As metamorfoses de Groby Lington Saki (Hector Hugh Munro – 1870-1916)
Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução
As metamorfoses de Groby Lington Saki (Hector Hugh Munro – 1870-1916)
Saki (Hector Hugh Munro – 1870-1916) Saki (pseudônimo de Hector Hugh Munro) nasceu em Akyab, Mianmar, filho de um oficial da polícia; foi criado em Devon por duas tias solteiras. Recebeu educação em Exmouth e em Bedford. Em 1896 estabeleceuse em Londres, onde passou a contribuir com sátiras políticas para The Westminster Gazette. Entre 1902 e 1908 atuou como correspondente de The Morning Post na Polônia, na Rússia e em Paris. Autor de dois romances, The Unbearable Bassington (1912) e When William Came (1913), e uma vasta coleção de contos – Reginald (1904), Reginald in Russia and Other Sketches (1910), The Chronicles of Clovis (1912), Beasts and Superbeasts (1914) –, Saki engendra enredos extravagantes, caprichosos, divertidos, que, no entanto, também revelam um lado sombrio, com lembranças de sua infância infeliz.
As metamorfoses de Groby Lington “Dize-me com quem andas e te direi quem és.” Na sala de estar da casa de sua cunhada, Groby Lington remexia-se irrequieto, com o passar dos minutos; seu ar reservado traía a inquietude característica de sua meia-idade já avançada. Ele ainda teria de esperar cerca de quinze minutos até a hora de se despedir e atravessar o parque do vilarejo para chegar à estação, na companhia de uma seleta escolta de sobrinhos e sobrinhas. Era um homem afável, de boa índole, que via tudo com bons olhos e, em princípio, encantavam-lhe essas visitas periódicas à esposa e aos filhos de seu falecido irmão William. Na prática, porém, jamais trocaria o conforto e a privacidade de sua própria casa e jardim, assim como a companhia de seus livros e de seu papagaio, por essas incursões fatigantes e sem sentido em um círculo familiar com o qual tinha pouco em comum. O que o levava a fazer de trem essas viagens curtas e ocasionais para visitar seus parentes não era tanto o peso da própria consciência quanto uma obediente concessão à consciência vicária, mais persistente, de seu outro irmão, o Coronel John, que costumava acusá-lo de negligenciar a família do pobre William. Groby geralmente esquecia, ou ignorava a existência de sua parentela vizinha, até a iminente visita do Coronel, quando resolvia a questão com uma precipitada peregrinação pelas poucas milhas de chão que os separavam, para renovar suas relações com os jovens e assumir um amável, ainda que um tanto forçado, interesse pelo bem-estar de sua cunhada. Desta vez, deixara uma margem tão estreita entre sua visita expiatória e a chegada do Coronel John, que por muito pouco este não o encontra em casa. De qualquer modo, dessa enrascada Groby já se livrara, e seis ou sete meses iriam transcorrer sem percalços antes que ele tivesse de sacrificar mais uma vez seu conforto e suas idiossincra-
sias no altar da sociabilidade familiar. Saltitando em volta da sala, pegando ora um ora outro objeto e examinando cada um de modo breve e superficial, sentia-se decididamente animado. Não tardou muito, sua alegre indiferença mudou nitidamente para uma conturbada inquietação. Em um álbum de recortes, desenhos e caricaturas pertencente a um dos sobrinhos, deparou com um desenho desabonador, mas criativo, em que ele próprio e seu papagaio encaravam um ao outro de modo solene, em uma postura de ridícula calma e seriedade, revelando entre ambos uma semelhança que o artista fizera o máximo para acentuar. Passada a primeira descarga de contrariedade, Groby riu complacentemente e admitiu para si mesmo a sagacidade do desenho. Em seguida, a sensação de ressentimento novamente apoderou-se dele, não contra o caricaturista que havia incorporado a ideia ao papel, mas contra a possível verdade que ela representava. Será mesmo que o tempo faz que as pessoas fiquem parecidas com seus animais de estimação e que ele se tornara, inconscientemente, mais e mais parecido com o pássaro comicamente solene que era seu companheiro constante? Enquanto caminhava até a estação, acompanhado pela escolta dos sobrinhos e sobrinhas tagarelas, Groby guardava um silêncio incomum, e durante a curta viagem de trem, ele sentia-se cada vez mais presa de uma certeza introspectiva de que, gradualmente, havia se acomodado ao tipo de existência de um papagaio. Afinal de contas, em sua rotina diária, não vivia ele vagueando, sisudo, bicando e se empoleirando em seu jardim, entre as árvores frutíferas, em sua cadeira de vime no gramado, ou junto à lareira de sua biblioteca? E a que se resumiam todas as suas conversas com os vizinhos que encontrava casualmente? “Lindo dia de primavera, não?” “Parece que vai chover.” “Fiquei feliz de encontrá-lo de novo; você precisa se cuidar.” “Como crescem esses jovens, não é mesmo?” Trechos de comentários estúpidos, inevitáveis e superficiais, ocorriam-lhe à mente, comentários que, sem dúvida,
não eram fruto de uma troca entre inteligências humanas, mas de um mero papaguear vazio. Da mesma forma, poderíamos cumprimentar nossos conhecidos dizendo: “Linda Polly! Ronrom! miauuuu!”. A imagem de si mesmo como um imbecil pássaro emplumado, inicialmente sugerida no desenho do sobrinho e que agora sua própria imaginação acusadora enchia de detalhes desairosos, fez Groby espumar de raiva. – Vou me desfazer deste maldito pássaro – exclamou, ressentido, mesmo sabendo que nunca faria isso. Após todos esses anos em que mantivera o papagaio e se divertira tanto, parecia um grande absurdo tentar de repente achar-lhe um novo lar. – Meu irmão já chegou? – perguntou ao jovem do estábulo, que viera ao seu encontro com o coche. – Sim, senhor, chegou no das duas e quinze. Seu papagaio morreu. – O rapaz fez este último anúncio saboreando o prazer típico de sua classe ao comunicar uma catástrofe. – Meu papagaio morreu? – disse Groby. – O que causou sua morte? – O miquin’ – respondeu o rapaz apressadamente. – O miquin’? – questionou Groby. – O que vem a ser isso? – O miquin’, aquela coisa que o Coronel trouxe com ele – foi a assustadora resposta. – Você quer dizer que meu irmão está doente? – inquiriu Groby. – É algo contagioso? – O Coronel está bem como sempre – respondeu o rapaz; e por não esperar nenhuma explicação adicional, Groby armou-se de ilusória paciência até chegar em casa. Seu irmão o aguardava à porta do hall. – Já soube o que aconteceu com o papagaio? – perguntou ele de chofre. – Minha nossa! Sinto imensamente! Quando ele viu o macaco, uma surpresa que eu trouxe para você, ele papagueou, “Dane-se o senhor, patrão!”. Foi
então que o bendito macaco saltou sobre ele, pegou-o pelo pescoço e sacudiu-o como um chocalho. Quando finalmente consegui arrancá-lo das garras daquele patife, ele já estava mortinho da silva. Esse bichinho sempre foi tão amigável, o macaco, quero dizer, que jamais o imaginei capaz de tamanha fúria. Não tenho palavras para lhe dizer o quanto lastimo, e agora, claro, você não vai nem pensar em ver o macaco. – De modo nenhum – respondeu Groby, com toda sinceridade. Algumas horas antes, e o trágico fim do papagaio lhe teria soado como uma calamidade; agora, vinha quase como uma grande gentileza do Destino. – O pássaro já estava ficando velho, você bem sabe – prosseguiu ele, justificando a óbvia ausência de um genuíno pesar pela perda de seu bichinho de estimação. – Na verdade, eu já estava começando a me perguntar se não seria hipocrisia deixá-lo viver até sucumbir à velhice. Que macaquinho charmoso! – acrescentou, ao ser apresentado ao agressor delinquente. O recém-chegado, um pequeno mico de cauda longa, originário do hemisfério Norte, tinha um modo gentil, meio tímido, meio confiável, que cativou de imediato a confiança de Groby; um estudioso da índole dos símios poderia ter percebido na instável luz vermelha dos olhos do macaco alguma indicação do temperamento velado, posto à prova pelo papagaio com tamanha imprudência e consequências tão funestas para si mesmo. Os criados, que haviam passado a considerar o finado pássaro como membro regular da casa, um membro que, na verdade, dava muito pouco trabalho, escandalizaram-se ao ver seu sanguinário agressor instalado no lugar dele, como um honrado animal de estimação. – Esse nojento miquin’ pagão não fala coisa com coisa, nem nada de divertido, como falava o coitado do Polly – foi o veredito desfavorável do pessoal da cozinha. Certa manhã de domingo, cerca de doze ou catorze meses após a visita
do Coronel John e da tragédia do papagaio, a senhorita Wepley estava sentada recatadamente em seu banco na igreja paroquial, logo à frente daquele ocupado por Groby Lington. Em termos relativos, ela era uma recém-chegada à vizinhança e, pessoalmente, não conhecia o companheiro paroquiano sentado atrás dela. Mas, ao longo dos últimos dois anos, o culto dominical matutino regular acabara aproximando-os de um campo de consciência comum. Mesmo que não tivesse dado atenção especial ao assunto, era provável que ela fosse capaz de reproduzir fielmente o modo como ele pronunciava certas palavras que ocorriam no responsório. Quanto a ele, estava bem ciente do fato trivial de que uma caixinha de pastilhas para garganta sempre ficava no assento ao lado dela, junto ao seu livro de preces e seu lenço. A senhorita Wepley raramente recorria às pastilhas para garganta, mas gostava de ter o remédio ao seu alcance, caso fosse acometida por um acesso de tosse. Nesse domingo, em particular, as pastilhas provocaram um desvio incomum no curso regular de suas devoções, muito mais perturbador para ela pessoalmente do que teria sido um prolongado acesso de tosse. Ao se levantar para participar do canto do primeiro hino, ela teve a impressão de ter visto a mão de seu vizinho, que se sentava sozinho no banco atrás do dela, fechar-se furtivamente em torno da caixinha sobre o assento; virando-se de supetão, ela descobriu que a caixinha realmente desaparecera, mas a qualquer dos presentes que o visse, o senhor Lington dava toda a aparência de serena concentração em seu hinário. Por mais enfurecido que fosse o olhar da espoliada dama, ela não conseguiu despertar-lhe a mais leve sombra de admissão de culpa. – O pior ainda estava por vir – como ela observou mais tarde a uma escandalizada audiência de amigos e conhecidos. – Eu mal tinha me ajoelhado para rezar quando uma pastilha, uma de minhas pastilhas, veio zunindo parar no banco, bem debaixo do meu nariz. Voltei-me e o encarei, mas o senhor Lington tinha os olhos cerrados, e seus lábios moviam-se como que entre-
gues à oração. Bem no momento em que recomecei minhas preces, lá veio outra pastilha voando, e depois outra. Por algum tempo tentei ignorar o que estava acontecendo, e então, voltei-me de repente, justamente quando aquele homem horrível já se preparava para atirar-me outra. No mesmo instante, ele fingiu estar virando as páginas de seu livro, mas desta vez não me deixei enganar. Ele percebeu que havia sido desmascarado, e as pastilhas pararam de vir. É claro que, a essa altura, eu já tinha mudado de banco. – Um cavalheiro jamais se comportaria de modo tão infame – disse um dos ouvintes – e, no entanto, o senhor Lington costumava ser tão respeitado por todos. Ele deu a impressão de se comportar como um colegial sem educação. – Ele agiu como um macaco – disse a senhorita Wepley. Seu veredito desfavorável ecoou em outros rincões quase ao mesmo tempo. Aos olhos de seus criados, Groby Lington nunca fora um herói, mas compartilhava da aprovação reconhecida ao seu defunto papagaio, como uma criatura alegre e bem disposta, que não dava nenhum trabalho em especial. Há algum tempo, entretanto, esse traço dificilmente seria endossado pelos membros de seu estabelecimento doméstico. O lerdo cavalariço, o primeiro a anunciar o trágico fim do emplumado bicho, foi também um dos primeiros a dar voz aos murmúrios de desaprovação, cada vez mais descontrolados e generalizados nos aposentos da criadagem, e ele tinha razões bastante substanciais para insatisfação. Num dia muito quente de verão, o jovem conseguira permissão para banhar-se num lago de dimensões modestas que havia no pomar, para onde, certa tarde, Groby desviara seus passos, atraído por ruidosas imprecações de raiva, misturadas aos guinchos estridentes do falar de macacos. Encontrou seu pequenino e gorducho serviçal trajando apenas um colete e um par de meias, vociferando em vão contra o macaco que, sentado no galho inferior de uma macieira, futucava abstraído os demais trajes do rapaz, os quais o bicho removera para fora do seu alcance.
– O miquin’ veio aqui e levou minhas roupas – choramingou o jovem, com o sentimentalismo peculiar à sua classe, para explicar o óbvio. O fato de encontrar-se com os trajes incompletos já era bastante constrangedor, mas ele saudou a chegada de Groby com alívio, na expectativa de apoio moral e material aos seus esforços para recuperar as roupas surrupiadas. O macaco já havia interrompido sua provocação desafiadora e, sem dúvida, com um pouco de gentil persuasão de seu patrão, restituiria o produto da pilhagem. – Se eu o erguer – sugeriu Groby – você até conseguirá alcançar as roupas. O rapaz concordou, e Groby o segurou firmemente pelo colete, que era praticamente tudo a que podia se agarrar, e o levantou bem acima do chão. A seguir, com um hábil impulso, jogou-o sobre uma moita de urtigão, que o recebeu de bom grado em seus braços. A vítima não fora criada em escola que lhe ensinasse a conter as emoções – se uma raposa tivesse tentado morder seus órgãos vitais, ele teria voado dali para se queixar ao comitê de caça mais próximo, em vez de fingir uma atitude de estoica indiferença. Nessa ocasião, o volume do som que emitiu sob o estímulo da dor e da raiva e do espanto foi sustentado a plenos pulmões, mas, acima de seus berros, ele podia ouvir claramente o matraquear triunfante de seu inimigo na árvore e a estridente gargalhada de Groby. Quando o jovem terminou a improvisada dança de são vito que o teria tornado famoso no palco do Coliseu, e que Groby Lington realmente apreciou e aplaudiu de pronto, enquanto se retirava, ele descobriu que o macaco também havia saído discretamente de cena, deixando as roupas espalhadas na relva, ao pé da árvore. – São dois miquin’, é isso que eles são – resmungou com raiva; e se seu julgamento foi severo, pelo menos foi expresso diante de considerável provocação. Passadas uma ou duas semanas, a arrumadeira pediu demissão por ter sido aterrorizada quase às lágrimas, por um repentino ataque de mau humor
do patrão devido a umas costeletas mal passadas. – Ele arreganhou os dente pra mim, arreganhou mesmo – revelou a uma solidária audiência na cozinha. – Eu queria vê ele falar assim pra mim, bem que eu queria – disse a cozinheira em tom desafiador, mas daquele momento em diante seu desempenho na cozinha mostrou uma sensível melhora. Raramente Groby Lington contrariava seus hábitos costumeiros a ponto de participar de uma longa celebração que incluísse hospedagem por vários dias; tampouco se sentiu ressentido quando a senhora Glenduff o acomodou na velha ala georgiana da casa, que cheirava a mofo – ademais, no quarto vizinho ao do eminente pianista, Leonard Spabbink. – Ele toca Liszt divinamente! – fora o testemunho entusiástico da anfitriã. – Ele pode tocá-lo como um capiau que não dou a mínima – comentou Groby consigo mesmo. – Mas posso apostar que ele ronca. Ele tem bem o tipo e o físico de quem ronca. Se eu o escutar roncando através destas ridículas paredes finas de lambril, vai ter encrenca. Ele roncou – e teve encrenca. Groby resistiu por cerca de dois minutos e quinze segundos; depois, seguiu pelo corredor até os aposentos de Spabbink. Diante do porte vigoroso de Groby estava a figura de um músico flácido e prolixo, sentado em confusa semiconsciência, como um sorvete que fora ensinado a implorar. Groby cutucou-o até que ele acordasse de uma vez, e, então, de forma muito clara, o rabugento e presunçoso pianista perdeu a paciência e estapeou a mão de seu tirânico visitante. No momento seguinte, Spabbink, efetivamente amordaçado com uma fronha apertada em volta da cabeça, já estava quase sufocando, enquanto suas pernas gorduchas dentro do largo pijama eram arrastadas para fora da cama e recebiam palmadas, beliscões, chutes e encontrões, num vale-tudo que avançou pelo chão, em direção à banheira baixa e rasa, em cuja profundidade, extremamente inadequada, Groby teimava em afogá-lo. Por
alguns instantes, o quarto permaneceu na penumbra: a vela de Groby tombara no estágio inicial da refrega e seu lume mal chegava aonde respingos d’água, socos, gritos abafados e expressões agitadas e incoerentes, além do matraquear semelhante ao de um macaco enraivecido, revelavam a batalha que se travara às margens da banheira. Poucos instantes depois, o combate unilateral era vivamente iluminado pelo clarão das cortinas em chamas e dos lambris sendo rapidamente consumidos pelo fogo. Quando os demais convidados, despertados repentinamente, dispararam para o jardim, a ala georgiana já ia bem acesa e vomitava grandes rolos de fumaça; mas algum tempo se passou até que Groby surgisse carregando nos braços o pianista quase afogado. Ele acabara de se dar conta de que o lago ao fim do gramado se prestava bem mais para o afogamento. O ar fresco da noite havia amainado sua ira, e quando se viu candidamente aclamado como o heroico salvador do pobre Leonard Spabbink, e ruidosamente aplaudido por sua presença de espírito ao enrolar um pano úmido em volta da cabeça do pianista para evitar que ele fosse asfixiado pela fumaça, Groby aceitou a situação e fez, a seguir, um relato pitoresco de como havia encontrado o músico adormecido, com uma vela tombada a seu lado e o incêndio já em estágio avançado. Spabbink ofereceu a sua versão dos fatos alguns dias mais tarde, depois de parcialmente recuperado do choque das agressões e da tentativa de afogamento à meia-noite. Mas os gentis sorrisos de piedade e os comentários evasivos com que sua história foi acolhida alertaram-no de que a receptividade do público não estava ao seu dispor. Recusou-se, entretanto, a comparecer à cerimônia de entrega da medalha de bravura da Real Sociedade Humana. Foi por volta dessa época que o macaquinho de estimação de Groby caiu vítima da doença que ataca a tantos de sua espécie, quando levados a viver sob a influência do clima do norte. Seu patrão pareceu profundamente consternado pela perda e jamais recobrou por completo o estado de ânimo
que recentemente atingira. Acompanhado da tartaruga, presente do Coronel John em sua última visita, ele perambula pelo gramado e pela horta, sem qualquer vestígio da vivacidade de outrora; e seus sobrinhos e sobrinhas têm toda razão em aludir a ele como o “Velho tio Groby”.
Tradução: Carlos David de Oliveira Soares e Eliana Stella Pires
criação: angela kina | carlos santana