Cga plaquete maio 2016 2 adestrando a bicicleta rev1

Page 1

Adestrando a Bicicleta Mark Twain


Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução


Adestrando a Bicicleta Mark Twain


Adestrando a Bicicleta Ensaiei a coisa na cabeça e concluí que dava pra fazer. Então, lá fui eu; comprei um barril de Extrato Pond’s e uma bicicleta. O Técnico me acompanhou até em casa para me dar as devidas instruções. Para maior privacidade, escolhemos meu quintal e botamos a mão na massa. Minha bicicleta não era das maiores; era apenas uma potranca – um metro e trinta, pedais encurtados para um metro e vinte – e arisca como qualquer potranca. O Técnico deu uma explicação rápida sobre as peculiaridades da coisa e, em seguida, montou e deu umas pedaladas para me mostrar como tudo era muito fácil. Desmontar, segundo ele, talvez fosse o mais difícil de aprender; por isso, deixaria para o fim. Mas esse foi seu erro. Para sua surpresa e alegria, ele descobriu que tudo o que tinha a fazer era acomodar-me no artefato e ficar fora do caminho; eu podia descer sozinho. Mesmo sendo totalmente inexperiente, desmontei em tempo recorde; exatamente do lado em que ele empurrava a engenhoca. Fomos todos parar estatelados no chão, ele por baixo, eu por cima dele e a bicicleta em cima da gente. Nós a examinamos: nenhum arranhão. Mal dava pra acreditar. Mas o Técnico jurou que era verdade, como, de fato, o exame provou. Nessa hora, comecei a perceber o modo admirável como essas coisas são bem construídas. Passamos um pouco de Extrato Pond’s e recomeçamos. Desta vez, o Técnico foi empurrar do outro lado, e foi exatamente daquele lado que eu apeei; o resultado, lógico, foi o mesmo de antes. A geringonça continuava intacta. Besuntados de novo, lá fomos nós. Agora, o Técnico tentou resguardar-se, empurrando por trás, mas seja como for aterrissamos novamente em cima dele. Pasmado, ele disse que isso era fora do normal. Ela estava bem, nenhum arranhão, nenhum rangido em lugar algum, nenhum pedaço arrancado. En-


quanto nos lambuzávamos, comentei que isso era incrível, e ele respondeu que quando eu conhecesse melhor aquelas teias de aço, eu tomaria consciência de que nada, exceto dinamite, poderia estropiá-las. Coxeando, ele reassumiu sua posição e voltamos à carga. Desta vez, o Técnico ficou na posição de short-stop, como no jogo de beisebol, e colocou um ajudante para empurrar por trás. Pegamos um bom embalo e foi então que atropelamos um tijolo; voei por cima do leme e aterrissei de ponta-cabeça nas costas do instrutor, vendo a bicicleta dançar no ar entre mim e o sol. Foi bom ela ter caído sobre nós; isso amorteceu a sua queda e ela não se machucou. Cinco dias depois, saí de casa e tiveram que me carregar para o hospital; o Técnico, descobri, passava relativamente bem. Poucos dias mais e eu já me sentia ótimo. Creditei isso a minha prudência de sempre desmontar em cima de algo macio. Alguns recomendam que seja em uma cama de penas, mas acho que é melhor em um Técnico. Finalmente, o Técnico deixou o hospital e trouxe consigo quatro assistentes. Foi uma boa ideia. Os quatro seguraram a graciosa roda raiada, bem aprumada, para que eu subisse na sela e, formando duas colunas, marchavam ao meu lado, com o Técnico empurrando atrás; na hora de desmontar, todos deram uma mãozinha. A bicicleta tinha o que se pode chamar de ‘bamboleio’, e dos mais sérios. Manter minha posição exigia muito de mim e em cada caso o exigido ia contra a natureza; contra a natureza, mas não contra as leis da natureza. Quero dizer, não importava o que fosse exigido de mim; minha natureza, hábitos e criação me estimulavam a arriscar de um jeito, enquanto uma imutável e insuspeitada lei da física exigia justamente o oposto. Isso me fez perceber como a educação do meu corpo e dos meus membros fora radical e grotescamente equivocada a vida toda. Chafurdavam na ignorância; não sabiam nada – nada que pudessem aproveitar. Por exemplo, se eu me via resvalando para a direita,


um impulso bastante natural me fazia girar o leme para o outro lado e, assim, afrontava a tal lei e continuava indo beijar o chão. Essa lei exigia o contrário – girar a roda grande na direção em que você está caindo. É duro de acreditar quando alguém lhe conta isso. E não só duro de acreditar, como também impossível, porque contraria todas as suas noções. E, depois que você passa a acreditar nela, a dificuldade continua a mesma. Acreditar nessa lei e ter uma prova cabal de que é válida não basta: nem por isso você será mais capaz de cumpri-la do que era antes; de início, você nem consegue se forçar, nem se convencer a praticá-la. Então, cabe ao intelecto assumir a dianteira. Ele tem de ensinar os membros a descartar a velha educação e adotar uma nova. As etapas do progresso são nitidamente caracterizadas. Ao final de cada lição, a pessoa sabe que adquiriu algo, sabe o que é esse algo e também que vai ficar com ele. Não é como aprender alemão, em que você esquenta a cabeça, tateando inseguro por trinta anos; e, no final, quando acha que já domina a coisa, alguém tira o subjuntivo da cartola e você se machuca. Não! – agora eu vejo isso com muita clareza; no caso da língua alemã, o lamentável é que você não tem como cair e se machucar. E não há nada como essa peculiaridade para fazê-lo ater-se estritamente ao que tem a fazer. E vejo também, pelo que aprendi com o ciclismo, que o único modo seguro e correto de aprender alemão é o método da bicicleta. O que vale dizer: pegue firme cada vilania da língua de cada vez e aprenda-a; não relaxe, não se esquive, não a deixe pela metade. Quando sua habilidade ciclística tiver chegado ao ponto de você ser capaz de equilibrar a engenhoca razoavelmente bem, dar-lhe impulso e manobrá-la, você estará pronto para a tarefa seguinte – como montar nela. Faça assim: vá pulando atrás dela com o pé direito, mantenha o outro no estribo e segure o leme com ambas as mãos. No momento certo, ao receber as instruções, suba no estribo, deixe a perna esquerda bem firme e a outra pendendo


de modo natural e indefinido, encoste a barriga na parte traseira da sela e, então, caia, tanto faz de que lado; mas caia. Levante-se e tente outra vez; e mais uma; e muitas outras vezes mais. Nessa altura dos acontecimentos, você terá aprendido a manter o equilíbrio; e também a dirigir sem arrancar o leme pela raiz (digo leme, porque é um leme; “barra de direção” é uma descrição capenga). Então, por algum tempo, dirija sempre em frente; em seguida, erga-se com um esforço constante, leve a perna direita e depois o corpo na direção da sela, respire fundo, dê um tranco violento para um lado e para o outro e deixe-se estatelar de novo. Agora, cair já não é mais problema, você já está se acostumando a pousar com muito mais confiança com um pé ou outro. Seis tentativas e seis quedas mais e você chega à perfeição. Da próxima vez, você aterrissa confortavelmente na sela e fica lá – isto é, caso se contente em deixar as pernas balançando e os pedais soltos por algum tempo; mas caso se atire a eles de chofre, o chão vai lhe dar as boas-vindas outra vez. Um pouco mais e você aprende a ter paciência e a aperfeiçoar o equilíbrio antes de procurar pelos pedais; aí sim, a arte de montar foi adquirida, está completa, e um pouco de prática irá torná-la simples e fácil, embora os espectadores devam se manter a uma distância de cinco a dez metros – se você não tiver nada contra eles. Então chega a hora de desmontar voluntariamente; o outro modo foi o primeiro que você aprendeu. É muito fácil dizer a alguém como desmontar voluntariamente; poucas palavras são necessárias, os requisitos são simples e aparentemente descomplicados; deixe o pedal esquerdo baixar até que sua perna esquerda fique quase reta, vire a roda para a esquerda e desça como se apeasse de um cavalo. Sem dúvida, soa muitíssimo fácil; mas não é. Não sei por que não é, mas não é. Por mais que tente, você não desmonta como se desmontasse de um cavalo. Você se atira como se fugisse de uma casa em chamas; a cada vez você faz um papel ridículo.


II Durante oito dias tomei aulas diárias de uma hora e meia. No final dessas doze horas de aprendizado, recebi o diploma – a duras penas. Fui declarado competente para pedalar minha própria bicicleta sem ajuda externa. Ter adquirido esse aprendizado com tal celeridade parece incrível. Aprender a andar a cavalo em pelo leva bem mais tempo do que isso. É bem verdade que eu poderia ter aprendido sem um instrutor, mas teria sido arriscado, dada a minha natural estabanação. O autodidata raras vezes sabe alguma coisa com precisão, e não sabe nem um décimo do que poderia saber, se tivesse sido orientado por professores; além do mais, ele se gaba, como um meio de iludir os incautos e fazê-los agir como ele. Há aqueles que imaginam que os malfadados acidentes da vida – as ‘experiências’ da vida – nos sejam úteis de algum modo. Eu gostaria de saber como. Nunca soube de nenhum deles que tivesse se repetido; eles sempre se alteram, trocam de lugar e pegam você desprevenido. Se experiência pessoal valesse alguma coisa como educação, não pareceria provável que pudéssemos enganar Matusalém; no entanto, se esse ancião voltasse aqui, é mais do que provável que uma das primeiras coisas que faria seria pegar um desses fios elétricos, amarrar-se todo nele e dar um nó. No entanto, o mais seguro e sábio a fazer seria ele perguntar a alguém se fazer isso seria uma boa ideia. Mas isso não daria certo para ele, não seria do seu feitio; ele era aquele tipo de autodidata que se guia pela própria experiência; iria querer averiguar por conta própria. E assim, descobriria – aprenderia – que patriarca enrolado foge de fio elétrico; e isso também lhe seria útil e deixaria sua educação plena e integral, até o belo dia em que voltasse e se pusesse a dar trancos pra lá e pra cá em uma lata de dinamite para descobrir o que havia dentro dela. Mas já estamos fugindo do assunto. De qualquer modo, arranje um


professor; economiza muito tempo e muito Extrato Pond’s. Antes de despedir-se de mim de vez, meu instrutor questionou-me a respeito de minha força física e tive a cara de pau de lhe informar que não tinha nenhuma. Ele disse que essa deficiência faria das pedaladas morro acima algo muito penoso para mim; mas disse também que a bicicleta logo acabaria com isso. O contraste entre os músculos dele e os meus era bem marcante. Ele quis testar os meus; então, eu lhe ofereci meu bíceps – o que eu tinha de melhor. Ele disfarçou o riso e comentou, “É carnudo e macio e frouxo e roliço; escapa da pressão dos dedos e desliza entre eles; no escuro, qualquer um o tomaria por uma ostra dentro de um trapo”. A observação dele talvez tenha me feito parecer ofendido, porque ele não tardou a emendar: “Ah, fique tranquilo, não precisa se preocupar; em pouco tempo você não vai diferenciá-lo de um rim empedrado. Basta continuar praticando; está tudo bem com você”. Então ele se foi e eu me lancei sozinho na busca de aventuras. Na verdade, você nem precisa procurar por elas – é só uma maneira de dizer – são elas que procuram você. Em um dia sabático, escolhi uma espécie de viela, com uns trinta metros de largura entre as calçadas. Eu sabia que não era larga o bastante, mas achei que se ficasse bem atento e não desperdiçasse espaço desnecessariamente, poderia navegar a todo pano. Nem preciso dizer que foi um problema montar na engenhoca contando somente comigo mesmo, sem nenhum encorajamento moral, sem nenhum instrutor para me dizer, “Muito bom! Você está indo bem – de novo, bom! – não se apresse! – é isso aí! agora está tudo bem – Concentre-se, vá em frente”. Em vez disso, tive outro tipo de apoio: um garoto empoleirado em cima de um portão, mascando um naco de rapadura. Curiosidade e capacidade para chacota ele tinha de sobra. A primeira vez que errei e caí, ele disse que, se estivesse na minha pele, ele se fantasiaria


de travesseiro; é isso que ele faria. Na vez seguinte, ele me disse que primeiro eu devia aprender a andar de triciclo; na terceira vez em que me esborrachei, ele disse que, em sua opinião, eu não conseguiria me manter nem em cima de uma carroça. Mas da quarta vez, desengonçadamente, vacilante, inseguro, consegui me pôr em marcha, ocupando quase a rua toda. Lento e espaçoso, o modo como eu me deslocava encheu o garoto de troça até a medula, e ele cantarolou, “Minha nossa, não é que ele enfrenta a corrente mesmo!”. Em seguida, ele desceu do portão e ficou passeando pela calçada, ainda observando e fazendo comentários ocasionais. Não tardou muito, começou a seguir meu OK! Concordo!rastro. Uma garotinha que vinha passando, equilibrando uma tábua de esfregar roupa na cabeça, deu uma risadinha e parecia a ponto de falar qualquer coisa quando o garoto exclamou, censurando, “Não mexa com ele; ele está indo a um funeral”. Havia anos aquela rua me era familiar, e sempre achei que fosse plana; mas para minha surpresa não era, como a bicicleta agora me mostrava. Nas mãos de um novato, a bicicleta fica tão alerta e perspicaz quanto um nível de bolha na detecção de diferenças mínimas e evanescentes em questões desse tipo. Ela percebe uma elevação onde o olhar destreinado não vê nenhuma; ela nota qualquer declive que faça a água escorrer. Eu me esfalfava para subir uma ligeira elevação, sem me dar conta dela. Ela me fez pelejar, suar e botar os bofes pra fora; e, no entanto, por mais que me esforçasse, a engenhoca empacava de minuto em minuto. Nessas horas o pivete dizia: “É assim mesmo! descanse – não tenha pressa. O funeral não vai acontecer sem você”. As pedras eram um transtorno para mim. Até as menorzinhas me deixavam em pânico, quando eu passava por cima delas. Mesmo que tentasse evitar qualquer uma, por menor que fosse, era ela que eu sempre acabava atingindo; e no começo, claro, eu não conseguia resistir à tentativa de fazer isso. É mais do que natural. É parte da burrice a nós imposta por alguma ra-


zão inescrutável. Finalmente, cheguei ao final do meu percurso, e era preciso completar o circuito. Tentar isso pela primeira vez por sua própria conta e risco não é nada agradável e nem provável que dê certo. Sua confiança se esvai pelos poros, você se enche o tempo todo de apreensões horríveis, cada fibra do seu corpo fica tensa com uma pressão vigilante; você começa uma curva gradual e com muita cautela, mas seus nervos em frangalhos são arrebatados pela ansiedade e, assim, a curva rapidamente se transforma em um desmoralizante, perigoso e convulsivo zigue-zague; de súbito, o cavalo niquelado toma as rédeas na boca e avança, pendendo para o meio-fio, desafiando todos os seus rogos e poderes para fazê-lo mudar de ideia – o coração congela, a respiração fica em suspenso, as pernas se esquecem de funcionar, você segue adiante e agora resta menos de um metro entre você e o meio-fio. E então chega o momento de desespero, sua última chance de se safar; as instruções recebidas, é claro, somem da cabeça, você gira a roda afastando-a do meio-fio, em vez de ir na direção dele, e assim se estatela naquela inóspita praia coberta de granito. Esse foi o meu quinhão; essa foi minha experiência. Saí de baixo da indestrutível bicicleta arrastando-me e sentei-me no meio-fio para ver o estrago. Comecei o trajeto de volta. Foi então que vi a carroça de um fazendeiro, carregada de repolhos, despontando na minha direção. Era só o que me faltava para deixar perfeita a precariedade de meu comando ao volante! O fazendeiro ocupava o meio da rua com seu veículo, mal deixando uns quinze metros de espaço de cada lado. Não me cabia gritar para ele – um principiante não pode gritar; se abrir a boca está perdido; ele tem de manter-se totalmente concentrado no que está fazendo. Mas nessa terrível emergência, eis que o garoto vem em meu socorro e, pelo menos uma vez, tive de ser-lhe grato. Ele ficou o tempo todo vigiando as rápidas variações nos impulsos e humores de


minha bicicleta e, aos berros, direcionava o homem: “Para a esquerda! Vire para a esquerda ou este asno vai te atropelar!” O homem começou a atender a orientação. “Não, para a direita, para a direita! Espere aí! Assim não vai dar! – para a esquerda! – para a direita! – para a esquerda! Direita! Esquerda – di... – Fique onde está ou você está liquidado!” Foi então que peguei o equipamento a estibordo e desabei numa pilha de coisas. Desabafei: “Maldição! Você não me viu chegando?”. “Eu vi que você estava vindo, sim, mas não consegui adivinhar de que lado. Ninguém conseguiria – ou você acha que alguém conseguiria? Nem mesmo você – ou você acha que conseguiria? Então, o que é que eu podia fazer?” Havia algo de verdade nisso e eu tive a magnanimidade de concordar. Respondi que, sem dúvida, eu era tão culpado quanto ele. Nos cinco dias seguintes progredi tanto que o garoto não conseguiu me acompanhar. Ele teve que voltar para seu posto em cima da porteira e contentar-se em me ver cair de longe. Na extremidade de um dos lados da rua havia uma fileira de pedras baixas, formando uma alpondra; aproximadamente um metro de distância separava uma pedra da outra. Mesmo depois de ter boa prática na direção, eu tinha tanto pavor daquelas pedras que sempre batia nelas. Descontando as quedas por culpa dos cães, foram elas as causadoras dos meus piores tombos naquela rua. Já ouvi gente afirmar que especialista nenhum é rápido o bastante para atropelar um cachorro; o cachorro sempre se safa. Acho até que pode ser verdade, mas a razão por que ele não conseguia atropelar o animal era justamente porque tentava atropelá-lo. Eu não tentei atropelar nenhum cachorro, mas acabei atropelando todos os que cruzaram meu caminho. Acho que isso faz uma grande diferença. Se você tenta atropelar o cachorro, ele é capaz de adivinhar, mas se você estiver tentando evitá-lo, ele não tem como adivinhar, e pode pular toda vez para o lado errado. Sempre foi assim comi-


go. Mesmo quando eu não conseguia bater numa carroça, conseguia bater no cachorro que vinha me ver praticar. Todos eles gostavam de me ver praticar, e todos vinham, porque em nossa vizinhança não acontecia muita coisa que pudesse entreter um cachorro. Levou um bom tempo até aprender a não atropelar um, mas até isso acabei aprendendo. Agora, sou capaz de dirigir do jeito que quero e qualquer dia desses vou pegar aquele garoto e atropelá-lo, se ele não se emendar. Arranje uma bicicleta. Se sobreviver, você não se arrependerá.

Tradução: Carlos David O. Soares e Maria Helena Vieira de Araújo


criação: angela kina | carlos santana


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.