Conto do Sabia 5 ed

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o conto do sabiรก



Gustavo Reginato

o conto do sabiá 5a ediçäo

Concórdia Editora Caseira 2016





S

ituado num tempo qualquer perdido na eternidade, um jovem senhor que vivia nas margens de um arroio que cortava a cidade, admirava o canto do sabiá o qual conhecia como Sabiá do Peito Roxo, mas näo compreendia por que seu nome era Peito Roxo se o seu peito era cor de ferrugem e o resto de sua plumagem parda. Durante o nascer e o pôr do sol o Sabiá fazia demonstraçöes de seu belo canto em agradecimento aos raios de sol que o


banhavam durante o dia. A árvore favorita do pássaro cantor tinha tronco gordo espinhento e galhos retorcidos. Localizada na outra margem do arroio, a árvore paineira perdia todas as suas folhas durante os meses mais frios do ano revelando o ninho do Sabiá, feito da fibra esbranquiçada do fruto de paina. A fibra acomodava como nenhum outro material produzido pela natureza os pequenos ovos do Sabiá do Peito Roxo. Depois de perder as suas folhas, florescer e frutificar, os frutos secos da paineira já expunham a fibra branca e leve como algodäo que se espalhava com o vento co-


brindo as gramîneas feito neve. O Sabiá do Peito Roxo que migrou fugindo do frio cortante, sentindo que o frio já näo gelava mais as águas do arroio, decidiu retornar ao seu lar para reconstruir seu ninho castigado pelo mau tempo, utilizou as novas fibras de paina que se abriam anunciando a estaç6ao mais florida do ano. O Sabiá do Peito Roxo no primeiro pôr do sol da temporada iniciou seu belo canto em agradecimento pela sua migraçäo bem sucedida. Inflando seus pulmöes ao máximo, espalhou suas ondas sonoras pelos ventos que as levaram até os ouvidos do jovem senhor que mora-


va na outra margem do arroio. Curió, o nome do jovem senhor que como o próprio nome sugere era demasiado curioso, foi nomeado pelo seu pai amante de pássaros em homenagem ao seu pássaro favorito. O pai de Curió diferente dele, preferia manter os pássaros presos em gaiolas cultivando a tradiçäo familiar. Curió cresceu com um aperto no peito em presenciar a crueldade do confinamento de seus amigos pássaros. Quando seu pai se fora, o jovem senhor abriu as portinholas de todas as gaiolas prometendo a si mesmo nunca mais aprisionar nenhum ser vivo somente para a sa-


tisfaçäo de suas vontades. O Canto do Sabiá do Peito Roxo que vinha da outra margem do arroio chegava fraco aos ouvidos de Curió, o barulho das águas quase sobrepunha o belo canto do pássaro. A vontade de ouvir o Sabiá era tanta que fez com que Curió atravessasse o arroio a nado para se aproximar da paineira onde o pássaro vivia. Ensopado chegou a outra margem, mas näo percebeu que já na metade da travessia o Sabiá levantou voo fugindo para longe assustado com aquele ser estranho que se aproximava. Desanimado Curió regressou a sua casa, retirou as roupas molhadas


e triste pôs-se a planejar modos de conquistar o Sabiá para que pudesse apreciar seu belo canto de um local mais próximo. Seus planos foram dos mais variados, descobriu diversas formas de como näo se conquista um Sabiá. Tentou apitos que imitavam seu canto, construiu uma pequena casa para abrigá-lo, ofereceu alpiste, painço, aveia, girassol, trigo, minhocas e frutas, mas nenhuma das tentativas foi o suficiente para tirar o Sabiá de sua casa paineira na outra margem do arroio. Sem muitas esperanças, lembrou-se de seu velho amigo inventor o Professor Pardal. Foi o visitar na Rua dos


Inventos n. 31, subiu com um escalador mecânico até o sótäo, passou por uma escotilha de madeira e encontrou o amigo imerso em suas ferramentas e objetos inusitados com as mais diversas funçöes. Contou ao amigo sobre sua vontade de ouvir o canto do Sabiá do Peito Roxo em toda a sua potência e de todas as suas tentativas frustradas de conquistar o pássaro. Enquanto narrava pôde ver as engrenagens do pensamento girando a todo vapor no fundo dos olhos do Professor Pardal. Em um instante o Professor acordou de seu momento inventivo saltando por de trás das incontáveis estan-


tes de objetos, Curió näo entendia como tantos objetos poderiam caber em um só sótäo. Após alguns minutos o Professor chegou com uma caixa de música ornamentada em suas mäos, a caixa já sem tampa estava com sua corda emperrada e seu pente enferrujado. O Professor Pardal embrulhou cuidadosamente a caixa de música ditando as instruçöes para que Curió conquistasse o Sabiá. Longe da falsidade das relaçöes humanas o Sabiá do Peito Roxo mais que os outros pássaros consegue sentir a sinceridade que emana de ti, ele sabe da sua vontade de tê-lo por perto. Por mais que a sua


vontade seja grande, ainda lhe restam a impaciência e a incompreensäo, para que uma relaçäo se estabeleça é necessário o cultivo. Atravesse o arroio e busque por entre as fibras brancas nos pés da paineira onde vive o Sabiá as sementes de seu fruto, colha um pouco da terra das margens do arroio e plante uma semente dentro da caixa de música que eu lhe dei. Cuide da semente para que ela germine, cresça e se desenvolva, depositando na pequena árvore seus melhores sentimentos. Acompanhe a vida do Sabiá no outro lado da margem enquanto espera a paineira crescer. Nos meses mais


frios o Sabiá irá migrar para os paralelos mais próximos à linha do equador, continue regando a paineira e lhe enviando boas energias para que ele complete seu ciclo migratório. Alimente a paineira com suas esperanças, no momento certo o Sabiá do Peito Roxo irá se aproximar de você. Curió que ouvira atentamente agradeceu ao amigo Professor Pardal pelo presente e pelas valiosas instruçöes. O sol já se inclinava para alcançar o horizonte e Curió saiu as pressas da Rua dos Inventos n. 31 para se lançar no arroio, buscar pelas sementes e coletar a terra no anseio de ouvir


o canto do Sabiá mais próximo de si. A esperança na condiçäo de espera. Jogou-se nas águas ainda frias do arroio, com o movimento das braçadas o Sabiá fugiu para a árvore mais próxima, observava cada movimento de Curió que vasculhava por sementes por entre as fibras brancas de paina que se acumulavam aos pés da árvore. A fibra assim como os frutos nunca caem muito longe do pé. Depois de encontrar a semente e coletar o pouco de terra, Curió regressou exausto a sua casa enquanto os últimos raios de sol banhavam o Sabiá que repousava no topo da paineira. Mesmo sem muitas ener-


gias, Curió decidiu plantar no mesmo dia as sementes que coletara acomodando-as cuidadosamente dentro da caixa de música presente do Professor Pardal. Ao final da jornada diária, como consolo decidiu ouvir a melodia mecânica da caixa de música. Girou a sua corda até näo poder mais, mas a caixa insistiu em näo funcionar, desanimado pôs-se a descansar. Enquanto cultivava Curió passou alguns longos anos sentindo a ausência do Sabiá do Peito Roxo nos meses mais frios e ouvindo seu canto que vinha da outra margem do arroio nos meses mais quentes. Quando menos es-


perava Curió percebeu que a paineira que a tempos plantara estava florescendo pela primeira vez, anunciando a maturidade do cultivo. As flores caîram com a chegada do frio deixando a árvore completamente nua até que os primeiros frutos começaram a surgir e a crescer. Os frutos secaram anunciando a aproximaçäo da primavera. Despido de qualquer sentimento ruim, Curió levantou-se da cama em um dia qualquer, e no caminho para a cozinha reparou em algo diferente. No lugar dos frutos secos sua pequena paineira plantada na caixa de música exibia gigantes bolas de fibra branca


e macia. Teve que esfregar seus olhos algumas vezes para perceber que o täo amado Sabiá do Peito Roxo agora repousava nos galhos retorcidos de sua paineira. Curió aproximou-se de sua pequena árvore a pequenos passos com medo de assustar o Sabiá que o olhava fixamente inclinando sua cabeça de um lado para o outro. Quando estavam frente a frente, o sabiá emitiu alguns sons, e no momento que iniciou seu belo canto a caixa de música voltou a funcionar acompanhando com sua melodia o canto do pássaro. Curió que recebia as vibraçöes sonoras com todo seu corpo pôs-se a cho-


rar de emoçäo. Saindo do êxtase, finalmente percebeu que durante o seu canto, enquanto os pulmöes inflavam e esvaziavam, as penas cor de ferrugem de seu peito brilhavam num roxo intenso, fazendo jus ao seu nome popular. O Sabiá näo deixou de morar em sua árvore favorita, nem deixou de migrar aos paralelos mais próximos ao equador nos meses mais frios. Mas sempre que podia, o Sabiá do Peito Roxo visitava seu amigo pousando na paineira caixa de música, cantando suas melhores melodias e colorindo a vida de Curió com o brilho roxo de suas penas.



ouça o canto do sabiá via streaming, acesse o link respeitando as maiúsculas e minúsculas ou utilize um leitor QR-code https://goo.gl/35ZsHO


Texto, ilustraçöes e ediçäo: Gustavo Reginato Produzido por Editora Caseira www.editoracaseira.com contato@editoracaseira.com REGINATO, Gustavo (1993 O conto do sabiá/Gustavo Reginato. Concórdia: Editora Caseira, 2016 27p. il.

ISBN 978-85-68923-11-5

1. Ficçäo e contos brasileiros 2. Publicaçäo de artista


escrito no inverno de 2014 em San Miguel de Tucumán-AR, a partir da leitura e reflexäo sobre o conto do Rouxinol de Hans Christian Andersen, primeiro livro ganhado na infância do autor.

Tipografia artesanal feita com bico de pena no myscripfont.com Jato de tinta pigmentada sobre papel pólen bold 90g Quinta ediçäo primeira tiragem 300 exemplares




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