A Histรณria dos Duendes que Roubaram o Sacristรฃo Charles Dickens (1812-1870)
Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução
A Histรณria dos Duendes que Roubaram o Sacristรฃo Charles Dickens (1812-1870)
Charles Dickens (1812-1870) Charles (John Huffam) Dickens nasceu em Portsmouth, Inglaterra. Foi um dos romancistas ingleses mais populares da época vitoriana. Sua obra inclui muitos contos e romances; entre os últimos destacam-se As aventuras do Sr. Pickwick (1836-1837), David Copperfield (1849-1850), Oliver Twist (18371839), Grandes esperanças (1860-1861), Casa desolada (1852-1853) e Tempos difíceis (1854). As dificuldades financeiras que enfrentou na infância (seu pai foi preso por ter contraído dívidas) estão refletidas em sua obra. Leitor voraz de Smollet, Fielding e Cervantes, entre outros, Dickens estabeleceuse como romancista de humor e, ao mesmo tempo, como romancista de costumes, tendo trazido grande contribuição para a crítica social na literatura inglesa.
A História dos Duendes que Roubaram o Sacristão Num antigo vilarejo onde havia uma abadia, bem aqui nesta região do país, há muito, muito tempo, há tanto tempo que a história deve até ser verdadeira, já que nossos bisavós nela acreditavam piamente, exercia a função de sacristão e coveiro da igreja um tal Gabriel Grub (conhecido como o papa-defuntos). Não se deve supor, de forma alguma, que por ser sacristão e coveiro, sempre rodeado de símbolos fúnebres, um indivíduo seja obrigatoriamente sombrio e melancólico; agentes funerários são os tipos mais felizes do mundo; e certa feita tive a honra de privar da companhia de um sujeito de poucas palavras que, na intimidade e nas horas de folga, era um camarada tão engraçado e brincalhão como nunca se viu; cantava canções burlescas, com uma voz esganiçada, sem vacilar; entornava um belo caneco de grogue, e nem mesmo parava para respirar. Não obstante tais precedentes em contrário, Gabriel Grub era um indivíduo mal-humorado, perverso e arrogante – um homem taciturno e solitário, que não se relacionava com ninguém a não ser consigo mesmo e uma velha botelha de vime que cabia no amplo bolso de seu colete; encarava cada rosto alegre que por ele passasse com uma carantonha tão maldosa e mal-humorada, que era difícil reciprocar seu olhar sem sentir algo de ruim. Em uma véspera de Natal, pouco antes do crepúsculo, Gabriel acomodou a pá no ombro, acendeu o lampião e se pôs a caminho do cemitério da velha igreja, pois tinha uma cova para terminar de cavar até a manhã seguinte, e como estava macambúzio, pensou que talvez ficasse mais animado se reiniciasse imediatamente o trabalho. Enquanto subia a viela antiga, via através das velhas janelas o brilho da luz festiva do fogo das lareiras a crepitar e escutava as risadas ruidosas e os gritos entusiasmados daqueles que se reuniam ao redor do lume; percebeu a agitação dos preparativos para os festejos do dia seguinte e sentiu os cheiros apetitosos que se multiplicavam em nuvens de
vapor e que exalavam a todo momento das janelas das cozinhas. Para o coração de Gabriel Grub, isso tudo representava amargura e ressentimento; e ao ver os grupos de crianças que, correndo, saíam de suas casas e atravessavam a rua aos pulos, para serem recebidas, antes mesmo de baterem às portas do outro lado, por meia dúzia de garotos travessos de cabelos cacheados, que se juntavam ao redor delas enquanto subiam as escadas para passar a noite divertindo-se com suas brincadeiras de Natal, Gabriel exibiu um sorriso maldoso e agarrou com força o cabo de sua pá, enquanto pensava em sarampo, escarlatina, sapinho, coqueluche e em tantas outras evocações consoladoras. Nesse animador estado de espírito, Gabriel caminhava a passos largos, retribuindo com um breve e enfezado resmungo cada saudação bem-humorada desses vizinhos que encontrava de quando em vez, até entrar na viela escura que levava ao cemitério. Gabriel não via a hora de chegar àquele beco sinistro, um lugar que, de certa maneira, lhe era agradável, melancólico e triste, e por onde os moradores do lugarejo não faziam muita questão de passar, a não ser em plena luz do dia e, ainda assim, somente quando o sol brilhava; por esse motivo, qual não foi sua indignação ao ouvir um moleque cantando em voz alta uma alegre canção natalina, justamente nesse santuário, conhecido por Beco do Caixão desde os tempos da antiga abadia, à época dos monges de cabeça raspada. À medida que Gabriel prosseguia e a voz se aproximava, descobriu que esta pertencia a um garotinho que corria para juntar-se a uma das festividades na velha viela e que, em parte pela companhia, em parte antecipando-se à ocasião, berrava a canção a plenos pulmões. Gabriel aguardou até que o garoto se aproximasse, e então, encurralou-o num canto, lascando-lhe uns cinco ou seis cascudos na cabeça com seu lampião, só para ensiná-lo a modular a voz. E quando o menino saiu correndo com a mão na cabeça, cantando num tom bem diferente, Gabriel Grub riu com gosto e entrou no cemitério, trancando o portão atrás de si.
Tirou o casaco, ajeitou o lampião, entrou na cova inacabada e trabalhou por cerca de uma hora, com grande animação. Mas o solo fora endurecido pela neve, o que tornava a tarefa de cavar um tanto árdua; e, embora a lua já tivesse aparecido, era o início da lua nova, e ela mal iluminava a sepultura, que ficava sob a sombra da igreja. Em qualquer outro dia, tais obstáculos teriam deixado Gabriel Grub muito mal-humorado e infeliz; no entanto, ele estava tão satisfeito por ter posto um fim à toada do petiz, que não se importou com o pequeno progresso que fizera. Quando terminou o trabalho daquela noite, olhou para a sepultura com grande satisfação, murmurando ao juntar suas coisas: Esplêndidas alcovas, magníficas moradas, Sete palmos de terra gelada, ao fim da empreitada. Uma lápide à cabeça, uma lápide aos pés. Aos vermes regala lauto pasto, sem revés. Rica relva sobre a cabeça e a lama serve de manto, Esplêndidas alcovas estas, em solo santo. – Ha! Ha! – riu Gabriel Grub, ao sentar-se numa lápide plana, seu local de descanso predileto. Pegou a botelha de vime. – Um caixão no Natal! Uma Caixa de presente de Natal! Ha! Ha! Ha! – Ha! Ha! Ha! – repetiu uma voz que parecia estar logo atrás dele. Ia levando a botelha de vime aos lábios, quando parou alarmado; olhou ao redor: próximo a ele, o túmulo mais antigo se achava tão imóvel e quieto quanto todo o cemitério sob a pálida luz do luar. O gelo esbranquiçado resplandecia sobre as tumbas e brilhava como fileiras de pedras preciosas em meio aos entalhes de pedra da velha igreja. A neve se espalhava dura e fresca sobre o solo e se distribuía sobre os montículos de terra, qual coberta branca
e macia a ocultar cadáveres assemelhando-se a mortalhas. Nem o mais leve farfalhar de folhas quebrava a profunda tranquilidade do cenário solene. Até o som parecia congelado; tudo estava tão frio e quieto! – Foi só um eco – disse Gabriel Grub, erguendo novamente a botelha aos lábios. – Não foi não! – disse uma voz grave. Gabriel assustou-se e, para seu espanto e terror, sentiu-se preso ao chão, pois seus olhos pousaram numa figura que lhe fez o sangue congelar. Sentado numa lápide perpendicular, perto dele, encontrava-se uma figura estranha e sinistra, que Gabriel logo percebeu não se tratar de um ser deste mundo. Suas pernas longas e extraordinárias, que poderiam tocar o chão, estavam dobradas e cruzadas de um modo bizarro e fantástico. Seus braços vigorosos estavam expostos e as mãos apoiavam-se nos joelhos. Sobre o corpo curto e redondo vestia uma roupa justa, enfeitada com pequenas listras; uma capa curta esvoaçava em suas costas; o colarinho era formado por curiosas pontas, que faziam as vezes de rufo ou echarpe; e os sapatos tinham biqueiras pontudas enroladas. Na cabeça, usava um chapéu cônico de aba larga, enfeitado com uma única pena. O chapéu estava coberto com leve camada de neve e o duende parecia já estar confortavelmente instalado naquela lápide há pelo menos dois ou três séculos. Sentava-se completamente imóvel, com a língua para fora, sugerindo desdém; sorria para Gabriel Grub com um sorriso largo e tão irônico de que só um duende é capaz. – Não foi um eco – disse o duende. Gabriel Grub ficou paralisado; não conseguiu responder. – O que faz você aqui na véspera de Natal? – disse o duende rispidamente. – Vim cavar uma cova, senhor – gaguejou Gabriel Grub. – Que tipo de homem vaga por entre túmulos e cemitérios numa noite
como esta? – perguntou o duende. – Gabriel Grub! Gabriel Grub! – gritou um coro frenético de vozes que pareciam espalhar-se por todo o cemitério. Temeroso, Gabriel olhou ao redor, mas não havia nada lá. – O que você traz aí nessa garrafa? – perguntou o duende. – É genebra, senhor – respondeu o sacristão, tremendo mais do que nunca, pois havia comprado a bebida de contrabandistas e achava que talvez seu inquisidor pudesse pertencer ao departamento alfandegário dos duendes. – Quem é que bebe genebra sozinho? – ainda mais em um cemitério, e numa noite como esta? – inquiriu o duende. – Gabriel Grub! Gabriel Grub! – exclamaram novamente as vozes frenéticas. De esguelha, o duende lançou um olhar maldoso ao sacristão aterrorizado e então, elevando a voz, indagou: – E quem é, pois, nosso prêmio justo e legítimo? A essa indagação, o coral invisível respondeu com uma melodia que soava como as vozes de muitos coristas cantando ao som do poderoso crescendo do antigo órgão da igreja – uma melodia que aos ouvidos do sacristão chegava como uma suave brisa, para esmaecer logo a seguir num doce alento, embora ainda carregando o mesmo impacto na resposta: – Gabriel Grub! Gabriel Grub! O duende deu um sorriso largo, ainda maior que o anterior, enquanto inquiria: – Muito bem Gabriel, o que você me diz disso? O sacristão ofegava. – O que acha disso, Gabriel? – insistiu o duende, balançando vigorosamente as pernas de um lado a outro do túmulo, e olhando para as biqueiras enroladas com um ar tão satisfeito, como se estivesse a contemplar o melhor par de galochas de toda a Bond Street.
– É... é... muito curioso, senhor – respondeu o sacristão, quase morto de pavor –, muito curioso e muito bonito, mas vou já voltar e terminar o meu trabalho, senhor, se me permitir. – Trabalho! – disse o duende –, que trabalho? – A cova, senhor, cavar a cova – gaguejou o sacristão. – Ah, a cova, não é? – disse o duende –, quem faz covas enquanto todos os outros homens estão festejando, e ainda se sente feliz com isso? Novamente as vozes misteriosas responderam: – Gabriel Grub! Gabriel Grub! – Sinto muito, mas meus amigos o querem, Gabriel – disse o duende, projetando a língua para frente e atingindo a bochecha de Gabriel; e que língua mais incrível era aquela! – Sinto muito, mas meus amigos o querem, Gabriel – repetiu o duende. – Com sua permissão, senhor – respondeu o sacristão, tomado de horror –, não creio que eles possam, senhor; eles não me conhecem; acredito que os cavalheiros nunca me viram antes, senhor. – Ah, eles já o viram sim – respondeu o duende. – Nós conhecemos o homem de rosto zangado e cenho franzido, que desceu a rua esta noite, deitando seu olhar maldoso sobre as crianças, segurando a pá com mais força ainda! Conhecemos o homem que aterrorizou o petiz com a maldade invejosa do seu coração, porque o pequeno podia ser feliz e ele não. Nós o conhecemos, nós o conhecemos. Nesse momento, o duende soltou uma gargalhada alta e estridente, cujo eco retornou vinte vezes, e, jogando as pernas para o alto, ficou de cabeça para baixo, ou melhor, sustentou-se na pontinha do seu chapéu cônico, na beirada estreita da tumba, de onde deu uma cambalhota com extraordinária agilidade, indo parar bem aos pés do sacristão, lá pousando com a elegância de um alfaiate à porta de seu estabelecimento.
– Eu... eu... sinto muito, mas devo deixá-lo agora, senhor – disse o sacristão, esforçando-se para se mover. – Deixar-nos! – disse o duende. – Gabriel Grub vai nos deixar. Ha! Ha! Ha! Enquanto o duende ria, o sacristão observou, por um instante, pelas janelas, a iluminação radiante no interior da igreja, como se todo o edifício tivesse se acendido; a seguir desapareceu. O órgão começou a tocar estrepitosamente uma vigorosa ária e tropas inteiras de duendes, todos à imagem e semelhança do primeiro, começaram a surgir no cemitério, brincando de pula-sela sobre as tumbas, sem parar um instante sequer para tomar fôlego, saltando sobre as maiores dentre elas, uma após a outra, com a mais impressionante destreza. O duende que vinha à frente era um saltador excepcional e nenhum dos demais se igualava a ele. Mesmo no ápice do seu terror, o sacristão não conseguia deixar de observar que, enquanto seus companheiros contentavam-se em pular as tumbas de tamanho convencional, o primeiro pulava os jazigos de família, com gradis de ferro e tudo o mais, com tanta facilidade como se fosse uma série de postes de rua. Por fim, o jogo atingiu o momento mais emocionante; o órgão tocava cada vez mais rápido e os duendes pulavam cada vez mais ligeiros, enroscando-se, rolando pelo chão de pernas para o ar e saltando sobre os túmulos como bolas de futebol. O cérebro do sacristão ficou confuso com a rapidez dos movimentos que observava, e suas pernas vacilaram com a passagem dos espíritos diante de seus olhos. Foi quando o rei dos duendes, lançando-se em sua direção, agarrou-o pelo colarinho e ambos afundaram no chão. Quando Gabriel Grub recuperou o fôlego que a rapidez da queda havia interrompido por alguns instantes, encontrou-se no que parecia ser uma grande caverna, cercada de multidões de duendes feios e carrancudos. No centro do salão, em um assento de destaque, encontrava-se o seu amigo do cemitério e, logo atrás dele, o próprio Gabriel Grub, impedido de se mover.
– Noite fria, disse o rei dos duendes –, muito fria. Tragam-me algo para me aquecer. A essa ordem, meia dúzia de duendes serviçais, que Gabriel Grub julgou serem cortesãos, com seus perpétuos sorrisos nos lábios, desapareceu rapidamente, para retornar com um cálice contendo fogo líquido, que foi apresentado ao rei. – Ah! – gritou o duende, cujas bochechas e garganta iam ficando transparentes à medida que ele entornava a chama. – Isto realmente esquenta! Tragam cá um caneco cheio para o senhor Grub. Foi em vão que o desafortunado sacristão protestou, dizendo que não costumava tomar nada quente à noite. Um dos duendes o segurou enquanto outro lhe despejou o líquido ardente garganta abaixo, e a assembleia toda gargalhava, enquanto Gabriel tossia, sufocava e enxugava as lágrimas que caíam de seus olhos em profusão após ter engolido a bebida flamejante. – E agora – disse o rei, cutucando, impaciente, os olhos do sacristão com a ponta afilada do seu chapéu cônico, causando-lhe dor indescritível –, e agora, mostrem ao homem desventurado e sombrio algumas poucas imagens de nosso vasto repertório. Assim que o duende disse isso, uma espessa nuvem, que obscurecia o canto mais remoto da caverna, desenrolou-se aos poucos, revelando, aparentemente a uma grande distância, um pequeno aposento parcamente mobiliado, porém arrumado e limpo. Um grupo de criancinhas estava reunido junto à lareira, agarradas à camisola da mãe e pulando ao redor de sua cadeira. A mãe, de tempos em tempos, se levantava e puxava para o lado a cortina da janela, como se procurasse por algum objeto muito aguardado; a refeição frugal estava servida e uma pequena poltrona fora colocada junto à lareira. Ouviu-se uma batida à porta; a mãe a abriu e as crianças rodearam-na e bateram as mãozinhas de alegria ao verem o pai entrar. Ele estava molhado e exausto;
sacudiu a neve das roupas, enquanto as crianças o cercaram, retirando seu casaco, chapéu, bengala e luvas e, com todo o cuidado e em grande agitação, correram com os objetos para fora da sala. Então, quando o pai se sentou diante da lareira para a refeição, as crianças subiram em seus joelhos e a mãe sentou-se a seu lado, e tudo era felicidade e bem-estar. Porém, ocorreu uma mudança quase imperceptível. A cena mudou para um pequeno quarto, onde a mais bela e a mais jovem das crianças agonizava. O tom rosáceo de sua face havia se esvaído, assim como a luz de seus olhos. E no instante em que o sacristão olhou para a criança com um interesse nunca antes sentido ou conhecido, ela morreu. Seus irmãozinhos e irmãzinhas reuniram-se ao redor do catre e apertaram a mão pequenina, tão fria e inerte. E a esse toque, eles recuaram e olharam com respeito para aquele rosto infantil, pois, por mais calma, tranquila e em paz que a linda criança parecesse estar, eles sabiam que ela estava morta; também sabiam que ela era um anjo velando por eles e abençoando-os de um brilhante e feliz Paraíso. Novamente a tênue nuvem atravessou a imagem e novamente o tema mudou. Agora, o pai e a mãe estavam velhos e indefesos e o número daqueles ao seu redor havia sido reduzido a menos da metade, mas contentamento e alegria estavam estampados em cada face e brilhavam em cada olhar do grupo que, reunido em volta da lareira, contava e ouvia histórias dos tempos de outrora. Lenta e placidamente, o pai desceu à sepultura e, pouco tempo depois, aquela que compartilhara com ele todos os seus problemas e preocupações seguiu-o para um lugar de repouso e paz. Os poucos sobreviventes ajoelharam-se junto ao túmulo e regaram com lágrimas a relva verde que o cobria; depois, levantaram-se e se foram, com tristeza e pesar, mas sem amargura ou lamentos de desespero, pois sabiam que um dia se reencontrariam; e mais uma vez se misturaram ao mundo agitado, e seus contentamentos e alegrias se restabeleceram. A nuvem pairou sobre a imagem, escondendo-a do sacristão.
– O que você acha disso? – perguntou o duende, virando seu rosto redondo para Gabriel Grub. Gabriel murmurou alguma coisa sobre aquilo tudo ser muito bonito, parecendo um pouco envergonhado diante do olhar faiscante do duende. – Seu miserável! – exclamou o duende, em tom de extremo desdém. – Seu... – Ele parecia disposto a dizer mais, mas a indignação o sufocou; então, levantou uma de suas pernas muito flexíveis, erguendo-a um pouco acima da cabeça para garantir a mira, e administrou um pontapé certeiro em Gabriel Grub. Em seguida, todos os duendes que estavam a serviço rodearam o desventurado sacristão e o chutaram sem misericórdia, seguindo o costume estabelecido e invariável entre cortesãos de chutarem a quem sua realeza chutar e abraçarem a quem sua realeza abraçar. – Mostrem-lhe um pouco mais! – disse o rei dos duendes. A essas palavras a nuvem se dissipou, revelando uma rica e bela paisagem – há até hoje apenas uma que se iguala a esta e que dista perto de um quilômetro da vila da antiga abadia. O sol brilhava no céu azul e límpido, a água cintilava sob seus raios, as árvores pareciam mais verdes e as flores mais alegres sob a sua exultante influência. A água corria com um som agradável, as árvores farfalhavam à aragem que murmurava entre as folhas, os pássaros cantavam nos galhos e a cotovia trilava em alto tom sua saudação à manhã. Sim, era manhã, uma agradável e radiante manhã de verão; as mais diminutas folhinhas, a mais ínfima relva vibrava com vida. A formiga seguia sua labuta diária, a borboleta voava e se aquecia sob os raios mornos do sol, miríades de insetos abriam suas asas transparentes e festejavam suas breves, porém felizes existências. Os homens caminhavam, exultantes com o cenário, e tudo era brilho e esplendor. – Você! Seu infeliz! – clamou o rei dos duendes, em um tom ainda mais desdenhoso do que antes. E mais uma vez, o rei dos duendes agitou a perna
com um floreio, lançando-a sobre os ombros do sacristão, e novamente os duendes ali presentes imitaram o chefe. Várias vezes a nuvem foi e voltou e muitas lições ela ensinou a Gabriel Grub que, embora sentisse dores nos ombros pelos muitos chutes que os duendes lhe aplicaram, continuava a olhar as imagens com um interesse que nada conseguia arrefecer. Viu que os homens que labutavam e ganhavam seu minguado pão com o suor de vidas inteiras de trabalho eram alegres e felizes e que, para os mais ignorantes, a doce face da natureza era uma fonte infindável de alegria e felicidade. Viu que os que tinham sido acalentados com delicadeza e criados com ternura eram alegres, mesmo nas privações, e superiores ao sofrimento que esmagaria até aqueles de índole menos delicada, porque traziam dentro de si a matéria-prima da felicidade, do contentamento e da paz. Viu que as mulheres, as mais ternas e frágeis de todas as criaturas de Deus, estavam frequentemente acima da tristeza, da adversidade e da angústia, e entendeu que assim era porque elas possuíam em seus corações uma fonte inesgotável de afeto e devoção. Acima de tudo, viu que homens como ele, indiferentes diante da alegria e do júbilo dos outros, eram as ervas mais daninhas sobre a superfície da boa terra; e opondo todo o bem do mundo ao mal, concluiu que, afinal, aquele era um mundo bastante decente e respeitável. Mal ele chegou a essa conclusão, a nuvem que havia encoberto a última imagem pareceu envolver seus sentidos e aquietá-lo (o espírito). Um a um, os duendes se foram, e quando o último desapareceu Gabriel Grub adormeceu. O dia já raiara quando Gabriel Grub acordou e viu-se estirado sobre uma lápide no adro da igreja, com a garrafa de vime vazia ao seu lado e seu casaco, a pá e o lampião espalhados pelo chão e cobertos pela neve da noite anterior. O túmulo em que ele vira o duende sentado pela primeira vez estava bem à sua frente, e a sepultura em que havia trabalhado na noite anterior não estava muito longe. A princípio, ele começou a duvidar da realidade de suas
aventuras, mas a dor aguda nos ombros, quando tentou se levantar, deu-lhe a certeza de que os chutes dos duendes certamente não haviam sido imaginação. Ficou confuso novamente por não encontrar vestígios de pegadas na neve onde os duendes haviam brincado de pula-sela sobre as tumbas, mas rapidamente se deu conta das circunstâncias e lembrou-se de que, sendo espíritos, eles não poderiam deixar rastros. Assim, Gabriel Grub pôs-se em pé como pôde, por causa da dor nas costas, e, retirando a neve do casaco, vestiu-o e virou-se em direção à vila. Mas ele agora era um homem mudado e não suportava a ideia de voltar a um lugar onde pudesse ser ridicularizado e desacreditado por seu arrependimento e pela transformação por que passara. Hesitou por alguns instantes; então, deu meia volta e seguiu sem destino, em busca de sustento nalgum outro lugar. O lampião, a pá e a garrafa de vime foram encontrados naquele dia no adro da igreja. A princípio, houve grande especulação sobre o paradeiro do sacristão, mas logo se chegou à conclusão que ele fora levado pelos duendes, e ali não faltaram testemunhas de altíssima credibilidade, afirmando terem visto claramente o sacristão desaparecer no ar montado em um cavalo alazão cego de um olho, com traseiro de leão e cauda de urso. Com o tempo, tudo isso passou a ser piamente aceito e o novo sacristão costumava exibir aos curiosos, mediante pequena contribuição, um belo pedaço do cata-vento da igreja que teria sido acidentalmente quebrado por um coice do dito cavalo em sua fuga aérea, e que ele mesmo havia encontrado no cemitério um ou dois anos depois. Infelizmente, essas histórias foram um pouco abaladas com o reaparecimento inesperado do próprio Gabriel Grub, cerca de dez anos depois, um velho maltrapilho, reumático, mas contente. Ele contou sua história ao pastor e também ao prefeito; e, com o tempo, ela passou a ser aceita como fato
histórico e assim permanece até os dias de hoje. Os que acreditaram no conto do cata-vento, depois de já terem se enganado uma vez, não foram facilmente convencidos a abandonarem sua versão; assim, mostravam-se tão criteriosos quanto possível; davam de ombros, tocavam as frontes e murmuravam algo sobre o fato de Gabriel Grub ter bebido toda a genebra e depois ter adormecido na lápide do túmulo; inventaram uma explicação sobre o que Gabriel Grub acreditava ter testemunhado na caverna do duende, dizendo que ele havia visto o mundo e se tornara mais sábio. Porém, essa opinião, que não refletia de forma alguma e em momento algum o senso popular, aos poucos foi sendo esquecida; e seja como for, já que Gabriel Grub sofreu de reumatismo até o fim de seus dias, esta história, se não se presta a melhor ensinamento, tem pelo menos uma moral – ou seja, se, na época de Natal, um homem fica mal-humorado, bebe sozinho e chega à conclusão de que não se sente nem um pouco melhor por causa disso, que os espíritos sejam sempre tão bons, ou que sejam até mesmo tão alucinantes quanto os que Gabriel Grub encontrou na caverna do duende.
Tradução: Eliana Stella Pires, Maria Heloísa Gardil e Cintia Mendonça Garcia
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