O relojoeiro Thomas C. Haliburton (1796-1865)
Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução
O relojoeiro Thomas C. Haliburton (1796-1865)
Thomas C. Haliburton (1796-1865) Thomas Chandler Haliburton nasceu em Windsor, Nova Scotia, Canadá. Foi advogado, juiz e figura política. Sua fama literária surgiu com a criação, em 1836, da série tripla de esquetes cômicos The Clockmaker, apresentando o tagarela yankee Sam Slick, figura satírica que, com uma linguagem muito colorida e comentários sagazes sobre a natureza humana, ironiza a indolência, o orgulho e a ambição dos bluenoses (os habitantes de Nova Scotia). Foi o primeiro autor canadense a ganhar fama internacional. Além de suas obras de ficção, entre as quais destacam-se Sam Slick’s Wise Saws and Modern Instances; or What He Said and Did or Invented (1853), e sua sequência, Nature and Human Nature (1855), Haliburton também publicou textos sobre política.
O relojoeiro Tomei conhecimento dos mascates yankees de relógios de estanho e de Bíblias, especialmente dos que vendiam Bíblias poliglotas (todas em inglês) por dezesseis mil libras. A casa de todo fazendeiro abastado deveria ter três principais ornamentos: um relógio de madeira, um espelho de estanho e uma Bíblia poliglota. Como um americano conseguia vender seus artigos ao preço que desejasse quando um bluenose falharia nesse mesmo intento? Vou perguntar ao relojoeiro qual o segredo de seu sucesso. – Que pena, senhor Slick – este era seu nome –, que pena, senhor Slick – disse-lhe eu –, que o senhor, que faz tanto sucesso convencendo essas pessoas do valor dos relógios, não possa ensinar-lhes igualmente o valor do tempo. – Eu acho – disse ele – que esse anel, que qualquer criancinha de quatro anos, neste país, tem, ainda precisa crescer no chifre de muita gente. Nós, adultos, vemos as horas e os minutos como dólares e centavos. As pessoas nada fazem nestas regiões a não ser comer, beber, fumar, dormir, cavalgar por aí, divertir-se nas tavernas, fazer preleções sobre temperança e falar a respeito da “Casa Legislativa”. Se um homem não cuida de seu milho, fazendo a devida capina, e não obtém a safra desejada, ele diz que é tudo culpa do banco; e se contrai uma dívida e é processado, então diz que os advogados são uma praga para o país. Essas pessoas são gente muito ociosa, é o que lhe digo... – Mas como é que – perguntei-lhe – o senhor consegue vender essa quantidade enorme de relógios, os quais certamente não podem ser chamados de artigos de primeira necessidade para um povo que parece ter tanta escassez de dinheiro? O senhor Slick fez uma pausa, como se estivesse considerando a pertinência da resposta e, olhando-me de frente, disse em tom confidencial – Ora, não me importa dizer-lhe, pois o mercado está saturado e eu vou abandonar esta área. Faço isso com base no conhecimento que tenho de uma conversa macia e da natureza humana. Mas aqui está o que o Deão Flint disse: “Tenho
apenas um relógio sobrando e acho que vou vendê-lo a ele”. De pé, ao lado da porteira de uma fazenda que parecia um local muito agradável, estava o Deão Flint, um respeitável idoso que, a julgar pela aparência de tudo o que o cercava, entendia o valor do tempo melhor do que muitos de seus vizinhos. Depois do cumprimento usual, um convite para ‘apear’ foi aceito pelo senhor Slick, que disse desejar despedir-se da senhora Flint antes de deixar Colchester. Mal havíamos entrado na casa, antes que o relojoeiro se referisse à paisagem vista da janela. Dirigindo-se a mim, disse: “Se eu contasse em Connecticut que existe uma fazenda como esta aqui ao leste da Nova Scotia, eles não acreditariam em mim. Puxa vida! Não existe propriedade semelhante em toda a Nova Inglaterra! O Deão Flint tem cem acres de represa...”. – Setenta – disse o deão – somente setenta. – Bem... setenta – mas então consideremos sua bela represa; eu até poderia introduzir uma vareta lá para medir o... – Intervalo é o termo que usamos – disse o deão, que, embora evidentemente satisfeito com o elogio, parecia desejar que o experimento com a vareta fosse tentado no lugar certo. – Bem, intervalo, se esse é o termo que o senhor prefere – embora o Professor Eleazer Cumstick, em sua pesquisa em Ohio chame isso de fossas aquáticas – que é tão válido quanto represa. E, além disso, há essa grande vantagem da água, que vale três ou quatro mil dólares, o dobro dos quinze mil dólares que o Governador Cass pagou. Fico me perguntando, senhor deão, por que o senhor não monta aqui uma fábrica de cardar; e com o mesmo maquinário, o senhor poderia acionar um torno mecânico, uma serra circular, uma máquina de fazer sarrafos, um triturador de cascas e... – Estou velho demais – disse o deão –, velho demais para todas essas especulações... – Velho? – repetiu o relojoeiro – Absolutamente! O senhor não é velho, ora essa! O senhor vale mais do que uma dezena desses jovens que vemos hoje em dia. O senhor é jovem o suficiente para... – e aqui ele disse algo em tom mais baixo que não consegui ouvir muito bem, mas seja lá o que tenha sido, o deão
ficou satisfeito. Ele sorriu e disse que agora não pensava nessas coisas. – Mas por Deus, os animais... preciso recolher e alimentar os animais – e após dizer isso, ele saiu e deu ordem para que fossem levados para o estábulo. Assim que o velho fechou a porta atrás de si, o senhor Slick dirigiu-se a mim e disse em tom baixo: Isso é o que eu chamo “uma conversa macia”. Um inglês poderia passar por esse homem como uma ovelha passa por um porco na pastagem: sem olhar para ele, ou – disse ele, então, com uma expressão matreira no rosto – se estivesse montado num cavalo de belo porte, acredito que, se pudesse, ele iria embora trotando. Mas acho... – aqui sua fala sobre “conversa macia” foi interrompida rapidamente pela entrada da senhora Flint. – Vim apenas para dizer até logo, senhora Flint. – Como assim? Então o senhor vendeu todos os relógios? – Sim, e a um preço bem acessível, pois o dinheiro anda escasso, e eu queria fechar logo o negócio; na verdade, estou errado dizendo todos, pois ainda sobrou um. A esposa de Steel, o vizinho, pediu-me que lhe desse preferência, mas acho que não vou vendê-lo. Tenho apenas mais dois deles, este e o outro companheiro deste, que vendi para o Governador Lincoln. O General Green, Secretário de Estado do Maine, disse-me que daria cinquenta dólares por este aqui – ele tem rodas compostas e eixos patenteados; e é um belo artigo, de primeira categoria, genuíno, refinado, não há como errar – mas acho que vou levá-lo de volta; e além disso, o grande fazendeiro Hawk poderia achar um pouco injusto que eu não lhe tenha feito uma oferta. – Puxa vida! – disse a senhora Flint. – Eu gostaria de dar uma olhada nele; onde está? – Está num cofre que tenho na loja de Tom Tape. Suponho que ele possa despachá-lo para Eastport. – Ele é uma pessoa bondosa – disse a Sra. Flint. – Só queremos dar uma olhada no relógio. O senhor Slick, querendo mostrar-se cordial, acedeu ao pedido e logo exibiu o relógio – uma coisa espalhafatosa, exageradamente brilhante, com aparência de mercadoria inferior. Colocou-o sobre o aparador da chaminé
e apontou para as suas belezas, que foram devidamente apreciadas pela senhora Flint, cuja admiração estava a ponto de terminar em uma proposta, quando o senhor Flint retornou depois de ter dado as ordens no estábulo, em relação ao cuidado com os cavalos. O deão enaltecia o relógio; e ele próprio o considerou um objeto bonito. Porém, o deão era um homem prudente; já possuía um relógio de pulso – sentia muito, mas não via motivo para adquirir outro. – Acho que, no momento o senhor está na trilha errada, prezado deão. Este não está à venda – disse o senhor Slick. – E se estivesse, suponho que a esposa de seu vizinho Steel o teria comprado; ela não para de me apoquentar quanto a ele. – A senhora Flint disse que o senhor Steel tinha mais com que se preocupar, pobre homem, pagando seus juros em vez de pensar em comprar relógios para a esposa. – Isso não é de minha conta – disse o senhor Slick – desde que ele me pague, o que deve fazer, mas acho que não pretendo vendê-lo, e além disso, ele é muito caro; é um relógio que não se faz em Rhode Island por menos de quarenta dólares. Céus! Não é possível! – disse o relojoeiro aparentando surpresa ao olhar para seu relógio de pulso – já são quatro horas! Estou aqui há mais de duas horas! Como vou conseguir chegar a River Philip esta noite? Vamos fazer uma coisa, senhora Flint: vou deixar o relógio aqui, sob seus cuidados, até eu voltar, a caminho dos Estados Unidos. Vou dar corda nele e acertar a hora. Tão logo essa providência foi tomada, ele entregou a chave da corda ao deão com uma recomendação entre séria e cômica para que desse corda nele todos os sábados à noite, e a senhora Flint garantiu que se encarregaria de que isso fosse feito e prometeu lembrar ao marido caso ele se esquecesse. – É isso – disse o relojoeiro, assim que montamos os cavalos –, é isso que chamo de natureza humana. Pois é. Aquele relógio foi vendido por quarenta dólares, e ele custou-me somente seis dólares e cinquenta centavos. A senhora Flint jamais permitiria que a senhora Steel tivesse preferência, nem o deão irá aprender, enquanto eu não pedir o relógio de volta, que, uma vez entregues à satisfação do supérfluo, será difícil desistir dele. Podemos mui-
to bem viver sem qualquer objeto do desejo que nunca tivemos; porém, uma vez obtido, não é da natureza humana renunciar a ele espontaneamente. Dos quinze mil relógios que eu e meus sócios vendemos nesta Província, doze mil foram deixados nas residências dessa maneira, e apenas dez deles foram devolvidos; e quando os pedimos de volta, foram invariavelmente comprados. Confiamos na conversa macia para fazê-los entrar nas casas, e na natureza humana para que eles nunca saiam de lá.
Tradução: Dóli F. Castro e Alzira Leite Vieira Allegro
criação: angela kina | carlos santana