assistente de Direção: Jade Mascarenhas. Assistente de Figurino: Luiza Spolti. Assistente de costura: Lis Regina.
Cenário e Adereços: Diego Dac.
Produção Executiva: Carolina Henriques.
Iluminação: Beto de Faria.
Direção de Palco: Diego Dac.
Março / 2023
Técnico de Luz: Ariel Rodrigues e Beto de Faria. Técnica de Som: Jade Mascarenhas. Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli. Fotos e Registro em Vídeo: Nadja Kouchi. Direção de Produção: Jessica Rodrigues. Realização: Contorno Produções e Pequeno Ato.
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Foto: Noelia Nájera
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Mãos trêmulas
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Mãos trêmulas: um poema-pedra e os lugares de classe da velhice Por Kil Abreu As apreciações críticas, jornalísticas e espontâneas em torno de Mãos trêmulas têm trazido como argumento certa visão recorrente, compassiva, a respeito da velhice. É curioso porque são percepções salvo engano na contramão do que o espetáculo quer demarcar. Ao ouvir e ler amigos e amigas que viram o espetáculo a impressão que temos é de que para a maioria a velhice tem uma natureza homogênea. No caso da montagem (diz-se), apoiada na representação de um aspecto que o texto de fato salienta: o desamparo social. A questão é que o “social” que qualifica o desamparo aparece nas falas da plateia quase sempre como algo ligado a uma condição compartilhada, geral, a que as pessoas velhas estariam submetidas, indistintamente. O social tende a ser percebido como sentimento que nubla a parte mais funda da dramaturgia, justamente aquela em que se busca fugir da generalidade moral. Sim, são muitas as formas de abandono; por exemplo, as de ordem exclusivamente afetiva – comuns quando famílias ricas enviam seus pais e avós para asilos com bom atendimento médico e conforto material. Mas o espetáculo não trata apenas do encontro de um homem velho, uma
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mulher velha, abandonados. A cifra que por algum motivo parece escapar à percepção da maioria é que trata-se fundamentalmente de uma mulher e de um homem que foram mascados até o limite na boca dentada do capital e depois cuspidos à própria sorte, quando as mãos da costureira e do ajudante de cozinha já não servem à tarefa imperativa no mundo da mercadoria, a geração de valor. São homem e mulher do povo, endividados, sem abrigo senão aquele que encontram na compreensão e afeição solidárias. Esta é a demanda dramática da peça. E então, por que muitos de nós somos levados a uma visão apenas compassiva da condição da velhice e não diretamente àquelas condições específicas, apontadas como essenciais pelo dramaturgo, pelo elenco e pela encenadora? Eles e elas nos dizem, no primeiro plano: são pessoas cujas histórias vêm do lugar de classe a que pertencem. Se este argumento estiver em um caminho aceitável, há então uma coisa interessante a ser observada, a respeito do que se convencionou chamar “estética da recepção”. Se a encenação leva uma parte de nós ao estado da pura compaixão, o que está acontecendo? Vai aqui um palpite: acontece que a montagem, como tem sido comum na sociologia do teatro, é enquadrada em decisões de fruição que já estão parcialmente prontas em nós. E que exigem cumplicidade na obra. O horizonte de expectativas,
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como coisa reificada, está plantado, é veloz e ávido por arrancar da estética não uma experiência de fato, mas a confirmação de conclusões já assimiladas no juízo comum. Dá o que pensar. Poética da cena Além do interesse do tema e do exercício artístico pontual, é animador ver um dramaturgo trilhando caminhos que buscam colocar seu trabalho na perspectiva de uma obra, no sentido ampliado do termo: um projeto tomado a serviço de questões formais e políticas focadas, não fortuitas. O trabalho de Victor Nóvoa é destes (nesta montagem com acompanhamento de Salloma Salomão). As inquietações exploradas em Mãos trêmulas seguem o Norte que vem sendo traçado em colaboração com a A Digna Companhia. Não é difícil perceber que a preocupação com certos nichos da paisagem humana, seus confrontos e dilemas, é a pauta que segue. E nela, as angústias e alegrias que dimensionam a existência diante dos espaços negados, ocupados, ressemantizados, nas cidades. Na montagem atual a novidade é que as macrorrelações agora são repostas em perspectiva íntima. Mas os impasses da convivência desigual continuam lá. Nóvoa encontrou a estratégia delicada de fazer da memória de um casal de velhos amigos, amantes (ou novos, profícua indeterminação), o mote
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para um novelo textual que lhe permitiu ligar as histórias pessoais e o arco histórico em uma síntese muito interessante. Especular, mas não didática. Nas sombras dos relatos ordinários das duas personagens respingam lembranças sobre ditaduras, relações de produção no teatro, assim como fantasias de justa revanche. Homenagens a outros e outras artistas que se afirmaram no país do racismo renitente também estão lá. Fortalecimentos, irmandades, parentescos. Não são saudosismos. Ruth de Souza, Lizette Negreiros, recuperadas em bom lugar, voltam possíveis, inteiras, porque a imaginação política chama pela justiça. Era uma possibilidade que o teatro poderia acender, e assim o fez, bonitamente. Não só para lembrar os símbolos que interessam como também para colocá-los em movimento. Todas estas saídas a certa altura nos levam a pensar que talvez seja assunto demais para um texto relativamente curto. Mas o traçado propositalmente aberto da forma o permite, e sossegamos em não exigir da cena todos os desdobramentos apontados. Em contraste com a situação representada, trata-se de uma peça com janelas abertas. É sempre difícil falar de atores veteranos sem ser fisgado por algum tipo de demagogia complacente. Mas aqui não há entrada para isso. Nenhuma necessidade de forçar o verbo para coroar atuações
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que são de fato donas da peça. Não é preciso ter acompanhado o processo para perceber que o encontro da encenadora Yara de Novaes com o elenco deu certo. É um teatro “de representação”, sabemos, mas uma parte da qualidade dele está no trânsito livre entre a verossimilhança e um estado de presença do elenco que não a toma, felizmente, ao pé da letra. O que quer dizer, trocando em miúdos, que as composições das personagens não são carolas, enquadradas. Cleide Queiroz e Plínio Soares levam o verossímil àquele lugar que está acima do bom resultado “técnico”. A verossimilhança, no caso, por assim dizer, não se leva tanto a sério. Aqui e ali desconfia de si mesma e abre espaços para uma qualidade das presenças que é da ordem da profunda empatia entre os dois, e isso basta. Para nós, plateia, o encontro de ator e atriz evoca um amor fresco. O indício mais claro é a tranquilidade com que a dupla conduz as personagens, sem aprisiona-las em caracterizações muito demarcadas. A direção também intui nesse caminho o que a dramaturgia reivindica: a afirmação dos sujeitos não pode ter bordas rígidas. No mundo das vidas contingentes respirar deve ser um direito. Provavelmente por isso, apesar da circunstância barra pesada, nada soa autopiedoso ou autoindulgente. Nas soluções cenográficas, de luz e de figurino criadas por André Cortez, Marisa Bentivegna e Fábio Namatame estes deslizamentos são seguidos com
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autonomia, mas a serviço da montagem. Há lá um objeto inominável que incandesce no lado esquerdo da cena (o que é aquela forma, aquela matéria que arde com a luz? – podemos perguntar, provocados). A iluminação elege o onírico – como a nos dizer que aquela realidade, para ser enxergada, precisa ser suspensa uns palmos acima do naturalismo, do hábito. Também é significativo o figurino que faz as indumentárias de uma estrela rara virarem a pedra que abriga os dois, ao final. A pedra embaixo da qual os velhos operários agasalhamse, sob ameaça de despejo. A pedra é uma vitória, é permanência, não se forma do nada. A pedra é feita da solidariedade resistente entre elementos, tempos, testemunhos. Se uma leitura dessa ordem for aceitável, podemos dizer que o espetáculo totaliza-se como uma síntese poética destas frentes da sociabilidade. Frentes onde há tragédia mas há também desobediência e contestação. Que o espetáculo seja este patchwork da vida, mostrada aos pulos, às idas e voltas, por vezes fantasmaticamente, por vezes materializada em um inequívoco ato de amor, não nos parece gratuito. A memória que insiste, que fantasia, reconstrói, denuncia, não é apenas retórica. É uma necessidade. E nos chama, apaixonada, para a urgência daquilo que pode nos unir, sobretudo os do andar de baixo. Daquilo que nos faz necessários uns aos outros, umas às outras quando pensamos em um mundo justo.
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Mãos trêmulas Direção: Yara de Novaes.
Preparação Corporal: Ana Vitória Bella.
Assistência de Direção: Ivy Souza.
Figurinos: Fábio Namatame.
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli.
Dramaturgia: Victor Nóvoa.
Cenário: André Cortez.
Registro fotográfico: Noelia Nájera.
Colaboração Dramatúrgica: Salloma Salomão.
Iluminação: Marisa Bentivegna.
Direção de Produção: Catarina Milani.
Elenco: Cleide Queiroz e Plínio Soares.
Abril / 2023
Trilha Sonora: Raul Teixeira. Direção Audiovisu-
al: Julia Rufino.
Assistência de Produção: Paula Praia.
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Farofa
Crítica! Diogo Spinelli e Heloísa Sousa são os editores dessa plataforma, que recebe colaborações pontuais de outros artistas, pesquisadores e críticos, na busca de estabelecer um diálogo constante entre os artistas, as obras e o público potiguar. Em 2021, acontece o lançamento da Revista Farofa Crítica, uma publicação periódica semestral com textos diversos organizados em dossiês, sobre criações, pesquisas e elaboração nas artes cênicas e visuais, com ênfase na Região Nordeste. O site Farofa Crítica conta ainda com a colaboração dos profissionais Gilberto Galindo e Gabriela Pacheco na criação do site, do layout e da identidade visual.
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BLAIHAIT!
E outras perguntas para inventar um idioma
Foto: Paula Halker
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E a criança fez o verbo! Por Heloísa Sousa
“No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. O Verbo se fez carne”. Trecho Bíblico.
Em março de 2023, o espaço cultural Galpão do Folias (SP) recebe a temporada de estreia do espetáculo “BLAIHAIT! E outras perguntas para inventar um idioma” do Coletivo Karenin, grupo de teatro independente e que atua na capital paulista desde 2017. A peça tem direção de Marcus Garcia e dramaturgia de Giu de Castro, e teve seu projeto contemplado com o Edital ProAc 2022 que permitiu a realização do processo criativo e apresentação da obra. Há um primeiro ponto de partida evidenciado pelo Coletivo para a criação dessa obra, e esse ponto de partida é compartilhado com o público. Seja pela divulgação quando você ouve falar da peça e isso te leva ao teatro para assisti-la, seja pelo próprio prólogo da obra que fala sobre a questão. Como se inventa um idioma? Coloco a questão no presente, porque o que os artistas fazem é presentificá-la. Os idiomas já existem e poderíamos fazer uma pesquisa antropológica
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ou linguística para compreender como os idiomas foram inventados (provavelmente, essas pesquisas já existem aos montes, não sei ao certo, mas devem existir). Não precisamos, necessariamente, do teatro para responder essa pergunta e provavelmente, mesmo que tentássemos responder através dele, haveria lacunas significativas para a compreensão do surgimento desse “fenômeno”. Ainda assim, o Coletivo Karenin é um grupo de teatro, e confronta a questão acima com sua própria prática, reformulando a questão: como fazer uma peça de teatro a partir dessa pergunta de como se inventa um idioma? Desse ponto em diante, as questões começam a se multiplicar, sejam elas questões do campo do teatro ou questões do campo linguístico/oral/antropológico, e ainda mais, questões que habitam a intersecção entre esses dois campos. E se inventássemos um idioma para criar uma peça teatral? E se inventássemos um idioma durante a experiência teatral? E se a peça mostrasse um idioma sendo inventado? Mas afinal, para quê serve um idioma? O que é necessário para se inventar um idioma?
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O que aconteceria se as palavras ainda estivessem por existir? É um exercício complexo e intenso de suposições. Mas, são essas suposições que parecem operar a criação da obra e a estruturação da experiência estética a ser compartilhada. Desde que li a dissertação de mestrado “Da pergunta à cena: perspectivas metodológicas para a prática teatral como pesquisa” (USP, 2022) de autoria do ator, dramaturgista e pesquisador Mateus Fávero; que a ideia de um teatro de pesquisa vem se reposicionando na minha cabeça. “A prática como pesquisa aborda, de forma prática, as perguntas. Nesse processo, inventam-se métodos e hipóteses. A metodologia conforma todos os passos necessários para tratar de responder a pergunta. [...] Portanto, as perguntas inventadas na pesquisa em artes são aquelas que orientam a própria prática artística. São problemas e desafios identificados e formados pelas necessidades da prática e dos pesquisadores práticos”. (FÁVERO, 2022, p. 58). Trago a citação não para que esse texto sirva como determinação ou classificação da obra analisada enquanto um teatro de pesquisa ou não. Me interessa mais pensar a partir da questão, assim como o Coletivo Karenin e considerar a possibilidade de que a crítica teatral possa se desafiar a pensar um percurso retroativo ao assistir uma obra. Diante da experiência de recepção de um espetáculo, a depender do
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espetáculo, consigo visualizar as questões com as quais os artistas se depararam no processo criativo e perceber o modo como eles teatralizaram as questões e as possíveis respostas? Tentarei escrever esse texto crítico por esse viés, e percebo que talvez seja a primeira vez que vou escrever sobre uma obra tentando dialogar diretamente com o processo criativo dela, mesmo sem ter acompanhado absolutamente nenhum ensaio do grupo, apenas tentando pensar sobre o que a obra me revela do seu percurso. E faço isso não por uma vontade pessoal, mas porque essa obra, em si, me convida ao confronto com a própria questão. O segundo ponto de partida que devemos esclarecer é que a obra não é sobre tradução. Quando eu soube que haveria legenda para que os espectadores pudessem acompanhar a peça, logo me questionei se o grupo teria optado por apresentar uma história qualquer em um idioma X, e eu apenas iria acompanhar tudo pela legenda. Mas, não é isso. Primeiro porque, se fosse isso, não haveria nenhuma diferença entre apresentar uma obra em alemão, por exemplo. E assim, eu teria a mesma experiência que tenho ao assistir espetáculos internacionais em um festival de teatro. Segundo porque a tradução é uma outra questão. Implicaria diferentes perguntas e outras formas de teatralizar isso, o que geraria um espetáculo completamente diferente. O terceiro ponto de partida é que, na pergunta,
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indaga-se sobre a possibilidade de criação de uma peça teatral a partir de e não sobre. Faço esse destaque, tentando pressupor a pergunta do grupo, porque percebo que não é sobre temática, um seminário sobre os idiomas e suas origens. Pensar a partir de desenha um ponto de partida que mobiliza uma caminhada, uma pergunta de pesquisa pressupõe uma falta, uma ausência, uma lacuna, uma curiosidade sobre algo que ainda não está mas que parece necessário que esteja. Portanto, sugere que se caminhe para além da pergunta, para que encontremos (fora dela) algo que possa retornar a preenchê-la. Confrontar-se com a invenção do idioma indica elaborar uma experiência que apresenta um caminho entre dois pontos. Do não saber ao saber. A invenção só é visível no percurso, quando percebemos o que acontece na ausência do idioma, notamos a necessidade dele e o que se transforma depois que ele é inventado. Penso que uma das possibilidades que o grupo poderia ter escolhido operar é pela performatividade, e nesse caso, não penso a que a obra performativa se reduza a falar com o público, tocar nele ou oferecer souvenirs, ações que apenas deslocam a ilusão da quarta parede do teatro e que arranham a superfície da recepção da obra, mas que, por vezes, a mantém na lógica contemplativa. A escolha pela performatividade poderia ter se dado se a invenção do idioma fosse uma experiência integralmente compartilhada entre artistas e público,
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nós inventamos juntos a partir de nossas próprias regras e vontades, o final desse percurso seria imprevisível, independente dos artistas e dependente da comunidade instaurada a cada apresentação. Sem hierarquizar possibilidades, é perceptível que “Blaihait!” não é uma obra performativa, a opção adotada aqui é a outra: a de narrar/descrever a invenção de um idioma. O público, portanto, torna-se testemunha dessa encenação, o que não nos impede de, individualmente, espelhar em nosso corpo os desafios com os quais as artistas se deparam. Isso porque, enquanto seres sensoriais, somos afetados pelas sonoridades e findamos por compartilhar com os deslocamentos promovidos pelas atrizes em cena. Se a escolha se dá pelo campo narrativo, o Coletivo escolhe trazer à cena, com muita coerência, o mito. Talvez, uma das coisas mais interessantes da obra e que afeta diretamente sua percepção, é que ela mexe com nosso interesse e inquietação pelas origens. Existimos no mundo, como seres humanos, há milhares de anos e as coisas que nos rodeiam, sejam elas visíveis ou invisíveis, também tem histórias curtas, longas e longuíssimas. Determinadas estruturas são tão antigas que não conseguimos mais reconhecer suas origens e, ainda mais, tomamos como naturais. Como se sempre tivesse sido assim, ou como se não tivesse outro modo de ser, ou como se o desenvolvimento das coisas fosse simples fatalidade imutável. Talvez, aí, resida
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uma possibilidade (política) fundamental da arte: estranhar aquilo que tomamos como natural, habitual ou automático. Victor Chklóvski escreve bem sobre isso em “Arte como Procedimento” (1917), onde reitera que “a automatização engole os objetos, as roupas, os móveis, a mulher e o medo da guerra” (p. 91), e que a arte poderia nos devolver a sensação sobre as coisas. Algo semelhante a ideia de profanação elucidada por Giorgio Agamben, que talvez tenha mais a ver com “tornar sensível” do que com “desobedecer”. Nos interessamos pelas origens porque elas são carregadas de mistérios e fazem ecoar aqueles antigos pensamentos fantasmas que nos perseguem “de onde viemos e para onde vamos”. Para além das possibilidades científicas que atestam, quando possível, certas origens, há também nossa capacidade de imaginação, narração e analogia que tenta materializar nossas vivências e necessidades através de mitos (incluindo aqui a religião) que servem à constantes reinterpretações e descobertas, que parecem carregar eternas lacunas que podem ser preenchidas continuamente ao longo dos tempos. Em termos de recepção, me parece semelhante ao fascínio gerado por algumas séries televisivas norte-americanas como “Lost” (2004) ou “The Walking Dead” (2010). A partir de alguma catástrofe (ou ruptura, explosão, estalo), os indivíduos se deparam com a ausência de coisas fundamentais, embora essa ausência não seja equivalente ao
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nada. Coisas existem no mundo para além de nós, o que nos mobiliza a criar é nossa necessidade de interação, organização, afeto e sobrevivência. O que criamos primeiro? O que é primordial? Em “Blaihait!”, algumas palavras ainda não existem, mas existe o som (voz) e existem as coisas do mundo. Além disso, existem pessoas com desejos - de interação e de memorização. Como se no mundo já existisse a madeira, e o ferro… mas existe também o desejo/necessidade de sentar e quando essas materialidades se cruzam, passa a existir a cadeira. Só que ao reapresentar essa narrativa da experiência, o que se torna evidente é o desejo/necessidade em si - porque é isso que nos interessa. Nesse sentido, talvez o inventar de Blaihait! seja mais importante do que o idioma. Apesar do idioma ser uma materialidade que também nos apresenta outras questões para além da sua invenção. Destaco na obra, o fato de serem duas atrizes em cena. Apesar da dramaturgia escrita por Giu de Castro não determinar o gênero das duas personagens como fundamentais para a peça, o que a torna possível de ser atuada por dois atores. Mas, o mito, inventado pelo grupo e narrado no livro publicado por eles, coloca uma criança como sendo a primeira a falar um idioma, enquanto brinca com sua curiosidade e sua própria voz. Na narrativa bíblica cristã, Deus faz o verbo que se materializa nas palavras (logos). O homem domina as palavras e organiza o pensamento. São duas figuras masculinas.
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O logos é de domínio do homem. Mulheres, crianças e animais não têm acesso a isso; apenas sonorizam, balbuciam ou precisam lidar com a privação dos meios de registro das palavras (escrita) e, portanto, da história e das leis. O Coletivo Karenin experimenta centralizar essa invenção na figura da criança e teatralizar essa narrativa com duas mulheres. Essa escolha não modifica radicalmente a recepção da obra, mas desnaturaliza aspectos da narrativa e promove outras identificações. Na peça, as duas atrizes falam o idioma inventado, se comunicam, mas não sabem todas as palavras e se deparam com a angústia de querer dizer, nomear ou descrever algumas coisas, sendo que certas palavras não existem ainda. Se hoje, as palavras adquiriram um nível de rebuscamento, onde a significação consegue estar contida nela mesma (estou aqui, ignorando as outras materialidades da comunicação, apenas como exercício de visualização) ao ponto de ser possível se fazer entender com a pura emissão da voz, sem a gestualidade (audios de whatsapp); no princípio, talvez a gestualidade e marcação de signos por outros aspectos corporais fossem fundamentais para construir esse idioma, pois trata-se de um período de transição (como a criança que aponta algo enquanto tenta falar uma palavra nova para se fazer compreendida). Temos então um estilo de atuação marcado. As atrizes precisam transitar entre o desejo maduro de expressar a complexidade daquilo que sente e pensa, junto com uma ação vocal
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infantil, de quando estamos aprendendo a falar. Para alcançar a veracidade desse esforço, a dramaturgia indica que as palavras que faltam devem ser inventadas pelas atrizes durante a encenação. Apesar dessa estratégia colaborar significativamente com as duas artistas em cena, esse não é, necessariamente, um aspecto identificável pelo público. Percebemos como uma representação do esforço, e o fato de compreendê-lo como um esforço real não modifica a percepção, embora pareça fundamental para a operação das artistas. Nesse ponto, Giu de Castro e Sofia Maruci atuam com precisão e manejam o jogo da encenação sem que haja riscos (acreditamos que, haja o que houver, o idioma será inventado). É na situação vivida pelas duas atrizes-personagens que nos deparamos com todas as outras questões em torno das palavras. A necessidade de registrar para memorizar, a criação de gráficos para o registro, o conceito como uma explicação da coisa e a materialização deste em verbetes, a necessidade de nomear para identificar e reconhecer, o esforço da curiosidade e da vontade de estabelecer relação. Entretanto, essas questões não são apenas ilustradas pelas atrizes, ao observar o percurso que elas encenam, o espectador entra no jogo individualmente e mentalmente. Eu também me deparei com a necessidade de que elas registrassem para que eu lembrasse, eu também esquecia as palavras no meio mesmo que estivessem anotadas, eu também perdia os significados e tentava entender por contexto, eu
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também tive minha audição adaptada para tornar sensível e familiar o novo idioma, eu também me esforcei para compreendê-las e eu também nomeei coisas na hora em um esforço de tentar descobrir do que elas estavam falando. O mais interessante é que as lacunas se mantêm, como em todo processo de comunicação. Quando os verbetes aparecem projetados e as atrizes encontram uma palavra para definir aquele conceito dentro do idioma inventado, eu mesma também tento escolher uma palavra (em português) para encaixar naquela definição. Tenho certeza de que o público, em sua diversidade, encontra palavras diferentes. Na mesa do bar, depois da apresentação da peça, o assunto pairava entre “como você nomeou aquela ideia?”. Nosso esforço em nos adaptarmos à sonoridade do novo idioma e tentarmos compreender sua lógica de invenção e organização, instaura uma relação comunitária, no sentido de vibrar algo em comum. É curioso que um esforço tão basilar quanto organizar um som para indicar uma palavra, mobilize um esforço por parte do público em entrar no jogo, mesmo que o jogo não dependa dele para se concretizar. Tanto que, quando a fala em português foi retomada na peça, meus ouvidos estranharam o som, como se a mente tivesse que desacelerar depois de todo esforço em me adaptar ao novo idioma. Esse choque, que é sentido fisicamente no corpo, torna-se parte significativa da experiência estética promovida.
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Mas, para que criar algo a partir dessa questão? O que a obra me apresenta a partir dessa experiência estética? Viver corporalmente uma experiência de origem só é possível através da arte, porque diz da possibilidade de tornar vibrátil no corpo, alguns desejos, impulsos, formas de organização e pensamentos talvez adormecidos em nós quando não há mais certas necessidades inventivas. Criar um idioma não é, na atualidade, uma demanda real. Mas, nos debruçar sobre essa forma inventiva, seja através do jogo ou da narrativa, faz ativar algumas de nossas capacidades intrínsecas para que possamos aplicálas em outros contextos. Como se inventa algo? torna-se uma questão paralela que não se reduz ao alcance de um manual de instruções sobre algo, mas sim dos desejos, das utilidades e das consequências. Em certo momento, algo que parecia tão útil e fundamental, volta-se contra as próprias figuras. No mito inventado pelo Coletivo Karenin, a figura que anota as palavras (escrita) finda por esvaziar o mundo do devir das coisas, a grafia vacila enquanto forma de captura e determinação. Como posso eu, Heloísa, carregar o mesmo nome de quando eu tinha cinco anos de idade, sendo que eu e essa criança somos pessoas e corpos bem diferentes? As palavras são signos que remetem às coisas; as indica, mas não as reduzem. Possuem maleabilidade, inclusive. Mesmo que, por vezes, a gente trate as palavras como imutáveis e redutoras. As palavras e as coisas carregam ainda histórias. Uma cadeira, não é apenas
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uma cadeira por si só, é um percurso até ela. O que nomeamos Heloísa, talvez não seja meu corpo - tão diferente do corpo da menina de cinco anos - mas sim, a minha trajetória, a linha que conduz a menina de cinco anos até a mulher de agora sentada no sofá enquanto escreve esse texto diante de um notebook aos trinta e um anos de idade. “Blaihait!” é uma obra que narra o primordial, que traz aos corpos a experiência da infância com a consciência da fase adulta. É uma peça que se propõe esquecer os idiomas já inventados, esquecer a forma apurada de comunicação que já temos, para podermos nos intrigar com o percurso de uma invenção. Março / 2023
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Foto: Pedro Martins
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Foda-se eu
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Escombros de um Teatro Punk Por Heloísa Sousa Em março de 2023, o grupo Teatro da Matilha (SP), dirigido pelo ator, diretor e performador Tadzio Veiga, realizou duas apresentações da obra “Foda-se eu” na atual sede do Grupo XIX de Teatro, localizada na Vila Maria Zélia. O espetáculo teve sua estreia em fevereiro deste ano, no mesmo espaço e é a terceira obra no repertório do grupo. Escrevo esse texto misturando uma narração dessa ida ao teatro com uma percepção crítica sobre a obra em si com uma excitação pessoal vivida no dia 26 de março de 2023 com as leituras em torno do grupo, das obras e dessa estética. O texto vai se escrever por aí porque tudo foi mais da ordem do acontecimento do que de uma pura contemplação, portanto, talvez eu seja menos rígida e menos excessivamente significativa [ou não também, talvez eu fracasse no que estou presumindo]. Saio de casa com pouco mais de uma hora de antecedência. Pego o metrô na estação Marechal Deodoro, desço na estação Belém. Pego um uber e chego na Vila Maria Zélia. Eu sou natalense, estou em trânsito por São Paulo há pouco mais de um ano, tudo é meio novo para mim com certa frequência. E eu nunca tinha estado nesse lugar. Entro. Tem uma entrada semelhante a de um condomínio fechado.
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Por dentro, prédios e casas com arquiteturas muito antigas, alguns fechados, tombados, desativados, tudo meio amarronzado, acinzentado, velho, as ruas normais, sem muitas marcações, um silêncio, uma ausência de trânsito, ares de cidade interiorana. Encontro com Ultra, pergunto para ele que lugar é esse? Ele chama Janaína e ela me explica que é uma vila antiga tombada e que o Grupo XIX ocupou um dos prédios há muitos anos. Parece muito com uma cidade cenográfica projetada para filmar algum longa-metragem de suspense. Eu tenho expectativas com o trabalho, vendo as divulgações me parece alguma coisa muito próxima do tipo de coisa que eu gosto de ver. Sim, gosto. Tipo, gosto mesmo. Você leu como verbo ou como substantivo? Eu nem sei o quanto que um crítico de teatro pode falar sobre gostar, mas foda-se também. O Teatro da Matilha é um grupo paulista de jovens artistas que vem se debruçando por alguns conceitos específicos e referentes ao que nomeamos por contemporaneidade. As ideias de agrupamento, individualidade, dissolução, festividade, narcisismo, inversão, efemeridade, violência, caos, destruição, são alguns dos conceitos que parecem basear as pesquisas, os discursos e a materialidade das obras. Mas, parece haver também um esforço em apropriar-se desses conceitos como operadores da cena; e nesse ponto, na tentativa de transformar um conceito em um operador, resida a forte possibilidade de alargamento e extensão das
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práticas desse grupo, indo para além de uma composição fotográfica dos conceitos. Mas, reitero que, é a composição fotográfica dos conceitos que pode revelar a forma como a aparência dos mesmos se arma no mundo, para em seguida, num movimento ainda mais radical e vertical, o artista poder fazer essa máquina se mover e na movência permitir que ela possa ganhar outro contorno (outra imagem, portanto) que poderá, inclusive, parecer muito divergente da palavra-ponto-de-partida. Não sei se consigo me fazer compreender no que acabei de dizer, mas seria como a passagem do substantivo para o verbo, da coisa para a operação, da característica para a performance. Por exemplo, qual poderia ser a diferença entre teatralizar a dissolução e teatralizar o dissolver? Ou a diferença entre representar a dissolução e dissolver a cena? dissolver em cena x dissolver a cena Para além desses conceitos que elenquei, existe também algo sobre a coletividade e algo de punk na obra “Foda-se eu” que parece recorrente no grupo. Considero essas reincidências fundamentais para pensar certas obras e artistas, principalmente os que se aproximam da ideia de um teatro de pesquisa, onde a investigação se estende para além da
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finalização e apresentação de um único espetáculo; mas também não configura um enrijecimento poético, um tipo de silhueta que marca o artista ou um grupo. Nomear-se matilha não parece ser aleatório já que o grupo se debruça sobre como os conceitos atravessam a coletividade ou os agrupamentos. “Foda-se eu” é uma obra cênica que versa sobre o eu. Mas, busca versar [pesquise o verbete no Google] a partir da negação. Mas, essa negação não promove o desaparecimento ou a diluição, é uma negação como ato de enfrentamento, confronto, ato violento contra. Mas, um ato violento que contempla também o fracasso. Na diluição do eu, é necessário torná-lo alvo dos ataques, o que lhe confere certo protagonismo. Na recusa desse protagonismo (e da autorepresentação), uma escolha é promover um contraste entre o eu e o todo (ao invés do eu e o outro), o que alcança uma diluição do eu no coletivo, um apagamento da percepção de suas fronteiras (que continuam ali), quase como um movimento por ignorá-lo. Se não for possível foder eu, então que se foda. Algumas imagens e movimentos são escolhidos para rodear esse desafio conceitual (existencial?). A primeira é a escolha pela forma da dançateatro. Mesmo sem antes saber que o próprio grupo assumia essa escolha, enquanto eu estava sentada na plateia, meu corpo me diz “é dança”.
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Obviamente que as categorizações parecem sempre vacilar e insistir em algum tipo de obsessão pela identificação, mas, ao mesmo tempo, dizer que “tal coisa é tal coisa” é intrínseco à experiência de recepção e tem suas contribuições na estruturação da nossa memória e das nossas sensações. Praticamente não há falas na peça, retira-se do eu um dos seus principais marcadores de identidade - a enunciação verbal; os corpos aqui não opinam, nem palestram, pouco se manifestam, e isso evidencia os automatismo porque os corpos apenas seguem. Seguem em repetições, em agrupamentos, em pausas coletivas. Mas, há algo aqui próprio de um grupo de teatro que dança que é a organização dramatúrgica pela movimentação e transformação e de ações e imagens. A situação dos corpos e suas relações tornam-se muito mais evidentes do que quando se dançam movimentos que parecem seguir apenas a referencialidade ao próprio movimento. O Teatro da Matilha dança alguns conceitos. E sim, apesar do contorno caótico e agressivo, há muito de conceitual nessa obra. Quando um grupo de teatro dança, ele passa a habitar os dois lugares e ao mesmo tempo nenhum, surge, então, outra coisa. Também acho que a peça é punk, meio pósmoderna. Anotei assim nos meus rascunhos para escrever essa crítica e depois não encontrei nenhum modo melhor de reescrevê-la, então, deixarei como está.
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Mas, vou explicar. As qualidades exibicionistas, expositivas, imorais e agressivas da peça me remete à atitude punk, se busco algum diálogo com movimentos estéticos semelhantes em períodos anteriores. O movimento punk surge na música, entre as décadas de 1970 e 1980, com maior expressividade na Inglaterra e representado por bandas como Sex Pistols, The Clash e Ramones. Como uma reação à realidade precária vivida pelos jovens da classe operária em concomitância com o crescimento neoliberal, tudo isso em um século que abarcou duas guerras mundiais e outros genocídios. O movimento punk devolve ao mundo a raiva acumulada - denuncia e expõe, mas não se ocupa de nenhuma estratégia de organização ou revolução propriamente dita. Embora estejamos vivendo uma saturação publicitária e imagética onde parece que tudo já é comumente exposto, pornográfico e violentado; parece haver alguma coisa de retorno desse punk por uma geração jovem que ainda vive as mesmas precariedades com outros níveis de elaboração, cobrança e virtualidades. E sobre o meio pós-moderno, penso que essa retomada punk assume a realidade de um grupo de pessoas nascidas na década de 1990 [indico a leitura da crítica de Amilton de Azevedo sobre o espetáculo Dissolução Festiva: Geração Z, onde ele delineia essa jovialidade do grupo que está para além da idade dos corpos e que parece saltar aos olhos também na recepção de Foda-se eu], pós queda do Muro de Berlim e que, mesmo não tendo vivido a queda em
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si, vive intensamente uma contemporaneidade que retoma suas estratégias de autodestruição com outras roupagens. “A ideia punk é existir como denúncia das coisas podres do sistema. [...] Punk (podre) não é o movimento, é o sistema. Só que a incorporação dessa persona (do agressivo) produz uma reverberação sobre essa violência. Denuncia-se violência com mais violência”. (COHEN, 2002, p.144). Há algumas escolhas na contramão do que vem se tornando comum na cena contemporânea. Não tem projeção, não tem microfone, não tem quase nenhum diálogo, nem ninguém falando de si mesmo. Se retomarmos a leitura de algumas páginas do livro “Performance como Linguagem” (2002) do pesquisador brasileiro Renato Cohen, veremos uma série de características identificadas pelo autor em obras que passam a estruturar o que viemos a nomear de performance e também as influências dessas nas artes da cena brasileira. Foi, inclusive, lembrando de um subcapítulo do livro do Cohen que associei o Teatro da Matilha com o punk para perceber a teatralidade contemporânea do grupo. O Teatro da Matilha parece oferecer umas pistas de coisas interessantes que podem se estruturar ainda mais na cena paulistana - ou se desestruturar ainda mais. “Foda-se eu” se desenha com certo erotismo apesar das agressividades, as batidas da trilha
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sonora e os pulsos frenéticos dos corpos promovem contaminações. Cohen já destacava como a performance do punk sugere uma ordenação por collage [de imagens, de conceitos] sem a pretensão de elaborar alguma síntese. Nesse sentido, a peça não esquematiza nada, não mostra origens e muito menos fabulações. É crua. Não necessariamente cruel. Isso porque a imagem crua ainda reverbera certa alienação quando não vislumbra saídas de si mesma e nem acredita em hipóteses para o futuro. Mas, ainda insisto de que tem algo aí, algo no impulso que possa ser o desejo de revolução ainda em estado germinal. Princípio de revolução. Vamos fingir que essa crítica termina no parágrafo acima. Ou que esse trecho de agora não existe. Só pra que eu posso dizer que gosto pra caralho disso, desse trabalho, do tesão que ele gera. E eu nem sei explicar bem de onde vem isso. De onde vem essa excitação underground que não é individual. Outros se excitaram ali também, dava pra ver nos rostos. Talvez porque a obra vai pegando esse antigo checklist do contemporâneo e vai insistindo nele, mas sem beirar o tédio que a cena contemporânea brasileira, por vezes, opera. Talvez a obra me intrigue justamente porque eu não consiga [ou não queira] aplicar as coisas que eu já sei de modo tão direto e explicativo e significativo, e sei lá, foda-se também.
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“O criador punk, consciente dessa corrupção, e não compactuante com o cinismo do sistema, vai utilizar o horror, o culto à tanatologia como forma de externação de ideologia. Metaforicamente, é um movimento semelhante ao do mar que devolve à terra todas as impurezas que nele foram jogadas (como já dissemos, o punk exibe tudo o que o sistema produziu de podre - Auschwitz, Bomba H, etc.)”. (COHEN, 2002, p. 153). O punk é necessário. Abril / 2023
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Horizonte da Cena
O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Júlia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta editam o podcast do site desde 2020. A crítica como exercício de olhar e escrita sobre o mundo do teatro e o teatro do mundo; o crítico de teatro como um espectador interessado em afetar-se com o acontecimento teatral e problematizá-lo, colocando ideias em circulação para que encontrem outras, semelhantes ou distintas, sem assumir o papel de juiz ou carcereiro. Com essas premissas, o Horizonte da Cena abre-se à pluralidade de vozes dos seus colaboradores.
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Foto: Guto Muniz
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Macbeth 22
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Os alçapões da história Por Guilherme Diniz Crítica do espetáculo Macbeth 22, visto durante a sua temporada de estreia na Funarte-MG, no dia 04 de fevereiro de 2023 em Belo Horizonte, como parte da programação da 48ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança. Macbeth não é apenas a soturna tragédia de uma ambição desmesurada cuja força, por demais avassaladora, leva um homem ao abismo da sua própria perdição moral, política e existencial. Nem tampouco pode ser vista unicamente como uma investigação da malignidade, ou seja, aquela pulsão negativa incapaz de gerar qualquer descanso, harmonia ou prazer duradouros tanto na vida privada, quanto na vida pública. Ora, é o próprio criminoso quem admite um tanto envaidecido: “Só o mal pode fazer o mal crescer”.[1] A peste, a angústia, a mais aguda dor e todo o derramamento de sangue, presentes na peça, são efeitos, ao fim e ao cabo, daquilo que para Shakespeare propicia a morte, isto é, o mal em suas variáveis formas. Em verdade, há tudo isso nessa densa obra e, seguramente, é impossível dizer que tais elementos sejam irrelevantes. Entretanto há um outro aspecto crucial que, entrecortando todo o texto, é responsável pelos seus momentos mais perturbadores: o modo como Shakespeare dramatiza os incalculáveis poderes da
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imaginação. Pensadores tão diversos como Francis Fergusson e Harold Bloom destacam a mente profunda e aflitivamente imaginosa de Macbeth. Basta ele considerar, ainda que distantemente, um assassinato necessário à realização de seus sonhos hediondos, para sua alma ser invadida por uma torrencial cascata de imagens e visões produzidas, quer pelo seu medo, quer pela sua culpa. A imaginação tão frutífera do protagonista é a sua maior força e igualmente a sua principal fraqueza, tornando-o, para alguns críticos, mais suscetível aos anseios mortíferos que internamente nascem nele. Fantasia e cobiça alimentando-se reciprocamente, afinal. “Escorpiões entopem a minha mente”, diz o queixoso regicida preso aos seus atos horrendos, à sua consciência atormentada e à sua imaginação amargamente vívida. Talvez mais do que em qualquer outra peça de sua autoria, Shakespeare nos propõe uma reflexão acerca das qualidades destrutivas e criativas do fascinante ato de imaginar. Sublinho este último ponto em especial, pois um dos sustentáculos centrais do espetáculo Macbeth 22 é o convite ao público para imaginar, diante de um palco quase totalmente vazio, as vertiginosas peripécias da tragédia. Já de início, a atriz Mariana Muniz expressa os mesmos princípios dos prólogos de Henrique V, nos quais um entusiasmado coro convoca os espectadores a contribuir com o seu quinhão imaginário, estimulando-o a visualizar guerras colossais em um espaço exíguo ou até mesmo décadas inteiras no intervalo de algumas poucas horas. Mariana também se dirige abertamente a
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nós que a assistimos e, neste gesto, assume a artesania do jogo cênico sem almejar, assim como o teatro de Shakespeare, nenhum realismo. A atriz encarna figuras distintas, como o protagonista Macbeth, a ferina Lady Macbeth e uma narradora que costura os fios do enredo. Contudo, Mariana não deixa de colocar em suspensão o mundo ficcional, sobretudo quando tece observações mais ou menos irônicas, mais ou menos cômicas, sobre a própria trama a ser contada e sobre as personagens representadas por ela, gerando uma atmosfera geral de cumplicidade entre palco e plateia. O músico Maurílio Rocha acompanha o espetáculo do início ao fim. Munido de uma guitarra e de uma mesa de som, o instrumentista ambienta musicalmente certas passagens, acrescentando mais uma camada emocional à narrativa já tão aflitiva. Aliás, os recursos sonoromusicais são fartamente utilizados nesta peça que, aqui e acolá, oferece estímulos para que o público embarque em uma aventura imaginativa. Além disso, a presença de Maurílio rende constantes interações com a atriz. Nestes instantes, Mariana tenta sempre extrair achados cômicos e, a julgar pelas gargalhadas do público, ela consegue fazê-lo na maior parte das vezes. Há uma grande economia de meios na encenação de Macbeth 22. Poucos objetos cênicos e uma cenografia altamente reduzida enfatizam as palavras. A iluminação de Akner Gustavson se sobressai sutilmente neste palco despojado, mobilizando matizes, desenhos e modulações bastante dinâmicas. Ora uma saturada cor adensa uma
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ambiência eivada de tensão e seriedade, ora a luz corta, sem pedir licença, o encantamento fantasioso, trazendonos para o aqui-agora da vida, digamos, real, ou seja, o palco em sua concretude. O minimalismo da encenação fisgou-me singularmente em dois momentos. O primeiro deles está na solução encontrada para colocar em cena a floresta de Birman. Nascido principalmente de luz e sombra, o ambíguo arvoredo que, por seu turno, confundiu as expectativas de Macbeth, ganhou uma dimensão visualmente destacada, preenchendo o espaço. O segundo é exatamente a cena da morte da personagem-título. Para narrar este episódio atroz, Mariana vale-se apenas de um casaco que, ao cair no chão, evoca a queda do cruel monarca. Se por um lado posso parecer excessivamente empolgado com um recurso tão simples, por outro é preciso lembrar que as vestimentas constituem uma importantíssima metáfora nesta obra. Ao longo da tragédia, surgem alusões a roupas que não estão plenamente ajustadas ao corpo de quem as utiliza, como se algo tivesse sido indevidamente apropriado. No quinto ato do texto original, Angus, um nobre escocês, afirma, referindo-se a Macbeth: “[…] seu título parece vesti-lo como o manto de um gigante em um larápio anão.” O regente usurpador se mostra pequeno, reles, ínfimo demais para ocupar a grandeza do trono. Quiçá um dos traços mais marcantes na concepção de Macbeth 22 seja a sua deliberada vontade de rir de si mesmo, como se não quisesse se levar tão a sério. E
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não estou a fazer um juízo de valor aqui. As ironias, as gags, os comentários (nem sempre) risíveis e a utilização de elementos da cultura pop vão, cumulativamente, se afastando daquilo que, lá atrás, Bernard Shaw chamava de bardolatria, isto é, aquela veneração afetada que louva William Shakespeare como um autor supremo, perfeitamente imaculado, acessível somente às inteligências elevadas. Neste espetáculo, o desejo é se distanciar desta visão excludente, elitista e tão cara ao mito do soberbo Cânone Ocidental; aí a aproximação com o público é intensificada[2]. É interessante mencionar que este clima irreverente permeia, em menor ou em maior grau, outros trabalhos cênicos nos quais Thálita Motta, a encenadora desta peça, colaborou em diferentes funções. Em Baile, espetáculo de formatura dos alunos do T.U. (Teatro Universitário), estreado no ano passado; em Montagem, espetáculo de formatura dos alunos do CEFART, estreada em 2019 e em Projeto Maravilhas, montagem da plataforma Beijo, estreada em 2018, vê-se a busca por atmosferas descontraídas e, mesmo nos momentos mais tensos, não se pretende nenhuma sisudez absoluta. Possivelmente, Thálita contribuiu para essa abordagem em Macbeth 22. A dramaturgia, assinada por Mariana Muniz e por David Maurity, também caminha nessa mesma direção, pois encara a obra shakespeareana sem subserviência, quer com ela jogar, observando quais outros sentidos podem ser descobertos ao colocar em diálogo um texto inglês seiscentista e o tempo presente. Este diálogo com a nossa atual conjuntura histórica é o
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segundo sustentáculo de Macbeth 22 e é justamente aqui que residem as suas fragilidades. Em 1966 o crítico teatral João Apolinário, ao analisar a montagem de Júlio César,dirigida por Antunes Filho, assinalou que esta tragédia, também escrita pelo Bardo, não pretende exclusivamente delinear uma biografia do militar romano. A grande discussão proposta é de cunho político e histórico mais amplo. Logo a perspectiva não se resumia a um close up, mas incluía um wide shot, se quisermos recorrer ao jargão cinematográfico. Ou, em outras palavras, situar o indivíduo em seu contexto maior, na teia de relações sociais que o formam e são por ele formadas. A partir disso, a encenação de Antunes (e igualmente o público) perderia muito se visasse estritamente uma reconstrução psicológica do retratado ou se não englobasse, em um reatualização da obra, as situações históricas que geraram, no mundo romano ficcionado e no mundo brasileiro, embates políticos semelhantes. Em um período muito complicado do país (1966!), o crítico me parece, no fundo, questionar o seguinte: Como estabelecer conexões entre instantes históricos distintos, desenvolvendo uma visão mais abrangente que compreenda contextos e fatos em movimento? E eu acrescentaria duas indagações: Como artisticamente tais paralelos históricos examinam tanto as aproximações quanto as dessemelhanças, incorporando, na análise, as particularidades e contradições de cada momento? E, por fim, como, em termos teatrais, propor tais relações entre circunstâncias diferentes, problematizando caricaturas, maniqueísmos
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ou simplificações no panorama historiográfico? Ora, mas o que tem Macbeth 22 a ver com isso? Vejamos: na concepção do espetáculo, há um manifesto desejo de estabelecer paralelos histórico-políticos entre os aterrorizantes conflitos de Macbeth, a Inglaterra do século XVI e a conturbada realidade brasileira, sobretudo em 2022, ano de uma das eleições mais decisivas de nossa franzina democracia. Além disso, a peça almeja vincular o tirânico protagonista de Shakespeare ao ex-presidente Jair Bolsonaro naquilo que os uniria: a busca inconsequente pelo poder, desprezando qualquer preocupação com o bem-estar coletivo. Nesse ponto específico, o que é limitante em Macbeth 22 é o fato de centrar-se demasiadamente nas possíveis analogias entre a personagem-título da tragédia e o exmandatário genocida, deixando de discutir um contexto social, histórico e político a um só tempo mais amplo e contraditório.[3] Por isso trouxe o crítico João Apolinário, pois suas observações me parecem pertinentes para debater uma certa dose de personalismo presente neste espetáculo. Aproximações entre os tiranos shakespeareanos e o autoritarismo sádico de governantes contemporâneos são diuturnamente feitas por estudiosos. O livro de Stephen Greenblatt, Tyrant: Shakespeare on politics (Tiranos: Shakespeare sobre a política, em tradução livre), é um exemplo instigante. Há traços da tirania de Macbeth, apontados pelo pesquisador, que remetem a comportamentos de Bolsonaro, como o gigantesco
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narcisismo; a fria indiferença a tudo que não diz respeito aos seus interesses e a necessidade compulsiva de provar a própria masculinidade (é de fato impressionante como há, em Macbeth, repetidas indagações sobre o que significa ser homem, másculo e viril). Mas algo crucial, por vezes, escapa a estas correlações (e em Macbeth 22 não é diferente): como estas figuras chegaram ao poder? Afirmar direta e/ou indiretamente que Macbeth e Bolsonaro são tiranos resvala na obviedade. Mais complexo e inquietante é examinar dramaturgicamente os processos históricos que formam estes sujeitos. Tiranos não geram a si mesmos. Eles são constituídos em circunstâncias sociais e políticas muito concretas. Aproximar contextos distintos, sem elaborar, no próprio espetáculo, as devidas mediações históricas, corre sempre o risco de gerar simplificações algo pobres. Os escoceses desafortunados não poderiam fazer muita coisa. Duncan, o rei legítimo, fora executado e os seus filhos, temendo a morte, fugiram para o exterior. Macbeth era, nestas condições, o mais forte candidato à coroa, pois era visto como valente e leal militar, um honroso companheiro (no início da tragédia o seu status é, por assim dizer, heroico), era Thane de Glamis e Thane de Cawdor, ou seja, possuía notáveis títulos nobiliárquicos, e, não menos importante, era primo do soberano assassinado. No final das contas, o povo não tinha muito para onde correr naquele universo monárquico. Já Bolsonaro foi eleito, ainda que valendo-se de rasteiras estratégias e de manipulações ideológicas, tais como as fake news disseminadas em massa. Porém, milhões
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de votos o levaram ao poder e, em 2022, (após quatro desgraçados anos) outros tantos milhões poderiam ter dado a ele um segundo mandato. A tirania neste contexto é de outra natureza. Macbeth 22 traz, aqui e ali, uma alusão à realidade brasileira, às vezes inclui uma ou outra frase, entre tantas do nosso anedotário político. Contudo, em minha visão, uma interlocução com a conjuntura histórica do Brasil, tão complexa e multifacetada, pede um aprofundamento muito maior. Há um dado histórico, ignorado pelo espetáculo, que está muito mais próximo do nosso momento atual. As primeiras encenações de Macbeth, se situam, cronologicamente, no final de um tenso período de transição de governo na Inglaterra. Acadêmicos, como um Frank Kermode, alegam inclusive que a peça celebra o sucessor de Elizabeth I, a saber, James I da Inglaterra e VI da Escócia (que, por sinal, apadrinhou a companhia do Bardo). A rainha não possuía filhos. Deste modo, quem iria herdar a coroa? Esse complicado processo de mudança, com todas as suas disputas políticas e religiosas (protestantismo e catolicismo), os temores, as paixões coléricas (até mesmo um atentado contra a vida do novo rei foi articulado!) e as teorias da conspiração, se afiguram mais significativos para um diálogo histórico com o nosso tempo. A despeito das analogias possíveis, Macbeth demonstra algo que o abjeto político brasileiro jamais esboçou
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pública e sinceramente (não estou me referindo a desesperadas estratégias eleitoreiras): doloroso arrependimento. Na tragédia, a incapacidade de dormir serenamente já se afigura como um castigo da mente criminosa que acusa a si mesma. Porém, no quinto ato, vemos o protagonista refletir sobre as consequências das violações que cometera: “[…] tenho opresso o coração […] / A minha vida/ Já murchou, como a flor esmaecida; E tudo o que nos serve na velhice – Honra, respeito, amor, muitos amigos/ Não posso ter, mas sim, em seu lugar, / Pragas contidas, honras só de boca, / Dadas sem coração, por covardia […].” Mais angustiante ainda é quando, após ter feito tudo para agarrar a coroa, ele se dá conta da vacuidade da sua vida guiada pela ganância, uma existência que foi em resumo “[…] uma história / Contada por um idiota, cheia de som e fúria, / Significando nada”[4]. Há imensa ambição em Macbeth, mas, paralelamente, existe uma consciência cada vez mais afundada em remorsos. O seu conflito interno brota daí. A montagem propõe ainda uma discussão acerca das relações entre gênero e poder especialmente a partir do papel de Lady Macbeth no desenvolvimento da narrativa e também a partir da figura de Elizabeth I, cujo longo reinado marcou profundamente a história da Inglaterra. Reforçam esta proposta as vozes, ouvidas em off, das atrizes Lidia Del Picchia, Fernanda Vianna, Rejane Faria e Inês Peixoto, encarnando outras personagens da trama, como a bruxa (individualizada na atual dramaturgia, ao contrário do trio tradicional), Mcduff e Banquo.
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Inicialmente, Mariana Muniz problematiza um dos trechos mais agudos de toda a tragédia: o momento em que Lady Macbeth conjura espíritos malignos para dessexualizá-la (“unsex” é o verbo empregado no original), suprimindo a sua condição de mulher. Ciente das fraquezas, dos medos e das hesitações morais do marido, Lady Macbeth deseja que o seu gênero seja subtraído dela a fim de adquirir a disposição necessária para cometer os crimes sem culpa ou crises de consciência. No espetáculo, a atriz destaca, com ironia, as desigualdades de gênero presentes na época (e no próprio teatro) elizabetano. Qual noção de mulher está posta aqui? O que se espera e/ou se exige do comportamento dito feminino? Certas análises identificam, neste ato de Lady Macbeth, uma transgressão das leis naturais, como se ela estivesse a se transformar em uma bruxa, uma criatura que encarna antíteses, ambiguidades e equívocos (este termo é relevante na tragédia) perigosos, bem como ameaçadoras inversões de valores. Valerá a pena lembrar que no texto de Shakespeare, Banquo se assusta terrivelmente ao contemplar pela primeira vez a imagem das bruxas, exclamando: “poderiam ser mulheres, / Embora suas barbas me impeçam de interpretar / O que de fato sejam”[5] Qual seria, portanto, a identidade destes seres? Nesse ponto, Macbeth 22 nos leva a pensar nos essencialismos de gênero (existiria uma natureza feminina?) e na mentalidade patriarcal que direta e indiretamente estão na obra shakespeareana, discutindo os limites, as potencialidades e, enfim, as contradições de
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um clássico quando lido, criticamente, em nossa época. Na sequência, Mariana afirma que Shakespeare tentou proteger Macbeth, atribuindo, à esposa deste, a responsabilidade pelo assassinato de Duncan. Esta questão, se considerarmos a fortuna crítica da tragédia, ao longo dos anos, já é mais batida. Acerca disso, estou de acordo com os estudiosos, segundo os quais a responsabilidade integral é de Macbeth, é ele o protagonista trágico e, em vista disso, autor das suas ações. Muito antes de Lady Macbeth entrar em cena, o futuro malfeitor, em um tenso aparte no primeiro ato, revela que a ideia de matar o rei já engatinhava em sua mente. A sua parceira o instigou, mas o fardo maior é dele. Se intimamente o dramaturgo pretendeu ou não defender seu dileto personagem me parece impossível descobrir. O importante é que toda a peça – o texto! – enfatiza as decisões de Macbeth. Nem mesmo as bruxas e suas previsões podem ser responsabilizadas, pois elas não disseram a ele que seria necessário ou desejável cometer um crime para ser rei. Se ele tivesse ficado quietinho… O espetáculo inclui um brevíssimo vídeo informativo a respeito da biografia da rainha Elizabeth I, ressaltando a importância de uma mulher governar um território tão atribulado como o britânico, que estava em seu próprio período de expansão econômica e sociocultural. Se a intenção era aprofundar as discussões a respeito das relações entre gênero e poder, o vídeo, tentando ser jocoso, não ultrapassou a superficialidade. Nem mesmo um dos feitos mais conhecidos do seu longo reinado, isto
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é, a vitória naval sobre a “Invencível” Armada Espanhola, foi incluído. Elizabeth, cravejada de contradições, lançou as bases para as investidas coloniais da Inglaterra mundo afora; receando perder o trono, aprisionou, por quase duas décadas a sua prima, Maria Stuart da Escócia, para no final, após muita angústia, mandar decapitá-la por suspeita de conspiração contra a coroa. E o que então dizer da sua relação com o teatro? Se por um lado é dito que a soberana foi uma entusiasta das artes em geral, por outro não se pode ignorar a ferrenha censura por ela imposta. Apenas mencionar que existiu uma rainha inglesa diz alguma coisa, se levarmos em conta o mundo no século XVI, mas para discutir as relações entre gênero e poder não seria necessário mergulhar nos seus feitos concretos? Antes de concluir, há um outro ponto (já abordado pela crítica de Julia Guimarães) que merece ser mencionado. No início da peça, Mariana Muniz afirma que é uma mulher branca e que seu corpo, assim sendo, estaria investido historicamente de uma “ciência da tirania”. E depois disso nada mais. Eu realmente me pergunto: por que abordar esta dimensão tão complexa, se o próprio espetáculo não almeja e nem tem condições de discutir, a fundo, branquitude e desigualdade sociarracial? Esta escolha se assemelha a um recurso retórico chamado de prolepse. É como se a dramaturgia antecipasse eventuais objeções, réplicas ou contestações antes mesmo que estas apareçam, demonstrando que já havia considerado o problema e que, portanto, não está despreparada. Seria esse um medo de não ser visto como atualizado,
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“desconstruído” ou politizado o bastante? No teatro brasileiro contemporâneo, Macbeth 22 se liga a outros espetáculos, como Ubu Rei, do grupo Os Geraldos (SP), dirigido por Gabriel Vilela; e o Ubu Rei, criado por três grupos de teatro potiguares, quais sejam, o Clowns de Shakespeare, o Facetas, Mutretas e Outras Histórias e o Asavessa, todos dirigidos por Fernando Yamamoto. Em todas estas montagens há um denominador comum: debater a política brasileira a partir de obras protagonizadas por figuras autoritárias. Os críticos Amilton de Azevedo, da plataforma ruína acesa e Heloísa Sousa, do Farofa Crítica, em suas respectivas análises[6] das peças sobreditas, indagam, cada qual a seu modo, as armadilhas e as fragilidades no modo como dramaturgia e realidade histórica estão sendo pensadas por tais grupos. “Quais escolhas formais (e que adaptações, inserções, subversões dramatúrgicas) realizar a fim de que a obra mantenha a potência – que inegavelmente ainda pode nos dizer muito – do material original de Jarry?”[7], interroga Amilton; “O teatro conseguiria, para além da exposição de um retrato da realidade, evidenciar a articulação complexa de um sistema/ figura, sua transformação e composição? Não apenas representar um golpe em cena, como um fato; mas expor, analiticamente, sua estruturação”[8], interroga Heloísa. Sem nenhum esforço, posso dirigir semelhantes perguntas a Macbeth 22. Este espetáculo, que marca, após um considerável hiato, o retorno de Mariana Muniz aos palcos (a atriz, professora e pesquisadora
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está, coincidentemente, em uma das minhas primeiras vivências como espectador de teatro, quando a vi no já longínquo Tio Vânia, do Grupo Galpão, em 2011), é também sintoma de uma vontade um tanto ansiosa, um tanto imediatista de retratar, cenicamente, os nossos mais recentes acontecimentos históricos. Porém, esta matéria tão viva, a que chamamos de história – e Shakespeare decerto sabia disso ao ter lidado repetidamente com esse universo –, não é tanto o retrato estático, mas o movimento. Como esse movimento tem sido encarado em nossos palcos?
Macbeth 22 Concepção e atuação: Mariana Lima Muniz Dramaturgia: Mariana Lima Muniz e David Maurity Encenação: Thálita Motta Guitarrista e música original: Maurilio Rocha Direção da atriz: Ana Regis Participações especiais: Inês Peixoto, Fernanda Vianna,
Lydia Del Picchia e Rejane Faria
tagem e operação): Bruno Souza Banjo
Produção executiva: Polyana Horta
Maquiagem: Malu Magalhães
Cenografia: Bruna Christófaro
Vídeo de animação: Fabiano Lana
Cenotécnico: Helvécio Isabel
Assessoria de imprensa e mídias digitais: Rizoma Comunicação e Arte
Figurino: Silma Dornas Iluminação: (criação, montagem e operação) Akner Gustavson Sonorização (mon-
Identidade Visual: Cíntia Marques Fotografia: Guto Muniz Vídeos: Leila Verço-
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sa e Byron O’neill Produção: Arte em Conexão Apoio: Departamento de Artes Cênicas EBA/UFMG [1] Ao longo da crítica, salvo quando assinalado o contrário, recorro à tradução realizada por Barbara Heliodora para o primeiro volume da edição Teatro Completo de William Shakespeare, publicado pela Nova Aguilar em 2016. [2] Este ponto está interessantemente discutido na crítica escrita por Júlia Guimarães e publicada aqui no Horizonte da Cena: https://www.horizontedacena.com/ teatro-como-gesto-de-aproximacao/
Março / 2023
[3] Em entrevista ao jornal O Estado de Minas, Mariana Muniz chega a dizer que Macbeth não é o ex-presidente da República, mas na concepção do espetáculo e, especialmente, em sua dramaturgia, essa afirmação não se sustenta bem, pois o que se vê é uma vinculação direta entre as duas figuras. A entrevista pode ser lida na íntegra por meio do link: https:// www.em.com.br/ app/noticia/cultura/2023/02/01/ interna_cultura,1451601/ macbeth-22-mistura-shakespeare-e-jair-bolsonaro-em-solo-teatral.shtml [4] Tradução de Rafael Rafaelli, publicada pela editora
da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina – em 2016. [5] Idem. [6] Tanto o ruina acesa quanto o Farofa Crítica integram, juntamente com o Horizonte da Cena, o projeto Arquipélago de fomento à crítica teatral, com apoio da produtora Corpo Rastreado. [7] A crítica pode ser lida na íntegra por meio do link: https://ruinaacesa. com.br/ubu-rei/ [8] A crítica pode ser lida na íntegra por meio do link: http://www.farofacritica.com.br/ criticas/conteudo/206/por-queubu
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Foto: Elmo Sebastião
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Chuá
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Memórias d’água Por Diogo Horta Crítica a partir do espetáculo Chuá, da Insensata Companhia de Teatro, assistido no dia 07 de abril de 2023, no Centro Cultural do Banco do Brasil, em Belo Horizonte. Mar, lama, açude, pesca, onda, rio, piscina, mangueira, balão d’água, chuva, entupimento, enxurrada, escorregador, toboágua, natação, copo d’água, tromba d’água, suor, a bolsa estourou, riacho, cachoeira, banho, banheira, água quente, águas termais, água, água, água… Memórias da água inundam nossa mente com sensações, gostos, cheiros e, sobretudo, histórias. O teatro é o elo que conecta essas memórias e inspira nossa imaginação. O espetáculo é Chuá, da Insensata Cia. de Belo Horizonte que apresenta uma obra para crianças com muita sensibilidade, diálogo e afeto. A companhia apresentou no CCBB-BH, nestes meses de março e abril de 2023, uma mostra de seus espetáculos, concluindo, com Chuá, uma trilogia sobre a memória, da qual também fazem parte as criações Memórias de um quintal e Pru-ti-ti – Memórias de estimação. Para Chuá o grupo se inspira no livro Os rios morrem de sede, de Wander Piroli, e embarca em uma proposta de experiência cênica íntima com a plateia. A partir de um processo de criação coletiva, os atores-diretores enlaçam memórias pessoais com brincadeiras e diálogos com o
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público, criando uma rede sensível e delicada, difícil de encontrar nos espetáculos para crianças. A montagem tem seu início ainda no foyer do teatro quando os atores convidam os espectadores a moldar, em um pedaço de argila, uma memória pessoal que esteja relacionada à água. As pequenas esculturas do dia anterior estão espalhadas por uma colcha de retalhos e um ombrelone, debaixo do qual o público da apresentação do dia se senta para criar seus trabalhos em argila. Tanto para as crianças quanto para os adultos, esse é um momento que nos faz viajar pelo tempo e traduzir em uma forma, ou várias, uma memória em argila. O público é convidado a entrar no teatro com sua memória moldada em argila e é avisado que em certo momento será convidado a partilhá-la durante a peça. A partir daí, a plateia é conduzida pelos atores em várias histórias, ora como lavadeiras do Norte de Minas Gerais, ora como as crianças que um dia foram. As lavadeiras são criadas por meio do recurso da meia-máscara expressiva e inspiram a atmosfera nostálgica e de lembranças que o espetáculo possui. No geral, a presença dessas personagens instaura momentos de calmaria e leveza na obra, que se contrapõem aos momentos de interação dos atores com a plateia ou de narrações de suas histórias pessoais, marcados pela brincadeira, pelo jogo de perguntas e respostas com o público e por um ritmo mais acelerado. Tal fato confere à montagem nuances entre as cenas e permite que os espectadores transitem entre a fruição e
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a participação. Isso é interessante pois provoca um certo equilíbrio nas crianças que, tendo em vista o anseio por participar, responder as questões e subir no palco para brincar com os atores, entendem os dois momentos pelos quais o espetáculo vai sendo conduzido e se aquietam nos momentos de cena e música protagonizados, em sua maior parte, pelas lavadeiras. A referência musical do interior de Minas Gerais também é protagonista da obra, seja pelo canto das lavadeiras, seja pela viola caipira tocada ao vivo por um dos atores. Instrumento com sonoridade ímpar, a viola caipira embala o público com canções conhecidas e desconhecidas do público, fazendo soar, no entanto, o interior de Minas em cena, inspirando lembranças em uns e trazendo uma sonoridade inédita a outros. O cenário também nos remete ao interior com tecidos ao centro como cortinas e dois varais laterais com roupas penduradas em tons coloridos e mais claros. Dessa forma, Chuá inspira gerações e provoca em todos, de todas as idades, conexões muito íntimas e sinceras com as cenas do espetáculo. A água, como já foi dito, é o eixo condutor da criação, sendo trazida por meio de várias referências, desde o barulho de chuva que dá início à peça – produzido pelos próprios atores com pedrinhas e bacias – até um grande rio em tecido que cobre a cena e toda a plateia (como uma bandeira gigante em jogos de futebol). O espetáculo não possui uma história única, mas pequenas histórias de memórias trazidas por cada um dos quatro atores.
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A primeira delas é da atriz Brenda Campos, que se conecta consigo mesma no útero materno para perceber quanta água envolve uma criança durante os primeiros nove meses de crescimento na barriga da mãe. Ela, então, pergunta: “Quem aqui já foi peixe?”. De início, ninguém pensa em responder “sim”, até que ela nos conduz a entender a pergunta e concordar com a afirmação poética de que todos fomos peixe algum dia. A provocação ainda avança para uma segunda pergunta: “como o bebê sai da barriga da mãe quando ele fica sem espaço lá dentro?”. A atriz escuta algumas respostas das crianças e depois explica, tocando em memórias importantes das mamães da plateia, os partos realizados de forma natural ou cirúrgica. Espetáculos que abrem espaço de diálogo com as crianças representam um grande desafio, no entanto, nos presenteiam com ótimos momentos e com a vivacidade das crianças. Dentre os vários momentos de interação, destaco a participação de uma das crianças, que respondeu, sobre o parto, o seguinte: “o dentista passa o bisturi na barriga da mãe e tira o bebê!”. Todos riram da resposta “certeira” da criança e o espetáculo seguiu seu fluxo. É interessante perceber que os trabalhos da Insensata Cia. não se furtam em tratar de questões geralmente tidas como tabus para crianças. Como a memória dos atores adultos é matéria-prima para as montagens, muitas vezes situações ou questões mais delicadas aparecem e são levadas à cena. Isso acontece nos demais espetáculos da trilogia já citados, como também em Chuá, no qual a seca
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do Norte de Minas Gerais e as enchentes na periferia de Belo Horizonte são levadas ao palco. As enchentes no Córrego do Onça, na Região Norte de BH, por exemplo, surgem em cena por meio das memórias do ator Dário Marques, que viu a transformação dos bairros da região e consequentemente os problemas trazidos com a cheia do rio. Com as enchentes, narra a perda dos móveis, carros e casas inteiras, olhando para a plateia como se visse uma grande enchente passando pela sua frente. O interessante da cena é que a narração não é feita de modo emotivo, mas com um distanciamento narrativo – em referência ao teórico alemão Bertolt Brecht – no qual o espectador acompanha um cenário triste e se pergunta como isso ainda pode acontecer e ser tão próximo de nós. Já as crianças, pelo menos no dia em que fui assistir, se sentiram tocadas pelas perdas e tentaram recuperar os itens perdidos correndo até os atores e dizendo: “aqui seu sofá; sua casa de volta; trouxe seu carro…”. Esse momento revela o envolvimento dos pequenos com a montagem e como o espetáculo se conectou com o público nas mais diversas situações. Como mencionado anteriormente, tais passagens narrativas são intercaladas por cenas de brincadeiras, nas quais algumas crianças são convidadas ao palco. Uma brincadeira de balão de água (que na verdade tem, em seu interior, papel picado), um pedido para uma criança estender uma roupa no varal ou um momento para brincar de equilibrar trouxa de roupa na cabeça, são esses momentos que também contribuem para a relação das
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crianças com os atores, gerando cumplicidade e parceira que vão se fortalecendo ao longo do espetáculo. É somente no final da peça, quando essa cumplicidade já está reforçada, que o público é convidado a levar suas esculturas de argila para o palco. Após esse momento, os atores vão selecionando e perguntando de quem é aquele trabalho manual e convidando o “escultor” a compartilhar sua memória com os demais. Por todos esses aspectos, Chuá traz uma sensibilidade e conexão com as pessoas presentes no teatro, envolvendo adultos e crianças em uma teia de memórias, rica em símbolos e com assuntos importantes a serem refletidos e conversados. O cenário, a iluminação e a trilha sonora envolvem de maneira cuidadosa o espectador, como um carinho de casa de vó: simples, por vezes invisível, mas que está sempre ali para trazer afeto e conforto. Dessa forma, a suavidade das cores, dos tons e das notas musicais preenchem a experiência do trabalho com precisão e sensibilidade. Cabe, por fim, ainda ressaltar a habilidade dos atores, Brenda Campos, Keu Freire, Cláudio Márcio e Dário Marques, em dialogar com as crianças e se afetarem positivamente por suas intervenções. Por conta da proximidade e abertura constante de diálogo com a plateia, os atores trabalham no limite da interação. No entanto, conseguem transitar bem por essa proposta, com jogo de cintura para colocar os limites quando necessário, sair de situações embaraçosas, relevar uma invasão mirim ao cenário ou,
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até mesmo, incluir crianças em cenas antes não pensadas com elas. Chuá oferece, portanto, uma experiência rica ao público com o teatro em sua mais forte potência, a do encontro e do convívio, permitindo aos espectadores, como um todo, brincar, dialogar, interagir e refletir.
Chuá Grupo: Insensata Cia De Teatro – Belo Horizonte/MG Criação Coletiva – Direção, Dramaturgia, Elenco, Iluminação, Cenário, Figurino e Trilha Sonora: Brenda Campos, Claudio Marcio, Dário
Abril / 2023
Marques e Keu Freire Cenografia e Figurino: Daniel Ducato Iluminação: Cris Diniz Assessoria de criação das máscaras: Rafael Protzner
Assessoria de Imprensa: Aclive Comunicação Projeto gráfico: Anderson Luizes Coordenação geral: Brenda Campos E Keu Freire Realização: Insensata Cia De Teatro
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ruína
acesa o ruína acesa foi criado em abril de 2017 por Amilton de Azevedo com o intuito de ser uma plataforma de crítica cultural inicialmente voltada apenas à obras teatrais, durante a pandemia também passou a acolher textos sobre trabalhos virtuais, filmes e séries. manter a ruína acesa. a ideia que o nome do projeto carrega traz consigo uma referência à efemeridade do teatro: uma chama que consome à si mesma. a escrita crítica emerge, então, como possibilidade não apenas de registro, mas de recriação da obra. assim, ruína acesa é uma possibilidade de reverberar acontecimentos cênicos; analisando-os criticamente a partir de suas próprias propostas. a crítica configura-se, assim, como diálogo, reflexão e, fundamentalmente, como cúmplice do fazer artístico.
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Foto: Stephanie Lauria
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Ubu Rei Os Geraldos
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discursos, escolhas e efeitos Por Amilton De Azevedo crítica de Ubu Rei, texto de Alfred Jarry, com Os Geraldos e direção de Gabriel Villela. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Um imbecil, com patente de capitão, inserido no sistema político, toma o poder por ambições que se revelam absolutamente pessoais. Essa síntese possível, ainda que rasteira, de Ubu Rei, texto de Alfred Jarry estreado em 1896 na França, cola inteiramente o contexto da obra aos tempos que correm. Parece ser essa a percepção que impulsiona a encenação de Gabriel Villela em seu segundo trabalho em parceria com Os Geraldos (Campinas/SP). Porém, logo de cara, há de se pensar: o que Pai Ubu ainda nos conta sobre os déspotas contemporâneos? Talvez muito: ao longo do século XX e em uma assustadora crescente nestas primeiras décadas dos anos 2000, o que havia de mais absurdo na ficção grotesca de Jarry mostrou-se mais e mais factível – a ponto de, possivelmente, a realidade ter ultrapassado em muito aquilo que se imaginava estar no limite da (pretensa?) civilidade democrática. Conforme aponta Felipe Charbel em crítica na Folha de S. Paulo quando do lançamento da tradução dos irmãos Gregório e Bárbara Duvivier para Ubu Rei (Editora
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Ubu, 2021), utilizada pelos Geraldos, “é notável o potencial alegórico da peça”, de modo que “o texto se acomoda muito bem a contextos históricos diferentes, sem parecer datado”, e a presente tradução alimenta “o tempo todo” sua “perene atualidade”. Por outro lado, diante das abjeções que se observam ao redor do mundo, desde os totalitarismos passados às ditaduras e os ataques à democracia do presente, a absoluta estultícia de Pai Ubu é confrontada com estratégias e projetos de poder extremamente calculados mesmo em suas vulgaridades, com objetivos ainda mais tenebrosos do que a pura sede pelo poder e suas benesses. Como bem sintetiza Heloísa Sousa em seu texto sobre Ubu Rei no Farofa Crítica, “representar figuras autoritárias como risíveis e zombáveis, sendo essas mesmas responsáveis por projetos genocidas, não possui mais a mesma força simbólica que foi possível na França de Jarry em 1896.” Assim, uma encenação contemporânea de Ubu Rei traz consigo um frutífero impasse: quais escolhas formais (e que adaptações, inserções, subversões dramatúrgicas) realizar a fim de que a obra mantenha a potência – que inegavelmente ainda pode nos dizer muito – do material original de Jarry? Em afirmação do diretor presente no release do espetáculo, trata-se de uma “sátira afiada do nosso país, respondendo, com violência poética, à selvageria e à estupidez destes tempos”. Na temporada de estreia em São Paulo, no Sesc Consolação, uma imensa adesão da
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plateia parece confirmar o que diz Paula Alzugaray em texto publicado na seLecT_ceLesTe: a associação entre a sátira de Jarry e à calamidade do governo de Jair Messias Bolsonaro confere à obra “a qualidade de um tratado sobre nossos tempos”. Ao final do texto citado, Alzugaray afirma que a empreitada dos Geraldos com Villela “é uma catarse, uma resposta ao levante do fascismo”. A catarse, aqui, é diferente das tragédias – Charbel aponta que “o que temos ao fim da jornada insensata do Pai Ubu é outro tipo de purificação”, que “se dá pelo riso”. E sua pergunta, referente à dramaturgia, é relevante para esta reflexão: “mas do que rimos, no fim das contas?“ Na encenação de Villela com Os Geraldos, rimos de figuras autoritárias “responsáveis por projetos genocidas”, citando novamente a crítica de Sousa, e talvez depois dos últimos quatro anos isso em si seja muita coisa, carregue consigo uma grande importância. Ao mesmo tempo, abre-se a possibilidade de pensar em torno das formas através das quais a obra faz rir. Apontá-la como “um tratado sobre nossos tempos” pode, inclusive, ser muito mais negativo do que a primeira impressão de tal expressão nos sugere. Pois se é essa a “resposta ao levante do fascismo”, é uma resposta que não nos indica nenhum caminho, tampouco aprofunda a reflexão em torno de suas raízes e do sucesso de movimentos de extrema
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direita ao redor de todo o globo. A opção de Villela é a de considerar nossos tempos aqueles que correm na velocidade das redes sociais – o que poderia ser interessante, visto que talvez tenham sido elas (e suas máquinas de fake news mobilizados por gabinetes do ódio) as maiores aliadas da eleição de Bolsonaro em 2018. No entanto, o que se verifica na cena é uma comicidade que, ao colar-se nas citações da realidade política nacional, torna-se uma avalanche, uma verdadeira coqueluche memética que acaba por esvaziar qualquer verticalidade possível na crítica pretendida: Ubu Rei resulta em uma obra onde o discurso de suas várias camadas – da adaptação dramatúrgica assinada por Villela e Geraldos às escolhas musicais e o caráter multicultural de seus figurinos e adereços – é continuamente esvaziado em escolhas que objetivam o puro efeito. Em sua ambição surrealista, o trabalho parece se pretender dadá. Mas a lógica que ele próprio constrói faz dele, no fundo, acrítico. Na busca pelo diálogo direto com o Brasil dos últimos anos, adota posições fáceis, considerando seu contexto e a maior parte de seu público, não enfrentando possíveis contraditórios, ainda que os lance de forma que soa irresponsável. O Ubu Rei de Villela e Geraldos parece mesmo jogar com e aceitar seu próprio vácuo. Mas mesmo para isso, para um pastiche, para uma sátira que abraça o semsentido, falta radicalidade.
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Paulo Bio Toledo aponta, em sua crítica publicada na Folha de S. Paulo, que “o fracasso na estreia da peça [em 1896] é também um tipo de sucesso do material”. Da mesma forma, o sucesso de Ubu Rei, em 2023, pode ser visto como uma espécie de fracasso. Toledo também afirma que “falta o elemento inflamável que faria a peça explodir sobre o presente”; na encenação, “a provocação cede lugar à comunhão”. Neste processo de comunhão, há pouco de efetivamente transgressor na presente montagem. O que assombrava os palcos parisienses do final do século XIX aqui é tornado puro escracho; a linguagem ofensiva já não tem o mesmo impacto, considerando o que se vê em qualquer dia comum nas redes sociais, em transmissões ao vivo do plenário da Câmara e registros de reuniões do alto escalão do último governo. Assim, a opção de empilhar referências e comentários diretos da realidade nacional dos últimos anos resulta em uma reprodução da lógica memética – que, por sua velocidade, é geralmente rasa. O riso tem um quê de nervoso, mas sua criticidade é aos poucos solapada por um caráter difuso nas escolhas que constituem o discurso deste Ubu Rei. As ambições surrealistas acabam por se converterem em momentos constrangedores do desalinhamento entre intenção e realização, num ato de purificação pela purificação, de teatralidade pela teatralidade.
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Em si, não se trata de um problema; cada equipe de criadores é absolutamente livre para levar à cena aquilo que quiser da maneira desejada. Mas certos momentos de Ubu Rei geram tanto ruído em sua caricatura política dos tempos que correm que parecem que estão lá apenas porque talvez Villela e Os Geraldos saibam que um retrato possível do contemporâneo é triste e ineficaz para além do deboche e do escárnio. Há uma irresponsabilidade que se poderia pensar juvenil, não fosse o calibre dos envolvidos no projeto, no que aparenta ser uma tentativa de se colocar contra tudo o que está aí. Pois ainda que focada, evidentemente, no autoritarismo bolsonarista, Ubu Rei incorre em generalizações problemáticas sob qualquer viés. Na colagem nonsense dos fatos políticos, a relação entre personagens da ficção amalgamados à figuras públicas reais é costurada objetivando uma comicidade que depõe contra a própria constituição deste enquadramento da realidade na cena. São muitos os exemplos disso, possivelmente o mais grave sendo a mudança no registro da interpretação de Bostadura (Railan Andrade, em trabalho que se destaca), abandonando os trejeitos e a prosódia de Bolsonaro para adotar os de Luís Inácio Lula da Silva após ter seu dedo cortado por… Carla Zambelli (a Czarina de Ciça de Carvalho). Além deste, há implicações complexas na trajetória de Bugrelau
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(João Fernandes), príncipe da Polônia, visto que os filhos do rei são inicialmente apresentados em referência direta aos filhos do ex-presidente (zero um, zero dois, zero três) e, em sua retomada do poder, o povo que o apoia canta El pueblo unido jamas será vencido – como se o retorno da monarquia “legítima” pudesse ser lido como uma revolução popular. No geral, as canções surgem como comentários exógenos à dramaturgia de Ubu Rei, contrapondo ou extrapolando as questões abordadas, e notadamente enriquecendo a espetacularidade da encenação, sustentando seu ritmo frenético – a proposta é causar “uma sensação de vertigem”, como aponta o release da obra, para que o espectador embarque neste “delírio tropical”. Mas há uma ordenação muito grande nas camadas, ainda que difusas, sobrepostas, para que ela efetivamente dê o salto na direção deste transe pretendido. Na intenção antropofágica do trabalho – apresentada no texto de Villela e Ivan Andrade (diretor adjunto e iluminador) presente no programa de Ubu Rei – a “canibalização” das tantas culturas é realmente a “goela pantagruélica” do casal Ubu, o que talvez faça sentido nesta tentativa de atualizar a violência que se viu na fruição à obra de Jarry em 1896. Mas mesmo esse choque já não é recebido da mesma forma, tendo seu impacto diminuído por um certo embaraço da plateia diante do pout-pourri de culturas e os chistes advindos desta sobreposição –
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que almejaria uma universalização da crítica, mas acaba por solapar (ou ignorar) contextos distintos entre a organização política de sociedades ocidentais e orientais, por exemplo. A patafísica de Jarry, ciência das soluções imaginárias, exigiria um esforço maior de sublimação do absurdo da realidade que nos circunda para efetivar-se no Brasil de 2023. Na declaração de Paula Mathenhauer Guerreiro (presente em matéria de Ubiratan Brasil no Estadão), a Mãe Ubu da presente encenação, há, talvez, um indício dos caminhos patafísicos de Villela e Os Geraldos: “Em montagens passadas, essa personagem ouve calada a série de xingamentos e impropérios dirigidas a ela pelo Pai Ubu, mas, na nossa, Mãe Ubu é empoderada e responde à altura ou até mais alto que seu companheiro”. Neste alinhamento entre ficção e realidades, apontar como uma singularidade da encenação o empoderamento da figura de Mãe Ubu é como colocar Margaret Thatcher como um exemplo de liderança feminina na história moderna; esvazia-se o próprio sentido por trás da ideia do empoderamento, alinhando-se a premissas liberais. O que paira no ar por toda a encenação de Ubu Rei é uma contínua reafirmação de que há algo de podre no reino… do Brasil. Ao encerrar a obra com Todo menino é um rei, a potência transgressora de Jarry dilui-se no que resulta, observando a totalidade do trabalho, em uma crítica superficial ao poder como um todo. A intenção anarquista soa ingênua,
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descolada do estado atual da ascensão da extrema direita no mundo, e a impressão que fica é de que o espetáculo, de aparente coragem, mais do que um tratado, talvez seja um sintoma dos nossos tempos.
Ubu Rei (2022) Direção, cenário e figurino: Gabriel Villela Direção adjunta e iluminação: Ivan Andrade Dramaturgia: Alfred Jarry Tradução: Bárbara Duvivier e Gregório Duvivier Adaptação dramatúrgica: Gabriel Villela e Os Geraldos Arranjos Musicais: Everton Gennari Direção musical e preparação vocal: Babaya Morais e Everton Gennari
Março / 2023
Elenco: Carolina Delduque, Ciça de Carvalho, Douglas Novais, Everton Gennari, João Fernandes, Julia Cavalcanti, Gabriel Sobreiro, Gileade Batista, Paula Mathenhauer Guerreiro, Patrícia Palaçon, Railan Andrade, Roberta Postale, Valéria Aguiar e Vinicius Santino Assistência de figurino e adereços: Cristiana Cunha e Emme Toniolo Costura: Ateliê de Dona Zilda Peres
Villela Fotografia: Stephanie Lauria Visagismo: Claudinei Hidalgo Maquiagem: Patrícia Barbosa Design gráfico: Vanessa Cavalcanti Assistência de produção: Bruna Paifer e Nicole Mesquita Coordenação de produção: Tatiana Alves Coordenação geral: Douglas Novais Produção: Os Geraldos
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Foto: divulgação
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Tudo ou nada
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nada se quebra enquanto tudo é moldado Por Amilton De Azevedo quando chego na varanda do Sesc Paulista, tudo é ilegível no bloco de gelo; nada se percebe como quase rascunho. “tudo ou nada” (e só aqui vou usar aspas nessas palavras ao longo de todo o texto), performance de Renan Marcondes (com Carolina Callegaro e Raul Rachou em ação, objetos por Zang, manutenção e montagem por Matias Arce, produção de Tetembua Dandara e fotos de Mari Chama), se enquadra dentro de uma ideia de arte conceitual – onde talvez o público passando só possa (será que “possa” é a palavra certa?) fruir sua totalidade (será que é possível fruir a totalidade de uma obra?) ao ler o texto, também de Marcondes, colocado entre os performers. também é um trabalho onde a materialidade bruta ganha o centro; Rachou e Callegaro movimentamse, não em partituras corporais, de modo que o foco está precisamente nos blocos de gelo e nos vasosreceptáculos de palavras invertidas. ao mesmo tempo, a presença de ambos sem dúvida age sobre o caminho da obra. Rachou e Callegaro, respectivamente com nada e tudo na mão, dão aos derreteres distintas camadas de significação. nada se quebra enquanto tudo é moldado. nada não preenche tudo; tudo transborda nada. nada é caos, tudo é controle. tudo se derrete nos contornos de
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nada; nada se espalha pelo piso. ‘ou tudo ou nada’, diz a expressão de uso corrente. aqui, tudo e nada. não o momento da decisão, mas infinitas pequenas decisões entre um início estabelecido e o final obviamente esperado. no derreter, os caminhos. enquanto assistia, pensei em um texto de Denise Ferreira da Silva, analisando “à luz negra” uma obra de artes visuais. ali ela lançava o olhar para a “matéria bruta” do trabalho, retraçando “o que” ele é a partir de deslocamentos históricos e geográficos de sua materialidade. não saberia fazer isso para pensar em torno de “tudo ou nada”. “Aquilo que a luz negra proporciona, o que ela oferece à tarefa de refletir sobre o mundo e de des-pensálo [unthinking] é a possibilidade de considerar o pensamento por outro viés: e se o que interessa no trabalho de arte ultrapassa a representação não por conta de seu “por quê”, ou de seu “quando” ou de seu “onde”, mas em razão de seu “como” e seu “o quê”?” (Denise Ferreira da Silva – Em estado bruto [In the raw]) poucos minutos antes de começar a escrever, repassando mentalmente ideias e sensações, esse trajeto de “fazer brilhar” o material bruto proposto por DFS – que opera sobretudo na realidade – acabou por me lançar à ficção. em “Cem Anos de Solidão”, García Márquez escreve que “muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde
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remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. trazido à Macondo pela caravana do velho Melquíades, havia algo – aliás, havia muito – de mágico naquele objeto que queimava as mãos da criança, ainda que gelado à primeira vista. tudo e nada são fascinantes, também. os sentidos e as reflexões; suas provocações estão em todo lugar e em lugar nenhum. “tudo ou nada”, naquela varanda do Sesc, é gatilho e hiato de teatralidades nas passagens que habitam o espaço da performance e que invadem como ruído olhos ouvidos e imaginação do público. Abril / 2023
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Satisfeita, Yolanda?
O blog Satisfeita, Yolanda? é um espaço para críticas, entrevistas, reportagens, bastidores. E, principalmente, para dar continuidade e repercussão ao processo de criação da arte teatral. As Yolandas – Ivana Moura e Pollyanna Diniz – são jornalistas pernambucanas, apaixonadas por teatro.
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Grief and Beauty
Foto: Divulgação
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Milo Rau
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A morte como escolha em duas peças de Milo Rau Crítica dos espetáculos Grief and Beauty e Familie Por Ivana Moura A morte “escolhida” pulsa no centro das duas primeiras peças da Trilogia da Vida Privada do dramaturgo e realizador suíço Milo Rau. A terceira do tríptico deve estrear em 2024. Assisti aos espetáculos Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza; 2021) e Familie(2020) no La Colline Théatre National, em Paris, nesse mês de fevereiro, com texto em suíço e legendas em inglês e francês simultaneamente. Milo Rau foi o artista em foco da sexta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, em 2019, e apresentou no Brasil A Repetição. História(s) do Teatro (I), Cinco Peças Fáceis e Compaixão. Ele já disse que “É possível levar tudo ao palco” e que não é ele quem escandaliza. “Minhas produções que são relacionadas a fatos escandalosos”. Grief and beauty e Familie são peças inspiradas em algum acontecimento da realidade. São espetáculos que não nos deixam indiferentes. Ainda fico refletindo se a intenção de Milo Rau não é mesmo chocar esse mundo contemporâneo já tão abarrotado de coisas de todo o tipo e imagens que se derramam de violência. Nem se Sontag poderia me acudir nessa questão. O fato é que dificilmente alguém sairá indiferente de uma
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dessas duas montagens da Trilogia da Vida Privada. Ao entrar no teatro, uma tela estampa o rosto sorridente de Johanna B. Seus olhos vivazes dão as boas-vindas. Ela vai morrer / já morreu, alguns já sabem. Uma das atrizes dirá que a simpática mulher escolheu o momento de sua morte, um dia após seu aniversário de 85 anos. Na Bélgica ou na Suíça é possível fazer eutanásia legalmente e Grief and beauty projeta alguns momentos do último dia de sua vida, cercada por familiares e amigos queridos. Johanna, nascida em 1936 em Roterdã, tinha uma doença incurável. Na sua casa, ela conversou por mais de quatro horas com o encenador suíço e seus assistentes. O encontro foi gravado. Entre outras coisas, Johanna deixou registrado: “a morte é um trabalho solitário”, mas que ela quis compartilhar com o público do diretor Milo Rau. A cenografia da peça é de um apartamento hiperrealista, que enfileira banheiro, quarto com cama hospitalar, sala e cozinha. Os acessórios funcionam e são acionados em algum momento, como o rádio ou a cafeteira elétrica. Alguns dos objetos foram doados por Johanna, como o relógio de pêndulo. O dispositivo da dramaturgia do cotidiano deixa transbordar o processo de criação. No início o elenco está sentado em um dos lados do palco. O espetáculo entrelaça as histórias supostamente verdadeiras de
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quatro atores amadores e profissionais, tendo como epicentro a morte. Arne de Tremerie, Anne Deyglat, Princesa Isatu Hassan Bangura e Staf Smans expõem suas questões. A Princesa Isatu faz a conexão com Johanna, elucidando seus desejos e confidências. Do lado do jardim, a violoncelista Clémence Clarysse toca ao vivo as melodias que Johanna B. escolheu. O cinegrafista Moritz Von Dungern manipula sua câmera do lado do pátio, para projetar imagens da cena, que são alternadas com as do vídeo de Johanna. Os depoimentos são entrecortados. Cada um conta a sua versão das experiências. Arne de Tremerie lembra do seu primeiro papel aos 8 anos, como Pequeno Príncipe. Ele diz que a mãe sofre de esclerose múltipla, o quanto foi impactado pela separação dos pais e como virou um exímio cuidador. O homem velho Staf Smans, primogênito de sete irmãos e irmãs, cresceu na fazenda, perdeu irmã e mãe, foi pro exército, num baile encontrou uma mulher que nem o atraia tanto, casou com ela, celebraram 50 anos de casamento. Ele se tornou ator aos 40 anos, e não sabe como descrever a morte da filha aos 33 anos. Anne Deyglat, a mulher de meia idade que cuida do velho, viveu um amor recíproco por um jovem de 24, com quem usufruiu da felicidade por 21 anos na Itália. Até que o rapaz avisa que está apaixonado por outra. O mundo desabou. Ela confessa gostar de estar perto dos
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animais e da natureza. Passou a acompanhar a vida noturna dos lobos por um site na internet. Em algum momento, ela traduz sua tristeza quando grita/uiva. Princesa Isatu Hassan Bangura, que faz o papel de enfermeira, é de Serra Leoa, viveu no Senegal com seu pai, relata as desavenças familiares, as desconfianças da mãe, as ameaças do pai e a saudade de seu país, de cheiros e sabores. O velho que adormece na frente da televisão e precisa da ajuda do jovem para um banho sentado, segue o mesmo percurso de Johanna. Ele tem câncer. O grupo toma champanhe antes da aplicação da injeção. No vídeo de arquivo, Johanna se despede dos seus. O close-up expõe seu rosto luminoso e sereno. “Pode-se estar triste… mas nada de drama”, comenta. Ela diz que está pronta, que tem sono para recuperar, que não há nada de errado, que ela sempre quis sair sorrindo. O elenco avisa que o material é autêntico. Depois da picada Johanna para de respirar. No palco, a morte é fictícia. O teatro some, com o cenário do apartamento suspenso e o jogo de luz e fumaça criando a ilusão de estrelas ou buracos cósmicos, com apenas vestígios do que existiu. Enquanto o velho passa a dançar em seus passos românticos. A musicista Clemência, acompanha o canto do jovem em um trecho de Lamento de Didon, de Purcell, uma peça apreciada por Johanna.
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Não vejo beleza reconfortante em mostrar os últimos suspiros de uma mulher que escolheu a eutanásia. Mostrar esse ato de forma tão explicita é de uma radicalidade controversa. Mas Grief and beauty reafirma a mortalidade contra essa ilusão de ser imortal provocada pela pressa de viver. Johanna corajosamente fez as pazes com sua sepultura. Mesmo com a autorização e desejo de partilha da homenageada da peça eu me pergunto se Milo Rau fez a melhor opção ao compartilhar esse momento tão singular. O cinema expõe gravada a agonia da morte. Mas o teatro? Que ocultou mortes para narrá-las? Ainda fico sob o impacto desse acontecimento! Assistir ao último suspiro de Johanna, depois da injeção, encarado de forma tão simples, como coisa banal, foi difícil. Familie Familie é inspirada num fato aparentemente inexplicável. Em 2007 em Coulogne, uma pequena cidade francesa ao norte perto de Calais, quatro pessoas da mesma família foram encontradas enforcadas na varanda de casa. Os Demeester (pai, mãe, filho e filha) deixaram apenas uma mensagem lacônica “On a trop déconné” (“Ficamos muito fora de controle”, mais traduzida como “Nós erramos muito, desculpe…”). O caso foi encerrado como suicídio coletivo, sem motivo conhecido. Para representar esse episódio, Milo Rau reuniu no palco
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uma família da vida “real”: os artistas holandeses An Miller e Filip Peeters, e suas duas filhas adolescentes Leonce Peeters e Louisa Peeters, além dos dois cães. O cenário de Familie enquadra mais ao fundo do palco uma casa com paredes de vidro, que expõem todos os cômodos (alusão que o núcleo não tem nada a esconder?). À frente, uma mesa, um caderno, uma luminária, duas cadeiras. Uma câmera lateral. Apenas a filha mais velha ocupa esse espaço-dispositivo da entrevista. Ela articula a história. No alto, uma grande tela. Os Peeters-Millers, o clã substituto dos Demeesters, recriam os últimos momentos dos suicidas. Milo Rau já disse que não há ficção, que os atores contam coisas de suas vidas. Há uma sequência em que cada um anuncia o que prefere, “eu amo…” isso e aquilo e tal. Não há nada de extraordinário nessa jornada. Assim, o grupo representa momentos prosaicos, como a preparação do jantar ao vivo pelo marido/pai com cheiro de comida inundando o ambiente, o banho da mulher e a colagem das fotos dos momentos em comum no banheiro, o telefonema da mãe à matriarca, a refeição em conjunto, as confidências íntimas, o estudo de inglês das meninas com os cães ao colo. Coisas ocorrem simultaneamente e algumas cenas são transmitidas em detalhes pelo telão. Antes do gesto fatal, o conjunto de ações é
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detalhadamente banal e monótono, enquanto o ato final é engendrado, exposto em paralelo com o trabalho investigativo realizado em torno dos Demeesters e os vídeos da viagem até a casa de Coulogne, imagens à beira-mar, escultura de Rodin. De vez em quando, os faróis dos carros que passam avisam de outras existências ao longe. É complexa a tecedura que agrega os diferentes elementos: o que foi apurado dos fatos originários e os comentários feitos pelo grupo sobre isso, a criação/ ficção dessa última noite na preparação dessa macabra cerimônia. A representação utiliza uma espécie de reportagem (os atores foram visitar a casa dos franceses para fazer um levantamento para o espetáculo), drama teatral (a encenação das últimas horas dos suicidas) e a narrativa da adolescente mais velha filmada ao vivo, em closes, exibindo uma beleza cativante, mas fria, com o rosto minimizado de expressões e uma voz monótona e terna. Ela, que lidera o ato final, confessa que pensamentos suicidas povoaram sua cabeça, em estado de niilismo da idade. A noite encenada é preenchida de pequenas coisas, da beleza gélida, de um repertório poderoso para instalar algumas emoções, com Bach, Haendel e Leonard Cohen. Ou ainda a cena do ritual de despedida com Air de Télaïre: Tristes apprêts, da ópera Castor et Pollux, de Jean-Philippe Rameau. Enquanto a trupe de atores
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alimenta a reprodução do gesto dos Demeester, a ação primeira se recobre de enigma. Ao recriar / inventar a noite final, a cena se cerca de esvaziamentos de sentidos da vida. A vida espantada com sua própria razão em si mesma se arrasta nos intermináveis segundos em que a trupe de atores reproduz o ritual de enforcamento. Milo Rau faz o público ver até o último gesto. Na sessão que assisti, algumas pessoas ficaram paralisadas na plateia após o término da peça por alguns minutos. Uma sensação de suspensão me atingiu, seguida de uma reflexão dolorida do que é a vida e as razões de existir. Seguir a pensar na competência desse artista de conduzir / manipular os afetos de estar no mundo e propor porquês.
Grief and beauty Concepção e mise en scène: Milo Rau
Dramaturgia: Carmen Hornbostel
Assistente de direção: Katelijne Laevens
Colaboração na dramaturgia e treinador: Peter Synaeve
Elenco: Arne de Tremerie, Anne Deyglat, Staf Smans, Staf Smans e Johanna B. na tela
Câmera: Moritz Von Dungern Música ao vivo: Clé-
mence Clarysse Composição: Elia Rédiger Cenografia: Barbara Vandendriessche Iluminação: Dennis Diels
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Familie Concepção e mise en scène: Milo Rau Elenco: An Miller, Filip Peeters, Leonce Peeters, Louisa Peeters Dramaturgia: Car-
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men Hornbostel
Dungern
Cenários: Anton Lukas
Arranjos musicais: Saskia Venegas Aernouts
Figurinos: Anton Lukas, Louisa Peeters Vídeo: Moritz von
Iluminação: Dennis Diels
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Foto: Nereu Jr
Altamira 2042
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É urgente a amazonização dos mundos Crítica do espetáculo Altamira 2042 Por Ivana Moura Ouvimos a voz do rio ou de quem tem intimidade com suas bordas. Se o rio está ferido, as vozes protestam para que o mundo entenda a situação. A Floresta Amazônica está em cólera. Mas antes da explosão furiosa somos convidados a escutar suas nuances na perspectiva de vibrar com o corpo todo no tempo espiralado da instalação imersiva Altamira 2042, da artista performática e pesquisadora brasileira Gabriela Carneiro da Cunha. Nas palavras da artista, essa peça projeta uma guerra entre dois mundos: um mundo que insiste em práticas coloniais de desenvolvimento e progresso para poucos, em detrimento de todas as outras existências. A performance tensiona os efeitos da construção da hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior barragem fluvial do mundo, que desviou o curso do rio Xingu, devastou flora e fauna e abalou a vida de milhares de pessoas, forçadas a se deslocar para longe do rio. Uma paisagem sonora, de articulações humanas e não humanas, carregada do balanço das águas e das árvores, expressões dos animais, cantos de pássaros e insetos, murmúrio de ventos e da chuva, nos transporta
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para a Natureza. Essa experiência sensorial, que não é de apaziguamento, é seguida por ruídos mais duros e pesados de motosserras e outros equipamentos de construção / destruição. O maquinário de multinacionais poderosas, grandes empresários e exploradores de recursos e pessoas do município de Altamira, no Pará, são projetados em seus efeitos devastadores contra populações marginalizadas. Os depoimentos e sons ambientes engenhosamente entrelaçados criam camadas dessa dramaturgia, que valoriza o pensamento, as expressões de fala e texturas de habitantes ribeirinhos e indígenas, ambientalistas, artistas, etc, em vídeos projetados ou áudios. Os fluxos e refluxos do rio são acionados de pen drives e caixas de som que piscam suas luzes coloridas (muito utilizadas nas festas de aparelhagem da região paraense). Rio ou Rua?, pergunta a artista a algumas pessoas do público, antes do espetáculo começar. Essas cúmplices ocasionais são convocadas a lidar com caixas de som ou empunhar o cinzel em algum momento. Cobras de neon no chão observam outros movimentos. Dona Herondina, a narradora, empresta narrativas para a composição cibernética. Dona Raimunda Gomes da Silva, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu (que foi despejada com a família pela construtora da barragem), recupera com sua voz
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mitos amazônicos, como o da mulher-cobra, A artista assume o espírito do rio, o espírito das águas. Uma mulher-serpente fértil e guerreira nascida de mitos ancestrais. A peça opera uma conjunção entre a sabedoria dos povos tradicionais, o saber orgânico de que trata Nego Bispo, e a tecnologia. A peça pulsa do desejo das pessoas da região irmanadas com a floresta de que a represa deixe de existir e que o rio volte a correr. Altamira 2042 se ergueu como dispositivo que pensa e questiona os mecanismos ecogeopolíticos do real. Um trabalho que diagnostica o Antropoceno e assume, enquanto arte, um posicionamento de subverter esses tempos. Uma performance sintonizada com o apelo para uma “amazonização” do mundo. No Manifesto da Amazônia Centro do Mundo, cujo objetivo é salvar a floresta e lutar contra a extinção das vidas no planeta, lemos: Na época da emergência climática, a Amazônia é o centro do mundo. Sem manter a maior floresta tropical do planeta viva, não há como controlar o superaquecimento global. Ao transpirar, a floresta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. A floresta cria rios voadores sobre as
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nossas cabeças maiores do que o Amazonas. O suor da floresta salva o planeta todos os dias. Mas esta floresta está sendo destruída aceleradamente pelo desenvolvimento predatório e corre o risco de alcançar o ponto de não retorno em alguns anos. Gabriela Carneiro da Cunha em entrevista diz que a “amazonização dos mundos é uma poderosa máquina de guerra anticapitalista, mas uma guerra no sentido ameríndio do termo, ou seja, uma guerra que promove a vida, ao contrário da ideia ocidental de massacre, que não traz mais do que morte”. O trabalho faz parte do projeto de pesquisa artística Margens – Sobre Rios, Crocodilos e Vaga-lumes, que visibiliza desastres ecológicos e humanos. A teia de Altamira 2042 foi construída em sete anos de muitas travessias da artista para acolher os testemunhos de gente vinculada ao rio Xingu, um dos principais afluentes do Rio Amazonas, afetados pela catástrofe movida pela hidrelétrica de Belo Monte. Cena Expandida Raimunda é uma pensadora ribeirinha do Xingu, que sente a pulsação do rio, da terra, dos elementos da natureza. Ela sabe que não estamos todos no mesmo barco. E que os que mais destruíram são os menos afetados. Com a autoridade dos sábios, ela fala de transmutação, processos em constantes movimentos, possibilidades.
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A cena expandida, como as conversas após o espetáculo com a participação de operadores do saber orgânico, articula a construção de novos regimes de percepção. As apresentações em Paris, realizadas de 15 a 18 de março, no Centre Pompidou, ganharam com a presença de Raimunda uma força inestimável de testemunho que colabora com os desafios artísticos do presente frente à crise do Antropoceno. Ativismo, pensamento contracolonial, feminismo. A conjugação de arte e da vida potencializa o papel da arte como lugar privilegiado para tencionar posições nos embates políticos.
Altamira 2042 Conceito e direção: Gabriela Carneiro da Cunha Diálogos artísticos: Cibele Forjaz, Dinah De Oliveira e Sonia Sobral Assistentes de direção João Marcelo Iglesias, Clara Mor e
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Jimmy Wong
Luzes: Cibele Forjaz
Edição de vídeo: João Marcelo Iglesias, Rafael Frazão e Gabriela Carneiro da Cunha
Images: Eryk Rocha, João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Cibele Forjaz
Som: Felipe Storino e Bruno Carneiro Figurino: Carla Ferraz
Foto: Nereu Jr.
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Foto: Victor Pollack / Divulgação
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Tom na fazenda
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Brutalidade como espelho do real Crítica do espetáculo Tom na Fazenda Por Ivana Moura Há 15 dias, mais ou menos, Tom “passeia” na minha cabeça. Vou à Biblioteca da Sorbonne Nouvelle (BSN) e ele está lá. Ao supermercado, e ele dá pitaco nas compras. Vou à Sukyo Mahikari (centro de treinamento e elevação espiritual) e ele me espera na porta (não quis subir para receber o okyome [energia positiva]). No Centre Pompidou, ele aplaudiu ao meu lado à performance de Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Ficou cabreiro na sequência com o debate e inquieto quando Maïra Aggi (artista-pesquisadora brasileira) deu “um chega para lá” no homem cis branco (sempre no comando) que não estava vertendo muito bem as palavras do português para o francês da artista, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu Raimunda Gomes da Silva (uma das inspirações de Altamira 2042), e tomou para si a tradução. Vimos juntos, Tom, a nota de cancelamento da sessão de La Mort de Danton afixada na porta da Comédie Française, num dia de greve. Da janela do quarto, viajamos com o vai e vem do metrô da linha 6. Falei sobre você, Tom, com o Mateus Furlanetto, brasileiro que mora na Alemanha e é tão apaixonado por teatro quanto eu. Ele veio de Berlim só para te ver de novo e confirmar o seu apreço.
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Paris é linda, mas Macron não está facilitando! Tom concorda comigo, pois encontramos bibliotecas fechadas, muito lixo nas ruas e transportes públicos perturbados em razão dos movimentos sociais contra a reforma da aposentadoria, que o governo insiste e os trabalhadores não aceitam. O mês de março se foi. Admiramos, ou nem tanto, les giboulées de mars (chuva forte repentina, geralmente curta, muitas vezes acompanhada de granizo). Mas Tom, o que eu posso dizer ainda sobre a peça? Nesses seis anos que o espetáculo Tom na Fazenda segue pulsando já colheu as melhores críticas no Brasil, no Canadá e agora em Paris. Já recebeu os mais efusivos aplausos. A temporada de Tom na Fazenda no Théâtre Paris-Vilette ficou lotada por três semanas e prorrogada em mais três apresentações até 5 de abril. É a primeira produção latino-americana que ocupa esse palco. A peça foi ovacionada todas as noites, uma atitude pouco comum do público francês. Até agora, a produção não conseguiu patrocínio. Mas também não havia como. A peça estreou em 2017, ano seguinte ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; e os desdobramentos foram terríveis. Além da censura às artes (praticamente uma perseguição) cresceram ou se instalaram movimentos xenofóbicos, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, repressão das expressões “pagãs”,
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perseguições religiosas, homofobia. Como pontuou o encenador Rodrigo Portella (em texto do livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó, publicado também na revista eletrônica Questão de Crítica – QdC ) , o contexto expõe “uma expressiva onda conservadora a se espalhar pelo mundo como reação às liberdades conquistadas na virada do século”. Ativo há seis anos, o espetáculo se apresenta como uma célula acesa de resistência diante do desmonte que a cultura no Brasil viveu nos últimos quatro anos, na gestão bolsonarista. Ousada, a na produção Investiu na internacionalização e, por conta própria, participou do off do Festival de Avignon do ano passado. Terminou a sessão com convites para temporadas em alguns teatros europeus. Qual o risco de se assumir publicamente homossexual, bissexual, transsexual, LGBTQIA+ no Brasil? Na França? No Irã? Afeganistão? Catar? Somália? Nigéria? Ou numa fazenda distante? Ou seja, qual o perigo de ser o que se é? Em alguns lugares do mundo é crime, punido com pena de morte por decapitação, forca ou apedrejamento. Vamos mirar no Brasil, um país em que não existem penas de morte em leis escritas, mas que é apontado como um território violento e com maior número de assassinatos de pessoas dissidentes da norma cishétero-normativa no planeta. Os dados do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQI+ (316, no dossiê de
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2022) são alarmantes. Em Tom na Fazenda, a homofobia é exercida de forma truculenta dentro da casa. A complexidade é traçada a partir da relação intima, quase familiar. Tom, do título, planejava prantear a memória do amante durante os ritos fúnebres na casa da família do falecido. Ao chegar, de imediato constata que é um desconhecido para a sogra Aghata (“ele nunca me falou de ti”) e uma ameaça para o que seu cunhado Francis considera honra. Para evitar que sua mãe e a longínqua vizinhança do vilarejo saibam que o irmão mais novo da família era gay e mantinha um relacionamento amoroso com o forasteiro de roupas elegantes e hábitos finos, o rude Francis chantageia, ameaça e agride Tom, numa abordagem que faz uma mistura estranha de violência e sensualidade. Numa pisada de guardião da heteronormatividade da família, Francis cometera no passado um crime contra um garoto de 16 anos que se dizia apaixonado por seu irmão gay. Ele é um único homem, mas não pode ser percebido como uma voz isolada. Ao tratar o tema da homofobia, a encenação fornece algumas chaves ao espectador para pensar sobre uma série de desrespeitos e violações contra o outro. A história do espetáculo Tom na Fazenda se passa num ambiente deslocado do seu personagem-título. O dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard em
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entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo à época da estreia brasileira expõe suas razões para situar sua peça no meio rural. “Eu queria uma região em que as coisas acontecessem mais lentamente. Um lugar orgânico… Um espaço que portasse uma tensão, rodeado de julgamento. Essa fazenda desponta como um território onde todos os abusos e liberdades são possíveis”, acentuou Bouchard. É um pressuposto da peça que os ambientes rurais são mais atrasados que os centros urbanos e as leis têm laços mais frágeis na punição de crimes. Essas informações pontilham o texto e um dos personagens avisa que seria bem fácil se livrar de um corpo junto ao “cemitério” de vacas, bois e outros animais. O presente é insatisfatório, já atestava Ernst Bloch, filósofo alemão (1885 – 1977). “Nem todos estão presentes no mesmo tempo presente”. A montagem situa essa recusa triste do tempo presente no chão brasileiro desses últimos quatro anos de Bolsonaro (o pior presidente que esse país já teve), em que se escorrega, em que crimes e desvios de conduta são encobertos por lama. A encenação realça um tempo ralentado, uma sensação de isolamento geográfico, com costumes e ideias conservadoras para marcar o local. Traduzido, produzido e protagonizado pelo ator Armando Babaioff, que atua ao lado de Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary, com direção de Rodrigo Portella, a versão brasileira abre canais para leituras do Brasil no tempo histórico em que a peça foi gestada.
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De um jovem homem foi roubado o direito à manifestação pública do luto por seu companheiro morto. Esse impedimento baseado na chantagem, ameaça e violência gera uma transformação no comportamento, perspectiva e visão de mundo do protagonista. Tom chega à fazenda vestindo um modelito de marca e termina a peça com roupas em farrapos e enlameadas. Com uma dramaturgia engenhosa e ágil, a direção usa de dispositivos para valorizar o teatro, o jogo, o desenho coreográfico, as ações físicas, as não-respostas, as possibilidades de o espectador criar. Tom fala com o namorado morto (por WhatsApp), utiliza o discurso interior, ou conversa com os outros personagens e muitas vezes isso fica propositalmente embaralhado. Ou ainda executa ações que os outros personagens não enxergam – o gesto e o que está por trás do gesto. Armando Babaioff imprime transformações fortes à personagem; Tom vai se revelando um ser mais frágil, por trás do bem-sucedido publicitário com tiques consumistas. Agatha é tocante em sua dor, na ignorância ou fingimentos das coisas não-ditas. Agarrada em suas crenças, ela cita passagens da Bíblia. Quando se vê saturada com a cultura de mentiras, ela reconhece que o que lhe restou, entre os três homens da vida, foi o “pior”, o “bandido”.
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A falsa namorada do irmão morto leva um frescor ao ambiente, mas desestabiliza a relação de “quase irmandade” entre os dois homens. A cenografia assinada por Aurora dos Campos utiliza poucos objetos. Uma lona preta coberta por barro – que, de quebra, produz sonoridades com a movimentação dos atores – sacos de areia, alguns baldes pretos. Na iluminação, Tomás Ribas investe numa lâmpada solitária pendurada no centro do palco, que reforça o clima de aridez. A trilha de Marcelo H. atiça tensões com suas paisagens sonoras. Para expor os atos de barbárie, a encenação utiliza de uma ferocidade cênica, que funciona em níveis energéticos e físicos. As interpretações dos dois atores – Babaioff e Rodrigues – são viscerais. Um sadomasoquismo que desliza entre atração e repulsa. Um jogo ambíguo de masculinidade, em que a tensão sexual paira no ar e cola nos corpos. Francis expõe um comportamento próximo do bestial, mas a direção ressalta a humanidade em nuances e gradações. Durante os dias que passa na fazenda e nas incontáveis lutas corporais com Francis, Tom coleciona hematomas e tem os pulsos machucados. Mas os dois homens também trocam confidências, trabalham na companhia um do outro, dançam juntos uma cumbia no curral e realizam o parto de um bezerro. Para ser aceito, Tom passa por um gradual apagamento
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de si, incorporando valores que ele repudiava. Pode lembrar as mentes fragilizadas pelo deflúvio subjetivo desses tempos que correm. “Atenção… É preciso estar atento e forte!” Por que Tom não foi embora após o funeral?; Por que ele “aceita” tanta violência?; e muitas outras perguntas vão para a plateia. Com o desfecho inesperado e a mutação do protagonista – que chega ao final com os clichês do rude – questiono se não há também o risco de induzir os efeitos de captura das subjetividades que se deseja combater? Ainda bem que não existe uma explicação única, que responda a tudo. Tom, boa sorte na sua caminhada.
Tom na Fazenda (Tom à la ferme) Texto: Michel Marc Bouchard Tradução: Armando Babaioff mise en scène: Rodrigo Portella Elenco: Armando Babaioff, Soraya
Abril / 2023
Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary Cenografia: Aurora dos Campos Iluminação: Tomás Ribas Figurino costumes:
Bruno Perlatto Música: Marcello H. Coreografia: Toni Rodrigues Fotos: Victor Novaes ou Roberto Peixoto
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Tudo, menos uma crítica
Tudo, menos uma crítica. Além do nome da plataforma, este é o desafio dela, seu ponto de início e seu ponto final: como escrever textos reflexivos que sejam tudo, menos uma crítica? Nesse sentido, a pesquisa de Fernando Pivotto, desde 2017 tem sido a escrita reflexiva a partir de espetáculos teatrais que se afaste do modelo avaliativo, da chancela e da orientação de consumo, e se aproxime de outras possibilidades poéticas e sensíveis. A crítica pode ser um ponto de encontro? A crítica pode ser uma conversa? A crítica pode ser um espaço de partilha? A partir destas perguntas, o TMUC tem se mantido ativo e interessado nas trocas possíveis e na construção coletiva entre artistas, obra, crítica, leitores e quem mais se interessar por teatro.
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Foto: Paula Halker
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BLAIHAIT!
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BLAIHAIT! Por Fernando Pivotto O novo espetáculo do @coletivokarenin, que segue em cartaz no @galpaodofolias , reflete sobre a invenção de um idioma - seus usos, seus intuitos, suas incapacidades, e a mudança aguda e irremediável que esta nova tecnologia causa na vida daqueles que têm contato com ela. Pode o idioma ampliar/alterar/influenciar a compreensão sobre o meio? Sobre o outro? Sobre si? Quais dinâmicas de poder o uso da linguagem acarreta? Como lidar com as coisas que não têm nome? E como lidar quando elas passam a ter um? Até onde pode levar esse jogo de compreensão/ construção/captura de sentidos? Encenado num idioma inventado, Blaihait coloca a plateia na mesma situação de seus protagonistas: da angústia pela falta de um idioma comum perante tudo que os cerca à escalada de nomear tudo, absolutamente tudo, numa tentativa de... bom, cabem diversas palavras para isso.
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Foto: Felipe Lwe
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Tremores
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TREMORES Por Fernando Pivotto Em Tremores, que esteve em cartaz no @sescavpaulista e depois passou pelos @sescsantos e @sescsorocaba , @leticiasekito dança sobre a interseção entre orgânico e inorgânico (representada fundamentalmente nas melancias, mas também na organização de todos os elementos do espaço) para refletir sobre alguns dos temas recorrentes em sua carreira: identidades culturais e pertencimento, o estigma da mulher asiática e o erotismo na dança. Me parece, também, que há uma reflexão profunda sobre a vida, seus estados, sua voracidade, a violência e o deslumbre que é viver - e como estar vivo significa mover-se, dançar e tremer, não negando a violência e o desbunde da vida, mas existindo como parte deste movimento do mundo.
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Brenda Lee e o Palácio das Princesas
Foto: Divulgação
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Projeto Arquipélago | críticas Cena Aberta
Farofa Crítica!
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OFF Guia de Teatro Ruína Acesa
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Tudo, Menos Uma Crítica
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