Tudo é murmúrio e motim

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Tudo é murmúrio e motim


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(Espera: estou inventando uma língua para dizer o que preciso) Ana Martins Marques


Qual foi o meu primeiro problema? Por que não se entregar ao mundo, mesmo sem conhecê-lo?

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Quais foram as invenções da minha infância? Quando eu crio, eu falo ou escuto?

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Quem nos deu permissão para escrever? Há diferença entre a palavra flecha e a palavra lança?

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Must I tremble ? Como vivem as coisas que olhamos?

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O que é um cavalo? Invenção?

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Que tipo de paisagem uma criança cria? O que é uma criança?

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São femininas, as palavras? E quando a palavra é mal dita?

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O que deve acontecer? Onde está a cabeça enquanto caminham?

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É a cabeça que pensa ou é o corpo inteiro? É possível dançar enquanto se pensa?

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Como reduzir o esforço? Você quer fazer as perguntas?

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É possível? Como vão tuas mãos?

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Com que frequência as chuvas dos países tropicais tornam o mundo vivo e perigoso? Mas agora, onde vamos no argumento?

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Onde está a diferença? O que é uma pequena diferença e como podemos percebê-la?

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O que é aprender? Quais são as imagens que me acompanham há mais tempo?

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Qual é a tarefa?

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O que é constante?

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Como?

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O que?

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Olivia Guimarães 2021

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Tudo é murmúrio e motim



Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas. Clarice Lispector




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O que começar?

E a pergunta mais mansa: Como começar? Mas a pergunta indócil me exige: O que começar?


Comecei escrevendo este texto (quantos textos já não comecei com as mesmas palavras) sentada à mesa, caneta preta na mão e algumas folhas de papel retiradas de um caderno. Escrever com uma mão agarrada à caneta e a outra servindo de apoio à cabeça. Cotovelos, braço, antebraço, coluna, cabeça. Escrever dá trabalho. Movo-me na cadeira, ensaio um começo, levanto-me, dou uma volta no quarto. Me sento na cômoda de frente para a mesa e tento enxergar na página um início mas não vejo nada. Volto a sentar-me, ajusto-me na cadeira — meus pés não alcançam o chão, a cadeira é alta demais. Sigo escrevendo, minha coluna se entorta e as linhas do meu texto também tortas a acompanham. Alguma coisa começa a se formar…. Desisto.

Recomeço. Reescrevo. Troco a cadeira.

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Devagar alguma coisa volta a concentrar-se, uma energia acumula-se em algum lugar dentro (meu coração tem um módico sopro, talvez ali). Eu também me concentro e mesmo assim alguns pensamentos me desviam: a data de entrega do primeiro trabalho, o que li recentemente numa publicação sobre arte e educação, a poeira dançando no meu pé, que ainda tenho que varrer, a paisagem na janela, o burburinho de um poema possível. A sombra dos vizinhos tomando café na parede do meu quarto, um poema impossível e tudo o que ainda está por fazer: lavar o filtro de água, estender os lençóis, ajeitar as gavetas, cozinhar o almoço.

Entre escrever e tentar escrever muita coisa acontece.


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Tudo é murmúrio e motim.


Paro um momento e releio o que escrevi até aqui e penso começar aqui é interromper uma tarefa noutro lado, claro. Claro. (E este ponto final é importantíssimo). Imagino os infinitos começos, começados e por começar e até mesmo os que nunca serão de fato começos por não começarem nunca e as infinitas possibilidades de um começo, assim como a possibilidade única que um começo há de escolher para poder começar.

E mesmo assim o que dança nas minhas mãos como se não fosse possível retê-lo,

Repito, escrever dá trabalho.

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Penso no léxico, ou seja, no repertório total das palavras existentes numa determinada língua. E eu, que nunca consegui desenhar uma língua. [o desenho de uma língua]

como se construir uma casa sem antes ter visto uma casa não fosse possível, como se o que não cedesse.

Escrever de outra forma é o mesmo que escrever outra coisa?


Processo e problema frequentemente se confundem para mim, talvez por dividirem a primeira sílaba, talvez por frequentemente começarem num mesmo ponto. Penso em gêmeos siameses, gêmeas siamesas, que nascem dividindo uma parte do corpo mas que indubitavelmente são duas pessoas separadas. Poderia classificar problema como processo, como um processo que também leva a algum lugar, e de maneira vulgar poderia denominar problema a um processo — algumas letras sempre trocam de lugar. No entanto, me interessa manter processo e problema duas palavras separadas, tão bonitas, um par radicular: pressão que favorece a ascensão da seiva bruta. O que é isto que dividem o problema e o processo? (distraída, escrevi poema no lugar de problema)

— A imaginação desempenha.

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Me pergunto, qual foi o meu primeiro problema?

poema


tantas paisagens diferentes.

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enquanto eu descrevo,


Como podemos explicar o calor interno do núcleo da terra, para onde tudo converge?

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Penso no que ouvi certa vez: do ponto de vista da embriologia o embrião é formado com uma força metabólica espiralar. Na vida intra-uterina, começa amorfo, uma, depois algumas, depois um modesto monte de células que se multiplicam em sua função de viver. Eventualmente, uma pequena cavidade na extremidade se forma e esse corpo se enrola lentamente em direção ao próprio centro, como um caracol.

Ao enrolar-se, a cavidade que antes pertencia à borda, é colocada no centro: é ali onde mais tarde um coração se formará.

— Um movimento para dentro, alguém me explica, seguido de um movimento para fora.

— A mira não se faz com a cabeça, se faz com o coração, alguém comenta.


É preciso treinar muito para se chegar ao ponto de ser, e não ser, descoberto o que se vai fazer em seguida.

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Como acolher o indomável sem aprisioná-lo?


Minto quando digo que comecei escrevendo este texto sentada à mesa, caneta preta na mão e algumas folhas de papel retiradas de um caderno. Se minha tarefa é definir um começo, comecei muito antes, antes mesmo de sabê-lo, ao considerar a ideia embrionária de usar as pernas para caminhar. É que criar é dar passos adiante, e todo começo é criador. Poderia dizer ainda que um começo é feito de qualidades maternas e fraternas. Maternas porque nos ajudam a nascer, fraternas porque nascem da mesma necessidade da qual nós próprios nascemos. Sendo assim, não resta dúvida de que um começo seja também um desejo, percebido e desejado: um rebento cujo primeiro gesto é a difícil tarefa de escolher.

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A pergunta aparece,

Seguir para dentro ou para fora?


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Uma dança pausada,

alguns gestos, um gesto pequeno,

uma frase longa, quilométrica, caminhando neste pequeno gesto.

Um gesto largo, uma pausa,

a ponta do lápis, a ponta da frase.




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Escrevo sob impacto. E escrever talvez não seja a única forma. Pessoalmente nunca escrevi uma palavra; nem vejo em palavras; ouço imagens que se confrontam a admirações de pensamento e que não serão nada se não nascerem com o corpo que lhes convém.

Nascer com o corpo que lhes convêm, talvez seja essa a forma mais capaz que suceda um impacto.

Mas, que impacto é capaz de fazer nascer coisas?

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Eu poderia passar dias numa casa a listar o que me espanta.


Uma das definições de impacto no dicionário de sinônimos é a “colisão entre vários corpos”, e penso em grandes terremotos e tumultos vulcânicos, mas basta a colisão menor entre o meu corpo e o corpo de uma folha dançando no escuro, ou o gesto de se dobrar um lençol, ou uma palavra sonhando acordada, ou uma criança e sua língua inventada para que seja possível inventar uma linguagem. E, sem metáfora alguma, corpo e linguagem são estritamente sinónimos, mesmo se em categorias paralelas ou, mais exatamente, funções idênticas em reais diferentes.

­— O corpo implicado na escrita, alguém pergunta.

O que vemos?

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O que nos olha?

Se espantam os outros corpos com os quais me encontro nessas pequenas colisões diárias?

— O extraordinário ordinário,

Alguém me diz.


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...o essencial é lembrar que assumir uma separação inicial entre todas as coisas é permitir, a seguir, uma liberdade de ligações. (...) Primeiro separar; depois, sim ligar. E tanto quanto possível promover então ligações raras, ligações que surpreendam.

—­ Percebe, a maior liberdade nasce do maior rigor.


E o que mais? Acordo cedo, me deito no chão e procuro soltar todo o peso do meu corpo nele. Sentir a gravidade atuando sobre minha massa, sobre as partículas de água internas, sobre os meus pensamentos? Certamente a gravidade altera minha paisagem interna. O que ela seria assim, completamente entregue ao chão? Uma lagoa mansa, com uma reverberação constante formando círculos de água como se ali houvesse recentemente sido jogada uma pedra. O chão também imprime uma força sobre o meu corpo estendido, ele me empurra na mesma medida que meu corpo o empurra. Mas a pedra faz outro caminho, ela regressa. Uma força contrária à gravidade, que provoca também círculos de água, ondas na superfície espelhada, vindas de dentro. A minha pélvis como fundo da lagoa, esse centro. A pedra, o que ainda não alcancei nomear. E meus pensamentos, o que seriam nesta paisagem?

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Qual direção tomar primeiro?


Vocês acreditam que nossa visão do mundo é prejudicada pela direção para a qual nossa cabeça é habitualmente orientada?

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Eu acredito que as pessoas todas tenham paisagens internas. Se vocês me abrissem, encontrariam uma praia.


A espiral é uma tentativa de controle do caos. Ela tem duas direções. — Onde você se coloca, na periferia ou no vórtice?

Começar por fora é o medo de perder o controle; as voltas para dentro são um apertar, um recuar, um compactar até o ponto de desaparecer. Também chegar ao centro é descobri-lo.

Começar pelo centro é uma afirmação, o movimento para fora é a representação do doar, entregar o controle, confiar, de uma energia positiva, da própria vida.

Um artista passou pouco mais de uma década a perseguir tornados. Me pergunto o que ele estaria buscando. O centro? No olho do furacão há ordem. A ordem? Talvez.

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Se fosse eu a perseguir redemoinhos de vento no deserto, a minha busca seria pelo testemunho desta equivalência: um fenômeno meteorológico que se assemelha tão radicalmente ao processo interno de se criar uma coisa. Me pergunto se caminho com fenômenos metereológicos pelo corpo.

– Buscar as coisas disfarçadas,

alguém sussurra.


Seria essa a forma do processo criativo? Uma constância espiralada que fecha para nascer e abre para morrer, continuamente? O contrário? Uma força metabólica espiralar em eterno movimento num enorme espaço aberto:

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eis uma imagem


Uma lista de imagens que gostaria de compartilhar: - Montanhas rigorosamente íngremes - Um povoado precipítico - um povo precipítico - Alguém todas as manhãs a cumprimentar o cavalo - O cavalo - O mar de muito alto se estendendo até muito longe - A neblina servindo de mar onde não há mar - O lado macio, o lado abrasivo de qualquer coisa - Uma caixinha pintada de casa, que guarda muitas pedrinhas - Uma mulher com uma casa no lugar da cabeça ou, - Uma casa com corpo de mulher - Uma fila de gente a mover uma montanha - Uma pedra cardíaca - Um coração catártico - A cortina falando na janela - Um reflexo da piscina na parede - Uma pessoa avulsa - O inventário de um biólogo - Um desenho, caminhando - Alguém lavando a calçada - Alguém contando uma história - A história - Uma fotografia de família - Muitas fotografias de família - Duas mãozinhas se encostando - Alguém dançando

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O que me espanta são coisas deste mundo.


Sempre tive muita dificuldade com as imagens. Não as imagens descritas, as imagens imaginadas, as imagens que já existem. Mas fazer nascer alguma coisa na forma de uma imagem sempre foi pra mim uma tarefa difícil. Não que eu não tenha amor às imagens, afinal, estou aqui a precipitá-las com palavras que, teimosas, se disfarçam (certos verbos inquietos muitas vezes trocam de lugar: ler e ouvir imagens, ver e tocar um texto). Não à toa são em grande quantidade as imagens as responsáveis por causar espantos admirados e alucinados que provocam movimentos em mim, internos e externos. (Sempre criei muitas imagens internas) (Sempre encontrei muitas imagens externas)

Um livro está sempre a contar sua história. A mesma coisa acontece com as imagens, que estão sempre a edificar o imaginário. Como se o que estivesse disponível para a leitura continuasse sem depender da leitura de ninguém.

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— A leitura não se cansa, alguém me lembra.

Volto muitas vezes em um filme para rever uma única cena: cavalos correndo. E os cavalos desta cena continuam correndo, mesmo quando não regresso, diariamente voltando para casa.

— Como é bonita esta palavra: animal.

— Eis outra bela imagem, o diário.


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Chegamos agora ao ponto sem retorno. Um ponto tão desejado que o fixei na parede do meu quarto. Lê-se: A partir de um certo ponto já não há retorno. Há que alcançar esse ponto. O ponto me diz: — Vai, salta-me. Estou feito, estou pronto. Desfazer-me é um novo gesto, não o mesmo. Já não há retorno.




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Um incêndio. O fogo queimou uma área enorme (230 mil hectares) e continua queimando há exatamente onze dias, sem descanso, engolindo pedaços e regiões inteiras de vegetação e construções mais recentes que as árvores e pedras do lugar. Algumas milhares de casas foram evacuadas, outras tantas foram completamente queimadas, mas a maior parte da terra arrasada foi o mato. Tudo dolorosamente lindo. Os cavalos foram todos soltos e assim como tudo que é vivo, o fogo recebeu um nome. O descontrole total foi devido ao vento que finalmente deu trégua a dois dias. Ninguém sai na rua e uma fina camada de cinzas cobre a cidade. Mas o mais lindo mesmo é o céu esfumaçado e denso, que filtra a luz do sol como um véu e transforma a paisagem numa alucinação monocromática. Parece que as coisas entraram todas num grande acordo de emergência e o modo de ir é a beleza.


Escrever, por exemplo: uma grande espiral de vento.

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O nosso próprio corpo poderia ser considerado, de um ponto de vista topográfico, uma paisagem com colinas e vales e cavernas e fendas. Me parece bastante evidente que nosso corpo seja uma figuração do que acontece na Terra.

De volta então a esta grande parede, clara ou escura, onde cada coisa colocada salta, tem contorno, se apresenta: uma citação, alguém alongando a sua lombar, um poema traduzido, a dança de um, a dança de muitos, uma cortina, também dançando, alguns livros, uma faixa escrita, uma caixa, algumas fotografias de lugares que não conheci, um coro cantando, minha mãe caminhando apressada, eu mesma, repetindo. Uma luz piscando, de noite, alguém desistindo, uma parede de terra, um oceano grande, um copo d’água, uma lembrança, algumas imagens, autores, conversas, gente que eu gosto. Um presente, alguns e-mails, outro poema.


Segundos Minutos Horas Dias Noites Semanas Meses Anos Décadas Séculos

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O batimento do coração


(por vezes é preciso deitar na terra, para localizar o “motivo”)

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Logo abaixo do ponto sem retorno fixado na parede do meu quarto, há também: That is the process, not the problem. Que se devesse ser dito em português, poderia ser: Escuta bem a língua de cada coisa.


O que posso fazer pelo problema é que ele me encontre trabalhando.

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O que posso fazer pelo poema é que ele me encontre trabalhando.


Repetir muitas vezes uma pergunta também provoca certa fabulação:

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Uma das minhas brincadeiras preferidas na infância era repetir uma palavra tantas vezes em voz alta que ela se perdesse nela mesma, perdesse o seu sentido, a sua forma, a sua função. Repetir, repetir, repetir, repetir repetir repetirepetirepetirepetirepetirepetiepetiepetiptiptiptiptiptiptiptiptiptiptiptiptiptiptipti — o som de um passarinho. Ouve? Nossas palavras conjuram e dizem: há fantasia.

— A impalpabilidade própria à palavra, ou justamente o contrário?

uma resposta a perder de vista.


O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? e este é o nome.

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Eu gostaria de conversar com as perguntas.


Como continuar escrevendo, debruçada, quando a própria debruça se institui como assunto? Assim, sobre o que me debruço?

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Cheguei em casa a tarde e fui ao quintal. Na parede da casa, havia um casulo do tamanho do meu punho preso por muito pouco à parede. Presa ao casulo, uma lagarta. A lagarta se movimentava com movimentos pequenos e toda aquela estrutura acompanhava seu movimento, tudo isso sem que nunca o que ligava o casulo à parede se rompesse. — Uma pequena dança. Fiquei um tempo ali, observando se o que acontecia entre a lagarta e o casulo era um ato de feitio ou de rebento.

­ Assim como ficar de pé — são muitas paisagens se formando.

Me pergunto, quais são os movimentos de sustentação do mundo?


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Eu me reconhecia e me reconhecia e me reconhecia.


Os colchetes, na tradução, sinalizam o que foi escrito mas não pôde ser traduzido e se perdeu. São pequenas brechas, sem metáfora alguma. Mas uma tradução não é sempre inescapavelmente repleta de brechas e partes que se perdem? Mesmo quando a palavra existe ali, traduzida e escrita, incorporada de som e de peso, já é outra coisa e não a mesma. Assim como se repetir um gesto é compor um gesto novo, nem mesmo andar para trás faz repetir. Traduzir então é ter compromisso com a brecha, com o furo. Uma ação comprometida, alguém poderia dizer. Mas é a brecha que diz: adivinha!

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[1. Um buraco negro, desenhado por mãos humanas a partir de cálculos, estudos e erros.

Imaginação

2. Um buraco negro, simulado por computadores, a partir de cálculos, estudos e erros. Imaginário 3. Um buraco negro, sua fotografia, pela primeira vez, apresentada.]

Imagem


Me lembro de outra imagem, a de um homem que caminha, pensando, Um desenho que caminha, pensando, e paisagens internas e externas se formam na página ao lado, na mesma escala, num jogo de cena. Uma caminhada pela página, enquanto as possibilidades se multiplicam. Uma constante hesitação entre dois regimes: a dance of strength around a circle, where a mighty will was put to sleep. alguém anota.

O que acontece ao passar uma palavra de uma língua à outra? Passar a palavra pela língua. O que acontece entre a descrição de uma coisa e a própria coisa, nunca vista? Entre a excitação de um desejo e sua realização?

Um espaço aberto… Uma potência… O chegar noutra coisa que não aquela.

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Não me perdi, parece.


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Escrever escrever escrever. Mas de que modo? me pergunto. E perguntar é por si só uma maneira. São todos verbos, vê? A única opção possível é mover-se.

Variam as frases, algumas são parte da camada mais turva, anevoada, do escuro. Outras não, outras saltam, dizem com a boca articulada. Algumas ainda, escapam. As palavras. — Tinham paixão?

Na minha mais recente tentativa de inventar uma pergunta, me disseram: ­­— Esculpir a palavra (escrevendo)

Me pergunto. Uma luz que acende e apaga, por acaso ou por engano:

A palavra revelada.


eu

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queria

escrever

uma

frase


longa

para

poder

ver

através


Digo eu ou me diz a palavra? — Está claro? me pergunta o escuro.

Tenho fé no que descubro. E ter fé é dançar na beira do abismo, para sempre inventando a pergunta.

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— E a palavra? A palavra é o meu sussurro, a minha ficção, a minha realidade:

Eis uma imagem.


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Podemos dizer que: o único modo de perguntar é chamar: como se pergunta? O único modo de começar é perguntar: como se começa? E as respostas seriam: pergunta-se e, imediatamente, começa-se.


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Devagar, não importa. Todos os momentos vivem. Assim como todos os momentos constroem o mundo. Se todas as árvores tombassem juntas, a Terra seria revirada do avesso pela pele, pelo pêlo. E no entanto preservaríamos o céu na boca, o horizonte nas linhas mais longas do corpo. Devagar, pois escrever toma tempo, e como já disse, fazer nascer uma coisa na forma de imagem é para mim uma tarefa dura. Devagar, tudo é profundamente reconhecível e mesmo assim coleciono perguntas. Devagar, pois entre os fatos há um sussurro, exageradamente belo, silenciosamente vivo. Devagar, pois partir de um mesmo ponto sempre levará a lugares diferentes e eu não saberia dizer de outra forma. É melhor se mover lentamente: simplesmente olhar uma coisa pode ser muito revelador.

Devagar,

é o mundo a mover-se.


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Agradecimentos Fernanda Goulart. Maraíza Labanca, Daniela Maura. André Da Matta. Nina Horikawa, Gustavo Glaser, Nina Machado, Rogério Rodrigues. Os amigos. Júlia Panadés, Roberta Manata. Todos os meus professores. Brígida Campbell, Myriann Thomaz, Ricardo Portilho. Pedro, Pai, Mãe, minha família. Todos os autores de danças, imagens e palavras. Muito obrigada.


Nota Este texto é composto por inúmeras vozes. As que pude identificar aparescem em preto, as que não pude cabe ao acaso revelar, como ele frequentemente me revela. Nunca escrevi sozinha. Em ordem de aparição, são elas: Porque não se entregar ao mundo, mesmo sem conhecê-lo? Moshe Feldenkrais, pg.4 Quem nos deu permissão para [praticar o ato de] escrever?, Leíner Hoki citando Laura Aguilar, pg.6 Como vivem as coisas que olhamos?, Georges Didi-Huberman, pg.7 O que é um cavalo?, William Kentridge, pg.8 E quando a palavra é mal dita?, Janaína Barros, pg.10 O que deve acontecer?, William Kentridge, pg.11 Onde está a cabeça enquanto caminham?, Moshe Feldenkrais, pg.11 É possível dançar enquanto se pensa?”, Moshe Feldenkrais, pg.12 Como se reduz o esforço?, Moshe Feldenkrais, pg.13 Como vão tuas mãos?, Clarice Lispector, pg.14 Mas agora, onde vamos no argumento?, William Kentridge, pg.15 Onde está a diferença?, Moshe Feldenkrais, pg.16 O que é uma pequena diferença e como podemos percebê-la?, Moshe Feldenkrais, pg.16

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O que é constante?, Daniela Maura, pg.19 Começar aqui é interromper uma tarefa noutro lado, claro, Gonçalo M. Tavares, pg.40 Pressão que favorece a ascensão da seiva bruta, Dicionário Online da Língua Portuguesa, pg.42 A imaginação desempenha, Cassio Eduardo Viana Hissa, pg.42 Como podemos explicar o calor interno do núcleo da terra, para onde tudo converge?, Pierre Kister, pg.46 A mira não se faz com a cabeça, se faz com o coração, João Guimarães Rosa, pg.47 É preciso treinar muito para se chegar ao ponto de ser, e não ser, descoberto o que se vai fazer em seguida, Kazuo Ohno, pg.48 Como acolher o indomável sem aprisioná-lo?, Júlia Panadés, pg.49 Maternas porque nos ajudam a nascer, fraternas porque nascem da mesma necessidade da qual nós próprios nascemos, Anna Queiroz citando Sophia Andressen, pg.50 Escrevo sob [o] impacto, Maraíza Labanca, pg.58 Pessoalmente nunca escrevi uma palavra; nem vejo em palavras; ouço imagens que se confrontam a admirações de pensamento e que não serão nada se não nascerem com o corpo que lhes convém. E, sem metáfora alguma, corpo e linguagem são estritamente sinónimos, mesmo se em categorias paralelas ou, mais exatamente, funções idênticas em reais diferentes, Maria Gabriela Llansol, pg.58 e pg.60 O corpo implicado na escrita, Fenanda Goulart, pg.60


O que vemos, o que nos olha, Georges Didi-Huberman, pg.60 e pg.61 O essencial é lembrar que assumir uma separação inicial entre todas as coisas é permitir, a seguir, uma liberdade de ligações. [...] Primeiro separar; depois, sim ligar. E tanto quanto possível promover então ligações raras, ligações que surpreendam, Gonçalo M. Tavares, pg.63 A maior liberdade nasce do maior vigor, Maraíza Labanca citando Paul Valery, pg.63 Vocês acreditam que nossa visão do mundo é prejudicada pela direção para a qual nossa cabeça é habitualmente orientada?, Steve Paxton, pg. 66 Eu acredito que as pessoas todas tenham paisagens internas. Se vocês me abrissem, encontrariam uma praia, Agnès Varda, pg.67 A espiral é uma tentativa de controle do caos. Ela tem duas direções. Onde você se coloca, na periferia ou no vórtice? Começar por fora é o medo de perder o controle; as voltas para dentro são um apertar, um recuar, um compactar até o ponto de desaparecer. Começar pelo centro é uma afirmação, o movimento para fora é a representação do doar, entregar o controle, confiar, de uma energia positiva, da própria vida, Louise Bourgeois, pg.68 A partir de um certo ponto já não há retorno. Há que alcançar este ponto, Franz Kafka, pg.77 O nosso próprio corpo poderia ser considerado, de um ponto de vista topográfico, uma paisagem com colinas e vales e cavernas e fendas. Me parece bastante evidente que nosso corpo seja uma figuração que acontece na [mãe] terra, Louise Bourgeois, pg.83 Segundos, Minutos, Horas, Dias, Noites, Semanas, Meses, Anos, Décadas, Séculos, O coração batendo, Louise Bourgeois, pg.84 e pg.85

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Por vezes é preciso deitar na terra, para localizar o “motivo”, Gilles Deleuze e Félix Guattari, pg.86 That is the process, not the problem, William Kentridge, pg.87 A impalpabilidade própria à palavra, Kazuo Ohno, pg.91 O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? e este é o nome, Júlia Panadés citando Clarice Lispector, pg.92 Eu gostaria de conversar com as perguntas, Agnès Varda, pg93 Uma constante hesitação entre dois regimes, Luis Alberto Brandão, pg.100 A dance of strenght around a circle, where a mighty will was put to sleep, William Kentridge citando Rainer Maria Rilke, pg.100 Um espaço aberto….Uma potência… O chegar noutra coisa que não aquela, William Kentridge, pg.100 Ter fé é dançar na beira do abismo, Friedrich Nietzsche, pg.108 Podemos dizer que: o único modo de perguntar é chamar: como se pergunta? O único modo de começar é perguntar: como se começa? E as respostas seriam: pergunta-se e, imediatamente, começa-se, Julia Panadés, pg.111 Devagar, não importa, todos os momentos vivem. Assim como todos os momentos constroem o mundo, Kazuo Ohno, pg.113 Tudo é profundamente reconhecível, Viviana Bosi, pg.113 Pois entre os fatos há um sussurro, Clarisse Lispector, pg.113 É melhor se mover lentamente, Kazuo Ohno, pg.113



Este livro foi impresso em risografia pela Entrecampo, nas cores preto e medium blue, sobre papel Pólen Bold 90g/m², em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. O texto, revisado por Myriann Thomaz e Nina Horikawa, foi composto na fonte Spectral e a pequena tiragem de 50 exemplares ficou pronta no final do verão de 2021, junto das últimas chuvas e com a ajuda de muitas mãos.


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