O funeral de Buck Fanshaw Mark Twain (1835-1910)
Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução
O funeral de Buck Fanshaw Mark Twain (1835-1910)
Mark Twain (1835-1910) Pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, Mark Twain nasceu em Florida, Missouri, Estados Unidos, e mudou-se com a família para a cidade de Hannibal, às margens do rio Mississippi, onde cresceu sob a influência do pai, um homem imbuído do espírito de fronteira, sempre alimentando sonhos grandiosos de riqueza fácil. Twain relembra sua infância e juventude em As aventuras de Tom Sawyer (1876) e As aventuras de Huckleberry Finn (1884). Trabalhou como tipógrafo, piloto de barco e minerador, e ganhou fama como jornalista humorístico. De sua experiência como piloto no rio Mississippi, ele afirmou que no rio se “familiarizou com os mais diferentes tipos da natureza humana que podem ser encontrados na ficção, em biografia ou na história”. Escrevendo em autêntico idioma nativo, o humor e a irreverência como ferramentas de crítica da sociedade foram a grande marca de sua literatura. Entre outras obras, publicou também The Innocents Abroad (1869) – seu relato de viagem à Europa e à Terra Santa –, O Príncipe e o Mendigo (1882) e Roughing It (1872), além de várias coletâneas de contos. “Buck Fanshaw’s Funeral” é parte de um capítulo de Roughing It, mas consiste em uma narrativa curta completa.
O funeral de Buck Fanshaw Alguém já disse que para conhecer de fato uma comunidade, é necessário observar os seus funerais e saber que tipo de indivíduo é enterrado com mais pompa. Não sei dizer que tipo enterrávamos com mais pompa em nossos “tempos de abastança” – se o ilustre benfeitor público ou o ilustre desordeiro; possivelmente os dois principais graus ou as duas augustas divisões da sociedade honravam seus renomados mortos da mesma forma; por essa razão, sem dúvida, o filósofo cujo pensamento acabo de citar provavelmente presenciou dois funerais representativos no estado da Virgínia antes de emitir seu parecer acerca do povo. A morte de Buck Fanshaw ensejou um evento grandioso. Tratava-se de um cidadão representativo; já tinha ‘uma morte nas costas’ – não por desavença própria, é verdade, mas em defesa de um forasteiro injustamente acossado por muitos. Fanshaw mantinha um suntuoso saloon; fora proprietário de uma vistosa assistente, da qual poderia livrar-se facilmente sem as formalidades de um divórcio; ocupara um alto posto no Tribunal Cível e, em política, fora um genuíno Warwick. Sua morte causou enorme comoção em toda a cidade, sobretudo na vasta camada inferior da população. No inquérito judicial que se seguiu, ficou provado que Buck Fanshaw, em meio aos delírios de uma devastadora febre tifoide, tomara arsênico, alvejara o próprio corpo com uma arma de fogo, cortara a garganta e precipitara-se do quarto piso de um prédio, fraturando o pescoço, e, após as devidas deliberações, o júri, pesaroso e lacrimejante, porém com a inteligência nada ofuscada pela consternação, emitiu seu veredito: morte provocada “pela visitação de Deus”. O que seria do mundo sem júris? Os mais estupendos preparativos foram feitos para o funeral. Todos os veículos da cidade foram contratados, todos os saloons se puseram de luto,
todas as bandeiras do município e da brigada de incêndio foram hasteadas a meio mastro, e todos os bombeiros receberam ordem para se apresentar de uniforme, trazendo seus equipamentos devidamente colgados de tecido preto. Pois bem – observemos entre parênteses –, como todos os povos da terra tinham representantes aventureiros em Silverland, e como cada aventureiro havia levado consigo o linguajar de seu respectivo país ou localidade, essa combinação fez do falar de Nevada o mais rico e o mais infinitamente variado e copioso que existira em qualquer parte do mundo, exceto, talvez, nas minas da Califórnia, lá nos seus ‘primórdios’. Esse linguajar era o idioma de Nevada. Era difícil pregar um sermão e ser compreendido sem utilizá-lo. Expressões como “Pode apostar!”, “Ah, acho que não!”, “Irlandês não tem vez”, além de uma centena de outras, tornaram-se tão comuns que fluíam inconscientemente dos lábios do falante – e muitas vezes, nem tinham relação com o assunto em pauta; consequentemente, não faziam qualquer sentido. Após o inquérito judicial acerca da morte de Buck Fanshaw, houve uma reunião da irmandade “cabelo curto” do Partido Democrata dos estados do Oeste, pois na costa do Pacífico nada se faz sem uma assembleia pública e sem uma demonstração de sentimento. Resoluções dolorosas foram aprovadas e várias comissões foram designadas, entre as quais uma composta de apenas um membro, o qual foi incumbido da tarefa de visitar o reverendo, um ‘frangote’, frágil, gentil e piedoso, oriundo de um seminário de teologia da costa Leste, e ainda não aclimatado aos costumes praticados nas minas. O homem-comissão, “Scotty” Briggs, ou “Escocezinho”, fez a referida visita e, algum tempo depois, até valia alguma pena ouvir o reverendo contar a respeito do encontro. Scotty era um indivíduo rude, robusto e decidido, cujo traje costumeiro, quando em missões oficiais importantes – como essa de que fora incumbido – consistia em um capacete de bombeiro, uma camisa de flanela de um vermelho flamejante, um cinto de couro envernizado, ao qual se pren-
diam uma chave-inglesa e um revólver, um paletó, carregado no braço, e as calças enfiadas nos canos das botas. De certa maneira, sua figura contrastava com o insosso estudioso de teologia. A propósito, entretanto, e por uma questão de justiça, é preciso acrescentar que Scotty possuía um coração afável, nutria grande afeição por seus amigos e jamais participava de qualquer querela, se pudesse, dentro de padrões razoáveis, manter-se fora dela. Com efeito, dizia-se que, sempre que uma das contendas em que Scotty se envolvia era investigada, a conclusão era que, invariavelmente, a princípio, ela não dizia respeito a ele, mas que, graças a sua magnanimidade inata, ele havia interferido de livre e espontânea vontade para acudir o cidadão que estava sofrendo o revés. Ele e Buck Fanshaw foram amigos íntimos durante muitos anos, e várias vezes haviam se aventurado e “tentado a sorte” juntos. Certa feita, eles se livraram dos paletós e tomaram o partido do mais fraco em uma disputa entre desconhecidos, e depois de uma vitória renhida, quando se viraram, deram-se conta de que os homens que estavam a defender já haviam não somente batido em retirada como também surrupiado seus paletós! Mas voltemos à visita de Scotty ao reverendo. Sua missão agora era bastante penosa e a expressão em seu rosto era de grande pesar. Ao ser recebido, ele sentou-se diante do pastor, depositou o capacete sobre um sermão manuscrito ainda inacabado – bem debaixo do nariz do reverendo –, retirou lá de dentro um lenço vermelho de seda, enxugou a fronte e arrancou do peito um melancólico e comovente suspiro, indicando a que vinha. Engasgou-se e até mesmo verteu algumas lágrimas; porém, com esforço, manteve a voz sob controle e disse em tom lúgubre: – O senhor é o sujeito que manda no negócio de rezaria aqui do lado? – Eu sou o... perdão, meu senhor, creio não ter compreendido o que foi que o senhor disse. Com outro suspiro e um meio soluço, Scotty rebateu:
– Pois então... Veja o senhor; a gente tem um probleminha e a rapaziada achou que, quem sabe, se a gente trocasse umas palavrinhas, quem sabe, o senhor pudesse dar uma mão – quer dizer, se é que eu tenho o direito de pedir isso, já que o senhor é o chefe da fábrica de doxologia aí do lado. – Eu sou o pároco que zela pelo rebanho cuja congregação encontra-se na porta adjacente. – É o quê? – O conselheiro espiritual do pequeno grupo de fiéis cujo santuário está contíguo a estas instalações. Scotty coçou a cabeça, refletiu por um momento e, em seguida, disse: – Agora o senhor me pegou, parceiro. Acho que não vou poder bancar essa mão. Pago e passo. – Como assim? Perdoe-me. O que o senhor está tentando me dizer? – Bem, acho que o senhor está mangando de mim; ou, quem sabe, nós dois estamos mangando um do outro. O senhor não captou a minha mensagem e eu não captei a sua. Veja bem, um dos nossos passou desta pra melhor e agora a gente quer que ele seja bem encomendado; então, a minha tarefa aqui é arranjar alguém pra falar no enterro dele e encher um pouco de linguiça para ele fazer a passagem de um jeito bem bonito. – Meu caro amigo, creio que estou ficando cada vez mais aturdido. Suas observações me parecem totalmente ininteligíveis. Seria possível simplificá-las de alguma maneira? No início, achei que talvez o estivesse compreendendo, mas agora estou realmente a tatear no escuro. Não facilitaria a questão se o senhor se restringisse a declarações categóricas de fato, ao invés de obstruí-las com tantas metáforas e alegorias? Outra pausa e mais reflexão. Então, Scotty disse: – Vou ter que passar. – Como assim?
– Não dou conta dessa, parceiro. – O que o senhor diz ainda escapa à minha compreensão. – Pois é. A última leva sua foi demais para mim – é isso aí. Não consigo nem cobrir, nem acompanhar. Perplexo, o clérigo afundou na poltrona. Scotty apoiou a cabeça na mão e caiu em meditação. Logo seu rosto iluminou-se, pesaroso, mas confiante. – Agora achei o que queria falar e o senhor vai entender – disse ele. O que a gente quer é uma coisa bem afiada que nem no evangelho, entende? – Como é que é? – Afiada que nem no evangelho, parceiro. – Ah! Por que não me disse antes? Sou um clérigo, um pastor. – Agora sim! Estamos falando a mesma língua. O senhor entendeu minha jogada e pegou direitinho o espírito da coisa. Toca aqui! – e estendeu uma pata musculosa que se fechou sobre a pequena mão do ministro e deu-lhe uma boa chacoalhada, indicativa de solidariedade fraternal e de satisfação genuína. – Agora a gente se entendeu, parceiro. Vamos começar de novo. Não se incomode se eu choramingar um pouco – porque a gente tem uma baita encrenca pra resolver. Veja bem o senhor, um dos nossos bateu a caçoleta. – Bateu o quê? – A caçoleta; esticou as canelas; viajou sem chapéu, entende? – Viajou sem chapéu? – Isso mesmo – bateu as botas. – Ah, partiu para aquela terra misteriosa de onde viajante algum jamais retorna. – Retorna? Acho que não; ele está morto, companheiro. – Ah, compreendo! – Ufa! Entendeu? Bom, achei que o senhor ainda estava meio atarantado. Pois então... veja o senhor, de novo, ele está morto.
– De novo? Como assim? Ele já esteve morto antes? – Morto antes? Claro que não! O senhor, por acaso, acha que um sujeito tem sei lá quantas vidas que nem um gato? Pode apostar que agora ele está mortinho da silva, coitado, e eu não queria de jeito nenhum ver esse dia chegar. Nunca tive um amigo melhor do que o Buck. Nunca existiu amigo melhor do que ele. Eu conhecia o Buck até pelo avesso; e quando eu conheço um homem e gosto dele, aposto nele, entende? Eu ia com ele pra toda parte, parceiro; não tinha nenhum homem mais forte que ele lá nas minas. Ninguém nunca viu Buck Fanshaw deixar um amigo na mão. Mas agora tudo acabou, parceiro; tudo acabou. Não tem mais jeito. Engarfaram o Buck. – Engarfaram? – Isso mesmo. A morte engarfou o Buck. Bem, bem, muito bem, a gente teve que abrir mão dele. Não teve jeito. No fim, que mundo difícil, num é? Mas digo-lhe uma coisa, parceiro: que sujeito despachado que ele era! O senhor precisava ver quando ele encasquetava com alguma coisa. Era um valentão com um olho de vidro. Era só cuspir na cara dele e dar brecha pra ele e pra força que ele tinha, que era uma beleza ver Buck Fanshaw tirar o paletó e entrar na briga. Foi o maior filho de uma égua que já existiu. Meu amigo, ele partia pra cima do sujeito que nem um pele-vermelha; e com mais coragem ainda. Não perdia uma. Entrava em tudo. – Não perdia uma? Entrava em tudo? Entrava em tudo o quê? – Tiroteio, corpo a corpo, rixa, entende? Ele não dava a mínima pra por... nenhuma. O amigo me desculpe, mas eu quase soltei um palavrão; acontece que estou num apuro danado com esse palavrório, tendo que me segurar e dizer tudo de um jeito bem macio. Mas a questão é: a gente vai ter que deixar o Buck ir embora. Não tem outro jeito – acho que não. Então, se a gente puder contar com o senhor para ‘plantar’ o meu amigo... – Fazer o discurso fúnebre? Auxiliar nas exéquias?
– Zéquias – Nossa! Que palavra bonita! É isso mesmo – essa é a nossa jogada. A coisa vai sair de um jeito ou de outro. Ele mesmo sempre foi um homem alinhado; então, pode apostar que o enterro dele vai ser coisa de primeira – placa de prata no caixão, seis penachos no carro funerário, um garoto na boleia, vestindo uma camisa engomada e com uma cartola – que tal? Não vai ser uma beleza? E nós vamos cuidar do senhor também, parceiro. Vamos ajeitar o senhor bem direitinho. Vai ter uma carruagem pro senhor e o que mais que o senhor quiser; é só pedir e a gente resolve. Vai ter uma tendinha pro senhor ficar debaixo, lá dentro, na casa do chefe lá de cima; não precisa se preocupar. É só entrar e soltar o verbo; não precisa ficar com vergonha. É só mostrar o Buck como o mais valentão do mundo, parceiro, pois qualquer um que conheceu o Buck vai lhe dizer que ele foi o cara mais direito que já trabalhou nas minas. Mas não precisa exagerar. Ele nunca aguentou ver coisa errada. Ninguém fez mais pra esta cidade ficar sempre tranquila e sossegada do que ele. Eu mesmo vi o Buck dar uma coça em quatro mexicanos em onze minutos. Se uma coisa carecia de reparo, ele não era homem de mandar recado; ia lá, todo exibido, e resolvia. E olha que ele não era católico. Bom, pra dizer a verdade, era só um pouquinho. Não se dava muito bem com eles. Seu lema era: “Irlandês não tem vez”, mas se era pra defender o direito de qualquer um, não fazia diferença; e um dia, quando uns abusados pularam a cerca do jardim de ossos e começaram a estaquear terreno lá dentro, lá foi o Buck atrás deles e botou todo mundo pra fora! Eu estava lá. Vi tudinho, parceiro. – Muito bem. É muito bom saber disso – pelo menos o impulso era bom – fosse o ato estritamente defensável ou não. O finado possuía alguma convicção religiosa? Melhor dizendo, ele demonstrava depositar fé em algum poder superior, ou admitia alguma devoção a um poder superior? Mais reflexão. – Acho que o senhor me pegou de novo, parceiro. Dá pra repetir tudo de
novo, bem devagarinho? – Bem, para simplificar um pouco, ele era, ou alguma vez esteve, ligado a qualquer organização apartada das inquietações seculares e consagrado à abnegação em nome da moralidade? – Todos os pinos caíram, menos nove. Muda de pista, parceiro. – O que foi que o senhor disse? – Ora! Quer saber de uma coisa? O senhor é um pouco demais pra mim. Toda vez que o senhor vem com uma esquerda, eu como capim. Toda vez que o senhor dá as cartas, o senhor leva a mão. Acho que a sorte não está comigo. Vamos fazer outro trato. – Como assim? Começar tudo novamente? – Isso mesmo. – Pois muito bem. Era ele um homem bondoso e... – Já entendi! Não ponha mais nenhuma ficha enquanto eu não olhar a minha mão. Um homem bondoso – foi isso que o senhor disse? Nem dá pra dizer o quanto. Ele foi o melhor sujeito que já existiu, parceiro. O senhor ia ficar doido com aquele homem. Ele era o tipo do sujeito que desancava qualquer um que fosse da altura e do tamanho dele na América inteira. Foi ele que acabou com a baderna da última eleição, antes mesmo dela começar; e todo mundo dizia que ele era o único homem capaz de fazer isso. Ele entrou na dança com uma chave-inglesa numa mão e uma corneta na outra; de uma tacada só derreou quatorze homens em menos de três minutos. Acabou com a barafunda e evitou direitinho que qualquer um tivesse a chance de partir para a ignorância. Sempre foi um homem de boa paz e, pode acreditar, ele conseguia a paz; não suportava arruaça. Parceiro, ele foi uma grande perda para a cidade. A rapaziada vai gostar pra caramba se o senhor puder botar um pouco disso aí no seu discurso pra fazer justiça ao meu finado amigo. Uma vez, quando os irlandeses deram de jogar pedra nas janelas da escola domini-
cal metodista, Buck Fanshaw, por conta dele mesmo, fechou o saloon, pegou duas garruchas e montou guarda na escola. Aí ele disse: “Irlandês não tem vez”. E eles não tiveram vez mesmo. O Buck era o homem mais valentão aqui destas montanhas, parceiro. Era o mais ligeiro, era o que pulava mais alto, batia mais pesado do que qualquer outro e conseguia emborcar mais birita sem derramar uma gota do que qualquer sujeito em dezessete condados juntos. Bota isso lá no sermão, parceiro; vai agradar a moçada mais do que qualquer outra coisa que o senhor diga. E pode dizer também, meu amigo, que ele nunca chacoalhou a mãe. – Nunca chacoalhou a mãe? – Isso mesmo – qualquer um da turma pode lhe contar isso. – Bem, mas por que razão iria ele chacoalhá-la? – É o que estou lhe dizendo; mas tem gente que faz isso. – Então, não é gente de boa reputação! – Bom, alguns até que são. – Em minha opinião, o homem que inflige violência física à própria mãe, deveria... – Pode parar, parceiro; agora a sua bola passou longe da tabela. O que eu quis dizer foi que ele sempre amparou a mãe, o senhor me entendeu? Sempre. Ele deu casa pra ela morar, uns terrenos na cidade, um bocado de dinheiro, e cuidava dela o tempo todo; e quando ela caiu de cama com varíola, que caia um raio na minha cabeça se não estou dizendo a verdade, ele ficava acordado a noite todinha e bancou o enfermeiro dela! O senhor me desculpe falar assim, mas a expressão escapou da boca deste que vos fala. O senhor me tratou como um gentleman, parceiro, e longe de mim querer machucar seus sentimentos de propósito. Acho o senhor uma pessoa muito direita. Acho o senhor uma pessoa decente. Gosto do senhor; acabo com qualquer um que não goste do senhor. Acabo com ele dum jeito que nem a mãe vai reconhecer.
Toca aqui! [outro aperto fraternal de mãos e ele se retira] As exéquias foram tudo o que ‘a rapaziada’ poderia desejar. Funeral mais pomposo do que aquele jamais fora visto na Virgínia: o carro funerário emplumado, a banda de metais executando a marcha fúnebre, o comércio fechado, bandeiras hasteadas a meio mastro. A longa e penosa caminhada da procissão das sociedades secretas uniformizadas, dos batalhões militares e das brigadas de incêndio; carros ornamentados, carruagens com oficiais, e cidadãos em seus veículos ou a pé, atraíram multidões para as calçadas, telhados e janelas; e por anos mais tarde, o grau de imponência de qualquer manifestação cívica na Virgínia era determinado com base no funeral de Buck Fanshaw. Enlutado, Scotty Briggs, um dos carregadores do esquife, ocupava lugar proeminente no funeral, e quando o sermão terminou e a última sentença da oração pela alma do pranteado subiu aos céus, ele respondeu em voz baixa, mas com sentimento: – Amém. Irlandês não tem vez. Como a resposta como um todo foi aparentemente irrelevante, ela provavelmente nada mais foi do que um modesto tributo à memória do amigo que partira para sempre; pois, como Scotty disse certa vez, esse era “o mote de Buck”. Tempos depois, Scotty Briggs obteve a honraria de se tornar o único convertido à religião a ter sido arrebanhado dos confins da Virgínia; espalhou-se o rumor de que o homem que o fez abraçar a causa dos mais fracos por sua nobreza inata de princípios era “madeira de lei” das melhores para se formar um cristão. Fazer dele um cristão não empenou sua generosidade nem reduziu sua coragem; pelo contrário, direcionou a primeira com inteligência e ampliou o campo da segunda. Se suas classes na escola dominical avançavam mais rapidamente do que as outras, era isso motivo para surpre-
sa? Acredito que não. Ele falava aos pequenos pioneiros numa linguagem que eles compreendiam. Foi meu grande privilégio, um mês antes de sua morte, ouvi-lo contar a bela história de José e seus irmãos à classe “sem olhar no livro”. Deixo que o leitor imagine por si mesmo de que forma a fala, carregada de gírias enigmáticas, à medida que emanava dos lábios do mestre austero e fervoroso, era recebida pelos pequenos aprendizes com um profundo interesse, e demonstrava que os seus discípulos eram tão inconscientes quanto Scotty de qualquer violência que estivesse sendo praticada contra as sacrossantas convenções sociais!
Tradução coletiva: Alzira Leite Vieira Allegro (Coordenadora) Carlos David de Oliveira Soares Cintia Mendonça Garcia Dóli de Castro Ferreira Eliana Stella Pires Flávia Souto Maior Luciana P. Alvarez Maria Helena Vieira de Araújo Maria Heloísa M. P.Gardil Maria Leonor da Costa Cione Petê Rissatti Soraya da Silva Quintela Thelma Squillante
criação: angela kina | carlos santana