Um retriever mais que dedicado Henry Lawson (1867-1922)
Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução
Um retriever mais que dedicado Henry Lawson (1867-1922)
Henry Lawson (1867-1922) Henry Lawson nasceu na região de garimpo de Grenfell, em New South Wales (Nova Gales do Sul), Austrália, filho de um minerador norueguês. Teve pouca educação formal e empregos variados. Sua mãe, Louisa Lawson, foi poeta e feminista na Austrália colonial, condição que o influenciou nos retratos femininos em suas histórias. Henry Lawson começou a contribuir com poemas e histórias para o Bulletin em 1887. Hoje é considerado um mestre na arte do conto, sobretudo como observador perspicaz e retratista dos que vivem no bush – o sertão australiano – e do código australiano da amizade, do companheirismo e das relações entre os sexos, cujos clichês românticos ele ataca; sua prosa caracteriza-se por um estilo lacônico e impassível. Escreveu mais de cento e cinquenta histórias, além de poemas. “The Loaded Dog”, “The Drover’s Wife” e “The Bush Undertaker”, “The Union Buries Its Dead” e “Telling Mrs Baker” estão entre as mais famosas.
Um retriever mais que dedicado Dave Regan, Jim Bently e Andy Page mergulharam um eixo no riacho Stony à procura de um rico recife de quartzo de ouro que se supunha existir nas proximidades; sempre se supõe que exista um rico recife nas proximidades; o único problema é saber se ele está a três ou a trezentos metros abaixo da superfície e em qual direção. Eles haviam atingido alguma rocha bem resistente e encontraram também água, que eram obrigados a remover do barco o tempo todo. Usaram a antiquada pólvora e a espoleta de ação retardada. Puseram uma ‘salsicha’ ou cartucho de pólvora dentro de um envoltório com tecido de algodão ou lona resistente, o bocal costurado e atado em volta da extremidade do pavio; mergulharam o cartucho em sebo derretido para deixá-lo à prova d’água, deixaram o furo de sondagem o mais seco possível, jogaram o cartucho lá dentro com um pouco de pó seco, comprimiram tudo com barro endurecido e tijolo quebrado. Em seguida, acenderam o pavio, saíram do buraco e esperaram. O resultado, de maneira geral, foi um buraco muito feio no fundo do poço e meia padiola de pedras quebradas. Havia muito peixe no riacho – brema, peixe-gato, perca-amarela, peixe-mosquito. A turma gostava de peixe, e Andy e Dave gostavam de pescar. Andy costumava ficar pescando por três horas seguidas, se fosse estimulado por uma ‘beliscada’ ou uma ‘mordida’ de vez em quando – digamos, uma vez a cada 20 minutos. O açougueiro estava sempre disposto a trocar carne por peixe, quando eles pescavam mais do que conseguiam comer, mas agora era inverno e os peixes não mordiam tanto a isca. O riacho era raso – apenas uma série de buracos de água lamacentos, considerando o buraco com alguns baldes de água até um poço de bom tamanho, com uma profundidade de cerca de dois metros, e eles conseguiam tirar os peixes de lá retirando a água dos buracos menores ou enlameando a água nos buracos maiores até que os pei-
xes viessem à superfície. Havia o peixe-gato, que tinha espinhas dos lados da cabeça; se ele espetasse você, você com certeza ficaria sabendo, como Dave costumava dizer. Um dia, Andy descalçou as botas, arregaçou as calças e foi até um buraco para mexer a lama com os pés e ficou sabendo. Dave pegou um com a mão, foi espetado e ficou sabendo também; seu braço inchou, a dor latejava do ombro até o estômago, como ele dizia, igual a uma dor de dente que ele teve certa vez e que o deixou acordado durante duas noites – com a diferença de que a dor de dente parecia um ‘carrapicho’, como dizia Dave. Dave teve uma ideia. – Que tal a gente pescar explodindo o poço grande com um cartucho de pólvora? – disse ele. – Vou tentar fazer isso. Dave planejou a coisa toda e Andy Page a colocou em prática. Geralmente era Andy quem punha as teorias de Dave em prática, se elas fossem praticáveis, ou se não fossem, levava a culpa pelo fracasso e ainda aguentava a zombaria dos amigos. Ele fez um cartucho cerca de três vezes maior do que os que eles usavam para explodir as rochas. Jim Bently disse que o cartucho era grande o bastante para explodir o fundo do rio. A parte interna era de tecido de algodão bem forte; Andy enfiou a extremidade de um pavio de quase dois metros bem dentro da pólvora e amarrou firmemente nele a boca do saco com cordão grosso usado para fazer chicote. A ideia era afundar o cartucho na água com a extremidade aberta do pavio presa a uma boia na superfície, pronta para ser acesa. Andy derreteu um pouco de cera de abelha e mergulhou nela o cartucho para deixá-lo à prova d’água. “Vamos ter que esperar um pouco antes de acender” – disse Dave – “para dar tempo para os peixes perderem o medo quando a gente colocar o cartucho lá e começarem a bisbilhotar; é por isso que o cartucho precisa ser à prova d’água”.
Por sugestão de Dave, Andy amarrou em volta do cartucho uma tira de lona de barco a vela – que eles costumavam usar para fazer bolsas de água – para aumentar a força da explosão, e em volta dela colou várias camadas de papel pardo bem forte – do tipo usado em fogos de artifício, que chamávamos de ‘biscoito-bombinha’, e deixou o papel secar ao sol; depois pregou uma cobertura dupla de lona sobre ele e amarrou a coisa toda de ponta a ponta com linha de pescar bem resistente. Os esquemas de Dave eram muito elaborados, e muitas vezes suas invenções não davam em nada. No caso presente, o cartucho estava suficientemente rígido e firme – uma bomba formidável; mas Andy e Dave queriam ter certeza absoluta. Andy pregou sobre o cartucho outra camada de lona e o mergulhou em sebo derretido; em seguida, como precaução extra, enrolou um pedaço de arame farpado ao redor dele e mergulhou-o em sebo derretido novamente e, com todo o cuidado, encostou-o ao lado de uma estaca da barraca, onde sabia que o encontraria com facilidade e enrolou – sem apertar muito – o detonador em volta dele. Em seguida, foi até a fogueira do acampamento para ver como estavam as batatas que cozinhavam na casca em uma panela rústica e para preparar algumas postas de carne para o jantar. Naquela manhã, Dave e Jim estavam trabalhando nas terras demarcadas para exploração. Eles tinham um retriever preto bem grande, ou melhor, um filhote enorme, que havia crescido além da conta, um companheiro pateta, de quatro pés, que vivia salivando ao redor deles e açoitando as pernas deles com seu rabo pesado, que balançava como um chicote de gado. Geralmente, a maior parte de sua cabeça consistia de um sorriso salivoso, avermelhado, idiota, como se ele estivesse desfrutando de sua própria imbecilidade. Ele parecia levar a vida, o mundo, seus companheiros de dois pés e seu próprio instinto como uma grande piada. Trazia de volta qualquer coisa, inclusive a maior parte do lixo do acampamento que Andy jogava fora. Eles tinham um
gato que morreu por causa do calor e Andy o jogou numa moita bem longe de lá; uma manhã, bem cedo, o cachorro achou o gato, que já estava morto havia mais ou menos uma semana, e o carregou de volta para o campo, deixando-o exatamente na entrada da barraca para que seus amigos o vissem mais facilmente quando se levantassem e começassem a sentir no ar um cheiro suspeito e nauseante ao nascer do sol de verão. Ele costumava arrastá-los para fora da água quando iam nadar; pulava atrás deles, agarrava com a boca as mãos deles e tentava trazê-los para fora d’água nadando, e coçava seus corpos nus com as patas. Eles o adoravam por sua generosidade e sua imbecilidade, mas quando queriam se divertir nadando no rio, tinham que prendê-lo no acampamento. Durante toda a manhã, com enorme interesse, ele ficou observando Andy montar o cartucho e o atrapalhou muito, tentando ajudar; mas perto do meio-dia resolveu ir para as terras demarcadas para ver como estavam indo as coisas para Dave e Jim, e voltou com eles para o jantar. Andy os viu voltando e colocou uma panela com postas de carneiro no fogo. Hoje o cozinheiro era Andy; Dave e Jim ficaram de costas para o fogo, como fazem os sertanejos em qualquer estação, enquanto esperam o jantar. O retriever começou a farejar alguma coisa que parecia ter perdido. O cérebro de Andy ainda estava concentrado no cartucho; seu olhar fixou-se no clarão de uma lata de querosene vazia no meio dos arbustos, e, de repente lhe veio à cabeça que não seria uma má ideia mergulhar na lata o cartucho cheio de barro, areia, ou pedras, para aumentar a força da explosão. Do ponto de vista científico, ele podia estar completamente equivocado, mas a ideia lhe parecia correta. Jim Bently, a propósito, não estava interessado na ‘maldita idiotice’ deles. Andy viu uma lata de melado vazia – o tipo de lata com o gargalo pequeno ou o bico soldado no topo para maior conveniência ao despejar o melado – e veio-lhe à ideia que esse seria o melhor tipo de estojo para
o cartucho: tudo o que ele teria a fazer era despejar a pólvora lá dentro, prender o estopim no gargalo, fechá-lo com cortiça e lacrá-lo com cera de abelha. Estava virando-se para dar essa sugestão a Dave, quando Dave, olhando por cima dos seus ombros para ver como estavam indo as postas de carneiro, saiu em disparada. Mais tarde ele explicou que havia achado que a panela estava estalando além do normal e olhou para ver se as postas não estavam queimando. Jim Bently olhou para trás e saiu correndo atrás de Dave. Andy ficou lá totalmente imóvel, com os olhos pregados neles. – Corra, Andy! Corra! – eles gritaram. – Corra!!!! Olha atrás de você, seu estúpido! – Andy virou-se devagar e olhou; e lá, perto dele, estava o retriever com o cartucho na boca – preso entre os dentes, como seu riso mais largo e idiota. E isso não era tudo. O cão tinha contornado o fogo para chegar perto de Andy, e a extremidade livre do estopim balançava em cima dos gravetos que queimavam na fogueira; Andy havia cortado e entalhado muito bem a extremidade do estopim e agora ela estava assobiando e cuspindo como realmente deveria. As pernas de Andy deram um solavanco; na verdade, elas deram a partida antes do comando do seu cérebro e ele voou na direção de Dave e Jim. E o cão o seguiu. Dave e Jim eram bons corredores para percursos de curta distância – Jim era melhor; Andy era lerdo e pesado, mas tinha energia e fôlego e, portanto, podia aguentar bastante. O cão pulava e cabriolava em volta dele, tão feliz quanto um cão pode se sentir quando encontra os amigos – conforme ele achou – para umas brincadeiras. Dave e Jim continuavam a gritar “Não siga a gente, não siga a gente, seu maluco estúpido!”, e Andy continuava a correr, não importava o quanto eles se esquivavam. Eles nunca conseguiram explicar, e muito menos o cão, por que um seguia o outro, e assim eles corriam, Dave seguindo a trilha de Jim, em todas as curvas que fazia, Andy correndo atrás de Dave, e o cão circulan-
do ao redor de Andy – o estopim totalmente descoberto sibilando em todas as direções e assobiando e estalando e catingando. Jim gritava para Dave não segui-lo, Dave gritava para Andy ir em outra direção – ‘dar espaço’ –, e Andy gritava para o cão ir pra casa. Então, o cérebro de Andy, estimulado pela crise, começou a funcionar: ele tentou dar um chute rápido e rasteiro no cão, mas este se esquivou; ajuntou, então, alguns gravetos e pedras e jogou-os no cão e voltou a correr. O retriever percebeu que havia cometido algum engano em relação a Andy; abandonou-o e partiu atrás de Dave. Este, que teve a presença de espírito de pensar que o tempo calculado para a explosão do estopim ainda não havia chegado, deu um mergulho e tentou agarrar o cão; pegou-o pela cauda e, conforme ele se virou, agarrou o cartucho que o cão segurava entre os dentes e lançou-o o mais longe possível; imediatamente, o cão voou atrás do cartucho e o trouxe de volta. Dave urrou de raiva e amaldiçoou o cão, o qual, ao perceber que Dave estava ofendido, deixou-o e foi atrás de Jim, que já estava bem à frente. Jim voou em direção a uma arvorezinha nova e subiu nela como um urso nativo; era uma arvorezinha bem jovem, e Jim não conseguiu subir nela com segurança mais do que três metros do chão. O cão pôs o cartucho ao pé da árvore, e fez isso com tal cuidado como se estivesse depositando ali um gatinho; em seguida, começou a saltar e pular e gritar de alegria em volta da árvore. O enorme filhote achava que tudo isso fazia parte da brincadeira – agora ele estava certo –, era Jim que queria entrar na pândega. Parecia que o pavio ia a mais de um quilômetro por minuto. Jim tentou subir um pouco mais alto, mas a arvorezinha se curvou e quebrou. Jim caiu de pé e correu. O cão arrebatou o cartucho e foi atrás dele. Tudo isso aconteceu em questão de segundos. Jim correu para um buraco de mina, de cerca de três metros de profundidade, enfiou-se lá dentro – aterrissando na lama macia – e sentiu-se seguro. Por um momento, lá em cima, na beirada do buraco, o cão ria sardonicamente para ele, como se estivesse pensando que seria muito divertido deixar cair o cartucho em cima dele.
– Vai embora, Tommy! – disse Jim, com a voz muito fraca. – Vai embora! O cão voou na direção de Dave, que, agora, era o único à vista: Andy havia se escondido atrás de um tronco, onde se deitou escondendo o rosto, depois de, subitamente, se lembrar de um quadro da guerra russo-turca, mostrando um grupo de turcos deitados, com o rosto escondido (como se estivessem envergonhados), em volta de uma granada recém-chegada. Às margens do riacho, na estrada principal, não muito distante das terras demarcadas, havia um pequeno hotel ou uma espécie de cabana. Dave estava desesperado; em sua imaginação estimulada, o tempo corria muito mais rápido do que na realidade; então, ele tomou a direção do pub. Vários mateiros conversavam despreocupadamente na varanda e no interior do bar; Dave correu para o bar, fechando violentamente a porta atrás de si. “Meu cachorro!” – gritou ele, quase sem fôlego, em resposta ao olhar assustado do proprietário – “esse maldito retriever... ele está com um cartucho de pólvora na boca pronto para explodir.” Quando viu a porta da frente fechada, o cão tomou a direção da porta dos fundos, entrou e agora estava lá, com aquele sorriso arreganhado, o cartucho ainda na boca e o detonador pipocando. Todos saíram correndo do bar. Tommy foi na direção de um e depois do outro, pois, como era um cãozinho jovem, tentava travar amizade com todo mundo. Os mateiros procuraram correndo um canto para se esconderem e alguns se trancaram no estábulo. No quintal, havia uma cozinha feita com tábuas de revestimento e chapa ondulada e uma lavanderia, construídas sobre uma palafita, onde algumas mulheres estavam lavando roupas. Dave e o dono do bar abrigaram-se lá e fecharam a porta – o dono do bar amaldiçoava Dave e chamava-o freneticamente de maluco sanguinário, querendo saber por que diabos ele tinha ido lá. O retriever foi para baixo da cozinha, entre as estacas, mas, felizmente,
para os que se encontravam dentro, lá estava também um cão boiadeiro, um vira-lata amarelo, perverso, mal-humorado, que acalentava a sua vileza – um animal sorrateiro, belicoso, mau-caráter, que, durante muito tempo, os vizinhos tinham tentado matar ou envenenar. Tommy percebeu o perigo em que se encontrava – ele já conhecia esse cão – e saiu correndo pelo quintal, com o cartucho ainda preso ao focinho. Na metade do caminho o cão amarelo o alcançou e deu-lhe uma mordidela. Tommy deixou o cartucho cair, deu um rosnado terrível e voou na direção do mato. O cão amarelo seguiu-o até a cerca e depois voltou correndo para ver o que ele havia derrubado. Perto de uma dezena de outros cães surgiram de todos os cantos e das construções – cães de caça ao canguru, aos carneiros, ao gado – aranhosos, furtivos, insensíveis; cães perversos, de cor preta e amarela – daquele tipo que desliza atrás de você no escuro, mordisca seu calcanhar e desaparece sem dar qualquer explicação – além de outros cães insignificantes, que ganiam e uivavam. Mantinham uma distância respeitável do malévolo cão amarelo, pois era perigoso aproximar-se dele quando ele acreditava ter encontrado algo que pudesse servir de alimento para um cão. Ele farejou o cartucho duas vezes, e estava exatamente farejando pela terceira vez quando... A pólvora era de muito boa qualidade – uma marca nova que Dave havia comprado recentemente em Sydney; e o cartucho tinha sido muitíssimo bem feito. Andy fora muito paciente e cuidadoso em tudo o que fizera, e quase tão habilidoso quanto, na média, um marinheiro é com bússolas, barbante, lona e corda. Os mateiros dizem que aquela cozinha pulou fora das estacas e voltou novamente ao lugar. Quando a fumaça e a poeira se dissiparam, os restos do perverso cão amarelo jaziam ao lado da paliçada no quintal e parecia que ele havia sido chutado por um cavalo para dentro de uma fogueira e depois empanado na poeira acumulada debaixo de uma carriola e, finalmente, lançado
de uma boa distância contra a paliçada. Vários cavalos de sela, que estavam ‘atrapalhando’ ao redor da varanda, galopavam desembestados pela estrada em nuvens de poeira, as rédeas soltas voando; e de um círculo nas cercanias, de cada ponto desse perímetro do matagal, vinha o uivo de cães. Dois deles foram para casa, para o lugar onde haviam nascido, distante quase cinquenta quilômetros; chegaram lá na mesma noite e lá ficaram; não foi senão perto do anoitecer que o restante veio, com muito cuidado, investigar melhor o que havia acontecido. Um deles tentava andar sobre duas pernas e a maior parte parecia mais ou menos chamuscada; e um cãozinho bem pequeno, tisnado, rabicurto, que tinha o hábito de pular com a parte traseira em uma perna só, tinha razão de se sentir feliz por ter conseguido salvar a outra perna durante todos aqueles anos, pois agora precisava dela. Havia também um velho cão boiadeiro, cego de um olho, que durante muitos anos depois viveu ao redor da cabana, e que não suportava o cheiro de um revólver sendo limpo. Além do cão perverso, foi ele que demonstrou interesse pelo cartucho de pólvora. Os sertanejos diziam que era divertido esgueirar-se do lado em que ele não enxergava e enfiar uma vareta de espingarda suja em seu nariz: ele nem se dava ao trabalho de usar seu único olho para ver o que era; embrenhava-se no mato e lá ficava a noite inteira. Cerca de meia hora depois da explosão ainda havia vários mateiros atrás do estábulo, agachados, de cócoras, encostados na parede ou suavemente envolvidos pela poeira, tentando rir sem fazer muito alarido. Duas mulheres brancas estavam histéricas dentro da casa e uma mestiça corria sem direção com uma caneca de água fria. O proprietário do bar segurava firmemente a esposa e, entre cada grasnido e outro que ela emitia, implorava “pelo amor que você tem por mim, Mary, pare com isso ou vou espancar você até a morte”. Dave decidiu pedir desculpas mais tarde, “quando as coisas se acalmaram um pouco”, e voltou para o acampamento. E o grande Tommy, o cão
que havia provocado tudo aquilo, o retriever vira-lata e idiota, veio salivando para perto de Dave, cujas pernas açoitou com o rabo, e foi com ele para casa, com seu riso mais largo, mais longo e mais vermelho, cheio de amabilidade e aparentemente satisfeito com a grande diversão que havia tido naquela tarde. Andy prendeu o cão com segurança e preparou mais algumas postas de carneiro, enquanto Dave ajudava Jim a sair do buraco. E, em grande parte, é por essa razão que, anos mais tarde, mateiros magricelas, calmos e despreocupados, cavalgando pelo acampamento de Dave, com um jeito de falar bem pachorrento e que sugeria um som levemente nasal gritavam: – E ããí, Da-a-ve! Pegãããndo muuuito paixe hõje, Da-a-ve?
Tradução: Alzira Leite Vieira Allegro
criação: angela kina | carlos santana