Carta a banca

Page 1

Carta a banca


Eu gostaria de abrir com um poema:


[um poema foi lido em voz alta] [não cabe aqui transcrever o poema, já que um poema dito é diferente de um poema lido, mas entre a sua anunciação e os colchetes, imaginem vocês o poema, seguro na voz. Assim teremos diferentes poemas abrindo este texto e, se tivermos sorte, diferentes poemas acontecendo num mesmo dia e, quem sabe assim, uma dança íntima ameaçando nascer.]


Se o poema não pode tudo, alguma coisa fundamental pode o poema. Não me refiro aqui ao poema estrito senso, ao poema literário (e de maneira alguma o dispenso), mas sim a um estado interno, invisível, que está “entre o que sentimos e o que podemos” (Van Gogh). É neste estado interno onde me encontro com a beleza, tanto tesa quanto tenra, das coisas do mundo. E são justamente as coisas do mundo, e no mundo, que provocam e movimentam isso que é interior. Abro outras aspas: “’beleza’ um conceito tão abstrato quanto emotivo” (Júlia Hansen) e por isso mesmo tão difícil de descrever. Numa entrevista, Agnes Varda diz “podemos descobrir tanto apenas com a mise-en-scène criada pela própria vida. É preciso estar atento ao movimento que está acontecendo. Podemos fazer isso em qualquer cidade, diante do porto, diante do mar. Simplesmente observando os pequenos movimentos da vida, das sombras indo e vindo.” É justamente nessa correspondência onde passo mais tempo. Nesta paisagem? Onde o que chamamos de arte e o que chamamos de vida se confundem em situações muito similares e frequentemente muito ordinárias de beleza. E não se confundem sempre? Ordinárias, claro, no melhor sentido da palavra: comum, cotidiano, frequente. Numa uma aula de dança, uma professora, certa vez, disse que o gesto é o que segura a intenção invisível. Para mim a ação da escrita, de guardar imagens e do movimento do corpo, são os gestos que asseguram a intenção do interior no exterior e vice versa. E mesmo assim, nesse processo de tradução entre uma coisa e outra, “o que podemos” muitas vezes é trabalhar com o eco “do que sentimos”, num eterno exercício de afinação, por exemplo, ao se criar uma coisa. Ailton Krenak fala sobre como as crianças indígenas aprendem desde cedo a colocar o coração no ritmo da Terra. Esse estado interno ao qual me refiro tem a ver com isso, conservá-lo é atentar-se para o murmúrio, para o sussurro, e com ele conviver. Afinal, “traduzir é conviver” (João Guimarães Rosa). Durante a minha infância fui uma exímia “copiadora”, reproduzia desenhos e letras com uma semelhança quase vulgar. Me lembro clara-


mente da sensação furtiva ao copiar um desenho ou uma caligrafia. Esse é um hábito que ainda cultivo, mas não adestro. Sempre colhi palavras em salas de aula ou grandes auditórios, em pontos de ônibus, no cinema. Sempre me apropriei do que ativasse em mim qualquer coisa semelhante a um poema. Foi assim que comecei a escrever. Muitas vezes o objeto do meu extravio é a combinação entre duas ou três palavras razoáveis, mais do que o sentido ao qual estão servindo num determinado contexto. Por exemplo, se leio (ou escuto), “as palavras oferecem...”, me interessa muito mais a primeira parte do que aquilo que suprimo, este “o que” elas estariam oferecendo, o que faz desses pequenos furtos desvios de sentido, mais do que reproduções literais. Sempre escrevi acompanhada. Essa prática, que eu poderia confidenciar como método, é sobretudo uma prática de anotação. Guardo tudo isso que já recolhi até hoje em cadernos, documentos sortidos no computador, anotações em pequenos pedaços de papel, no telefone, em mensagens, e-mails. Diante desse volume recolhido, nem sempre anoto o autor, e com frequência me deparo com o que até então acreditava ser elaboração própria, no texto de alguém. Mas evidente e repetidamente, a minha anotação já se transformou em outra coisa, uma híbrida entre o que diz alguém e o que isso diz em mim. É nessa prática de anotação que produzo imagens, sobretudo fotografias, como as que estão presentes neste trabalho. São imagens ordinárias, feitas sem preocupação técnica, de situações que na vida cotidiana chamam a minha atenção. Imagens “terrivelmente banais” (Didi-Huberman), que para mim estão associadas também a um desejo de escrita, de anotação, de “tradução” de uma emoção ou até mesmo da sensação física que uma imagem provoca. Uma anotação muscular, eu poderia dizer. Nesse sentido essas imagens e palavras que anoto têm a mesma natureza e compõem esse grande imaginário, a partir do qual escrevo (palavra que em mim resume o processo de criação e que não está restrita apenas às palavras) e, não distantemente, vivo. A minha mais recente descoberta foi justamente a possibilidade de escrever


com imagens, literal e metaforicamente, ou ainda, inexplicavelmente. Imagens-nota, recortes, janelas. “Enquadrar é, assim, uma opção de conhecimento, ou melhor, a escolha da pergunta que você quer dirigir ao visível.” (Didi-Huberman). Talvez venham daí as perguntas do meu texto. No entanto, pode ser também que as perguntas venham de lugares desconhecidos, de lugares que existem mas que imagino pois nunca vi, como o interior do meu próprio corpo, ou de lugares mais comuns, como a cozinha. Pode ser que enquadrar seja também a escolha da pergunta que quero dirigir ao invisível, assim como escrever. Mas de novo, exterior e interior são conceitos que se confundem com frequência e que frequentemente se visitam, como duas casas vizinhas, ou duas janelas muito próximas. É também devido a esse embaraço entre arte e vida que em certa medida sou injusta quando escolho explicitar as ações de escrever, guardar imagens e movimentar o corpo para este texto como as ações que asseguram o interior no exterior e vice e versa. Há as ações de cozinhar, de fazer um presente para alguém, de brincar, de entrar no mar, de acariciar um cavalo, de conhecer uma pessoa, lavar os pés, entoar uma cantiga conhecida. E tantas outras. Me pergunto com frequência se há diferença entre a criação em mim e a criação no mundo. Se o que crio enquanto escrevo é diferente do que se cria numa dessas ações descritas acima. Talvez a diferença maior seja a maneira como isso se condensa. As maneiras. Talvez a semelhança maior seja o fato de que se cria, e ponto. Escolhi as artes, formalmente aqui as artes visuais, como a paisagem onde crio, ou, palavra que prefiro, invento. Para o motivo desta escolha já formulei inúmeras hipóteses. Suspeito, no entanto, que a minha atração decisiva pela paisagem das artes seja o seu gesto mais básico, o de “dar forma”, e que a escolha desse gesto é também a escolha de uma linguagem. O meu gesto teima em “dar forma” a fotografias, desenhos, danças, vídeos, textos, poemas, um livro, como este. É na paisagem do livro, recente, larga e aberta, que já conhecia mas que ainda não havia inventado a minha própria, onde encontrei e por assim dizer, encontro,


corpo, linguagem, palavras, imagens – generosa, a página aberta. Onde posso dançar com imagens, desenhar com palavras, escrever com os olhos. Onde o poema, essa coisa indecifrável, tomou forma. Porque fazer um livro? Por que escrever, criar imagens? São perguntas que não sei responder e no entanto eis um livro, um texto, algumas imagens.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.