Os Enxadristas Premchand (Dhanpat Rai Srivastav – 1880-1936)
Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução
Os Enxadristas Premchand (Dhanpat Rai Srivastav – 1880-1936)
Premchand (Dhanpat Rai Srivastav – 1880-1936) Premchand nasceu em um vilarejo perto de Benares, Índia; de família humilde, é considerado um dos maiores escritores indianos do início do século XX. Estudou a língua persa; aprendeu urdu e hindi. Autor de vários romances, mais de trezentos contos, ensaios e peças de teatro nestas duas últimas línguas, criou um novo estilo na literatura indiana: descartou os contos românticos do passado em favor de retratos mais realistas de problemas sociais, entre os quais encontram-se questões relativas às castas sociais, à pobreza, corrupção, colonialismo etc. Seu primeiro livro de contos foi publicado em 1909, em urdu, e por volta de 1916 ele o verteu para a língua hindi.
Os enxadristas Foi na época de Wajid Ali Shah.1 Lucknow estava profundamente mergulhada em uma vida exuberante. Nobres e humildes, ricos e pobres, todos afundavam-se em ostentação. Enquanto uns organizavam festas com dança e canto, outros deleitavam-se no êxtase soporífero do ópio. Em todas as esferas da vida, o prazer e o júbilo reinavam supremos. Os deleites de uma vida de opulência permeavam o governo, o mundo literário, a ordem social, as artes e ofícios, a indústria, a culinária – praticamente tudo. Os burocratas estavam imersos em sensualidade bruta; os poetas, na descrição de amantes e dos sofrimentos da separação; os artesãos, na criação de padrões intrincados de fios de ouro e prata e bordados; os mercadores, na venda de pintura para os olhos, perfumes, unguentos e corantes para os dentes. Todos os olhares estavam ofuscados, intoxicados pelo luxo. Ninguém tinha consciência alguma do que estava acontecendo no mundo. Havia rinha de codornas, apostas em brigas de perdiz. Aqui, o tecido para o jogo de causar esticado; ali, gritos de “Que sorte, tirei um ás e doze nos dados!”. E acolá, uma ardorosa partida de xadrez começava. Do rei ao mendigo, todos estavam tomados pelo mesmo espírito bufão, até o ponto em que, quando recebiam dinheiro, os mendigos não o gastavam em pão, mas em ópio ou madak.2 Jogando xadrez, cartas ou ganjifa,3 os raciocínios se aguçavam, os processos mentais se desenvolviam, as pessoas acostumavam-se a resolver problemas complexos – argumentos desse tipo eram apresentados com grande veemência. (Nem mesmo hoje o mundo
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O último rei de Oudh (Avadh); a história se passa em 1856. (N.T.)
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Entorpecente preparado com ópio. (N.T.)
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Tipo de jogo de cartas. (N.T.)
está livre desse tipo de convicção!) Então, se Mirza Sajjadi Ali e Mir Raushan Ali passavam a maior parte do tempo aguçando o raciocínio, que pessoa sensata poderia discordar? Ambos eram senhores de propriedades herdadas e não precisavam se preocupar com renda, de modo que podiam relaxar em casa, desfrutando do ócio. Afinal, o que mais havia para fazer? Cedo, antes do desjejum, eles se sentavam, arrumavam o tabuleiro, organizavam as peças do jogo de xadrez e davam início aos estratagemas de guerra. Dali em diante, mal tinham ciência se era meio dia, tarde ou noite. Repetidas vezes, alguém chamava da cozinha, dizendo que o jantar estava pronto, e a resposta era: “Pode servir, já estamos indo, arrume a mesa”. Chegava um ponto em que a cozinheira, desesperada, servia a refeição na sala, e os dois amigos seguiam com as duas atividades – comer e jogar – simultaneamente. No lar de Mirza Sajjad Ali não havia idosos; então, os jogos ocorriam na sala de estar. Mas não se podia dizer que as outras pessoas que lá viviam sentiam-se felizes com aqueles eventos. E não apenas os moradores, mas os vizinhos e até mesmo os criados amiúde faziam comentários maldosos. “Esse jogo não presta! Isso está destruindo a família. Que os céus impeçam que qualquer um fique viciado; seria totalmente inútil a Deus e aos homens, em casa ou no mundo! Isso é uma doença terrível.” Até a mulher de Mirza, a Begam 4 Sahiba, odiava tanto tal jogo que procurava repreender o marido sempre que podia. Mas era difícil encontrar uma ocasião, pois o jogo começava antes de ela se levantar e à noite Mirzaji não raro aparecia no quarto somente depois de ela ter se recolhido. Mas os criados, óbvio, sentiam a força plena de sua fúria. – Ele pediu paan, não foi? Bem, diga a ele que venha buscá-lo aqui! Ele não tem tempo para o jantar? Então vá e despeje-o sobre a cabeça dele, ele
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Muçulmana de alto status social na Índia e no Paquistão. (N.T.)
pode comer ou dar aos cães! Mas ela não podia dizer nada na frente dele. Estava menos irada com ele do que com Mir Sahib, que ela chamava de Mir, o Desordeiro. É possível que Mirzaji tenha botado toda a culpa em Mir para eximir-se dela. Um dia, Begam Sahiba sentiu muita dor de cabeça; disse à criada: – Vá e chame Mirza Sahib e peça a ele que busque um remédio com o médico. Rápido, corra! Quando a criada foi até ele, Mirzaji disse: – Espere um pouco, já estou indo. A zanga de Begam Sahiba explodiu com isso. Quem podia aguentar um marido jogando xadrez enquanto ela padecia de dor de cabeça? Seu rosto ficou escarlate. Ela disse à criada: – Vá e diga que se ele não vier imediatamente, eu irei ao médico sozinha.5 Mirzaji estava imerso em uma partida muito interessante, com mais duas jogadas ele poria Mir Sahib em xeque-mate. Irritado, ele disse: – Ela não está no leito de morte, está? Ela não pode ter um pouco de paciência? – Ora! – disse Mir. – Vá e veja o que ela tem a dizer. Mulheres podem ser melindrosas, você sabe. – É verdade! Por que eu não iria? – retrucou Mirza. – Vou colocar você em xeque-mate em duas jogadas. – Meu caro colega, é melhor não contar com isso. Pensei numa jogada que o colocará em xeque-mate com todas as suas peças ainda no tabuleiro. Mas vá agora, ouça sua mulher; por que ferir seus sentimentos sem motivo?
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Para uma dama aristocrata no purdah, sistema de reclusão da mulher introduzido pelos mu-
çulmanos e posteriormente adotado por diversos hindus, isso não seria apropriado. (N.T.)
– Somente irei depois que eu puser você em xeque-mate. – Então não jogarei. Vá e veja o que ela quer. – Terei de ir ao médico, meu velho. Não é apenas uma simples dor de cabeça; é uma desculpa para me irritar. – Seja lá o que for, você deve mesmo ceder aos caprichos dela. – Muito bem, mas deixe-me fazer apenas mais um movimento. – De maneira alguma; enquanto você não for até ela, não tocarei em nenhuma peça. Quando Mirza Sahib sentiu-se obrigado a ver o que a mulher queria, Begam Sahiba estava franzindo o cenho, mas disse com um gemido: – Você ama tanto esse maldito xadrez que nem mesmo se alguém estivesse morrendo, pensaria em parar de jogar! Que os céus proíbam que haja outro homem como você! Mirza retrucou: – O que posso lhe dizer? Mir Sahib simplesmente não concordava. Passei maus bocados para convencê-lo a esperar um pouco e vir aqui. – Será que ele pensa que todos são inúteis como ele? Ele não tem filhos também ou já acabou com a vida deles? – Ele é totalmente maluco por xadrez – comentou Mirza. – Sempre que vem aqui, sou obrigado a jogar com ele. – Por que você não lhe passa uma descompostura? – Ele tem a mesma idade que eu e está um pouco acima de mim na hierarquia, eu lhe devo cortesia. – Nesse caso, eu lhe passarei uma descompostura! Se ele ficar nervoso, não importa. Afinal de contas, é ele que nos sustenta? Como dizem, “Se a rainha ficar amuada, ela irá magoar apenas a si própria. Hiriya! – ela chamou a empregada. – Vá lá fora, retire o tabuleiro de xadrez e diga a Mir Sahib: “O patrão não jogará agora e pede-lhe a gentileza de se retirar”.
– Pelos céus, não faça uma coisa tão ultrajante! – disse Mirza. – Quer me desgraçar? Espere, Hiriya, aonde você vai? – Por que não a deixa ir? Qualquer um que a impedir estará me matando! Pois muito bem, então, segure-a, mas quero ver se você é capaz de me impedir. Dizendo isso, Begam Sahiba seguiu para a sala de estar num humor terrível. O pobre Mirza empalideceu. Começou a implorar à mulher: – Por Deus, em nome do sagrado Profeta Husain! Se você for até ele, será como me ver em meu funeral! Porém, Begam não prestou a menor atenção ao que ele disse. Mas quando, num repente, ela alcançou a porta da sala de estar, prestes a aparecer diante de um homem que não era da casa, sentiu as pernas paralisadas. Espiou lá dentro e, ao fazê-lo, viu que o aposento estava vazio. Mir Sahib fizera uma pequena mudança nas peças do xadrez e agora passeava lá fora, de modo a demonstrar sua inocência. A próxima coisa que aconteceu foi que Begam entrou, derrubou o tabuleiro de xadrez, jogou algumas peças debaixo do sofá e outras para fora e, em seguida, fechou as duas folhas da porta e trancou-as. Mir Sahib estava justamente do lado de fora. Quando viu as peças sendo lançadas e o tilintar das pulseiras chegou aos seus ouvidos, percebeu que Begam Sahiba estava furiosa. Silenciosamente, tomou o rumo de casa. Mirza falou: – Você fez uma grande ofensa! – Se Mir Sahib voltar, vou dar-lhe um pontapé e expulsá-lo daqui imediatamente. Se você devotasse esse fervor a Deus, seria um santo. Você fica jogando xadrez enquanto trabalho como uma escrava para cuidar da casa? Vai ao médico ou ainda está postergando? – ela perguntou. Quando saiu da casa, Mirza, em vez de ir ao médico, foi à casa de Mir Sahib e contou-lhe toda a história. Mir Sahib disse: – Foi o que pensei quando vi as peças do xadrez voando para fora. Saí de
pronto. Ela parece perder a cabeça com facilidade. Mas você a mima demais, e esse não é o jeito de se fazer as coisas. Por que ela se preocupa tanto com o que você faz longe da parte que lhe cabe na casa? A obrigação dela é cuidar da casa. O que ela tem a ver com o resto? – Bem, e agora, diga-me: onde vamos nos encontrar? – Não se preocupe, esta casa é muito grande; então, fica combinado: nós nos encontraremos aqui. – Mas como vou aplacar a ira de Begam Sahiba? Ela ficou furiosa quando sentei para jogar em casa. Se eu jogar aqui, isso pode me custar a vida. – Deixe-a papaguear. Em poucos dias ela se acalmará. Mas, claro, você precisa demonstrar um pouco mais de determinação.
Por algum motivo desconhecido, a Begam de Mir Sahib considerava muito apropriado que o marido ficasse longe de casa. Por esse motivo, ela nunca antes havia criticado os seus jogos de xadrez; pelo contrário, se ele se atrasava para sair, ela o lembrava. Por esses motivos, Mir Sahib fora levado a pensar que sua esposa fosse extremamente séria e humilde. Mas quando começaram a montar o tabuleiro de xadrez na sala de estar e Mir Sahib passou a ficar o dia todo em casa, Begam Sahiba ficou muito aflita. Era um obstáculo à sua liberdade, e durante o dia todo ela ansiava por ir até a porta e olhar para fora. Nesse ínterim, os serviçais começaram a mexericar. Antes eles ficavam o dia inteiro no ócio; se alguém vinha até a casa, se alguém saía, não era da conta deles. Agora, eles viviam com medo as vinte e quatro horas do dia. Vinham pedidos de paan, depois de doces. E, como o coração de algum amante, o narguilé tinha de ficar queimando constantemente. Eles iam até a patroa e diziam: “O jogo de xadrez do patrão está trazendo muitos problemas para
nós. Ficamos com bolhas nos pés por correr o dia todo para lá e para cá. Que tipo de jogo é esse que começa ao raiar do dia e vai até o romper da noite? Diversão para uma hora ou duas é o bastante para qualquer jogo. Claro que não estamos nos queixando; somos seus criados, naturalmente cumpriremos qualquer ordem da senhora; mas esse jogo é mesmo nocivo! Aquele que o joga nunca prosperará, e certamente alguma desgraça recairá sobre sua casa. Pode chegar a um ponto em que um bairro após o outro comece a se deteriorar e acabe arruinado. Todos nesta parte da cidade estão falando sobre isso. Comemos do seu pão, lamentamos ouvir palavras ruins sobre o patrão, mas o que podemos fazer?”. Ouvindo isso, Begam Sahiba disse: – Também não gosto dessa situação, mas ele não ouve ninguém, então o que se pode fazer? No bairro também havia algumas pessoas de uma geração anterior que começavam a imaginar todos os tipos de desastres: “Agora não há esperança. Se nossos nobres estão desse jeito, então que Deus acuda nosso país! Esse jogo de xadrez será a ruína de nosso reino. São terríveis os presságios”. O império todo estava em polvorosa. Pessoas eram roubadas à luz do dia e não havia ninguém para ouvir seus apelos. Toda a riqueza do interior fora atraída para Lucknow para ser desperdiçada com prostitutas e bufões e para a satisfação de todo tipo de vício. A dívida com a Companhia das Índias Ocidentais crescia dia após dia, e dia após dia a miséria geral ficava mais difícil de suportar. Em todo o país, pelas péssimas condições, os impostos anuais não eram mais recolhidos. Com frequência, o ministro britânico residente alertava-os, mas todos em Lucknow estavam tão mergulhados na intoxicação da indulgência sensual que nenhuma criatura mostrava a mínima preocupação. Pois bem, os jogos de xadrez continuaram na sala de estar de Mir Sahib por diversos meses. Novas estratégias foram armadas, novas defesas organi-
zadas, e as mais novas formações de batalha planejadas. De tempos em tempos, irrompiam discussões entre eles enquanto jogavam, e chegaram ao ponto de trocar insultos vulgares; mas rapidamente a paz era restaurada entre os dois amigos. Às vezes, interrompiam o jogo, Mirzaji voltava para casa aborrecido e Mir Sahib recolhia-se a seus aposentos. Com uma boa noite de sono, entretanto, todos os ressentimentos eram apaziguados; de manhãzinha, os dois amigos reapareciam na sala de estar. Um dia, quando eles estavam sentados, pensando seriamente nos espinhosos problemas do xadrez, um oficial do exército real chegou montado num cavalo e perguntou por Mir Sahib. Este entrou em pânico, imaginando qual desastre estaria prestes a lhe desabar sobre a cabeça. Por que fora convocado? O caso parecia sério. Aos serviçais ele disse: – Digam-lhe que não estou em casa. – Se ele não está em casa, onde está? – o cavaleiro perguntou. O serviçal disse que não sabia – do que se tratava? – Como posso dizer a você do que se trata? – retrucou o oficial. – Talvez o exército esteja convocando soldados. Não é piada, já que ele é dono de propriedades isentas. Quando tiver de ir às linhas do front, ele descobrirá do que se trata. – Muito bem, pode ir; ele será informado. – Não é apenas uma questão de informá-lo. Voltarei amanhã. Tenho ordens de levá-lo comigo. O cavaleiro se foi. Mir Sahib tremia, aterrorizado. Ele disse a Mirzaji: – Diga-me, senhor, o que acontecerá agora? – É um grande infortúnio! E se eu também for convocado? – O desgraçado disse que voltará amanhã. – Sem dúvida, é uma calamidade. Se tivermos de ir ao front, morreremos antes do tempo.
– Agora, ouça, há uma saída: não nos encontraremos mais aqui em casa. A partir de amanhã, jogaremos em algum lugar deserto, às margens do Gomti. Quem poderia nos encontrar lá? Quando aquele gentil camarada vier para me buscar, voltará sem ninguém. – Por Alá, que ideia esplêndida! Com certeza essa é a melhor solução. Enquanto isso, a Begam de Mir Sahib dizia ao oficial da cavalaria: – O senhor os afastou de um jeito muito eficiente. Ao que ele respondeu: – Estou acostumado a fazer idiotas desse tipo dançarem conforme a minha música. O xadrez roubou deles todo o bom senso e a coragem. Depois disso, não ficarão mais em casa, aconteça o que acontecer.
A partir do dia seguinte, os dois amigos saíam de casa ao romper da aurora, levando com eles um tapete relativamente pequeno e uma caixa de paan assado, e iam para o outro lado do rio Gomti, até uma antiga mesquita em ruínas que provavelmente fora construída na época de Nawab Asafuddaula.6 Pelo caminho eles pegavam tabaco, um cachimbo e um pouco de vinho, abriam o tapete na mesquita, enchiam o narguilé e sentavam-se para jogar. Depois disso, não precisavam se importar nem com este mundo, tampouco com o além. Nenhuma outra palavra lhes vinha à boca, senão ‘xeque’ e ‘xeque-mate’. Nenhum iogue conseguiria ficar tão mergulhado num transe. Por volta do meio-dia sentiam fome; iam até alguma padaria para comer alguma coisa, fumavam uma porção de tabaco e então voltavam a se dedicar à batalha. Às vezes se esqueciam até mesmo de comer.
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Governador de Oudh entre 1775 e 1797; seu reinado foi notável pela libertinagem e pela cons-
trução de muitos edifícios, especialmente mesquitas. (N.T.)
Nesse ínterim, a situação política do país chegava às raias do desespero. Os exércitos da Companhia das Índias Orientais avançavam sobre Lucknow. Houve comoção na cidade. Pais pegavam os filhos e fugiam para o interior. Mas nossos dois jogadores não estavam sequer preocupados com isso. Quando deixavam suas casas, seguiam pelas travessas estreitas, temendo encontrar algum oficial do governo que pudesse avistá-los e forçá-los ao serviço militar. Queriam aproveitar os ótimos rendimentos de suas propriedades, da ordem dos milhares, sem dar nada em troca. Um dia, os dois amigos estavam sentados na mesquita em ruínas, jogando xadrez. O jogo de Mirza estava bastante fraco e Mir Sahib o colocava em xeque a cada movimento. Ao mesmo tempo, era possível ver os soldados da Companhia se aproximando. Era um exército de europeus em marcha para impor seu governo a Lucknow. Mir Sahib disse: – O exército britânico está chegando. Deus nos salve! Mirza retrucou: – Deixe que venham, mas agora saia do xeque. – Talvez devêssemos dar uma olhada; vamos ficar num lugar onde não possam nos ver. – Você pode olhar mais tarde; que pressa é essa? Xeque de novo. – Eles têm artilharia também. Deve haver cerca de cinco mil homens. Que soldados estranhos! Eles têm o rosto vermelho como o de macacos, é realmente assustador. – Não tente fugir, meu senhor! Use esse truque com outro. Xeque-mate! – Que camarada estranho você é! Nossa cidade foi atingida pela calamidade e você só pensa no xeque-mate. Tem ideia de como chegaremos em casa, se a cidade está cercada? – Quando chegar a hora de ir para casa, veremos o que fazer. É xeque-
-mate, seu rei está morto agora. O exército passou marchando. Eram dez da manhã. Um novo jogo começou. Mirza disse: – Como faremos com a comida hoje? – Bem, hoje é dia de jejuar; você está sentindo mais fome do que de costume? – Não, de modo algum. Mas eu me pergunto o que está acontecendo na cidade. – Nada está acontecendo na cidade. As pessoas estão jantando e deitando-se confortavelmente para uma sesta. Sem dúvida, o rei está em seu harém. Quando eles se sentaram para jogar novamente eram três horas. Desta vez, era o jogo de Mirzaji que estava fraco. Tinha acabado de bater quatro horas quando eles ouviram o exército marchando de volta. Nawab Wajid Ali fora feito prisioneiro e o exército o levava para algum destino desconhecido. Na cidade não houve comoção, nem massacre, nenhuma gota de sangue foi derramada. Até agora, nenhum rei de um país independente conseguira ser derrubado de forma tão pacífica, sem nenhuma carnificina. Não era a falta de violência que alegrava os deuses, mas o tipo de covardia que faz com que covardes ainda maiores derramem lágrimas. O rei do enorme país de Oudh deixava-o como prisioneiro, e Lucknow permanecia afundada em seu torpor hedonista. Era o estágio final da decadência política. Mirzaji comentou: – Esses tiranos prenderam Sua Majestade. – Acredito que sim. Veja aqui – xeque. – Um momento, senhor, não estou disposto a isso agora. O pobre rei deve estar derramando lágrimas de sangue neste instante. – Tenho certeza de que está. Que regalias ele terá como prisioneiro? Xeque-mate!
– Todos devem sofrer alguma mudança em seu destino – disse Mirza. – Mas que situação dolorosa! – É verdade, as coisas são assim mesmo. Olhe, xeque-mate! Acabou, você não conseguirá sair dele agora. – Por Deus, seu coração é de pedra! Você consegue assistir a uma grande catástrofe como essa e não sentir angústia. Ai, pobre Wajid Ali Shah! – Primeiro salve seu próprio rei, depois pode chorar por Sua Majestade. É xeque-mate agora. Sua vez! O exército passou, levando o rei. Assim que eles desapareceram, Mirza montou novamente o tabuleiro. A aguilhoada da derrota é amarga. Mir disse: – Venha, vamos compor uma elegia para Sua Majestade. Mas o patriotismo de Mirza havia desaparecido com sua derrota. Ele estava ávido por vingança.
Era noite. Nas ruínas, as andorinhas estavam voltando e pousando em seus ninhos; os morcegos começavam a trissar. Mas os jogadores ainda estavam ali, como dois guerreiros, sedentos de sangue, se digladiando. Mirzaji havia perdido três jogos seguidos; as perspectivas para o quarto jogo também não eram boas. Ele executava cuidadosamente cada movimento, determinado a ganhar, mas todos eles pareciam tão mal planejados que seu jogo se deteriorava cada vez mais. De sua parte, Mir Sahib cantava uma canção de amor e estalava os dedos em perfeita animação, como se tivesse encontrado algum tesouro escondido. Ouvindo-o, Mirzaji ficou furioso, mas o elogiava para ocultar sua exasperação. No entanto, à medida que o jogo piorava, sua paciência começou a sair do controle até chegar ao ponto de ele se enfurecer com qualquer coisa que Mir dissesse. – Não mude seu movimento, senhor – ele disse. – Como você pode vol-
tar um movimento? Qualquer movimento que fizer, faça-o apenas uma vez. Por que sua mão está nesta peça? Deixe-a em paz! Enquanto não decidir que movimento fará, não toque na peça! Você está demorando meia hora para cada movimento; isso é contra as regras. Qualquer um que leve mais de cinco minutos para fazer um movimento pode ser considerado sob xeque-mate. Você mudou seu movimento de novo! Fique quieto e ponha esta peça de volta no lugar. A rainha de Mir Sahib estava em perigo. Ele disse: – Mas quando foi que fiz um movimento? – Você já fez. Coloque a peça de volta, na mesma casa. – Por que devo colocar nesta casa? Quando foi que tirei a mão da peça? – Mesmo que espere até o Juízo Final para fazer seu movimento, você ainda terá de fazê-lo. – É você quem está trapaceando! Vitória e derrota dependem do destino; não se pode vencer pela trapaça. – Então, está decidido. Você perdeu esta partida. – Como foi que perdi? – Então ponha a peça de volta na mesma casa onde ela estava. – Por que devo colocá-la de volta? Não vou fazer isso! – Por que você deve colocá-la de volta? Você tem de colocá-la lá. A querela estava piorando. Cada qual firme em sua posição e nenhum deles cederia um milímetro ao outro. A conversa dos dois começava a passar por assuntos irrelevantes. Mirza comentou: – Se alguém em sua família tivesse jogado xadrez alguma vez na vida, então você poderia estar a par das regras. Mas eles eram apenas jardineiros. Então, como se pode esperar que você jogue xadrez? A verdadeira aristocracia é muito diferente. Ninguém pode se transformar em nobre apenas por ter recebido algumas propriedades isentas. – O quê? Seu próprio pai teve de cortar grama! Meu povo joga xadrez
há gerações. – Pare com isso! Você passou a vida inteira trabalhando de cozinheiro na casa de Gaziuddin Haidar e agora fica aí, posando de aristocrata. – Por que está difamando seus próprios ancestrais? – perguntou Mir. – Todos eles devem ter sido cozinheiros. Meu povo sempre fez as refeições na mesa do rei. – Pare com essa bazófia, seu cortador de grama! – Dobre sua língua ou se arrependerá! Não aguentarei uma discussão como esta. Arranco os olhos de qualquer um que me olhe feio. Você tem coragem para isso? – Então você quer descobrir o quanto sou corajoso? Venha, vamos tirar isso a limpo, sejam lá quais forem as consequências. Mir retrucou: – E quem você acha que vai deixá-lo fazer ameaças? Os dois amigos puxaram as espadas dos cinturões. Eram tempos de cavalaria, quando todos saíam por aí portando espadas, adagas, punhais e afins. Ambos eram libertinos, mas não covardes. Se eram politicamente degradados, por que deveriam morrer pelo rei ou pelo reino? Mas não lhes faltava coragem pessoal. Desafiaram-se formalmente, as espadas faiscaram, houve um clangor. Os dois caíram feridos, contorceram-se e morreram em seguida. Não derramaram uma lágrima sequer pelo seu rei, mas abdicaram da vida para proteger uma rainha de xadrez. A escuridão aproximava-se. O tabuleiro de xadrez estava montado. Os dois reis, cada qual em seu trono, estavam sentados lá, como se lamentassem a morte desses dois heróis. O silêncio se espalhou sobre tudo. As arcadas semidestruídas das ruínas, as paredes esboroadas e os minaretes empoeirados contemplaram os cadáveres e lamentaram.
Tradução do hindi para o inglês de David Rubin Tradução para o português de Flávia Souto Maior e Petê Rissatti
criação: angela kina | carlos santana