A HAPPY HOUSE IN A BLACL PLANET 2: Uma Introdução à Subcultura Gótica - H. A. Kipper

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H. A. KIPPER

A HAPPY HOUSE IN A BLACK PLANET 2: UMA INTRODUÇÃO À SUBCULTURA GÓTICA 1ª eDIÇÃO

SÃO PAULO 2018 HENRIQUE ANTONIO KIPPER 1

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Agradecimentos desta obra Agradeço a toda cena gótica paulista e brasileira pela energia e alegria que tem compartilhado comigo ao longo dos anos desde que pus os pés pela primeira vez em uma festa desse estilo, em 1990. Vocês são uma segundo lar para mim, um lar que não pode ser demolido ou fechado, pois é feito de ideias e pessoas. Agradeço ao carinho e gentileza com que vocês prestigiam e compartilham nosso trabalho. Agradeço minha amada esposa Flávia não só pelo companheirismo no dia a dia, mas por todos os insights e ideias surgidos de nossas conversas sobre a cultura gótica e sobre as complexidades do ser humano. E agradecimentos a amiga Thaís de Paula que fez um grande trabalho de revisão textual (e salvou vocês de minhas bagunças...) tornando este livro muito mais agradável. Guarulhos, SP, verão de 2018 2

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SUMÁRIO:

- Introdução: Por que um 2º volume de Happy House?

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PARTE 1:

MÚSICA, POLÍTICA SUBCULTURAL & VISUAL 1. Carta aos Neófitos 14 2. 10 Coisas que os Góticos não são 18 3. Mais Perguntas do FAQ Gótico 20 4. Origens do Visual e Gótico 25 5. 60 Bandas para Começar a Conhecer 28 6. Bandas mais Recentes 30 7. Subcultura Gótica: Diversificada no Visual e Na Música 8. Lacrimosofobia ou Goticofobia? 33 9. O Gótico “não veio” do “Punk” 39 10. Goticismo, uma palavra Torturada 50 11. Catedrais Góticas: FAQ 51 12. Liberdade Religiosa na Subcultura Gótica 54 13. Os Ciclos_na_Cena Gótica 55 14. Drogas: Careta, Alternativo, Pessoal ou Social? 15. O Machista que se acha Alternativo 60

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PARTE 2:

ARQUEOLOGIA SIMBÓLICA & LITERATURA GÓTICA - Introdução da Parte 2: This Corrosion of Body And Soul 1. Cidades dos Condenados: Foucault e as Origens do Imaginário de Medo Ocidental 2. Cronologia de Obras Góticas do Século XVIII e XIX 74 3. Contexto Histórico da Literatura Gótica 76 4. Características da Literatura Gótica (versus Romantismo) 5. Recepção e Crítica Literária do Estilo Gótico 86 6. O Início: Otranto, Vathek e o Monge 90 7. Relações entre o Gótico Subcultural e a Literatura Gótica

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PARTE 3:

GÓTICO E SUBCULTURAS NO SÉCULO XXI 1. Diferenças entre os conceitos de Tribo e Subcultura

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2. Culturas e Subculturas nunca estão “Prontas” 102 3. O que é Homologia: o Significado dos Estilos 104 4. O que é Resignificacao & Reapropriação 108 5. Translocalidade da População Gótica 110 6. Micromídia e Microcomércio nas Subculturas Translocais 114 7. O Tempo & o Ritmo na Economia Subcultural 117 8. O Conhecimento “Deslocalizado” 124 9. Colapso do Capital Subcultural como Instrumento de Poder 125 10. Sobre Azeitonas, Rótulos e Hamlet: questão ontológica x questão social 130 11. O Rolê não é a Cena: A Ponta Iceberg 133 12. As ideias de Underground que prejudicam o Underground 135 13. Existe uma Ideologia Gótica? 143

PARTE 4:

CONTEXTO SOCIOLÓGICO

1. Glocal: Etnopaisagens e Dromocracia 146 2. Etnofobia: A Demonização do Conceito de Identidade na Ideologia Pós-Moderna 149 - BIBLIOGRAFIA 162 - Biografia do Autor 166 7

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INTRODUÇÃO:

POR QUÊ UM SEGUNDO VOLUME DE HAPPY HOUSE? Em 2008, o primeiro volume de “Happy House” foi lançado em um clima de urgência, tanto na versão impressa quanto na online, que foi disponibilizada na íntegra para download gratuito. Urgência provocada pela percepção de que a informação relativa a subcultura gótica se perdia a cada virada de geração. Tendo acompanhado a cena gótica local desde 1990, já presenciei várias gerações que chegaram a um nível grande de informação não conseguir fazer a passagem geracional. E toda vez recomeçávamos do zero, o que havia acabado de se mostrar uma tragédia no período anterior a 2008, quando fomos atingidos pela moda Gothic Metal – e teorias relacionadas - sem que a subcultura gótica tivesse uma base de informação minimamente estruturada e acessível a todos para mostrar não só que ainda existia, mas que tinha seus conceitos e tradições. Felizmente na época já tínhamos conseguido estabelecer uma comunicação mínima, e apesar de não ser uma obra perfeita, alcançou seu objetivo de ser uma introdução didática que deixava indicações de leituras e pesquisas para cada um seguir seu caminho depois. A intenção era exatamente essa, como indicado na introdução daquele volume. Passados dez anos, muita coisa mudou, as questões urgentes são outras e não temos mais certos problemas, que deram lugar a outros. Senti que chegava a hora de aprofundar alguns temas que foram tocados intencionalmente de forma apenas introdutória na época. De fato, alguns capítulos que foram retirados do primeiro volume para que ele não ficasse muito longo ou complexo, agora ganham seu espaço neste novo volume. Uma das partes que foi apenas citada no primeiro capítulo foi melhor desenvolvida neste volume 2: o tema sobre a formação do imaginário gótico na história e literatura. Uma outra parte se dedica as 9

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questões subculturais mais complexas. Também novas questões que não existiam naquela época precisam ser abordadas. Alguns textos da primeira edição também precisavam de um complemento do que aconteceu nos últimos 10 anos. Apesar de manter o nome “Introdução”, este volume é um pouco menos fácil de ler que o primeiro, e algumas partes exigirão que o leitor relembre o que já leu no primeiro volume. Mas vamos relembrar o que já vimos e saber o que veremos agora. O QUE VOCÊ JÁ VIU NO PRIMEIRO VOLUME E O QUE VOCÊ VAI LER AGORA A parte I deste volume é a de leitura mais leve, traz um apanhado temas, desde os complementos e atualizações do primeiro volume, novas polêmicas e questões sociais sobre a subcultura gótica atual e música, indicações de bandas e textos de cultura geral. Ainda no volume 1 de “Happy House in a Black Planet” citamos muitas obras literárias que os góticos gostam, e características e símbolos de nossa querida subcultura, mas não descrevemos suas origens e historicidade. Neste volume, dedicamos todos os capítulos da parte II para mostrar como, o conceito do que consideramos hoje como gótico, foi gradualmente formado ao longo dos séculos, muito antes da subcultura gótica efetivamente ter seu início e se apropriar de toda essa simbologia, criando seu sistema subcultural a partir deste material da cultura geral. No primeiro volume também vimos qual é a definição moderna de subcultura e subcultura translocal, como são definidas desde o final dos anos 1990 e no século atual, em oposição a conceitos antigos de subcultura ou de tribo pós-moderna. Neste volume, na parte III aprofundaremos uma série de questões sobre as subculturas translocais e pós internet: questões sobre micromídia alternativa, microcomércio subcultural e as formas como as subculturas atuais resistem a massificação da cultura global e ao aumento da velocidade nas relações humanas. A parte IV é quase um livro a parte, não especificamente sobre subculturas. Talvez nem devesse estar aqui, mas vários textos do livro 10

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apontam para problemas comentados nele. Recomendo uma leitura em separado do restante do livro. De leitura mais difícil, versa sobre a questão da identidade em um mundo globalizado e as implicações sociais da negação das identidades duradouras e grupais. No final, como no primeiro volume, há uma bibliografia de obras citadas de alguma forma, ou indicações de leituras. Não há uma ordem específica para ler essas partes e você pode ler conforme seu interesse, supondo que já leu o volume 1. Espero que goste e que este livro o ajude a encontrar novas curiosidades e interesses na subcultura gótica. E continue se divertindo.

Grande abraço e boa leitura!

Kipper, 2018

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PARTE 1: MÚSICA, POLÍTICA SUBCULTURAL, & VISUAL

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1. CARTA AOS NEÓFITOS* NA SUBCULTURA GÓTICA Seja bem-vindo! Que bom que você se interessou pela subcultura gótica! Que bom que a música, as roupas, as maquiagens, as festas, a literatura ou qualquer outra coisa te encantou e apaixonou. Esse gostar verdadeiro pode fazer você permanecer entre nós. Agradeço sua chegada, pois sem você e outros novos interessados, o espaço alternativo gótico desapareceria como algo vivo, permanecendo apenas como fato histórico ou revivalista. Felizmente cada vez mais a população gótica cresce no mundo, com novos estilos, roupas, bandas e festas, como vemos em grandes festivais europeus e eventos pelo mundo todo. Contudo, nem tudo são rosas negras e belos luares. Você pode enfrentar alguns problemas e frustrações no começo, como todos nós que vivemos a subcultura gótica há mais tempo também enfrentamos no passado. A boa notícia é que hoje é muito melhor do que no passado. Você já deve ter percebido que há muito mais liberdade e mais acesso a informação. Isso é muito bom. Mas algo chato que ainda pode acontecer é você ser julgado ou rotulado por algumas pessoas. Eu as chamo de “caça posers” ou “polícia gótica”, pessoas que podem te fazer pensar que têm alguma autoridade para te julgar e ofender, mas não têm. Os caça posers e a polícia gótica prejudicam nossa cultura alternativa. Estão interessados apenas em adquirir status fácil rebaixando outras pessoas. Aparentemente ficariam felizes se a subcultura gótica se reduzisse a meia dúzia de saudosistas para comprovar sua tese de que “o gótico está acabando”. Meu conselho? Simplesmente ignore-os. 14

* Neófito é uma palavra antiga para novato, aquele recém-chegado.

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Vou te contar uma coisa: há mais de 25 anos escuto a frase “A cena gótica está acabando, precisa ser salva e blá, blá, blá”. Entretanto, passaram-se várias gerações, a subcultura gótica cresceu e proliferou pelo mundo todo. É que as pessoas veem a subcultura gótica e seu desenvolvimento de duas formas principais: o modelo de seita ou elite, e o modelo cultural ou subcultural. 1- O primeiro modelo – que criticamos aqui – é o modelo de seita secreta ou elite alternativa. Esse modelo de relacionamento pode ser visto também em grupos especiais do exército, no mundo acadêmico ou em grandes empresas. Seitas e elites buscam de toda forma garantir que o grupo mantenha um número reduzido de integrantes, pois isso garante o status elevado dos “poucos conhecedores”. Grupos deste tipo desenvolvem sempre uma forte polícia de controle que fiscaliza a entrada de novos membros com estratégias de seleção, punição e/ou ridicularização. Claro que o novo integrante aceita esses rituais de passagem com a perspectiva de ganho de status futuro e poder se tornar um novo sádico ou fiscalizador da entrada dos novatos. 2- O segundo modelo é o cultural ou subcultural. Nesse o status pessoal vem da participação e construção de um grupo social com características específicas, e quanto maior seu desenvolvimento em qualidade e quantidade, melhor. Quanto mais bandas, mais e melhores eventos, mais lojas, mais pessoas, melhor. Nesse caso você não é “grande” por ser único ou parte de uma pequena elite, mas porque você faz parte de algo grande e especial. Nesse modelo a recepção de novos integrantes é de formação e integração. Se queremos no futuro ter algo vagamente parecido com o que vemos nos grandes festivais góticos pelo mundo, ou desde já ter uma vivência gótica minimamente saudável, o modelo que faz sentido é o segundo. Assim, toda vez que alguém agir contra você como se fosse o sumo sacerdote de uma seita ou membro de alguma elite, simplesmente ignore. Continue seguindo seu prazer e interesse pela subcultura gótica. É o prazer que levara a busca por conhecimento, não qualquer fiscalização. 15

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Você não precisa beijar a mão de ninguém para poder ser gótico. Ninguém tem o direito de aplicar um teste de “verdadeiro gótico” em você. Você não depende de ninguém para ter informação. Posso apontar caminhos possíveis para ajudar, mas quem vai trilhá-los ou não é você. Mas é impossível adivinhar quem vai continuar a se identificar com a subcultura gótica ao longo do tempo. Por isso, ninguém pode te prejulgar. Ser qualquer coisa é um vir-a-ser, um se tornar. Outras pessoas vão dizer que você não pode ser gótico porque vive em uma cidade sem “cena” gótica. Isso é outra bobagem: em pleno século XXI, você pode ter mais identificação com música, estética e cultura gótica via internet do que se tinha dançando em um porão dos anos 1980. Além disso, boa parte das pessoas que frequentam as festas góticas em determinado período se afastam e desinteressam depois. Isso se deve ao fato de que estavam apenas saindo com os amigos e a galera. Portanto, a vivência presencial não é o que vai determinar sua identificação subcultural no longo prazo. Vivi os anos 1980 e 1990. Vou contar um segredo: vocês tem um mundo gótico mais interessante, rico e variado hoje. Atualmente, vocês já chegam com um alto nível de conhecimento musical e cultural, algo que era impossível antes da popularização da internet. Vocês também não dependem mais dos DJs, amigos influentes ou críticos musicais para chegar até a informação. E melhor: você não precisa ser rico para comprar todos aqueles CDs importados. Você pode ter toda informação mesmo sendo pobre. Sim, góticos não têm classe social definida. Não importa se você é pobre, classe média ou rico. Ninguém tem o direito de te olhar torto por isso. Não tenha pressa em aprender e conhecer tudo. Você não precisa saber tudo e conhecer tudo para “ter o direito” de desfrutar da subcultura gótica. Lembre-se, ninguém tem o direito de te aplicar um teste surpresa. Por que teria? Primeiro se vive, depois se sabe. 16

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Outra coisa: não conheço ninguém com mais de dois neurônios que curta um único estilo musical. Pode acontecer de alguém tentar te convencer a deixar de gostar de todas as bandas “não góticas” para poder ter o direito de curtir bandas góticas ou se dizer gótico. Isso é outra grande bobagem. Da mesma forma que não andamos com um supervisual gótico o tempo inteiro, também não vivemos em um mundo musical fechado. Até porque a subcultura gótica tem uma variedade musical incrível, indo do rock ao eletrônico, do folclórico ao industrial, do ethereal ao synth etc. Isso sem falar nas bandas e estilos “adotados”. E se alguém disser que existe um único estilo musical gótico, também ignore. Não lembro de ter existido no Brasil, algum dia, pureza musical gótica, principalmente partindo dos anos 1980 quando diversos estilos paralelos eram adotados e curtidos pelos góticos. Ah, antes que eu esqueça: o gótico não acabou nos 1980. Mas isso você já deve saber. Finalmente, algo que hoje acontece menos, mas é bom prevenir: alguém pode dizer que gótico “tem que ser branco ou ariano”. Isso é uma bobagem total, sem nenhum fundamento. Ainda mais no Brasil, em que somos um caldeirão étnico, temos góticos de todas as etnias e origens. Ninguém pode te julgar por gosto, classe social, etnia, tamanho, peso, identidade de gênero ou orientação sexual. Assim, ignore qualquer um que te chame de poser e olhe feio, ou qualquer bobagem desse tipo. Ignore a polícia gótica e os caça posers e simplesmente siga a busca cultural que te dá prazer. Talvez esta busca te leve a celebrarmos junto a noite na subcultura gótica por muito tempo. Ou talvez te leve a celebrar também em outros meios ou se afastar para círculos culturais sem nenhum contato com a subcultura gótica. Quem vai saber, quem pode prever ou julgar? Ninguém. Só o tempo e suas escolhas dirão. Por isso, desfrute do presente e não deixe ninguém estragar sua experiência. 17

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2. 10 COISAS QUE OS GÓTICOS NÃO SÃO! Salvo poucas exceções, ao longo dos anos, muitas TVs e jornais tem divulgado alguns estereótipos e caricaturas, ou generalizando casos isolados sobre Góticos a tal ponto que isto faz com que pessoas acabem se sentindo atraídas ou tendo preconceito contra os Góticos… pelos motivos errados! Se você vai rejeitar e criticar ou se sentir atraído é melhor que seja pelos motivos corretos. 1- GÓTICO NÃO É RELIGIÃO NEM SEITA – Somos parte de uma subcultura – ou cultura alternativa – que não proíbe nem determina a escolha que uma pessoa pode fazer ou deixar de fazer a respeito de religião. Por isso, existem Góticos de todas as religiões: cristãos (católicos, evangélicos, protestantes, pentecostais etc), espíritas, budistas, judeus, umbandistas, wiccans, agnósticos, ateus etc. Por isso, podemos dizer que a subcultura Gótica é “laica”: um espaço aberto para pessoas de qualquer religião ou sem religião, desde que estas se respeitem mutuamente. 2- GÓTICO NÃO É SÓ FASE DA ADOLESCÊNCIA OU MODA PASSAGEIRA – Existem góticos e góticas de todas as idades, da adolescência até 50 anos ou mais. Somos homens e mulheres trabalhadores, pais responsáveis e que sustentam suas famílias e filhos. Apesar de existirem muitos adolescentes modistas, nem todo adolescente se torna gótico somente por modismo ou revolta adolescente. A subcultura gótica como a conhecemos hoje já se desenvolve há mais de 30 anos ininterruptamente, continuando a evoluir no século XXI. Além disso, muitas das referências culturais das quais nos reapropriamos surgiram há mais de 200 anos. 3- GÓTICO NÃO É ORIENTAÇÃO SEXUAL NEM OPÇÃO DE RELACIONAMENTO – Existem góticos e góticas de todas as orientações sexuais, e respeitamos todas elas, pois isso é uma questão privada. Nossa opção ou orientação sexual não tem nada a ver com ser ou não Gótico, nem com ser ou não alternativo, mas com respeitar todas as opções. O tipo de visual que usamos não tem relação com nossas orientações sexuais ou de tipo de relacionamento. Góticos e góticas fazem as mesmas opções de relacionamento, como em todos os grupos sociais: alguns são casados, outros noivos ou tem relacionamentos estáveis ou abertos, outros namoram ou só “ficam”, outros são celibatários e outros são promíscuos. 18

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4- GÓTICOS NÃO TÊM UM TIPO FÍSICO DEFINIDO – Ter certo tipo físico ou étnico não faz de você mais ou menos Gótico! Góticos podem ser mulatos, brancos, negros, orientais, cafuzos, mamelucos, albinos, aliens verdes, aliens listrados etc! E podem ser gordos, baixos, magros, altos, fortes, franzinos, ter olhos claros ou escuros, ou qualquer combinação de tipo físico imaginável. 5- GÓTICOS NÃO SÃO VÂNDALOS DE CEMITÉRIO – Valorizamos a arte das esculturas e arquitetura dos cemitérios. Os cemitérios, além de ótimos lugares para um passeio tranquilo, são também ótimos espaços para a reflexão sobre o sentido de nossas vidas em meio a correria e velocidade desumanizante do mundo atual. Por isso, seria totalmente incoerente para um Gótico depredar ou vandalizar um Cemitério. Importante: existem outros grupos de pessoas que visitam cemitérios, não só Góticos! (E nem todos os Góticos visitam cemitérios). 6- GÓTICOS NÃO SÃO DEPRIMIDOS – Depressão é uma doença, que pode ter origem através de um desequilíbrio biológico ou ser causada por fatos de sua vida. Em qualquer um dos dois casos você precisa de um psicólogo e/ou psiquiatra, não se tornar Gótico. Nós Góticos gostamos muito de nos divertir, rir, encontrar os amigos e a música em nossos eventos é dançante. Temos outro tipo de humor, como acontece com pessoas de outros grupos sociais no Brasil ou em outros países ou culturas, que riem de coisas diferentes. 7- GÓTICOS NÃO SÃO DROGADOS – Da mesma forma que fumar ou beber não faz de você “alternativo” ou “cool”, o consumo de substâncias legais ou ilegais não faz de ninguém mais ou menos gótico. Isso é uma questão pessoal e privada que hoje em dia não está diretamente vinculada a nada de alternativo ou contestatório. O uso de drogas legais ou ilegais entre góticos não é maior nem menor do que entre tantos outros segmentos sociais considerados “normais”. (ver texto o “Drogas: careta, alternativo, pessoal ou social?) 8- GÓTICOS NÃO SÃO O ÚNICO GRUPO QUE VESTE PRETO, NEM SÓ VESTEM PRETO – Muitos outros grupos e pessoas também vestem preto: padres, guardas do metrô, emos, headbangers, policiais, punks, roqueiros em geral etc. Não confunda! Góticos também não usam o mesmo visual gótico o tempo inteiro, usando roupas adequadas a sua situação cotidiana, exigida pelo trabalho, escola etc. Os visuais góticos são muito variados, incluindo outras cores e também o branco. 19

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9- GÓTICOS NÃO SÃO SUICIDAS – Se todos nós (góticos) fôssemos suicidas não existiriam mais Góticos! O suicídio é um ato, muitas vezes resultante de problemas médicos ou psicológicos, que não tem nada a ver com ser ou não ser Gótico. Todo dia muitas pessoas se suicidam, mas entre elas não há mais góticos do que pessoas de outros segmentos sociais. Pessoas com tendências ou ideias suicidas devem procurar ajuda psicológica e médica urgente! 10- GÓTICOS NÃO SÃO PESSOAS QUE SÓ GOSTAM DE SOFRER – Ninguém gosta só de sofrer, a questão é que o sofrimento e as perdas fazem parte da vida, mas a cultura de consumo de massa em que vivemos esconde ou não se relaciona muito bem com isso. Todos precisamos saber rir e superar as tristezas – superar, e não fugir delas – e aceitar as partes doloridas de nossa memória, com arte e criatividade.

3. MAIS PERGUNTAS DO FAQ GÓTICO No volume 1 temos um FAQ com 55 perguntas e respostas rápidas. Aqui temos mais algumas.

56 – Como eu sei que vou ser gótico para sempre ou se é apenas uma fase? Ora, simplesmente não adianta pensar sobre isso, porque em ambos os casos o começo será igual. Não haverá diferença nenhuma nos primeiros três anos se forem apenas uma fase de três anos ou esses três anos forem os primeiros três anos do resto de sua vida como gótico. Então, viva e não se preocupe com isso, senão seja o que for, você estragará. Se por acaso for só uma fase, então que seja uma fase inesquecível!

57 - Eu me identifico com a Subcultura Gótica, gosto de muitas bandas góticas e Darkwave, mas também curto outros estilos musicais além do Gótico. Isso é um problema? Não. Se você curte e conhece música gótica, não tem nenhum problema você gostar de estilos que não tenham nada a ver com o gótico. Só precisa saber diferenciar as coisas e, principalmente, entender que subculturas diferentes têm hábitos e comportamentos sociais diferentes. 20

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58 - Eu moro em uma cidade que não tem cena nem gótica nem eventos e eu sou o único gótico. Eu sou menos gótico por isso? Claro que não! Hoje você pode se vincular e se identificar também de outras formas. A internet permite que você tenha informação e vivência de qualidade em qualquer lugar. Além disso, muitos dos que tem vivência presencial acabam desistindo ou não se vinculando, então a presencialidade não garante nada também. Ir a festas, apesar de divertido e ser uma experiência importante, não vai te dar “carteirinha de gótico” (o que não existe).

59 - Se uma pessoa tem um sub-estilo gótico ela só vai curtir o estilo de som relacionado? Por exemplo, pessoas de estilo medieval só curtem Medieval e Folk etc? NÃO! Em 14 anos na cabine como DJ vendo as pessoas se divertirem, o mais legal é ver que as pessoas não são bitoladas: você vê um cyber dançando Gothic Rock, uma moça medieval dançando eletrônico, o cara com camiseta do Joy saltitando como um fauno ao som medieval, um Headbanger rebolando com Depeche Mode, Deathrockers catando uvas imaginárias ao som de Ethereal…

60 - As mesmas pessoas se vestem sempre no mesmo estilo gótico relacionado ao tipo de som que gostam? Não necessariamente. Muitas pessoas variam de um dia para outro ou misturam estilos. Não há uma ligação fixa ou obrigatória entre os estilos musicais que uma pessoa prefere e suas escolhas de estilos de visuais, mesmo que isso aconteça muitas vezes. Apesar de existir uma homologia nos estilos (ver capítulo sobre Homologia) e ele ser perceptível intuitivamente, é normal góticos terem uma atitude aberta em relação aos visuais, inclusive valorizando misturas e ressignificações (ver capítulo sobre Ressignificação).

61 - Eu posso ir a festas ou shows de outros estilos? Claro que sim! A única coisa importante é não confundir o que é o que, um estilo com o outro, ou confundir as características comportamentais de cada ambiente.

62 - Existe alma gótica? Cultura não é algo biológico nem espiritual. Logo, não há como 21

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nascer com alguma cultura. Nascemos com o “hardware” para instalação do sistema de qualquer cultura e “programas opcionais” de qualquer subcultura. Dizemos que alguém tem alma gótica apenas poeticamente, da mesma forma que dizemos que alguém tem alma brasileira: por ter adquirido aquelas características culturais com o tempo.

63 - A subcultura gótica é feminista ou feminina? Essas são duas coisas diferentes. Veja no volume 1 as características da subcultura ligadas o feminino simbólico e cultural. Sem dúvida a maioria dos símbolos e imaginário da subcultura gótica nos coloca no campo do que historicamente se chama de feminino ou “ying”. Os visuais góticos femininos e masculinos, como já comentamos, reforçam arquétipos e valores conhecidos como femininos em nossa cultura. Por isso há também uma certa coerência com o Feminismo quando esta palavra significa um movimento político que busca a igualdade de oportunidades, direitos e deveres entre todos os seres humanos de qualquer gênero. Assim, a feminilidade estética e arquetípica é uma característica subcultural, e o feminismo uma opçõa política que independe da questão subcultural, mas que acaba sendo coerente.

64 - Emos, Headbangers e mesmo a moda comercial usam elementos góticos. Eles roubaram nossas coisas? Não. Uma cultura não existe em seus elementos isolados (uma bota, um tipo de cabelo, uma cor, uma banda, um estilo musical, etc). Os elementos isolados não pertencem a nenhuma cultura ou subcultura. Uma cultura ou subcultura é um conjunto que dá significado e peso diferente a cada elemento. É o mesmo quando abrasileiramos uma palavra do inglês: continuamos a usar toda gramática e vocabulário do português com aquela palavra nova.

65 - Todos que gostam de música gótica são góticos? Não, algumas pessoas só gostam do estilo musical, entre muitos outros. A pessoa pode ser gótica ou não, dependendo do caso. Mas, provavelmente, ela vai consumir música gótica, seja via download, CDs ou indo a shows e festas, contribuindo com a manutenção do sistema econômico subcultural. E acontece de a música ser uma porta de entrada para a pessoa se interessar também por outros aspectos da subcultura gótica. É preciso respeitar esses simpati22

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zantes, pois eles também ajudam a subcultura gótica a continuar existindo.

66 - Todos que usam visual gótico são góticos? Não, algumas pessoas só gostam do estilo de visual, entre muitos outros. A pessoa pode ser gótica ou não, dependendo do caso. Entretanto, ela consumira elementos de visual gótico, contribuindo com a manutenção do sistema econômico subcultural. E muitas vezes acontece de o visual ser uma porta de entrada para a pessoa se interessar também por outros aspectos da subcultura gótica.

67 - Tem idade para se tornar gótico? Não. Você pode começar a conhecer e se identificar com os elementos culturais da subcultura gótica em qualquer idade, independente de você não ter ainda idade para ir a festas, ou já estar em uma idade em que os compromissos familiares e profissionais não permitem tanto uso de visual ou saídas noturnas e outras atividades coletivas.

68 - Eu sou misantropo e não gosto de festas. Posso ser gótico? Se você joga um brasileiro em uma ilha deserta no pacífico, ele continua sendo culturalmente brasileiro, mesmo que nunca mais volte ao Brasil. Depois que você conheceu e se identificou com uma cultura, sua vivência e como você vê o mundo não depende apenas de relações pessoais.

69 - O estilo de visual ou música Gótica está moda entre “POPs” ou no “mainstream”, e agora? Isso acontece periodicamente, acostume-se. A moda comercial ou mesmo a alta-costura tem a característica de ter que mudar de estilo todo ano ou todo semestre, então precisa toda hora achar algo novo e logo depois descartar. Não confunda Moda comercial de estação com Moda Cultural ou Subcultural: este segundo tipo tem um modelo de evolução lento e não muda a cada estação, além ter uma estética relacionada a outros aspectos da subcultura.

70 - Góticos ouvem só música gótica? Em geral, não apenas, e ainda bem! Mesmo uma pessoa que seja apaixonada por música gótica não vai ser bitolada a ponto de limi23

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tar seu gosto a um estilo só. Há tantas variantes de estilos musicais aceitas na subcultura gótica ou produzidas por bandas góticas, que as vezes é possível passar a vida ouvindo todas essas variantes.

71 - Em festas góticas rola só música gótica? Desde os anos 1980, há uma tradição de “estilos relacionados” que são aceitos em festas góticas, por parentesco musical ou outra razão, como é o caso da New Wave, Indie, Synth Pop, Industrial, Medieval, Ethereal, Ethno, Dark Electro, EBM, etc. Nunca tivemos “pureza musical” como acontece em outros segmentos ou em outras cenas musicais.

72 - Então o que é música Gótica? É uma questão polêmica. Alguns acham que só o Gothic Rock é a verdadeira música Gótica. Outros acham que qualquer banda que inclua elementos de arranjos e letras góticas pode ser considerada Gótica. Quem está com a razão? Se observarmos as raízes musicais da subcultura gótica temos as origens de todos os subestilos atuais, do Eletro Goth ao Medieval, da Darkwave ao Cyber Goth, do Gothic Rock ao Ethereal Wave, do Industrial Rock ao Dark Cabaret, do Deathrock ao Ethno etc. O que aconteceu nestes quase 40 anos de história foi uma especialização de tendências já presentes nos anos 1980, algumas chegando a ponto de formar segmentos separados, apesar dos góticos gostarem desses estilos também.

73 - Pessoas que querem ser góticas, mas gostam de bandas trevosas populares de outros estilos que não são góticas devem ser execradas? Não, e por um motivo bem simples: nos anos 1980 bandas de estilo Post Punk, New Wave e góticas eram os estilos “pops” da época, aparecendo na TV, tocando na rádio etc. Então, a primeira informação de bandas mais populares e conhecidas que os novatos tinham era de bandas que eram de alguma forma relacionadas aos estilos da subcultura gótica. Desde os anos 1990 (e hoje) bandas góticas não aparecem mais na mídia comercial, então qualquer adolescente que se interesse por aspectos góticos ou obscuros tem sua primeira identificação com o que está na mídia “Mainstream”, da mesma forma que acontecia nos anos 1980. Não podemos culpá-los por ter essa primeira informação distorcida pela mesma mídia em que os antigos tiveram a informação correta. Nos últimos 20 anos ou mais, 24

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a grande maioria das pessoas que se identificou com a música e subcultura gótica se aproximou através de algum outro estilo musical ou de visual.

74 - Todos que vão a festas góticas são góticos? Não necessariamente. Historicamente, desde os anos 1980, temos a presença de simpatizantes e pessoas de outros estilos alternativos.

4. ORIGENS DO VISUAL GÓTICO Desde o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, duas peças musicais que, devido ao seu sucesso, tornaram-se filmes ainda mais bem-sucedidos (Cabaret e The Rocky Horror Picture Show, lançados no cinema respectivamente em 1972 e 1975). Elas estabeleceram a moda de “vaudeville obscuro” e horror gótico misturado ao estilo glam. Em meio a isso, um terceiro filme, também ligado à música, é estrelado por David Bowie durante sua fase musical mais influente: The Man Who Fell to Earth (1976). Em 1928, W.H.Auden, um dos principais nomes da poesia de língua inglesa do século XX, interessou-se por Berlim, talvez, menos pelo fato de ser “um centro de ativismo político de esquerda e de experimentação musical” e mais pela “tolerância com que a cidade na época costumava encarar a sexualidade não-ortodoxa”. Além de desfrutar destas liberdades, Auden também trabalhou com Christopher Isherwood. O musical “Cabaret” baseado na obra de Christopher Isherwood “Goodbye Berlim” (1939) estreou na Broadway em 1966. A personagem principal, Sally Bowles, é uma performer de um cabaré na fase decadente da República de Weimar (1919-1933) durante a ascensão do Nazismo. O parceiro de palco de Sally é o Mestre de cerimônias (ou Mr. EmCee), que recebeu uma caracterização satírica entre o vaudeville e o macabro, mantida na versão cinematográfica. Com o sucesso do musical, o filme foi lançado em 1972 com Liza Minelli eternizando o visual de Sally e Joel Grey fazendo um Mestre de Cerimônias que influenciou o visual de artistas com Klaus Nomi, Bowie e Peter Murphy, sem falar em todos os artistas de Dark Cabaret até hoje, como o “Dresden Dolls”. 25

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Em 1973, a peça musical “The Rocky Horror Picture Show” estreia em Londres e também logo se torna um grande sucesso e referência cult. A peça de Richard O’Brien mistura glam-rock e travestismo a elementos de horror gótico e de ficção científica de filmes B dos anos 1930 aos 1970. Também na versão cinematográfica de 1975, o personagem principal é o Dr. Frank N. FurteR, um alien do planeta transexual Transilvânia, que busca criar uma forma de vida humana enquanto reside em uma mansão gótica com servos ainda mais peculiares. O visual dos personagens se tornou moda, e nos anos seguintes também objeto de culto e performances ao redor do mundo. No filme de 1975, Frank N. Furter é interpretado pelo ator Tim Curry. O musical “Cabaret” (1972) inspirado na obra de Isherwood resgata e glamoriza o tema, mas a corista vamp interpretada por Liza Minelli agora usa botas combinando com o corpete, a cinta-liga e chapéu coco, uma Louise Brooks atualizada. Patrice Bollon (“A Moral da Máscara”, 1990) comenta que este musical e o filme geraram uma moda em Londres que influenciou um novo grupo: O “Bromley Contingent” (1976). Mas antes, ainda em 1976, é lançado o filme “O Homem que Caiu na Terra” (The Man Who Fell to Earth). Nele David Bowie representa o alien Thomas Jerome Newton que chega a terra com a missão de levar água para salvar seu planeta e a família que deixou lá. Porém, aos poucos Jerome vai se envolvendo com a vida na Terra e em um processo de degeneração esquece completamente de sua missão. Acaba se tornando, ao final, mais um dos alter-egos de Bowie, tanto que a capa do álbum “Low” traz uma ilustração baseada na imagem de Jerome. A temática de isolamento e alheamento desse filme dialoga com a fase mais influente do trabalho de Bowie, produzida na mesma época. São os anos da sua famosa Trilogia de Berlim: “Low” (1977), “Heroes” (1977) e “Lodger” (1979). Não bastasse isso, na mesma época Bowie co-escreveu e produziu dois outros álbuns do parceiro Iggy Pop: “Lust For Life” e “The Idiot”, ambos de 1977. Bowie estava obcecado pelo Krautrock do “Kraftwerk”, que também em 1977 lança “Trans-Europe Express”. Na soma, entre 1977 e 1979 são seis álbuns que influenciaram muito o Post-Punk, Darkwave, Coldwave, Música Gótica, Synth e outros estilos. 26

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Ainda em novembro de 1977, a revista Sounds faz uma capa com a banda Kraftwerk, e tem como tema um especial intitulado “Coldwave”. Nesta famosa entrevista o Kraftwerk também conceitua o comenta o termo EBM (Electronic Body Music): “Electronic Body Music you can dance to”. (Sounds, 1977) O universo estético destes três filmes, tanto o musical quanto o visual, serviu de inspiração para as subculturas que emergiram no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, especialmente a Punk e a Gótica. OS NOVOS POSERS DAS TREVAS: Em 1976, surge o grupo de posers chamados “Bromley Contingent”, ligados à loja Sex de Malcolm McLaren e da ousada estilista Vivienne Westwood, e a banda produzida por este, os Sex Pistols. Os Bromleys reciclaram vários visuais do Bowie e outros Glam Rockers. Mas esse visual ainda não tinha todos os elementos nem a especialização que veríamos no gótico dos anos 1980. Além deles, havia Dave Vanian - e a esposa Laurie Glendon (procurem fotos do casamento deles em 1977, por exemplo) - que já usava itens pseudovitorianos desde 1976, no típico estilo Família Addams. Contudo, cansados da padronização do punk, em 1979 um grupo de jovens criativos conhecidos como “Blitz Kids” e depois chamados de “New Romantics” introduziu uma série de elementos originais, influenciando o que seria depois conhecido como visual Gótico dos anos 1980. Já entre 1980 e 1984, integrantes de bandas como “Siouxsie & The Banshees” e “The Cure” pareciam muito mais New Romantics do que com seu visual Post-Punk ou New Wave do final dos anos 1970. A inclusão de um repertório visual e musical mais variado assim vai se estabelecendo na tradição da subcultura gótica. Em 1980, na sua formatura da Saint Martins, Stephen Linard criou um desfile de inspiração gótica e eclesiástica, onde desfilaram Boy George, Princess Julia, Myra, entre outras figuras renomadas do Blitz club. (Fotos podem ser vistas no livro “We Can Be Heroes” de Graham Smith, na biografia de Boy George ou na revista Gothic Station 3). Também podemos ver os integrantes do Blitz Club com um visual original no vídeo clip de “Ashes to Ashes”, de David 27

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Bowie (1980). Mas é possível encontrar exemplos desse visual em Boy George ainda em 1979. Os Blitz Kids incluiram em seus visuais elementos originais de pesquisa histórica, incluindo elementos barrocos, medievais, vitorianos e muitos outros, mas criando obras originais e atuais de vestuário. A maquiagem característica que ficamos conhecendo depois como gótica pode ser vista já neste grupo. A influência de David Bowie, em suas diversas fases, é marcante em todas as gerações. Após 1980, com essas influências e outras, o visual, música e conceito de bandas góticas passa a mudar e a ficar com as características marcantes que conhecemos como “gótico dos anos 80”.

5. 60 BANDAS PARA VOCÊ COMEÇAR A CONHECER O UNIVERSO MUSICAL DA SUBCULTURA GÓTICA É claro, você não “tem que” gostar de tudo! É natural você gostar de alguns estilos e bandas e não de gostar de outros. São 20 de cada período (anos 1980, 1990 e agora no século XXI). Dividimos a lista por década e com poucos itens para não causar confusão nem “assustar”. Tentamos escolher bandas originais e que serviram de modelo para outras posteriormente. Mas tem muito mais! Buscamos mostrar um pouco da diversiadade musical popular entre góticos do mundo todo. Sem dúvida é difícil definir as atuais, pois ainda não temos distanciamento histórico, mas é um ponto para começar. Ser gótico não significa que você vai gostar de tudo, mas que vai gostar muito de pelo menos uma parte. Alguns góticos apreciam apenas algumas vertentes musicais goth/wave, e não gostam de outras, isso é normal. Isso não significa que você vai deixar de gostar também de estilos não aceitos nas cenas góticas. Divirta-se, comece conhecendo estas e depois procure mais bandas dos estilos que você mai s gostar! Veja mais em nosso site: www.gothicstation.com.br 28

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ANOS 1980: SIOUXSIE AND THE BANSHEES* CLAN OF XYMOX OPERA MULTI STEEL POESIE NOIRE THE CURE*

ANOS 1990:

SÉCULO 21:

SOPOR AETERNUS

DIVA DESTRUCTION*

DIARY OF DREAMS LONDON AFTER MIDNIGHT

L’AME IMORTELLE*

DAS ICH

THE BEAUTY OF GEMINA

WOLFSHEIM* CRUXSHADOWS

BAUHAUS*

QNTAL

DEAD CAN DANCE

FAITH AND THE MUSE

THE MISSION

TWO WITCHES

THE FIELDS OF THE NEPHILIM

LACRIMOSA

CASSANDRA COMPLEX SPECIMEN

MONO INC.

SWITCHBLADE SYMPHONY

THE SISTERS OF MERCY

DEINE LAKAIEN

BLUTENGEL

COLLECTION D’ARNELLANDREA* PROJECT PITCHFORK

OTTO DIX FAUN EGO LIKENESS* ANGELS OF LIBERTY TIRAMIST GOLDEN APES TROBAR DE MORTE THE EDEN HOUSE KRIISTAL ANN

JOY DIVISION*

THE HOUSE OF USHER

CHRISTIAN DEATH

THE FROZEN AUTUMN

LEBANON HANOVER

DIE FORM

ROSETTA STONE

ALIEN SEX FIEND

THE AWAKENING

LORD OF THE LOST

THE DAMNED*

LYCIA*

DRAB MAJESTY

TRISOMIE 21

GARDEN OF DELIGHT

SHE PAST AWAY

X MAL DEUTSCHLAND

ATARAXIA

THE HAXANS

CINEMA STRANGE

* = começaram no final década anterior, mas marcaram décadas nas seguintes.

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6. BANDAS GÓTICAS MAIS RECENTES No primeiro volume listamos bandas góticas, divididas por gerações, até aproximadamente 2008. Veja as gerações anteriores no volume 1. Seguindo os mesmos critérios, vamos atualizar essa lista com algumas das mais recentes. Estas listagens não buscam ser nem perfeitas nem completas, mas apenas dar um panorama da riqueza do cenário musical Gótico/ Darkwave e, principalmente, de sua renovação. 2005-2018: ESPECIALIZAÇÃO e REVIVALS Temos um movimento de especialização, em que tendências presentes em bandas góticas/wave dos anos 1980 são levadas as últimas consequências, muitas vezes quase formado subcenas. Ao mesmo tempo que a música gótica incorpora elementos modernos e de outros estilos musicais. Por outro lado há um movimento revivalista mais forte que na década anterior, retomando sonoridades dos anos 1980. BANDAS DO PERÍODO 2004-2018 NO CENÁRIO INTERNACIONAL (ver períodos anteriores e mais bandas do início do século XXI no volume 1): Merciful Nuns, Drab Majesty, Mono Inc., Faun, La Scaltra, The Beauty of Gemina, Omnia, Numa Echos, Soror Dolorosa, Kriistal Ann, The Eden House, Trobar de Morte, Ash Code, Markus Midnight, Angels of Liberty, Eisbrecher, Omnia, Snakeskin, Tiramist, Ariel Maniki and The Black Halos, Theodor Bastard, Grausame Tochter, Aesthetic Perfection, Lebanon Hanover, Noblesse Oblige, Demonia Nymphe, Haxans, Lizette Lizette, Seelennacht, Then Comes Silence, Heimataerde, Golden Apes, The Spitirual Bat, Global Citizen, Selofan, Descendants of Cain, Frank The Baptist, Gothzilla, Rabia Sorda, She Past Away, Aeon Sable, Otto Dix, Principe Valiente, Terminal Gods, Zanias, William Control, Kælan Mikla, Astari Nite… e muitas mais. BANDAS DO PERÍODO 2004-2018 NO CENÁRIO NACIONAL (além das já citadas no volume 1): 30

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Das Projekt, Back Long Arch (retorno), Les Chat Noirs, The Knutz, In Auroram, Electro Bromance, Blue Butterfly, Euphorbia, Among The Machines, Jardim do Silêncio, Noturna Régia, Almas Mortas, Gangue Morcego, Orquídeas Francesas, Pecadores, Wonder Dark, Fake Angel, Outro Destino, Sitético Ministério, Gargula Valzer, Siglo XIII, Drei Hexen, Desroche, Modus Operandi, Poemas de Maio, Black Night Frequency, Gattopardo, e muitas mais.

7. SUBCULTURA GÓTICA: DIVERSIFICADA NO VISUAL E NA MÚSICA A subcultura gótica é bastante diversificada tanto no visual como nos gêneros musicais. Apesar de alguns estilos musicais terem seu equivalente visual (como comentamos no texto sobre Homologia Subcultural) , é comum os góticos curtirem diversos dos subestilos musicais góticos e usarem diversos tipos de visual. O gótico não se prende sempre a um único tipo de visual ou música, nem as combinações da música com o visual são fixas ou restritivas. Neste aspecto, a Gótica é uma das subculturas mais flexíveis e variadas, dentro do seu cânone “a criatividade e um certo nível de contravenção” em relação ao que é considerado o “visual padrão” de certa época na própria cena Gótica, é algo geralmente visto como positivo. A herança de princípios do “faça você mesmo” ainda perdura, apesar da proliferação atual de artesãos e grifes especializadas na estética Gótica.” A “contravenção criativa” em relação a regras de visual acontece na mistura e recombinação de estilos, mesmo que as peças isoladas de vestuário sejam tomadas de uma linha industrializada: aquela peça preta da bacia promoção de 10 reais pode se tornar um visual que só você tem. Já nas pistas você verá um gótico com visual mais Deathrocker dançando Ethereal ou Electro Goth, ou uma fada de visual Ethereal saltitando ao som de Gothic Rock ou ainda um gótico de visual Cyber Goth agitando Deathrock ou Medieval e várias outras combinações imagináveis. Aliás, uma das grandes diversões das cenas góticas pelo mundo é ver como as pessoas misturam as várias sub-tendências de visual 31

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gótico, demonstrando sua criatividade e individualidade. Também muitas pessoas variam de subestilo de visual gótico ao longo do tempo, do humor ou… do tempo disponível para se “montar”. A diversidade é fascinante: ver o visual medieval lado a lado com o Cyber e um Goth Deathrocker, e o Vitoriano ao lado do Pos Punk, junto como pessoal “pretinho básico Synth Pop” ao lado de um “rivet” etc, curtindo vários estilos musicais diferentes e, principalmente, respeitando-se. Vários ramos da árvore Gótica. OUTROS ASPECTOS: É mais fácil definir o que não é Gótico do que aquilo que é Gótico, exatamente como Patrice Bollon comenta em “A Moral da Máscara” e aborda a questão da recusa ao comentar sistemas estéticos: “Mais do que sistemas de normas, são sistemas de tabus. Podemos dizer o que absolutamente não seriam; mais difícil seria dizer o que são.(…) Seu código…não estabelece uma sensibilidade, um significado, ou uma ideologia; ele delimita um espaço de sensibilidade, uma área de significados, um feixe de atitudes, uma constelação de ideias no interior dos quais todas as modulações são permitidas, ou até requisitadas.(…) A meta foi atingida: criar uma concepção do mundo, circunscrever uma visão passível de evoluções que permitam a expressão pessoal.(...) Com efeito, o que as (modas e culturas) aproxima é que nenhuma delas oferece ‘respostas’ às perguntas: elas se contentam em delimitar espaços onde simplesmente essas perguntas não são mais feitas.” (Patrice Bollon, 1990). A música e o visual, bem como o comportamento e atitude, constituem um discurso estético, como cita Durafour: “No seio do movimento gótico, o visual, a dança, as atitudes e as posturas formam uma linguagem estética codificada que concorda com uma nova percepção da corporeidade (conjunto dos traços concretos do corpo como ser social): perceber os corpos como ‘obra de arte’ é reconsiderar seu valor em um mundo onde nossos corpos não nos pertencem mais verdadeiramente”. (Durafour, 2005) Veja no volume 1: D) A Teatralização e o Corpo. Dessa forma, também nos “reapropriamos” do nosso corpo em sociedade, ou nos reapropriamos – conscientemente - do discurso de nosso corpo. 32

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8. LACRIMOSOFOBIA... OU GOTICOFOBIA? No balaio comercial do rótulo “gothic metal” muitas bandas foram jogadas: realmente a maioria não tinha nada a ver com a cena gótica, mas muitas bandas (ou álbuns) que assim foram classificados tinham realmente relação com a história musical da cena gótica e darkwave. Assim, é totalmente coerente que naquela época tantos góticos mais antigos- e também novatos- seguindo apenas a sua sensibilidade musical, gostassem dessas bandas também, pois pareciam musicalmente com outras já aceitas na cena gótica. O que é binarismo? Acreditar que as coisas se dividem em sim e não, bom ou mal (maniqueísmo), preto ou branco... e que uma vez algo classificado de uma forma, não é preciso mais pensar pois essa coisa estará sempre com essa classificação. Porém, no mundo real, as coisas mudam de significado de acordo com o contexto, da mesma forma que a frase “é dando que se recebe” muda de significado se proferida por um religioso franciscano, por um político corrupto ou por uma profissional do sexo... :-) Atualmente podemos ver, ironicamente, jovens góticos criticando estilos e bandas que já eram bem aceitos por góticos bem mais velhos. Um purismo binário e desnecessário, que esquece a história da cena gótica. Mas vamos ver como essa situação estranha começou. Lacrimosofobia é só um exemplo. O que a “Lacrimosofobia” (fobia ou ódio pela banda Lacrimosa) esconde, além de ser uma fonte de status fácil para troos e trolls? Há mais enterrado nessa história: alguns conflitos musicais internos da cena gótica que remontam aos anos 80. Vamos relembrar: GUITARRAS PESADAS NO GOTHIC ROCK DOS ANOS 80 E 90: ANTES DO GOTHIC METAL Existe o mito de que antes da avalanche do gothic metal (no Brasil, com um auge entre 2001 e 2006) a cena gótica era um paraíso de pureza post punk ou minimal. Nada mais longe da verdade. 33

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Esse mito esconde um conflito que já se desenvolvera dentro da própria cena gótica: o gothic rock e outras linhas de base wave eletrônica tinham incorporado novos elementos musicais ainda nos anos 80. Por exemplo, o álbum “Vision Thing” (1991) foi rejeitado por puristas por abraçar um sonoridade mais hard rock. Algo que o Fields of the Nephilim já mostrara nos primeiros álbuns (desde 1987). Nesse momento, na virada dos anos 80 para os anos 90 já temos um conflito entre gothic rockers e os que consideravam apenas post punk e minimal eletronics como aceitáveis. O fato é que passado o auge da onda post-punk, no início dos anos 80, as influências musicais pessoais de muitos artistas começara a prevalecer em seus trabalhos e, pela idade deles, essas influências remontam ao rock dos anos 60 e começo dos anos 70. Além disso, essa pureza esquece a presença de bandas como Fields of the Nephilim, The Young Gods, Skinny Puppy, Ministry e tantas outras que desde os anos 80 já tinham como elementos guitarras pesadas e o que chamamos hoje de industrial-rock. No começo dos anos 90 toda uma geração de bandas Gothic Rock mais hard rock também marca sua presença: Rosetta Stone, The House of Uhser, Garden of Delight, Two Witches, Nosferatu, Love Like Blood, The Awakening… e o próprio Sisters of Mercy, em sua versão mais hard (misturando Motorhead e Suicide, como diz o próprio site oficial da banda). Não foi só ironia a banda ícone da Batcave, o Specimen, usar riffs ao estilo Marilyn Manson e NIN no seu mais recente álbum. Para quem cresceu influenciado por glam rock dos anos 1970, é uma opção óbvia. Desde o final dos anos 80 faixas industrial rock do Ministry foram hits nas pistas góticas de São Paulo. Em uma cena já acostumada ao Skinny Puppy foi fácil receber bem o NIN inicial, e seu pupilo com maquiagem gótica e glam, o então pouco conhecido Marilyn Manson. Lacrimosa era uma banda popular, como eram Sisters e Fields. Garden of Delight tem uma grande produção nos anos 90, e sua continuação atual com o vocalista Artaud, o Merciful Nuns, segue com uma sonoridade característica. 34

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Paradise Lost fez alguns álbuns entre 1997 e 2002 que se pareciam mais com Depeche Mode e Sisters of Mercy do que com algo metal. Seus álbuns “One Second” (1997) e Symbol of Life (2002) se insere perfeitamente na tradição Sisters/Fields. Os dois intermediários (de 1999 e 2001) são até mais “Depechianos”. Para quem aceita hoje Suicide Commando e Hocico, todas essas são bandas água com açúcar... Ao lado disso, ainda nos anos 80, a darkwave se misturava bem a tendências eletrônicas com bandas como Poesie Noire, Cassandra Complex, Clan Of Xymox, Wolfsheim, Silke Bischoff e similares. Nos anos 90 evoluímos para uma diversidade musical: gothic rock, post punk, synth, darkwave, eletro goth, coldwave, eletro goth, industrial rock, electro-medieval, celtic, ethereal, ethno... etc. Ainda nos anos 90, também quem estava acostumado com Dead can Dance e Sisters of Mercy/ Fields, continuou “catando uvas” ou “limpando teias de aranha” (dois estilos de dança ethereal/gótica) com o álbum “Aegis” do Theatre of Tragedy. O feeling mudava muito pouco em relação a outras bandas ethereal/wave, comparado a bandas com influência de doom mais arrastado. Algo bem diferente da vertente black metal mais extrema. Também várias críticas são possíveis a HIM, mas excluir os primeiros álbuns do HIM por ser “metal” (além de horrorizar headbangers, rs) excluiria também bandas como The Cult, Sisters Of Mercy, Fields e muitas que já citamos. Valo fazia um típico glam-rock (devido as origens Bowiescas do estilo gótico, algo que acaba sempre nos atraindo), as vezes hard, e seus primeiros álbuns embalaram góticos com suas melodias românticas estilo rock anos 60 no estilo The Mission mas com mais distorção (não por coincidência Valo e The Mission gravaram juntos em 2016 combinando muito bem musicalmente). Também o Tipe O Negative, tanto com suas faixas cômicas quanto sérias, fez alguns álbuns que agradaram muitos góticos que eram a “nova geração” de 20 e poucos anos atrás. Porém, posteriormente, tanto HIM, TON e Paradise Lost se afastam do estilo que os fez populares na cena gótica no final dos anos 90 e comecinho dos 2000. Já o Lacrimosa é um caso anterior e a parte: tanto Tilo quanto Annie tem uma formação como góticos nos anos 80, e todo repertório típico do estilo. Annie veio de outra banda de gothic rock, o Two 35

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Witches. Estreiando em 1990, Lacrimosa participa de toda uma geração que renovou o estilo gótico na Alemanha desde o início dos anos 90 manteve uma coerência de temáticas ligadas a cena gótica. Na cena Brasileira, a banda era muito bem aceita nas casas de São Paulo já nos anos 90, inserida em sets tradicionais de música gótica, e compartilhando especiais com Christian Death, Siouxsie, etc, como comprovam flyers de época, e claro, muitos góticos que hoje já estão na faixa dos 40 anos ou mais. Lacrimosa é um fenômeno mais antigo e duradouro dentro da cena gótica, tanto nacional como internacional. AVALANCHE GOTHIC METAL: PÓS 2000 O problema pós 2000 é outro: uma cena gothic-metal cresceu muito em um movimento de moda mainstream, colocando o rótulo gothic metal (naquele momento tão vendável quanto “grunge” em 1991 ou “brit pop” em 1994/5) em inúmeros gêneros de metal sem relação com o gothic rock. E rotulou como gothic metal alguns álbuns e bandas gothic rock, como forma de vender mais essas bandas. E essa avalanche pegou a cena gótica em mais um de seus momentos de transição de gerações, em que, como tantas até então, as informações se perdiam devido ao modelo único de relações presenciais. Por isso no período 2000-2006 muita gente nova simplesmente imaginou que a nova cena gothic-metal era a única cena gótica existente, fazendo a cena gótica local praticamente desaparecer musicalmente e conceitualmente. É conhecido o caso dos criadores do site Spectrum, que depois educadamente incluíram uma parte sobre a subcultura gótica quando ficaram sabendo que existia uma “outra” subcultura gótica ainda viva: a nossa! A pergunta é: se estavam preparados para entender, como é possível que não soubessem? Como aconteceu na época uma total ausência de contato e comunicação entre gerações? Nesse momento do auge do gothic metal o problema não era mais alguns estilos ou bandas dentro da cena gótica, mas, aqui no Brasil, uma situação diferente: a cena gótica INTEIRA tinha sido substituída por uma cena metal com nosso nome. Ter bandas com The Sins of Thy Beloved, Dimmu Borgir ou Cradle 36

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of Filth como “padrão de gótico” é algo totalmente diferente de ter, como antes, o Paradise Lost fazendo um álbum com som Sisters/ Depeche, ou Fields fazendo álbuns com elementos pesados. Mais: subculturas como a headbanger, a gótica, a punk, hip hop, etc, todas tem uma série de dinâmicas sociais e características de comportamento e valores bem diferentes, portanto o problema era mais que musical apenas. O lapso de informação entre gerações na virada do século permitiu a criação das teorias mais absurdas e mirabolantes sobre gótico (foi quando percebemos que era preciso manter uma base de informações básicas, como góticos ingleses já tinham feito antes pela internet). Vimos mais de uma geração bem informada não conseguir passar essas informações para a geração seguinte. Daí a importância de mantermos sempre um trabalho informativo didático sobre a subcultura gótica, em plataformas de mídia acessíveis a todos, deixando placas indicativas para pesquisas posteriores. Foi uma grande luta explicar que uma cena metal não era a cena gótica. Tivemos que lembrar a maioria de novos chegados que já tinha alguém morando naquela “casa” há bastante tempo, e mostrar que tínhamos a nossa própria tradição musical atual. Mas esperneamos e o auge da moda também passou. Hoje mesmo quem gosta tanto de gothic metal quanto de outras linhas góticas e wave sabe diferenciar os estilos e, principalmente, as respectivas cenas. Mas, no passado, o problema do gothic metal foi agravado por nossa própria culpa, devido à desorganização interna da cena gótica local e incapacidade de transmitir informação e incluir de forma positiva estilos e novas gerações. Precisamos tomar cuidado para não repetir esses erros. Por isso tudo é importante não aceitar a negação de partes da própria evolução musical dentro da subcultura gótica, nem de segmentos de estilo tradicionais, caindo em purismos radicais de uma ou outra parte da tradição histórica da subcultura gótica. E, muito menos, negação de estilos e segmentos de pessoas, como muitas vezes ocorre, sob o disfarce de preconceito estilístico ou musical. A subcultura gótica é diversa da subcultura headbanger, punk, hip hop ou outras, por isso é preciso preservar nossas peculiaridades e 37

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diferenças mas, musicalmente é preciso avaliar caso a caso, álbum a álbum, e por vezes música a música. Compartilhamos músicas com diversas subculturas, e muitas vezes, pela convivência há intercâmbio musical entre estilos gerando obras artísticas bastante criativas e novas. Algo muito positivo em termos artísticos. O MITO “VIEMOS DO PUNK” x METAL: FAIL Um argumento ruim tira a razão até de quem está certo... Durante aquele período (2001-2006) se popularizou um slogan mítico de “batalha” mas que era uma meia verdade: “o gótico veio do punk, logo metal não pode ser gótico porque punk se opõe ao metal”. O problema é que isso carrega um grande desconhecimento musical tanto da história do metal quanto da música gótica. De fato o punk se opunha ao metal e “rock de arena” nos anos 1970, mas já na virada para os anos 80 bandas de metal absorveram influência do punk, gerando o metal moderno, como o conhecemos hoje. Então a presença de influência punk seria um argumento a favor do metal na cena gótica, não contra. Sem falar no hardcore... e emocore, também influenciados ou derivados do punk e punk rock. Mas os dois argumentos são irrelevantes, para um lado ou outro: a lógica de inclusão de estilos musicais em subculturas é muito mais complexa do que um mero determinismo musical desse tipo. Porém, aquele slogan foi tão repetido que se começou a esquecer parte da história musical da cena gótica. Assim, o trauma metálico e uma nova geração fez com que surgisse um fenômeno de “jogar o bebê fora junto com a agua suja” como diz o provérbio (significa jogar algo que faz parte junto com a limpeza). Por outro lado quem sempre odiou as “guitarras pesadas estilo Sisters e Fields”, ou estilos darkwave, synth goth ou eletrônicos, aproveitou para tirar sua casquinha... Assim, podemos ver jovens criticando estilos e bandas que já eram aceitos por góticos bem mais velhos. Um purismo binário e desnecessário, causado por desinformação, que esquece a própria história e evolução da cena gótica. 38

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Aliás, o purismo binário e maniqueísta parece ser a marca no final da década de 10. Felizmente a realidade não é binária.

Nota: Em São Paulo- SP o DJ Marcelo KPT (Deepland) comenta ter sido o primeiro a tocar Lacrimosa (faixa AllesLuge) no Brasil em 1994 na casa: Morcegovia (nome da época do Madame Satã) tendo conhecido a banda através da coletânea German Mystic Sound Sampler e outras. E o Primeiro especial de pista também em 1996 no The The (OUTRO nome da época do Madame Satã...) no lançamento do álbum Stille e também no lançamento do álbum (live) no clube Umbral em 1998 e fechando com Elodia em 2000 no clube Deja Vu.

9. O GÓTICO NÃO “VEIO DO” PUNK O fato autoevidente é que Punk e Gótico se tornaram já nos anos 80 subculturas com valores, características e estéticas radicalmente diferentes, quando não divergentes ou conflitantes. Por que então existe o mito de “o gótico veio do punk”? As características centrais da subcultura gótica não são encontráveis no punk: se fosse apenas pelo punk, góticos não teriam existido. Ao mesmo tempo se fala muito pouco de outras influências importantes da subcultura gótica. Por quê? Então... O que significa “veio do”? E o que significa “punk”? Qual Punk? O “Vir” que nos interessa aqui tem a ver com os conteúdos: símbolos, musicalidades e discursos que o gótico adotou como seus nos anos 1980 e nas décadas de 1990 e até hoje. Conteúdos que são singulares e peculiares na forma que tomam na subcultura gótica. Aqui queremos apontar que as principais características e conceitos que fizeram do gótico uma cultura alternativa desde os anos 1980 não estão no que hoje entendemos como punk (ou do que entendemos como punk pelo menos desde o final dos anos 70...) nem no “conteúdo” que se define geralmente como punk desde então. 39

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Em 1976 o termo “punk” foi aplicado a um estilo como o do Bromley Contingent, grupo de fãs do Sex Pistols e divulgadores da loja de roupas Sex de Malcolm McLaren e Vivienne Westwood. O artigo abaixo do blog Moda de Subculturas de Sana Skull conta bem essa história: http://www.modadesubculturas.com.br/2016/09/punk-influencia-lojas-viviennewestwood-malcolmmclaren.html Porém rapidamente o punk deixou de ser um fenômeno fashion de classe média para se tornar uma cultura mais suburbana e estereotipada tanto no visual quanto na ideologia, que se definiu politicamente (e se fragmentou logo em grupos que vão do anarquismo e socialismo, até setores que flertam com a extrema direita). No visual, é interessante lembrar que o visual com moicano não existia no começo. O DJ Pete Scathe, de Portsmouth (e criador do site gótico Scathe), também comenta, e mostra bem essa diferença entre as subculturas que se formavam:

“A cena punk ficou velha muito rapidamente (...) bem no início era feita de pessoas mais bem vestidas, glamourosas – fans do Bowie. Depois foi tomada por (...) o que as pessoas entendem como punk hoje em dia – punks estereotipados com moicanos. O pessoal estiloso migrou, alguns foram para o New Romantic, outros migraram para o que se tornou a cena gótica.” De entrevista ao jornal the Guardian (2008): https://www.theguardian.com/music/2008/feb/17/popandrock. shopping9 O que importa é que já em torno de 1979 o próprio punk que se “consolidou e estereotipou” e perdeu esse “desregramento” e criatividade originais, gerando uma subcultura específica e importante - como as outras- que permanece até hoje, mas com regras, estética e padrões próprios de comportamentos (atitude, moicano, jaqueta, orientação ideológica e política específica, etc). Esse texto da Sana Skull mostra isso – e mais – de forma precisa: http://www.modadesubculturas.com.br/2016/09/punk-ingles-1976-1979-moda-punk.html 40

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QUESTÕES DIFERENCIAIS ENTRE GÓTICO E PUNK Se você já está há algum tempo em contato com a subcultura gótica, já deve ter ouvido a teoria de que “o gótico veio do punk” ou do “positive punk”. O que existe de realidade e de exagero nessas histórias? Temos vários lados nessa polêmica, entre eles: 1) QUESTÃO MUSICAL E LÍRICA 2) QUESTÃO DAS CARACTERÍSTICAS DA SUBCULTURA GÓTICA 3) QUESTÃO DO SIGNIFICADO SOCIAL E POLÍTICO Vamos por partes, como gostaria o velho Jack estripador: 1) QUESTÃO MUSICAL E LÍRICA: Aqui nos referimos como punk especificamente ao que surgiu em 1976/77 na Inglaterra, e derivados posteriores, como hardcore. Importante lembrar que vários estilos de metal foram também influenciados pelo punk e hardcore. Se tomarmos a maioria das bandas do repertório gótico dos anos 80, a maioria tem influências musicais que são anteriores ou além desse punk. Algumas das bandas que começaram nos anos 70, no auge da moda punk ou no post-punk, mudam de estilo nos anos 80. Como já comentamos as pricipais influências musicais podem ser localizadas no rock do final dos anos 60 e “proto-punk dos EUA” (1967-1975), glam rock (aprox. 1970-1975), krautrock (aprox.. desde 1969) e outras influências posteriores que foram incorporadas já entre 1979 e 1984. Sem falar em inúmeras influências do cinema dos anos 70, que atualizaram vários temas do cinema expressionista e cine B: Cabaret (1972), Rocky Horror Picture Show (1975) e o Nosferatu de Herzog (1979), etc. Claro, e tudo que David Bowie fazia. Por exemplo, bandas cultuadas pelos góticos desde os anos 80 como: Poesie Noire, Opera Multi Steel, Clan of Xymox, The Sisters of Mercy, The Mission, The Fields Of The Nephilim, Dead Can Dance, This Mortal Coil, Black Tape for a Blue Girl, Die Form, Cassandra Complex, Deine Lakaien, etc, mostram uma diversidade de influências e estilos que simplesmente não tem como terem sido derivadas apenas do punk musical. Vemos influências que vão do 41

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Folk, Glam-Rock, rock clássico, música étnica, música eletrônica experimental, synth, new wave, hard rock, etc. Isso se ficarmos só nas bandas dos anos 80. BATCAVE: PÓS-BLITZ & NEW ROMANTICS

“...tinha algo de diferente na Batcave. Um novo ambiente. Durante nossa primeira visita nesse lugar, foi a primeira vez que vimos uma pista de dança se esvaziar quando o DJ Hammish rolou Sex Pistols!” (Sra. Fiend, entrevista junto com Nick Fiend, Alien Sex Fiend). em “ The Batcave : 1982-1985: du post punk au goth” É importante lembrar que o estilo gótico não tinha construído seu repertório básico até o começo dos anos 80. Primeiro post-punk e new wave (1978) e logo em 1979 as raízes Glam e fashion ressurgem com força nos Blitz Kids e New Romantics, que já em 1980 desenvolvem estilos que logo depois chamaríamos de góticos e influenciam o visual das principais bandas. A sonoridade das bandas muda também. Os Blitz kids recuperaram o dandismo e criatividade, incluindo o resultado de pesquisa histórica em visuais modernos, com elementos medievais, barrocos, vitorianos, renascentistas, etc, embalados por música new wave, synth e post punk. O clube Batcave surge após os Blitz, incorporando parte do público new romantic. Ao mesmo tempo, essas ideias, visuais e musicalidade já estavam sendo incorporadas ao que entendemos como gótico. Um desfile feito por estilistas do grupo Blitz Kids em 1980 foi importante neste sentido, ao usar imaginário eclesiástico, penteados e maquiagens que não existiam na época, definindo o visual tradicional gótico posteriormente. Em meados dos anos 80, fica claro ver o visual padrão gótico -e atitudes- como fortemente influenciado pelos Blitz Kids, entre outras influências. Não vemos muita diferença de inspiração estre estes e os visuais góticos atuais. BANDAS: Quem foi um adolescente interessado por música nos anos 1970 teve diversas influências, o comentário de Ian Astbury na época da 42

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Batcave é só um exemplo:

“Eu fui ao mesmo tempo influenciado por Led Zeppelin, Velvet Underground, Love, The Stooges, música psicodélica do fim do anos 60, Hendrix, Cream, Pink Floyd. A música pós moderna me entediava. O punk tinha acabado, os Pistols, The Clash... Ian Curtis tinha morrido muito jovem e não tinha mais nada de interessante”. (Ian Astbury, vocalista do Southern Death Cult, Death Cult, The Cult e do The Doors na versão mais recente). Entrevista em “ The Batcave : 1982-1985: du post punk au goth” Dos artistas das bandas iniciadas no final dos anos 70 e começos dos 80 muitos foram motivamos pelo ambiente da moda punk e depois post-punk/new wave (e outras ideias experimentais dos anos 60 e 70), de fazer qualquer coisa com seus recursos, mesmo se você não tivesse técnica. Mas isso motivou artistas de diversos estilos diferentes, não definindo o estilo e conceitos que seguiriam depois, nem suas ideologias. Mas mesmo nestes casos vemos outras influências envolvidas: o Bauhaus foi criticado pelas revistas musicais da época como sendo mera cópia do Bowie da fase Glam, tanto que a banda respondeu com uma cover de Ziggy Stardust idêntica e a marca de Bowie sobre o logo do Bauhaus na capa. The Damned começou punk, mas na virada para os anos 80 Dave Vanian muda para um estilo mais pop ou gothic rock. Siouxsie começam como modelos da loja Sex e dos Sex Pistols, no Bromley Contingent, mas seu estilo muda nos anos 80, tanto visual como musicalmente. Robert Smith também define seu estilo nos anos 80. Os membros do Dead Can Dance podem ter tido antes uma banda post-punk/new wave na Austrália, mas a sonoridade e lírica da banda que encantou os góticos e se tornou modelo para várias gerações de bandas (e tendências inteiras) não tinha mais nada que se possa chamar de punk. Com o fim do Bauhaus, também Love and Rockets e Peter Murphy solo mostram uma grande diversidade de influências pré-punk, especialmente Glam e 60’s. The Mission e The Cult idem. A mesma lógica se aplica a maioria dos casos. 43

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Da mesma forma Andrew Eldritch cita Motorhead e Suicide como influências em seu site oficial do The Sisters Of Mercy. Franck López do Opera Multi Steel tinha uma banda folk tradicional (chamada Avaric) e gravou vários álbuns com ela antes de 1983, e depois misturou sons folk, eruditos a new wave e synth, criando um tipo de mistura que se tornou tracional na cena gótica, gerando outras bandas que misturam música eletrônica e antiga. A lista é enorme, se pegarmos banda por banda, veremos essa diversidade de influências musicais e estilísticas desde os anos 80. Por isso hoje temos bandas góticas das mais variados, com influências e misturando estilos musicais dos mais variados, que vão do eletro ao ethereal, do hard rock ao punk, do folk ao industrial, medieval ou synth, do trip hop ao EBM, etc. Musicalmente, as influências diversificadas já estavam no repertório pessoal dos artistas no final dos anos 70 e nos anos 80, e outros movimentos posteriores reforçaram essas características. E A POLÊMICA DO POSITIVE PUNK? Também, para entender isso é preciso lembrar a atitude de alguns jornalistas e revistas musicais ingleses nos anos 70 e 80. Alguns deles não gostavam do conceito de gótico. Como hoje, a mídia musical já tentava controlar e determinar os movimentos. Algo que fica notório lendo coletâneas de resenhas musicais da época (como Post Punk Diary 1978-1982 de George Gimarc) ou revistas da época, é uma má vontade com bandas que adotam um estilo mais “excessivo” e se denominam góticas. Uma fofoca da época, que ninguém é de ferro: o jornalista Richard North, da NME, teria interesse pessoal em inventar um novo movimento, visto que se juntou a banda que estava divulgando, o Brigandage? Podemos ver quando ele começou a fazer parte do grupo na página da própria banda: http://www.brigandage.com/brigandageimagecafe/brigandagehistory.html Assim, como podemos ver nas revistas abaixo, de fevereiro de 1983, o desprezo por bandas como Bauhaus, Siouxsie e Southern Death Cult era uma questão pessoal para esses jornalistas (fica mais evidente ainda no texto da THE FACE, de Marek Kohn. E a NME – texto de Richard North- sugere um novo Punk: http://punkrocker.org.uk/punkscene/positivepunk.html 44

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Primeiro, vamos lembrar que bandas, público e jornalista já vinham usando o termo gótico pelo menos desde 1978, como comentamos no capítulo 18 do livro Happy House in a Black Planet (volume 1, 2008) no capítulo “Cronologia do uso Subcultural do termo Gótico”. Claro que o termo ser usado não significa que já existia uma subcultura gótica formada antes, mas indica que ideia geral de “gótico” já estava espalhada socialmente. Mas em 1983 era muito tarde para tentar colar outro rótulo em um movimento que já tinha se disseminado e absorvidos conceitos que não cabiam mais no que o punk já se tornara há anos. E meses depois veríamos que a ideia de gótico torna algo espalhado pelo mundo. Como Mick Mercer comenta em relato do site Scathe:

“...Richard não estava falando de nada mais do que a atitude de umas poucas bandas e ele não tinha qualquer intenção além de proclamar um movimento. Ele ficou tão surpreso quanto os outros ao ver que o artigo foi parar na capa (...). Foram os sub-editores, possivelmente em uma semana fraca, que aprontaram essa. Ele estava apenas considerando uma linha mais criativa de Punk, não um movimento” http://www.scathe.demon.co.uk/posipunk.htm

De uma forma ou de outra, reduzir o Gótico a Positive punk seria amputar as principais características de nossa subcultura, não só musicais, mas em outros aspectos simbólicos e de significado social, como comentaremos a seguir. 2) QUESTÃO DAS CARACTERÍSTICAS DA SUBCULTURA GÓTICA

“O Gótico é uma estética de excesso” (Fred Botting) Subculturas não são apenas cenas musicais, algumas subculturas não tem música própria ou são baseadas em outras questões. No caso da subcultura gótica, temos uma convergência de uma tradição musical (da qual já falamos um pouco acima) e do conceito de gótico como conhecido na cultura geral desde os século XVIII. É importante lembrar que essa junção não é acidental: se pesquisarmos a fundo as características e ideias envolvidas na literatura gótica original –que é bem diferente do Romantismo- especialmente no período 1764-1821. 45

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Assim, as principais temáticas e características desenvolvidas pela subcultura Gótica foram absorvidas e resignificadas a partir dos temas (e tropos) da literatura gótica. Já descrevemos algumas das características da subcultura Gótica no capítulo 7 de Happy House, vol. 1, (2008). Essas carcaterísticas estão ligadas a outros “tropos” (temas recorrentes) típicos originários da literatura gótica, que explicamos melhor na parte 2. Algumas características principais dessa literatura gótica são aquelas que aprofundamos no capítulo “Características da literatura gótica” deste livro. Aqui deixamos apenas os títulos: - Caráter Prometeico - Ausência de maniqueísmo típico do Romantismo tradicional (OU “herói Byroniano”) - A linguagem mais crua (em relação ao Romantismo) - Personagens com corpos e sensações, erotismo e sensualidade expressos de forma escandalosa para os padrões da época, incluindo sadismo, perversão, incesto, etc. - O mal interior se apresenta como degeneração físico-moral da alma e do corpo. - Anticlericalismo e iconoclastismo - Busca do Sublime Também comentamos as origens dessas características no capítulo “Cidades dos Condenados”. Assim, podemos ver que as principais características e simbolizações que definem a subcultura gótica tem origem na literatura gótica, e seus derivados no cinema e outras artes. A subcultura gótica se apropriou desse repertório para construir sua visão de mundo e posicionamento político próprio e único (em um sentido de que toda ação humana é política, pois é social). Vamos ver isso a seguir. 3) SIGNIFICADO SOCIAL E POLÍTICO A literatura gótica já foi severamente criticada pelos críticos “sérios” e pelo bom gosto romântico de sua época. Como vamos ver em detalhe no capítulo “Recepção e Crítica Literária do Estilo Gótico”, na própria Inglaterra do século XVIII e XIX o estilo Gótico foi 46

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depreciado pela crítica literária, gerando um conflito entre as três partes interessadas em literatura: os leitores, os autores e os críticos literários. As temáticas dos romances góticos abordavam questões proibidas de sexualidade, morte, críticas à aristocracia e clero, etc. Não é coincidência que uma subcultura do final do século XX tenha escolhido essa simbologia para expressar um discurso libertário de grupo. Assim como a literatura da qual se apropriou e resignificou, a Subcultura Gótica tem sua própria construção e significação política e social, que é expressa pela sua estética (música, roupas, letras, poesias, maquiagens, pinturas, comportamentos, etc). Essa posição é claramente libertária e questionadora de vários padrões de comportamentos tradicionais da cultura dominante (explicamos isso na parte 2, das características da subcultura). A CRÍTICA DA CRÍTICA: A crítica musical do final dos século XX fez com o Punk algo parecido com que a crítica literária fez com o Romantismo no final do século XVIII e início do XIX, em ambos os casos, curiosamente, em detrimento do estilo gótico (antes literário, depois como subcultura): determinou que um estilo era sério e importante na cultura e o outro era “de mau gosto e popularesco, algo superficial e exagerado”. Como no século XIX, autores e artistas ficam no fogo cruzado entre crítica e público. Provavelmente podemos culpar setores da crítica musical especializada (mas não só eles) por terem buscado apagar tanto a história quanto ignorar desenvolvimentos posteriores do gótico até hoje, como se esta subcultura tivesse acabado nos anos 80. É notório como a crítica musical ignora os grandes festivais e todas as bandas góticas e darkwave pelo menos desde 1990. Provavelmente se trata de uma estratégia de manutenção de “status de conhecedor da crítica”, semelhante ao adotado pelos críticos literários do início do século XIX que desvalorizaram a literatura gótica. Em ambos os casos, algo que tem mais a ver com os críticos do que com arte ou realidade. Felizmente, em ambos os casos, a “crítica especializada, de bom gosto e culta” não conseguiu nem apagar a realidade da continuidade da produção cultural de estilo 47

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gótico e nem eliminar o gosto popular por ele. E NO BRASIL? GÓTICO x DARK No Brasil, devido a ditadura militar (1964-1985), muita coisa chegou atrasada, junta e misturada. Assim, não acompanhamos as fases de oposição conceitual dos movimentos originais. Por isso às vezes equacionamos o punk (ou mesmo o gótico) como uma unidade, quando o próprio punk 80 já não se parece com as ideias de 1976, ou de 1971 (se aceitarmos bandas dessa época como punks). E entre 1978 e 1983 aconteceu muita, muita coisa importante. Na Europa todos os movimentos que comentamos antes surgiram em certa ordem e contexto, com características mais específicas e muitas vezes se opondo um ao outro. Entre um e outro há espaço de anos e muitas mudanças. O post-punk também chega atrasado e dura muito. Até hoje vemos um oitentismo que teima em não passar. Por isso aqui o gótico parece tão próximo da chegada do punk, com tudo condensado. Além disso, nos anos 80 jornalistas brasileiros difundiram um termo que não tem em outros lugares o significado que demos aqui: “dark”. Acabamos criando momentaneamente nos anos 80 uma subcultura que talvez só tenha existido aqui com características locais. Isso explica o conflito de gerações e informações que acontece quando a gerações posteriores chegam com as informações mais completas de fora do Brasil sobre a evolução que o gótico continuou tendo lá. Mas ambos os lados estão corretos: o dark brasileiro se aproxima do que foi uma mistura de post-punk/new wave/no wave lá fora, mas com toques característicos do Brasil que – coerentes ou não com o gótico europeu, não importa – criaram uma peculiaridade. Mas em termos comparativos, o dark brasileiro seria algo mais restrito estilisticamente do que o gótico, não incluindo todas as características musicais, estéticas e sociais que temos na subcultura Gótica. E, claro, tem outras que não encontramos no gótico. O Dark brasileiro não foi o que o Gótico era na Europa na mesma época (desde a segunda metade dos anos 80), por isso não podemos dizer que o gótico é simplesmente “um novo nome” que foi dado ao “dark” (outro mito confuso difundido no Brasil). Essa ideia 48

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restringiria o gótico a um fenômeno revival e eliminaria grande parte de suas características. Porém, em toda sua diversidade, a subcultura gótica continua a cultivar também os estilos musicais – e visuais - dos anos 80, mas sem se restringir a eles. É importante valorizar essa peculiaridade brasileira, o “dark”, mas sabendo que é uma “palavra” e ideia sem tradução no contexto da subcultura gótica global hoje. Mas isso não faz do “dark” um fenômeno menor: no século XX, muitas subculturas foram ou tiveram variações locais especializadas, devido a ausência ou precariedade das comunicações globais. É importante conhecer essa história da cultura alternativa brasileira. Além disso temos uma importante intersecção musical entre o dark e o gótico, assim com temos entre o gótico e outras cenas musicais como a guitar/indie, EBM, synthwave, etc. Apenas a partir da segunda metade dos anos 90 as subculturas começam a se transformar em fenômenos translocais ou glocais como as conhecemos hoje, em que todos temos informação atualizada sobre o que acontece hoje em nossas subculturas no mundo inteiro (veja os capítulos “A Translocalidade Da População Gótica” e “Glocal”). CONCLUSÃO: Subculturas diferentes tem núcleos de significado, hábitos e formas de representar o mundo diferentes, e é importante perceber e manter essa diversidade. O Post punk foi um ninho para muitos estilos diferentes. Apesar da subcultura gótica ter dado seus primeiros passos ao lado da explosão de criatividade do post punk, nossa tradição, tanto musical, quanto simbólica quanto libertária, são muito mais amplas, diversificadas e tem origens anteriores ao punk. Nossas características principais e formas de expressar questões sociais também são diferentes. Poderíamos dizer que também absorvemos e resignificamos alguns elementos do punk, da mesma forma que fizemos isso com muitas outras influências. A própria questão do DIY não pode ser reduzida a uma identidade com o punk, não só por ser um erro de lógica (relacionar dois todos por um elemento menor), mas também porque 49

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o DIY deu origem a muitas coisas diferentes, alternativas ou não. Da mesma forma que é um equívoco dizer que o gótico é um “godo moderno”, é um equívoco nos colocar como “um punk de preto”: isso anularia as principais características do gótico, além de nos colocar como subtendência de outra subcultura. É importante que lutemos para manutenção de espaços sociais e conceituais de diferença na forma de subculturas, como o Gótico, Hip Hop, Metal, Punk, Emo, etc etc. Mas cada uma dessas subculturas não pode ser reduzida ou descaracterizada como parte ou mera subtendência da outra. Isso seria pasteurizar e reduzir a variedade de escolhas pessoais dos indivíduos. “Veio do”, no sentido da frase no título, geralmente quer dizer que as características principais ou essenciais de algo vem de uma origem específica, e que isso explica o estado atual. Nesse sentido, definitivamente, o gótico não veio do punk. Nem dos godos.

10. GOTICISMO: UMA PALAVRA TORTURADA... Crie um filho de brasileiros em uma família chinesa no interior da China e ele será culturalmente Chinês e se comportará, moverá, sentirá e pensará como um Chinês. Logo, nada relacionado a cultura é biológico ou espiritual: não se nasce com determinada cultura, nem por patrimônio genético, nem por característica espiritual. Portanto, não há gene gótico, nem alma gótica nem nenhum tipo de essência que exista antes da vivência. Costumamos dizer que “nascemos assim” apenas porque não lembramos da nossa primeira infância, quando nossas tendências e sentimentos mais profundos foram moldados. A essência é a sombra projetada pela nossa história (pensamento que devemos a Sartre). 50

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Produções culturais são sempre estéticas: o que faz um poema ser simbolista é ele usar a estética simbolista, senão seria um poema arcadista, barroco, romântico, concreto ou de qualquer outra estética. Assim, “estética” é o ramo da filosofia que estuda o significado nas artes e outras manifestações humanas. A maioria das estéticas artísticas recebem o mesmo sufixo: romantISMO, surrealISMO, expressionISMO, cubISMO... etc. Neste aspecto, a palavra goticISMO está correta e é apenas isso: o nome de uma tradição estética, como tantas outras que citamos acima. Neste caso, pode ser aplicada a literatura gótica desde o século XVIII, a arquitetura Neo-gótica do século XIX (Big-Ben etc) ou mesmo à arte Gótica medieval, apesar desta ser nomeada apenas como Gótica posteriormente. Nós, adeptos da subcultura gótica, apropriamos-nos de elementos “goticistas”, isso é inegável, mas junto com muitas outras coisas. Portanto, não podemos reduzir a subcultura gótica ao goticismo, mas dificilmente a subcultura gótica existiria sem esse aporte estético. Tanto que esse mesmo aporte estético é explorado por outras subculturas, com outros resultados e significados. O que mostra que não se pode reduzir (nem estudar) nenhuma subcultura a um de seus elementos. Neste sentido, a palavra goticismo (“Gothicism”, em Inglês) aparece em dicionários e livros, alguns inclusive de décadas atrás. Outros sentidos atribuídos a esta palavra não tem nenhuma relação com a subcultura Gótica.

11. AS CATEDRAIS ERAM GÓTICAS? As catedrais Góticas são “Góticas”? Não. Essas catedrais só foram chamadas de góticas séculos depois de construídas. Na época de sua construção (século VIII ao XVI) eram cha51

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madas de “Opus Francigenum” (Obra Francesa) ou ainda “Opus Modernum” (Obra Moderna) ou “Maniera Tedesca” (Estilo Germânico). Essas catedrais foram chamadas de “góticas” mais tarde, pelos arquitetos e intelectuais renascentistas (após século XVI), como adjetivo pejorativo e como crítica ao seu estilo. Como no Renascimento se buscava um retorno ao estilo e filosofia antropocêntrica da época clássica Greco-romana (anterior a Idade Média) se fazia oposição a tudo que era Medieval. Assim, para os renascentistas, a arquitetura europeia teria sido “estragada” na Idade Média e, para eles, “Gótico” era um sinônimo de grotesco, bárbaro e desarmônico. Na verdade, o estilo dessas catedrais se desenvolveu gradualmente a partir do estilo Românico (remanescente do Império Romano) e, provavelmente, por posterior influência oriental ou islâmica, devido ao restabelecimento do contato comercial com Oriente e a ocupação Islâmica na parte sul da Europa (de 711 a 1492).

Então as catedrais “Góticas” não foram construídas pelos “Godos”? Não. Os vários povos que invadiram e derrubaram o Império Romano não trouxeram influência significativa para a arquitetura. Tanto que as catedrais desse novo estilo só surgem o século XII na França. Ou seja: cerca de sete séculos depois da queda do Império Romano. Para efeito de comparação, o Brasil existe há menos tempo que isto: só cinco séculos. A frase acima serve bem para ilustrar como funciona nossa mente em relação a nomenclaturas do passado: projetamos as classificações do presente sobre o passado, imaginando que elas sempre foram assim. Mas a verdade é que Cabral não descobriu o Brasil: “o Brasil” só vai existir muito tempo depois pela junção de vários territórios invadidos por Portugueses e Espanhóis no século XVI. Da mesma forma, referimo-nos às Catedrais como “Góticas” e a Idade Media como “Idade das Trevas”: estamos repetindo o conceito que Renascentistas e depois a literatura Gótica desenvolveram e Românticos popularizaram. 52

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A forma como a ficção literária do século XVIII e XIX descreveu a Idade Média molda nossa visão do passado até hoje. É importante, portanto, não confundir história com ficção, nem ficção com ideologia de época. Toda arte é influenciada pela ideologia de sua época (e a expressa, a favor ou contra), usando o passado, o futuro e o desconhecido para falar o que pensa do seu “aqui” e “agora”.

Então, por que os góticos (da subcultura gótica) gostam tanto da estética das catedrais góticas? Simples: a subcultura gótica absorveu a maior parte de seus elementos e discursos estéticos da estética desenvolvida pelas novelas góticas do século XVIII. O primeiro desses romances foi lançado em 1764, “O Castelo de Otranto”, seguindo-se vários outros que foram crescendo em popularidade até que, na década de 1790, os estilo de romances góticos se tornaram o primeiro caso de Best-sellers da história da literatura inglesa. A estética desses romances reforçou o imaginário do período medieval e sua arquitetura como “góticos” e obscuros, uma ideia já desenvolvida antes quando renascentistas citaram a Idade Média como “Idade das trevas”. Essa moda gótica chegou ao século XIX e influenciou a literatura romântica. No século XIX ainda floresceu na arquitetura um revival “Neogótico”, em que novos prédios eram construídos em um estilo inspirado no estilo decorativo das catedrais góticas, em oposição ao estilo limpo do Neoclássico, que, inspirado na cultura Greco-romana, era mais associado a ideia de república e liberalismo. Na Inglaterra esse cialmente durante ciação entre estilo nosso imaginário, época.

revival arquitetônico Neogótico floresceu espeo período Vitoriano (1836-1901) criando a assovitoriano e arquitetura neogótica que temos em e que é reproduzida na maioria dos filmes de

Esse imaginário da literatura e arquitetura do século XIX continuou a alimentar o cinema e a literatura góticos e de horror do século XX. Assim, quando a subcultura gótica se desenvolve no final dos anos 1970 e anos 1980, ela se apropria de toda essa bagagem estética e constrói sua grande salada ou bricolagem de significados. 53

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Não por acaso, a maioria dos temas musicais e estéticos da subcultura gótica coincidem com os dos primeiros romances góticos, como veremos na parte de literatura. Claro que a subcultura gótica acrescentou muitos temas e questões do século XX e atuais na sua bricolagem gótica, mas o gosto por prédios góticos sombrios e roupas vitorianas têm uma história linear e recente até chegar até nós no século XXI.

12. LIBERDADE RELIGIOSA NA SUBCULTURA GÓTICA O grupo social Gótico não é religião nem seita, nem prescreve ou proíbe religião alguma. Por isso, cada gótico ou gótica tem a liberdade de ter ou não ter – enquanto escolha pessoal e privada – a religião ou crença que bem entender. Apenas é importante respeitar a escolha do outro, pois este respeito é que garante a tua liberdade pessoal. Religião é uma escolha privada e pessoal de cada um. E é muito bom que hoje, depois de séculos de lutas e massacres, cada um possa escolher qualquer religião ou mesmo escolher não ter nenhuma religião. Existem Góticos de todas as religiões: umbandistas, cristãos, espíritas, pagãos, islâmicos, budistas, hinduístas etc. E também existem Góticos agnósticos ou ateus, crenças que, da mesma forma que as religiões, são escolhas privadas. Assim, ter essa ou aquela religião, ou não ter nenhuma, não faz de você mais ou menos Gótico ou Gótica. A subcultura gótica não prescreve nenhuma religião, nem proíbe nenhuma. O mesmo acontece com as bandas Góticas. Encontramos algumas que escolhem professar, em sua arte, alguns conceitos religiosos desta ou aquela religião. Da mesma forma, outras fazem letras ateístas ou heréticas. Outras simplesmente não comentam sobre religião em sua arte. Não é isso – ter ou não temática religiosa ou mística – que as define como Góticas ou não Góticas. 54

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Por isso podemos até dizer que o grupo social gótico é um espaço ou subcultura “laico”. Mas o que significa “Laico”? O QUE É LAICO? Por exemplo: o Estado moderno se separou da Religião do Estado na grande maioria das Repúblicas do mundo. Para preservar a liberdade de escolha religiosa e evitar conflitos, estes Estados se declararam “Laicos”. Laico, simplificadamente, significa não tornar obrigatória nem proibir nenhuma religião e garantir que todas respeitem os espaços uma das outras. Também garante que o Estado (seja qual for o governo no poder) não seja subordinado a alguma religião. Para isso, é importante que os espaços públicos ou órgãos do governos sejam neutros, ou “laicos”. Isso garante que nenhuma religião seja privilegiada e que nenhuma seja prejudicada, assim evitando conflitos. Isso garante a liberdade de todos. Por outro lado, no passado ou hoje temos casos de estados antirreligiosos (ex: União Soviética) e religiosos (ex: Iraque), que perseguiam ou perseguem uma ou outra parcela de suas populações. Nestes casos vemos como pode ser ruim quando um Estado adota esta ou aquela postura religiosa ou antirreligiosa. Algo muito importante no Laicismo (característica do que é laico) é preservar espaços públicos neutros, ao mesmo tempo que o espaço separado de cada religião ou crença deve ser preservado. Por isso, escolas públicas não podem doutrinar os alunos para uma única religião, mas escolas privadas religiosas têm liberdade de estar abertas para aqueles que escolherem dar esta educação a seus familiares. É exatamente o laicismo que permite que hoje existam religiões minoritárias ou alternativas no Brasil e muitos outros países.

13. OS CICLOS NA CENA GÓTICA Acompanhando a cena Gótica paulistana há quase três décadas vimos muitas coisas se repetirem periodicamente. Ciclos se sucedem. Gerações surgem, crescem e são substituídas – em parte – por outra. Acontece algo semelhante a outros setores brasileiros, que não têm ou não tinham registros de sua história: as novas gerações 55

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sempre têm a impressão de que estão enfrentando certas situações pela primeira vez, quando na verdade enfrentam repetição de ciclos. 1. INFLAÇÃO E DEFLAÇÃO POPULACIONAL PERIÓDICAS Um dos padrões periódicos é a inflação e deflação “populacional” da cena Gótica. Entre cada ciclo, uma parte dessa população abandona a cena e é substituída, no médio prazo, por outras pessoas, sendo que um percentual permanece ao longo das gerações. Outros retornam depois de anos. Mas sempre cabe aos que permanecem de uma geração para outra a responsabilidade de passar as informações. Na primeira vez que conhecemos a cena, sempre imaginamos que nunca sairemos, ou que se sairmos, não voltaremos. Ambas as crenças são ilusórias: se você é vinculado afetivamente a subcultura Gótica, as vezes você vai odiar, as vezes você vai amar, vai dizer que nunca vai voltar ou que nunca vai sair. Mas você sempre estará por perto…ou de repente tem uma “recaída”. 2. OS QUE FICAM E OS QUE SAEM Quanto aos que saem, invariavelmente o fazem pelos mesmos motivos de sempre: estavam envolvidos apenas com amizades ou algumas galeras que se dispersaram, e/ou apenas satisfaziam na cena Gótica uma necessidade natural da adolescência que poderiam satisfazer em qualquer outro grupo: de adquirir uma identidade provisória que sirva para a ruptura inicial com o núcleo familiar. É muito comum que os que abandonam a cena por estes motivos saiam falando “mal dos góticos”, dizendo ser coisa de adolescente etc. De fato, para estas pessoas foi apenas isso. O erro destas está em transferir o que é verdade no seu caso pessoal para todos. 3. EX-NOVOS E JOVENS OLD-SCHOL Uma curiosidade é o comportamento de muitos “ex-novos” (por exemplo, alguns que estão entre um e cinco anos na cena) que em um período muito curto se tornam críticos dos “novos novos” (geração de até um ano ou dois). Um comportamento típico de autoafirmação que tende a se tornar mais moderado com a maturidade. O engraçado é ver que o que foi “modismo” dez anos atrás ser considerado símbolo de status “old-school” hoje. Seria interessante 56

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um pouco mais de senso crítico, pois subculturas, como qualquer cultura, dependem da boa relação entre as gerações. 4. O GÓTICO ACABOU… DE NOVO?! Alguns dizem que estes ciclos duram 4 anos. Outros falam em 5 anos. Talvez não tenham um tempo exato, mas um padrão de desenvolvimento. O fato é que no final deles sempre surge a conversa de que “o gótico acabou”. E no começo dos ciclos, quando ocorre a inflação de pessoas, se repetem os protestos contra “a invasão da cena” e “não tem mais góticos verdadeiros como antes”. Descontada a tendência histórica dos Góticos para a idealização do passado, ao final de décadas começa a ficar um pouco entediante ouvir as mesmas teses e frases periodicamente. Talvez fosse mais saudável aceitar os ciclos, os neófitos e as dissenções e as usarmos a favor do desenvolvimento da cena. 5. APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS DO MAINSTREAM Outro fato curioso é que periodicamente, alguma subcena busca se firmar como uma cena independente, ou se aproximar do mainstream. Ou o mainstream resolve adotar alguma característica gótica por seis meses. Dependendo dos estilos mais comerciais de dada época, segmentos historicamente ligados ao Gótico buscam formar cenas independentes usando o público transitório desta onda. E repetidamente é usado o discurso de que Gótico é “ultrapassado”. Mas, em um momento seguinte, com a queda da moda em questão, este segmento volta a sua tradicional ligação “de subsistência” com a cena Gótica. 6. GERAÇÕES MUSICAIS E VELHAS NOVIDADES Também o ciclo de conhecimento musical, que se torna um pesadelo para alguns Djs, acompanha mais ou menos as inflações e deflações populacionais na cena. Dentro de um ou mais ciclos, certas bandas e músicas que antes eram “babas” ou muito conhecidas se tornam as vezes desconhecidas. Assim, a cada nova geração, junto com a produção musical 57

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atual, toda a tradição passada precisa ser reapresentada pois para quem está chegando ela é novidade. Devido aos ciclos, a informação básica não pode ser considerada garantida jamais. Mas é com os ciclos que a cena Gótica e Darkwave evolui e se renova, tando no Brasil quanto no mundo. Quem tem apenas história é museu, mas quem não tem história nenhuma não tem caráter para evoluir coerentemente. O importante é conhecer sua história, seu presente e o futuro: todos são igualmente importantes. Senão, somos vítimas fáceis da descaracterização e desaparecimento de nossa diversidade subcultural.

14. DROGAS: CARETA, ALTERNATIVO, PESSOAL OU SOCIAL? “Ninguém se torna mais ou menos ‘alternativo’ por usar ou não usar drogas ilícitas, da mesma forma que usar drogas lícitas como álcool ou cigarro não tem – em si – significado cultural nem dominante nem alternativo.” “MEU NOME NÃO É JOHNNY” * Não somos ingênuos e sabemos que desde que o mundo existe o ser humano usa as mais diversas substâncias para alterar a consciência, seja culturalmente, religiosamente ou individualmente. Em cada época da história, tais substâncias tiveram papéis diferentes: as vezes permitidas, outras proibidas, outras libertárias, outras conservadoras. Hoje, esse papel é eminentemente (do hedonismo) pessoal e privado, sem significado social “alternativo” em si. DA CONTESTAÇÃO ATÉ A CARETICE Nos anos 1960 e 1970 do século passado, o uso de algumas drogas esteve associada a movimentos de mudança e vanguarda social. Posteriormente, as mudanças sociais realizadas foram difundidas pela sociedade e absorvidas como novo padrão de comportamento social normal e consumo. Principalmente a partir dos anos 1980 e 1990, o uso de drogas se tornou algo de conteúdo neutro em várias 58

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* Filme brasileiro sobre a história de um jovem traficante (2008).

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camadas sociais, desvinculando-se de movimentos sociais de mudança. Simultaneamente, cresceram as multinacionais do comércio internacional de drogas e o tráfico entrou em processo de “profissionalização” e organização de poder paralelos ao Estado, (em alguns países chegando a controlar territórios das cidades ou setores do governo). Já há duas décadas as drogas são uma realidade tanto em diretorias de grandes empresas quanto na festa funk ou pagode da esquina, tanto nas classes altas quanto nas médias e baixas, tanto na balada comercial quanto em eventos alternativos. Portanto, esse comportamento não define alternatividade ou “contraculturas”. Se tornaram ser um elemento genérico. SUPERANDO O PRECONCEITO Até certa altura do século passado as subculturas alternativas eram associadas a criminalidade e contravenção por quem desejava desmerecê-las. Esses críticos e analistas deixavam de lado os aspectos culturais. Posteriormente, o avanço dos estudos sociais desconstruíram este preconceito, alguns re-situando as subculturas urbanas nos estudos de identidades culturais, enquanto outros as re-situaram na análise de consumo. Estudos posteriores fundem as duas questões como complementares. Paralelamente, o consumo de drogas perdeu sua ligação a comportamentos contestatórios, proliferando por classes ricas, empresariais ou pobres e conservadoras da sociedade. DROGAS: ESCOLHA PESSOAL SEM CARÁTER ALTERNATIVO Qual seria então, hoje, o significado do antigo discurso “drogas são algo alternativo” em si? Passa a ser algo totalmente diferente da função social do “sexo, drogas e rock´n´roll” do passado. Temos o produto “drogas” em uma embalagem alternativa, sem uma valorização de qualquer coisa “diferente” de fato. Quando isso acontece, o estilo alternativo que é “parasitado” por

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estas estratégias se tornam irrelevantes culturalmente. Também o tipo de consumidores atraídos por esse tipo de discurso, em geral não têm muito interesse em algo culturalmente alternativo. Consumirá um simulacro de cultura alternativa da mesma forma que alguém sem ligação cultural a estas cenas compra uma peruca ou camiseta “Gótica” ou “Punk” pela simples aparência destas. Por outro lado, existem nas subculturas alternativas algumas pessoas que fizeram a escolha pessoal e privada de usar alguma substância que produz dependência química e alteração de consciência. Esta opção madura deve ser respeitada tanto quanto aquela opção da pessoa que em uma cena alternativa opta por não ser usuário de nenhuma droga lícita ou ilícita. Continuam a existir as consequências e prazeres pessoais que sempre existiram no consumo destas substâncias. Essa escolha cabe a cada um em sua esfera pessoal e privada, de forma consciente.

15. O MACHISTA QUE SE ACHA ALTERNATIVO Se não for consensual, não tem a menor chance de ser sensual. Se não for consensual, não está nem sendo humano, logo não tem a menor chance de ser alternativo. Isso é óbvio, mas precisamos prestar atenção: o que nossa sociedade machista ensinou aos homens que é “consentimento” feminino pode estar completamente errado. O básico: uma mulher pode ser simpática e sorridente, estar interessada na conversa de alguém, mas não estar interessada sensualmente na pessoa. Ou seja: o pressuposto de que esses comportamentos simpáticos indicam que “está no papo” ou “está tentando seduzir” não são apenas machistas, mas também são base da cultura do estupro. A mesma cultura machista que acha que uma mulher com um decote amplo ou uma roupa mais sexy está “pedindo” para ser abordada... e se ela sofrer violência ou assédio é porque ela “provocou”. 60

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Mas se é assim na sociedade tradicional que se considera “normal”, esses comportamentos “normais” são ainda mais inaceitáveis em ambientes alternativos ou subculturais. Aqui vamos falar especialmente do machismo em festas e outros ambientes. Sedução e pegação fazem parte de festas noturnas, mas se alguém acha que afirmar sua masculinidade é pegar alguém a força, ou se acha tão irresistível que se uma mulher (cis ou trans) está dizendo “não” é porque a investida ainda não foi “viril” o bastante... Bem, essa pessoa está sendo, no mínimo, machista. O machista brasileiro padrão acha que pode ficar investindo verbal e fisicamente sobre uma ou várias mulheres na mesma noite e, se a mulher está tentando fugir dele, isso é apenas parte do jogo. Mas não é: isso se chama violência, coação, assédio ou, no mínimo, estragar a noite de outra pessoa. Quando alguém diz “não” (verbal ou fisicamente) a uma investida sensual isso simplesmente quer dizer… “NÃO”. Não é que a pessoa não entendeu ainda, ou que a insistência não foi suficiente. É que ela não está a fim mesmo. Lamento destruir algumas ilusões… Além disso, se uma mulher está dançando ou falando com alguém, isso não quer dizer que ela “tá no papo” ou está tentando seduzir. Se ela está conversando alegremente, já pensou que ela apenas pode ser uma pessoa amigável e sociável? Além disso, algumas pessoas são simpáticas e educadas até com desconhecidos... Sim, sei que isso pode ser uma surpresa para alguns! Ou pode estar se divertindo com a música e com a dança em si, pois saiu para isso. Sim, sei que isso também pode ser uma surpresa para alguns… Não é incomum uma gótica ir a uma festa sozinha, ficar e voltar sozinha, porque, simplesmente, saiu para dançar e se divertir, só ou com amigos. Portanto, se uma gótica estiver dançando sozinha, não quer dizer 61

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que ela está “facinha”, como é o código tácito em certos circuitos de festas. Ela pode estar curtindo sua música preferida… e sendo feliz. E isso não vale só para góticas… Reforçamos o foco aqui nos ambientes góticos e alternativos, pois não há festas desse tipo em cada esquina, logo nelas há mais pessoas que estão lá mais pela música e estilo. Por isso, pessoas com comportamentos tradicionais inconvenientes estragam o ambiente dos poucos lugares alternativos que temos. Não é como nos inúmeros eventos “genéricos” em que a chapação e a pegação são a atração principal e o ambiente, a música e estilo são secundários, terciários… ou nem mesmo importam. É claro que algumas pessoas estão também a fim de conhecer alguém, seja por uma noite ou para um relacionamento duradouro. Mas quem está a fim de alguém em uma festa indica isso de forma agradável: uma palavra ou um gesto podem bastar. Quando alguém está a fim, é muito fácil perceber. Quando não está, não significa que não houve insistência suficiente ou falta de “virilidade”. O pretendente pode exatamente ter sido muito insistente e pegajoso. Ou, simplesmente, ele pode não ter sido o escolhido. Porque as mulheres escolhem… Desculpe surpreender mais alguns! E as vezes escolhem que ficar só é melhor do que mal acompanhada. Isso tudo é importante para todos os espaços sociais, mas especialmente em ambientes da subcultura gótica, que tem uma tradição e algumas características próprias na área da interação. Provavelmente existem outros ambientes, tradicionais e conservadores, em que o comportamento machista, infelizmente, vai ser bem-aceito... Mas não faz o menor sentido bancar o alternativo enquanto pensa e age igual à massa padronizada. Liberdade é bom para todos: respeitemos a dos outros.

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PARTE 2: LITERATURA GÓTICA & ARQUEOLOGIA SIMBÓLICA

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INTRODUÇÃO DA PARTE 2:

THIS CORROSION OF BODY AND SOUL* “O Gótico não é como as outras subculturas, pois ela se desenvolve não apenas a partir seus precedentes subculturais imediatos, mas também a partir de uma tradição de 250 anos e ela (a subcultura Gótica) tem uma presença na cultura contemporânea que transcende seus participantes individuais e ultrapassa a presença de virtualmente qualquer outra subcultura até hoje.” (Spooner, 2012) A forma como imaginamos o mundo hoje tem menos de 250 anos, isso para as coisas mais estáveis, já outros imaginários são bem mais recentes. Mesmo que falemos de época anteriores, elas são recriadas para abordar questões das últimas décadas ou dos dois séculos passados. Da mesma forma, quando o Romantismo e o Romance Gótico escreveram sobre o passado medieval ou oriental, estavam recriando esses passados e realidades como um comentário do espírito de sua época. E “sua época” é “nossa época”: significa os últimos 250 anos mais os menos. Outras questões mudaram mais recentemente. Há apenas 100 anos perdemos nosso orgulho racional com Freud e o “inconsciente”. Neste mesmo período ou menos deixamos de acreditar em eugenia como ciência (apesar dos retardatários…). Há apenas 150 anos Darwin nos ensinou sobre nosso lugar na família da natureza. Há pouco mais de 50 anos as mulheres votam e vestem calças no ocidente. Há só duas décadas “descobrimos” que a homossexualidade não é doença nem crime no Brasil. O Romance como forma de leitura popular tem pouco mais de 200 anos. Nosso imaginário sobre arte, loucura e o que é gótico não passa de 250 anos. O Brasil como o conhecemos tem menos de 200 anos. 64

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Portanto, não faz sentido imaginar que as referências históricas usadas pela ficção gótica faz com que aqueles períodos mais antigos sejam góticos. Da mesma forma, quando um escritor naturalista escreve sobre a Idade Média, não fará com que o passado mude e a Ideologia desta era se torne naturalista. Pensar que isso acontece se chama anacronismo: projetar os valores e imaginários do presente sobre o passado. Todo movimento literário fala do presente, mesmo que cite o passado ou o futuro. Todo movimento literário fala da realidade, mesmo quando cria seres fantásticos ou espirituais. Quando a realidade é intolerável, o comentário da arte muitas vezes é evitá-la. Por isso períodos muito conturbados mas sem solução evidente geram movimentos artísticos que criam um espaço de escapismo, fantástico. A arte popular do começo do século XXI é um exemplo tão bom disso quanto a do começo do século XIX. O mundo como o conhecemos é recente. O Gótico como o entendemos hoje faz parte deste mundo recente. Vamos olhar para essa criatura nas próximas páginas.

* Como o título deste livro, o subtítulo deste capítulo também é uma brincadeira juntando o nome de duas músicas famosas na cena gótica: This Corrosion e Body and Soul, do The Sisters of Mercy

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1. CIDADES DOS CONDENADOS: FOUCAULT E AS ORIGENS DO IMAGINÁRIO DO MEDO OCIDENTAL Por que os mais populares personagens ligados ao horror possuem as características de transmissibilidade, como em uma doença contagiosa? Vampiros, Zumbis e Lobisomens nos transmitem suas características por mordidas ou ferimentos. Ou morremos ou nos tornamos um deles ou ambas as coisas. Com eles, algumas perguntas tentam sair daquela sala proibida e trancada que fica nas profundezas escuras de um labirinto subterrâneo: • Quando e por que construções antigas em locais isolados passaram a ser sinônimo de um cenário que pode ser habitado por criaturas que ameaçam não só nosso corpo mas também nossa alma? • Quando locais de confinamento se tornaram locais cujo próprio ar tememos respirar com medo de nos contaminar com algo que não sabemos bem discernir se é um mal físico, moral ou espiritual? Como a corrupção da alma passou a ser novamente espelhada na corrupção do corpo, depois de mais de um milênio de ideologia da idade média baseada na separação do material e espiritual, de apartamento do corpo e da alma? Dorian Gray e Mr. Hyde não poderiam ter surgido sem essa reunificação. Em seu livro “Origens da Loucura e Civilização” Michael Foucalt faz uma arquelogia da formação do imaginário de medo e horror europeu, que foi levado também para as colônias americanas. Vale lembrar que essa arqueologia não inclui culturas milenares como a indiana, chinesa, nativo americana ou culturas africanas que têm um histórico simbólico diferente do europeu. Vejamos como Foucault desenterra gradativamente as peças deste quebra-cabeça. 1. AS CIDADES DOS CONDENADOS: Da Alta Idade Média (que finda aproximadamente no século X) até o fim das Cruzadas (século XIII) os leprosários se multiplicaram pela Europa. Segundo registros, cerca de 19000 deles em territórios cristãos, mais de 2000 somente nos registros oficias em território 66

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Francês, quando por volta de 1226, Louis VIII estabeleceu as leis para os Leprosários franceses, consideradas como as “cidades dos condenados”. Apenas em Paris, havia 43 desses lugares. Do século XV (a partir de 1401) em diante estes lugares foram esvaziados gradualmente e, posteriormente, foram usados abrigar os novos nomes dos amaldiçoados sociais, segundo a ideologia de cada época: os criminosos, os loucos, os depravados e prisioneiros políticos que se enquadravam em alguma das categorias anteriores. Mas a lepra não “desapareceu” de repente. Houve um período de transição até que os excluídos fossem reclassificados simbolicamente. De qualquer forma, no século XVII (1601-1700) existem registros de procissões agradecendo a Deus a extinção da lepra. Agora os locais de confinamento estavam cheios com outros tipos de pessoas que “não devemos tocar” e que deviam ser mantidas a distância. A regressão da lepra aconteceu em outros lugares como Inglaterra, Escócia ou Alemanha seguindo o mesmo padrão, as vezes mais precocemente. Os leprosários foram esvaziados, mas o imaginário popular ligado àqueles lugares proibidos em que aqueles marcados – segundo a vontade de Deus – por uma praga contagiosa, manteve-se. A lepra desapareceu, mas nos séculos seguintes os mesmos lugares, muitas vezes, passaram a ser usados para exclusão social de outros tipos de pessoas. E, como veremos, em muitos casos por doenças e desequilíbrios que nem existiam anteriormente. Vagabundos, criminosos, mentes desarranjadas… OS NAVIOS DOS LOUCOS: stultifera nave Algo novo surgiu em torno do ano 1500: os navios de loucos, (“ship of fools” ou “stultifera nave”), em que loucos, desajustados, vagabundos e criminosos eram misturados em navios que ficavam circulando de cidade em cidade. Temos desta época as obras de Hieronimus Bosh, “The Ship of Fools”, além da “Dança da Morte” de Brueghel e a “La Danse Macabre” de Guyot Marchant (1485). Rumo final do século XV, o tema da morte vai sendo gradualmente sobrepujado pelo tema da loucura. A ameça deixa de ser material e a pestilência paira imperceptível sobre nós, podendo estender suas garras de dentro de nós a qualquer momento.

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O CRIME ORIGINAL Ainda segundo Foucault, a aurora do conceito de loucura durante a Renascença se dá exatamente pela decadência do simbolismo da arte gótica (medieval).

Atenção: essa arte só foi chamada de Gótica séculos depois, como comentamos no capítulo sobre as catedrais góticas ou no primeiro volume do livro “Happy House in a Black Planet”. Esta arte era composta por intrincado simbolismo em que cada coisa tinha seu significado simbólico, formando um sistema de conhecimento. Porém, esses significados foram se confundindo e se perdendo, virando um caleidoscópio vertiginoso que só tem paralelo no sonho e no mágico. Podemos traçar um paralelo com o que acontece com a palavra “hermético”: o que significava um sistema de conhecimento elaborado e sistematizado (referente ao deus Hermes, portador do conhecimento) se tornou hoje sinônimo o que não se consegue entender, ou é ininteligível ou fechado. Na transição do final da Renascença até o início da industrialização nos principais países da Europa (do século XVI ao XVIII ou entre 1501 a 1800) temos uma gradual mudança no significado do enclausuramento social. Se durante a Idade Média o maior pecado seria o orgulho e a soberba, já em uma sociedade que começa a se pautar pela ética do trabalho e da produtividade – e em que o lucro deixa de ser pecado – o pior pecado passa a ser a preguiça e a improdutividade. Inicialmente os “hospitais gerais” e “casas de correção” são locais que acolhiam os miseráveis, abandonados e todos que não se inseriam socialmente. Depois, essa visão de simplesmente resolver um problema, passa a ser parte de um sistema de regulação social ligado a um sistema policial. Nas épocas em que o número de mendigos urbanos subia muito, serviam de forma de coerção e controle. Já nos períodos normais, serviam como fonte de trabalho barato, pois o trabalho era uma medida corretiva – e, claro, lucrativa e aplicada as casas de confinamento. 68

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Assim, entre o trabalho e a improdutividade, o mundo Clássico (circa século XVII) estabeleceu uma linha divisória que substituiu a anterior exclusão pela lepra e pela pura loucura “animal ou santa”. A improdutividade era a nova lepra e a nova loucura e, muitas vezes, os locais de exclusão e reclusão eram os mesmos que no passado recolheram os leprosos. Mudaram os nomes com os séculos, mas em uma nova moralidade a função permanecia mesma. Ainda no reino da moral, foi associada aqueles que “pecavam” pela preguiça ou inutilidade social, também a acusação de não seguirem os mínimos preceitos de moral social ou sexual. Assim, os reclusos passam de vítimas ou especiais (como eram no caso da lepra ou loucura mágica), a serem de alguma forma culpados por algum crime social. De qualquer forma, os loucos e improdutivos, depois de recolhidos das ruas, agora estavam presos juntos, sujeitos a trabalhos forçados, fossem homens, mulheres ou crianças de ambos os sexos. POBRES LOUCOS: A MARCA DA VERGONHA Assim, no século XVII (entre 1601 e 1700) teríamos uma fronteira decisiva: o momento em que a loucura passou a ser percebida no horizonte da pobreza, da incapacidade de trabalhar e de interagir socialmente, sendo um problema da cidade. Diferente da Renascença (aproximadamente 1400-1600, dependendo do local) que podia imaginar a loucura como um tipo de liberdade extrema, o período clássico na aurora da era da Razão só tinha uma resposta para esse grupo social: bani-lo da cidade. Então o mal passa a ser confinado com a marca da vergonha. Nem mágica nem santa, a loucura – englobando diversas formas de desajuste social – recebeu a imagem de uma animalidade negativa: daquela menos que humana. Por isso os grilhões, as correntes e as celas passam a ser uma medida considerada necessária para conter essas terríveis ameaças a ordem social da família burguesa, da moralidade religiosa e da razão. Indivíduos que praticavam atos escandalosos, agora, envergonham suas famílias de uma forma que um julgamento público puniria a todos, portanto é preciso “esconder e esquecer” esses indivíduos 69

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junto com as possibilidades que representam. (até final do século XVIII – 1701 a 1800). Segundo Foucault, o Classicismo sentia uma vergonha na presença do inumano que a Renascença jamais experimentara. Para este período, a loucura não tinha a marca da doença, mas de um escândalo exemplar. Em uma época que definia a característica humana essencial como sendo a Razão, o status desses “loucos” era o seu oposto: a animalidade. No começo do século XVIII (1701 a 1800) ainda era possível encontrar esses lugares onde tantas pessoas foram isoladas como “animais saudáveis” e desprovidos de razão, o que retirava a necessidade das proteções que os humanos racionais receberiam. Foucault relata como em 1811 um pesquisador encontrou os “loucos” presos em celas às vezes sem teto e sem porta e mulheres nuas dormindo na palha, todos expostos ao clima rigoroso. É o mundo que Pinel (1745-1826) inicialmente encontrou, mas que foi mudando. Até esse ponto a loucura não era um problema médico. Era uma “imprevisível liberdade” animal. Era o homem ligado a besta, a fera. O confinamento era destinado a controlar “a animalidade da loucura e a imoralidade da desrazão”. Coisas a serem temidas. Uma ameaça a todos, mas distante e separada da humanidade e da sociedade. Porém, isso estava para mudar. 3: O GRANDE MEDO SOCIAL: CORROSÃO DE CORPO E ALMA De repente, lá pela metade do século XVIII (em torno de 1750) surge um grande medo social. As pessoas estavam com medo de alguma estranha doença que emanava das casas de confinamento e ameaçava as cidades. Estranhas febres, emanações que podiam chegar até os centros urbanos quando os vagões de loucos acorrentados passavam perto a caminho das casas de confinamento. É importante lembrar que as primeiras observações de micro-organismos com microscópios tinham acabado de acontecer, mas ainda não era algo que estivesse disseminado no senso comum. Então, as ideias de contágio ainda eram muito mágicas, quando não tingidas de moralidade religiosa. 70

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Se dizia que o próprio ar, pervertido pela doença, poderia contaminar os quarteirões próximos. Era uma ideia de contágio que misturava elementos de doença física e moral. Curiosamente muitos destes locais de confinamento eram os mesmos que na Idade Média abrigaram os leprosários. E não por acidente essa imagem simbólica de “contaminação” e “contagioso” se misturou na imagem dos novos habitantes das casas de confinamento, séculos depois da lepra ter desaparecido. A cidade então aparecia como uma cidadela da razão e ordem em que os cidadãos “de bem” estariam protegidos desses eflúvios que misturavam o mal moral e físico. O ar dos lugares de confinamento poderia transmitir sua corrupção, corrosão e “apodrecimento” físicos, morais e espirituais. A ideia de decomposição da carne aparentemente se misturou nesse imaginário como herança imagética dos leprosários e metáfora da questão moral. Esse ar maligno é chamado de corrompido, e é contagioso. Ele pode penetrar os corpos e almas, e ficar preso a eles, corrompendo-os física e moralmente, com as características atribuídas aos ácidos pela química do século XVIII (1701-1800). Assim, um cenário de medo e horror está socialmente estabelecido, e a razão está ameaçada em suas frágeis fortalezas urbanas. E os locais de confinamento, finalmente, no século XVIII conjugam e encaixam todos os elementos imaginários e simbólicos que logo a seguir começariam a ser descritos na literatura gótica como elementos de horror! Assim, o leitor daquele século pode perceber todos esses elementos simbólicos como atemorizantes e de horror, pois havia um imaginário específico que fora completado naquele século e que compartilhamos nos últimos 250 anos aproximadamente (desde 1750). A ameaça da impregnação dos corpos e almas com o mal e apodrecimento foi, assim, simbolicamente articulada no imaginário social. Nas casas de confinamento são jogados e se amalgamaram todos os elementos rejeitados pela moral dos séculos XVIII e XIX: todas as formas de sexualidade não aceitas (especialmente as femininas), descontentes sociais, pessoas que não aceitavam as novas formas de trabalho, presos políticos etc. 71

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A loucura ou a desrazão agora ameaçava as pessoas com a marca de doença contagiosa. Isso aumentou sua força simbólica de horror, corrupção e perversão. Assim, os locais de confinamento, afastados da cidade, passaram a parecer extremamente perigosos. FORTALEZAS DA INSANIDADE: ESTERILIZAÇÃO & MORAL Mais para o final do século XVIII (próximo a 1800) evolui a ideia de que esses “Asilos” sejam lugares esterilizados, em que o mal possa servir de exemplo moral, mas sem ameaçar os cidadãos. O trecho a seguir, relatório copiado de 1789, explica muito bem o imaginário da época sobre os asilos, de um ponto de vista não literário: “Estes asilos guarnecidos… dos mesmos atos reprováveis os desvios de uma juventude licenciosa demais; é prudente que as mães e os pais familiarizem suas crianças já em uma idade precoce com estes horríveis e detestáveis lugares, onde a vergonha e torpidez supuram crime, onde o homem, corrompido em sua essência, frequentemente perde para sempre os direitos que ele tinha adquirido em sociedade”. (Foucault) Aqui o asilo passa a ser um exemplo de tudo que é negativo e proibido socialmente, o horror de suas instalações e de seus habitantes serve como um aviso: isso pode acontecer a você. Mas a proibição povoa o imaginário com os desejos proibidos e logo as fantasias do que acontece atrás dos muros se torna um par de atração/repulsa. Se a medicina em cumplicidade com a moralidade (social e religiosa) se uniram para estabelecer um exemplo negativo, criaram também um universo fantástico de imaginação sombria. Assim, o horror que cercava as fortalezas da insanidade foi povoada com todos os prazeres e voluptuosidade proibidos por uma época que glorificava a razão. Neste ninho imaginário florescem as fantasias como a do Marquês de Sade. SADISMO: O DESEJO NO CALABOUÇO Não é um acidente que a desrazão reapareça na segunda metade do século XVIII (1750-1800) como “linguagem e desejo”, nem é acidente que o sadismo, um fenômeno com o nome desse autor, tenha nascido do confinamento e que toda obra de Sade seja dominada por imagens de confinamento: a fortaleza, a cela, a adega, o convento, a ilha inacessível etc. 72

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Mas não foi Sade o primeiro nem o único a elaborar essas imagens e associá-las ao horror e a fazer outras associações originais que hoje consideramos “naturais” e como dados estabelecidos de estéticas fantásticas, de loucura, de horror ou góticas. Já a partir do “Castelo de Otranto” de Horace Walpole (1764) temos o padrão dos labirintos subterrâneos do castelo, da punição eterna na caverna em Vathek (1786, versão inglesa), o convento e as salas fechadas em O Monge (1796) e tantos outros exemplos que vamos encontrar no século seguinte (1800-1900) nas obras de Maturin, Byron, Mary Shelley, Poe, Le Fanu. Além deles, tantos outros até 130 anos depois de Otranto, o literal asilo de Drácula, de Bran Stoker: aí a metáfora é explícita. Mesmo quando temos a descrição de um sanatório em o “Triste Fim de Policarpo Quaresma” (1915), o imaginário gótico emerge na narrativa. Ainda hoje, Batman, o cavaleiro negro da razão, descendente dos investigadores Auguste Dupin (de E.A.Poe, 1809-1849) e Sherlock Holmes (C. Doyle, 1859-1930), hesita em adentrar a moderna fortaleza da loucura, o Asilo Arkhan. Não por medo da morte, mas por medo de encontrar lá seu verdadeiro lar. Além disso, todos nós podemos nos lembrar das características comuns atribuídas aos personagens góticos em seu caminho para as trevas e da perda de sua mente ou alma: doenças nervosas, calafrios, membros enrijecidos, olhos vítreos, decadência física paralela a corrosão moral etc. Todo um vocabulário ilustrativo da perda da razão. As convulsões e mudanças sociais do século XVIII também convergiram para esse imaginário de horror, acrescentando novos medos coletivos e novos sentidos a eles. Assim foi formado todo imaginário simbólico que vai ser conjurado pela literatura gótica e que é compartilhado por nós até hoje. Também fica muito claro perceber que o fato da subcultura gótica ter recebido o nome “gótico” nome não é um mero acidente: todo sistema de referências, valores e representação de mundo desta subcultura, herdados da literatura gótica e seus descendentes na cultura popular, está mergulhada nestas ligações simbólicas e significados cuja arqueologia comentamos aqui. 73

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2. CRONOLOGIA DE OBRAS GÓTICAS do SÉCULO XVIII E XIX Esta é uma cronologia de algumas obras essenciais que definem o que chamamos de gótico na literatura, ou que foram fortemente influencidas por este estilo mesmo que misturando-o a outros. Conhecendo estes elementos, é mais fácil entender como no final do século XX a Subcultura Gótica se apropriou desse estilo, resignificando seus elementos e usando-os para construir um discurso moderno e libertário que segue significativo no século XXI. O objetivo desta cronologia é também localizar você no tempo durante a leitura dos próximos capítulos. Vamos citar apenas algumas obras mais importantes, e os livros influenciados mais famosos. Em negrito, sugestões de por onde começar a ler. No século XX muitos autores continuaram essa tradição, e o cinema, a nova arte narrativa popular que surge nesse século, se inspira na tradição gótica em muitos de suas primeiras produções e até hoje. Parte 1 (1764-1800): 1749- Horace Walpole compra a mansão Strawberry Hill e começa a goticizá-la 1754- Edmund Burke publica seu ensaio filosófico “Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo” (obra teórica) 1764- O Castelo de Otranto- de Horace Walpole (The Castle of Otranto) 1774- Lenore (poema balada)- Gottfried August Bürger 1774- Necromancer, ou o conto da floresta negra- Peter Teuthold (autoria disputada) 1786- Vathek- Willian Beckford (Vathek) 1790- Um Romance da Sicília- Ann Radcliffe (A Sicilian Romance) 1791- O Romance Da Floresta- Ann Radcliffe (The Romance Of The Forest) 1793- William Beckford começa a constuir sua catedral gótica, a Fonthill Abbey 1794- Os Mistérios de Udolpho- Ann Radcliffe (The Mysteries de Udolpho) 1796- O Monge- de Matthew G. Lewis (The Monk) 1797- O Italiano- Ann Radcliffe (O Italiano) 74

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Parte 2 (1800-1900): 1808- Fausto (versão definitiva) – Goethe( Faust, eine Tragödie ) 1813- O Renegado, Fragmento de um Conto Turco – Lord Byron 1817- O Homem de Areia – Ernst T. A. Hoffmann (Der Sandmann) 1818- Northanger Abbey – Jane Austen (paródia dos romances góticos) 1818- Frankenstein ou O Moderno Prometeu – Mary Shelley (Frankenstein: or the Modern Prometheus) 1819- A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça – Washington Irving 1819- O Vampiro- John Polidori (The Vampyre) 1821- Melmoth o Viandante- Charles Maturin (Melmoth the Wanderer) 1835- O Jovem Gordon Brown – Nathaniel Hawthorne (Young Master Brown) 1936- A Morte Amorosa- Theóphile Gautier (La Morte Amorouse) 1840- Tales of the Grotesque and Arabesque - E. A. Poe (contém A Queda da Casa de Usher e outros contos importantes) 1842- A Máscara da Morte Vermelha- E. A. Poe (The Masque of Red Death) 1846- Musgos de um Velho Solar- Nathaniel Hawthorne (Mosses from an Old Manse) 1847- O Morro dos ventos Uivantes- Emily Brontë (Wuthering Heights) 1847- Varney, the Vampire, or The Feast Of BloodJames M. Rymer 1850- A Letra Escarlate- Nathaniel Hawthorne (The Scarlett Letter) 1857- As Flores do Mal- Charles Baudelaire (Les Fleurs du Mal) 1868- Os Cantos de Maldoror -Conte de Lautréamont ou Isidore Lucien Ducasse (Les Chants de Maldoror) 1886- O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde Robert Louis Stevenson (Dr. Jekyll and Mr. Hyde) 1872- Carmilla e outros Contos - Sheridan Le Fanu (no livro “In a Glass Darkly”) 1891- O Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde (The Picture of Dorian Gray) 1897- O Homem Invisível- H. G . Wells (The Invisible Man) 1897- Dracula- Bram Stoker 1898- A Volta do Parafuso- Henry James (The Turn of The Screw) 75

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3. CONTEXTO HISTÓRICO DA LITERATURA GÓTICA “O Gótico é uma estética de excesso” (Fred Botting) Por volta do ano 1790, o rei francês perdia a cabeça na guilhotina e na Inglaterra o rei perdia a cabeça para a insanidade. Enquanto isso, muita gente, que não devia aprender a ler, estava aprendendo e esses novos leitores fizeram do estilo gótico o primeiro caso do que chamaríamos hoje de “Best-sellers”, para a infelicidade dos críticos literários que defendiam o bom gosto aristocrático e, principalmente, o seu próprio status como especialistas. Mas as mulheres, burgueses e trabalhadores que estavam aprendendo a ler adoravam as “gothic novels” (romances ou novelas góticas). Algumas mulheres estavam até escrevendo romances! Walpole, Beckford, Lewis e Radcliffe eram nomes incontornáveis dessa onda inicial, sendo seguidos por uma grande quantidade de escritores que reproduziam este estilo. Todos esses autores flutuavam entre as opiniões, muitas vezes divergentes, dos críticos e dos leitores. Esse conflito marcou a forma como o estilo gótico foi registrado na história da literatura e a forma como até hoje o percebemos em relação às demais escolas literárias. Contudo, a moda gótica no século XVIII (1700-1799) começara bem antes. Floresceu poderosamente na segunda metade desse século especialmente devido aos esforços de Horace Walpole na arquitetura, decoração e literatura. A obra e a vida pessoal de Walpole e de William Beckford (1760-1844, autor de Vathek) reforçaram o imaginário de excesso, excentricidade, ironia e exotismo ligados ao estilo gótico. Só para nos posicionar historicamente: em 1750 estávamos quase 90 anos antes da Era Vitoriana (1837-1901), mais de 50 anos antes de Byron (Lord Byron 1788-1824) escrever qualquer coisa e quase 60 anos antes de Poe (Edgar Allan Poe, 1809-1849) nascer. Balzac nasce somente em 1799. Drácula de Bran Stoker vem à luz (sic) em 1897, mais de 130 anos depois de Walpole lançar O Castelo De Otranto. 76

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No século XVIII, que vai de 1701 a 1800, algumas coisas começam a mudar. As monarquias eram inquestionáveis e, de repente, começa-se a falar em república na Europa e em independência nas colônias, o que gera um clima de insegurança geral. No final desse século a Revolução Francesa (1789) derruba a monarquia francesa com a ideia de República, degenerando depois em um regime de horror. Um pouco antes, a Inglaterra tinha perdido a guerra e sua grande colônia na América tinha se tornado independente (1777) exatamente como República. O rei Inglês na época também não era muito bom da cabeça, o que não ajudava, mas não chegou a “perder a cabeça” literalmente como a nobreza francesa da mesma época, decapitados pela Revolução em Paris. Portanto, no século XVIII as pessoas ousaram se rebelar contra a instituição da Monarquia, lembrando que anteriormente os reis e rainhas eram considerados como tais por direito divino. O que nos leva a uma das características principais do romance Gótico, que é o caráter Prometeico das obras, que comentaremos mais adiante. Outras coisas estão acontecendo simultaneamente nessa época: a decadência da Nobreza, a industrialização e urbanização, com a consequente criação de uma classe de trabalhadores e, por outro lado, uma classe de novos-ricos que não tinham status de nobres. Mas o que nos importa é que na segunda metade do século XVIII acontece um processo de alfabetização de pessoas que anteriormente “não deveriam ter acesso à cultura”, no caso, trabalhadores da cidade e mulheres de diversas classes. Isso motivou a ascensão comercial de um novo modelo de leitura: o romance, cujas vendas aumentaram muito e, na década de 1790, o primeiro gênero a ser um sucesso de vendas na Inglaterra foi exatamente as Gothic Novels, os nossos queridos romances góticos. A CRÍTICA O desprezo dos críticos por um estilo que era sucesso popular é só uma parte do raio-X do estilo gótico que faremos. Este corpo desmorto segue causando polêmicas vigorosas e inseminando diversas escolas literárias com seu vigor nos últimos 250 anos. Alguns manuais de literatura colocam o estilo e estética gótica como variantes menores do Romanticismo. Por isso, vamos também comparar as 77

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diferenças marcantes desses dois movimentos estéticos, comentar suas semelhanças e interações. Já vimos no texto sobre formação do imaginário como um lugar isolado e sombrio se tornou um local de um mal contagioso a ser temido. Hoje, isso pode nos parecer natural, da mesma forma que vemos a Idade Média como sombria. Mas essas duas imagens são construções culturais que consumimos há mais de dois séculos e não são nem naturais nem fatos históricos. São importantes como construções artísticas e ideológicas sobre o mundo passado e o atual em que vivemos, mas só desnaturalizando-as e percebendo sua construção poderemos entender seu sentido e poder. Porém, o estilo gótico é mais que um cenário sombrio com seres ameaçadores. Um cenário e personagens podem ser adaptados a qualquer estilo. Muito além de cenários enevoados, seres com uma imortalidade problemática (Frankensteins, Zumbis, Vampiros, Dorian Grays etc) e atitudes heréticas, o gótico possui uma estrutura interna que permite o desenvolvimento de narrativas góticas em qualquer cenário ou época. Finalmente, como a literatura de estilo gótico é ignorada pela maioria dos manuais de literatura, listamos também uma breve cronologia de obras e biografia dos principais autores que estabeleceram os padrões da estética que chamamos de gótico até hoje. Portanto, tome seu carretel de barbante e archote, desça as escadarias pelos vários subsolos e nos acompanhe por este labirinto escuro. Que seres monstruosos encontraremos? Todos eles, com certeza, mas os mais ameaçadores serão aqueles que nos habitam.

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4. CARACTERÍSTICAS DA LITERATURA GÓTICA

E DIFERENÇAS ENTRE ROMANCE GÓTICO E ROMANCE ROMÂNTICO (GOTHIC NOVELS X ROMANTIC NOVELS) As características principais do romance Gótico e do romance Romântico podem ser vistos como reações diferentes as mesmas questões de sua época. Uma destas questões é “falta de fé na adequação da razão ou das crenças religiosas para fazer compreensíveis os paradoxos da existência humana” (Robert D. Hume, 1969) na segunda metade do século XVIII e começo do XIX. Inicialmente a estética gótica dará uma resposta, e a estética Romântica uma outra, apesar dos pontos de contato. Como já vimos, esta crise de valores tanto na razão científica quanto nas crenças religiosas acontece em um período histórico em que modelos sociais estáveis por séculos começam a mudar. Nesse mesmo período cresce o número de pessoas alfabetizadas que anteriormente “não deviam ler”, pois leitura era um privilégio de classes privilegiadas e com “bom gosto”. WALPOLE Horace Walpole foi um abastado filho de um longevo primeiro-ministro Inglês. A partir de 1747 começa a história de Strawberry Hill. Apreciador de antiguidades, Walpole decide “goticizar” a mansão da propriedade (que não era de estilo gótico), jardins e arredores. A concepção de Walpole de goticizar era agregar toda uma série de artefatos antigos para criar uma ilusão de passado fantástico. Assim, foi acrescentando gradualmente os mais diversos e incoerentes adornos a sua mansão e jardins, criando, finalmente um todo impressionante que começou a atrair curiosos e admiradores, e até hoje é ponto turístico muito visitado, como podemos ver no site oficial da Strawberry Hill: http://www.strawberryhillhouse.org.uk/ A propriedade de Walpole reforçou e espalhou pela Inglaterra uma moda gótica na decoração e jardinagem. Finalmente, em 1764, Walpole lança a primeira versão de seu “O Castelo de Otranto”. Quan79

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do o editor aprecia o trabalho, assume a autoria e já na edição de 1765 acrescenta o subtítulo “a gothic novel” (um romance gótico). Mais importante, na introdução ele explica sua teoria sobre o novo modelo de romance que criou. O “Castelo de Otranto” faz sucesso mas atrai muitas resenhas negativas de críticos especializados, o que será um padrão em relação aos demais romances góticos, pois a crítica literária pertencia a uma classe social diferente dos leitores de romances góticos daquela época. Assim, a escatologia estética, as ofensas morais e o suposto “mau gosto e inverossimilhança” literária castigam o livro de Walpole (e outros romances góticos) por décadas e talvez até hoje. Mas, como sabemos, isso não teve influência sobre os leitores… Walpole afirma buscar a junção de diversas tradições literárias, da mesma forma que juntava artefatos de diversas épocas na bricolagem decorativa e arquitetônica de sua mansão Strawberry Hill. Sua linguagem se aproxima em alguns pontos mais da crueza de Shakespeare (que, na época, fora copilado em livro há pouco mais de um século) do que em relação ao texto esperado pelo bom gosto da época. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA LITERATURA GÓTICA:

“O Gótico tem sido e permanece necessário à cultura ocidental moderna, porque ele nos permite, no fantasmagórico de uma ficcionalidade descaradamente falsa, confrontar as raízes de nossos seres em contraditórias multiplicidades (da vida se transformando em morte aos gêneros se confundindo até o medo se transformando em prazer e muito mais) e a definir nossos seres em oposição a essas assombrosas contradições, ao mesmo tempo que nos sentimos atraídos por elas, tudo isso em um tipo de atividade cultural que, enquanto o tempo passa, pode continuar inventivamente a mudar seus fantasmas de mentira para que abordem anseios e medos culturais e psicológicos mutáveis”. (Jerrold e. Hogle) As caraterísticas principais dessa literatura estabeleceram o sentido da palavra “Gótico” nos últimos 200 anos. Toda literatura posterior que foi influenciada segue esse sentido da palavra Gótico, bem 80

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como o cinema no século XX, desde seu surgimento. Posteriormente a subcultura gótica se apropriou desse repertório todo, resignificando-o. Algumas características principais da literatura gótica são: - CARÁTER PROMETEICO: como no mito de Prometeu, algum personagem tende a desafiar os deuses, mesmo que seja para melhorar o mundo, sendo depois eternamente punido por isso. Por consequência, o mito de Lúcifer acaba sendo assimilado a essa ideia no século XVIII, especialmente pela obra Paraíso Perdido de Milton. Não por acaso, Mary Shelley chama seu Frankenstein de “Moderno Prometeu”. Por isso, tantos “anjos caídos” e “anjos negros” na estética gótica. O Mito de Prometeu tem várias versões. Em uma das mais conhecidas o titã Prometeu rouba o fogo dos deuses (a cultura) para trazer aos humanos e melhorar nossas vidas. Ele é descoberto pelos deuses e recebe uma punição exemplar e eterna: ser amarrado a uma rocha e ter seu fígado comido todo dia por uma águia, sendo que todo dia seu fígado se regenera para que o suplício possa se repetir… Prometeu se torna, assim, um modelo daquele que ousa desafiar a ordem estabelecida (da sociedade, da religião, dos deuses, do universo etc) para realizar uma melhoria humana ou se colocar acima dos deuses, incorrendo em algum erro nesse processo que causa mais danos que bem (muitas vezes enlouquecendo no processo) e sendo exemplarmente punido no final, muitas vezes, com uma punição eterna. - HEROI X MUNDO/ EU X EU: Ao contrário do Romantismo tradicional, o conflito não é entre um herói bom e um mundo mau que atrapalha a realização do bem e do amor. O conflito na estética Gótica é interno, pois o mal e a loucura ameaçam o protagonista a partir de dentro de si. Posteriormente esse modelo vai inspirar o será chamado de herói Byroniano. O “herói” (se o podemos chamar assim…) gótico tem uma moral dúbia: seu conflito entre bem e mal é interior, não exterior. Já o herói romântico é (ou se vê) uma alma pura e boa, e o conflito acontece com um mundo mau ou decadente, que o impede de realizar sua perfeição e bondade (geralmente através do amor). Podemos perceber que o que passa a ser chamado de herói Byroniano décadas 81

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depois não é mais que uma versão romântica desse personagem gótico seminal. É assim com Manfred, Vathek, Monge, o Judeu errante, Frankenstein e todos os Vampiros e anjos caídos que possamos imaginar. Exatamente a imagem de Lúcifer como um “rebelde positivo” só pode ser possível a partir do século XVIII ajudada pela obra “Paraíso Perdido” (1667/1774), de Milton, que traz uma versão de Lúcifer simpática ao imaginário dessa época. Também Fausto, tanto na versão popular quanto na peça de Marlowe, tem um fundo prometeico. Tanto que Goethe, depois de ter realizado um dos livros fundadores do Romantismo (Werther) desenvolve sua obra mais gótica no século seguinte, com Fausto. Aliás, lembrar de Werther como essencialmente Romântico é oportuno para ressaltar outra característica romântica. O personagem Romântico acredita que o mal está no mundo material, em oposição a sua alma pura, que pode ter sua realização no mundo espiritual idealizado (da mesma forma que o passado é idealizado), logo muitas vezes o suicídio aparece como libertação, em que a alma é libertada dos males do corpo e mundo material. Frankenstein (1819) já uma obra da fase seguinte do Romance Gótico, e talvez seja o exemplo mais conhecido de trajetória prometeica: cientista desafia religião, moral e ciência para recriar a vida, enlouquece e perde a humanidade no processo, que não dá muito certo… e é eternamente perseguido pelo resultado. - A LINGUAGEM: no Romance Gótico ela se aproxima mais da crueza e realismo Shakespeariano do que da assepsia e idealização do Romantismo. Walpole inclusive cita Shakespeare como referência em sua introdução a Otranto (1764). Mesmo que poetas românticos posteriormente reciclem imagens de romances góticos de uma forma mais aceitável. Como já foi dito, o “Gótico é uma estética do excesso” e sua linguagem nem sempre tem a limpeza e pureza que encontramos no romantismo. A linguagem do Romance gótico vai descrever o feio e o escatológico quando o encontra. No século XIX muitos romances misturarão elementos gótico e românticos. Tanto que, como o Romantismo chega no Brasil quando 82

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já está terminando na Europa, a versão do romantismo recebida por nós aqui traz o Gótico como característica já misturada ao Romantismo - O CORPO: Algo escandaloso para os padrões do século XVIII e começo do XIX, nos romances góticos a sensualidade física é expressa, e os personagens têm um corpo e uma sexualidade que se busca realizar, não necessariamente baseada no amor. Temos casos em que a relação sexual se realiza, ou mesmo tentativas ou realização de estupro. Não há uma idealização da mulher. No caso dos romances Românticos, temos muitas vezes uma idealização da mulher, e uma descorporificação dos personagens. Os personagens em geral buscam um amor idealizado, baseado no amor platônico ou religioso, sendo que em muitos casos essa ambição só “se realiza” idealmente na união das almas após a morte. No Romantismo original vemos personagens que praticamente não apresentam corpos, amor platônico e realização do amor apenas “entre as almas”, muitas vezes realizado com a morte. (Ex: “Werther” ou “Amor De Perdição”). O sucesso da primeira leva de romances góticos é contemporâneo de outra polêmica, aquela lançada pelas obras do Marquês de Sade (1740-1814). A obra de Sade não é gótica em si, mas romances góticos da mesma época como Otranto (1764), Vathek (1786) e o Monge (1796), entre outros, compartilham elementos como incesto, assédio sexual, luxúria e confinamento, que se aproximam mais das perversões sádicas do que do idealismo e incorporeidade românticos. Tanto autores góticos quanto Sade sofreram críticas pelos seus atentados contra a moral e o bom gosto. Sade, como se sabe, passou por isso muito tempo enclausurado. Se tomarmos a obra de Goethe que marcou o início do romantismo, “Os Sofrimentos do Jovem Werther” (1774), notamos significativa diferença em relação aos romances góticos. Goethe só no século seguinte nos presentearia com uma releitura mais gótica de uma peça clássica de Marlove (1563-1593) sobre uma lenda popular, com a parte inicial de “Fausto” (1808). - O MAL INTERIOR: na narrativa gótica o mal interior se apresenta como degeneração física e moral da alma e do corpo, sendo muitas vezes representado por imagens tomadas das doenças nervosas 83

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como descritas na medicina da época. Um dos casos mais conhecidos disso se apresenta em “A Queda da Casa de Usher”, de Poe, que seguiu o modelo gótico que vinha do século XVIII. A questão da ameaça ou processo de enlouquecimento nos Romances Góticos é outro imaginário recorrente que influencia aspectos tanto de personagens quanto cenários. A imagem da natureza também pode divergir muito no Goticismo e no Romantismo. No Romantismo a natureza tende a representar algo bom, um espelho da alma imaculada do herói. Já no romance gótico a alma do herói é conturbada e ambígua, e seu conflito, interior. Então a natureza e a noite vão aparecer como os lugares do mistério e guardando ameaças potenciais. -ANTICLERICALISMO: seja contra religiões orientais, como em Vathek, ou religiões e crenças ocidentais, a narrativa gótica estará de alguma forma desafiando a religiosidade e morais estabelecidas, mesmo que essa “religião” seja a Ciência. Manfred (Otranto) persegue a noiva do filho morto, Vathek desafia todos os deuses, O Monge desafia tanto Deus com sua soberba como com seus pecados, Frankestein desafia inúmeros valores morais ao tentar criar vida a partir da morte. Este aspecto se une a questão Prometeica, e Melmoth vagueia séculos com sua maldição. O personagem vampiro é mais um caso de maldição Prometeica ou Luciferiana. De uma forma ou outra, por desafiarem algum sagrado, todos são punidos eternamente ou por um tempo que parece eterno. Na percepção da insuficiência da razão e da religião, os autores góticos não oferecem uma solução, apenas apresentam os elementos contraditórios e paradoxais. Assim a moral dúbia e ambígua dos personagens e do texto gótico tem essa base. Ao contrário, os autores românticos buscam através da imaginação e beleza criar uma forma de reconciliação que a razão e a religião não podem oferecer. Para o romântico, o belo e o sublime vão desempenhar essa função. O caráter prometeico (ou luciferiano ou fáustico) do Romance Gótico não ajudou na sua popularidade entre as autoridades e críticos também devido a outra característica recorrente: o desafio a religião ou moral, seja ela qual for. 84

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Com muitos personagens locados na Europa Latina e Católica Medieval, as críticas ao Catolicismo são evidentes, mas este aspecto atinge outras religiões cristãs ou mesmo o Islamismo e crenças exóticas, como vemos em Vathek, que consegue desafiar diversas crenças na mesma obra. Pelo contrário, em romances Românticos, vemos muitas vezes um reforço das crenças religiosas, com uma solução por vezes espiritual. -O SUBLIME: No Terror Gótico se busca pelo sublime no terror da antecipação, e não no susto ou violência. A vertente do Horror Gótico, por sua vez, expõe o protagonista a situações extremas morais e físicas que ameaçam sua sanidade. Uma teoria do sublime de influenciou a narrativa e os efeitos buscados pelos primeiros autores góticos, entre 1760 e 1800 e posteriormente. Burke publicou em 1754 “Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo”, que se tornou um clássico já em sua época. A teoria é complexa e sua consequência é que os autores góticos procuravam despertar o efeito de sublime nos seus leitores explorando recursos de suspense, terror, vastidão, obscuridade. Era buscado um efeito de “expansão do espírito”, como quando entramos em uma grande caverna ou catedral. Algo bem diferente do que vemos em filmes “de susto” modernos. De fato, boa parte dos romances góticos, apesar de insinuar ou relatar grandes horrores, mostra pouco. NÃO APENAS UM CENÁRIO Assim, é importante notar que a estética gótica não se resume a um sistema de cenários (castelos em ruínas, cemitérios, noites enfumaçadas etc) e alguns personagens padrão (zumbis, múmias e vampiros, entre outros). Isso tudo faz parte da tradição gótica, mas estes elementos de cenário e personagens podem e são muitas vezes usados em obras que não são góticas. Estes cenários fazem sentido em uma obra gótica, porque são uma expressão na forma da estética do conteúdo mais estrutural. Muitos livros, filmes, estilos de roupa, séries, quadrinhos e jogos foram desenvolvidos a partir da estética gótica e isso é algo que faz parte da cultura universal e domínio público de qualquer pessoa, 85

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gótica ou não. O que nos interessa aqui é ver o que a subcultura gótica fez com esses elementos da cultura universal, pois sem entendermos esses elementos da cultura universal não temos como entender o que foi feito deles na subcultura gótica.

5. RECEPÇÃO E CRÍTICA LITERÁRIA DO ESTILO GÓTICO Se Shakespeare tivesse usado a forma de romance e publicado Macbeth no final do século XIX, com certeza receberia críticas morais e literárias negativas, tendo sua obra classificada como gótica. Mas com certeza também faria sucesso popular como fizera com suas peças antes. Então, por que no final do século XIX Shakespeare era endeusado e os romances góticos criticados? Simples: as peças de Shakespeare foram encenadas para populares, mas quando suas obras foram publicadas depois (lá por 1620), livros eram ainda algo reservado a uma pequena aristocracia ou elite que sabia ler. Já o fenômeno que acontece em 1790 é o de novas classes sociais aprendendo a ler e consumindo as Gothic Novels e Penny Dreadfuls (impressões em versões mais baratas). Assim, a avaliação da crítica da época tem mais a ver com uma crítica da classe de leitores do que com uma avaliação das obras em si. Um caso em que meio e público são avaliados como parte da mensagem e obra, como quase sempre ocorre. Esse comportamento da crítica se repete ao longo da história, como nos explica Pierre Bordieu e não é muito diferente do que acontece com a avaliação da música gótica em setores da crítica musical especializada ou mesmo no mundo alternativo brasileiro. Mas sobre isso comentamos no capítulo sobre Capital Subcultural. Agora vamos ver essa história literária do começo.

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A ETERNA GUERRA ENTRE LEITORES, CRÍTICA E AUTORES Há bons motivos para não seguirmos aqui a classificação de escolas literárias usada pela maioria dos manuais de literatura brasileira. A primeira razão é esses manuais privilegiarem uma divisão mais cronológica do que estilística da literatura. A segunda se deve ao fato de que – seguindo a definição de Antonio Candido – o Brasil vai ter uma literatura de fato - e não apenas manifestações literárias isoladas - somente a partir do Romantismo e, no nosso caso específico, um Romantismo tardio. O terceiro motivo é que a divisão sacramentada de escolas literárias brasileiras foi cristalizada ainda no século XIX e foi fortemente influenciada pelas ideologias – e preconceitos – das críticas literárias daquela época.

“… pelo menos, desde 1881, as práticas de ensino de língua portuguesa já eram muito próximas das práticas de ensino que há décadas vêm fazendo parte das escolas brasileiras e que temos chamado de ‘práticas cristalizadas’ de ensino, seja com relação à divisão entre literatura, gramática e produção de texto”. (William Cereja) Esses três motivos são especialmente preocupantes quando vamos falar do estilo Gótico na literatura. As obras essenciais do Goticismo literário foram publicadas ainda no século XVIII (a partir de 1764), tiveram seu auge de popularidade na década de 1790, influenciando o Romantismo europeu, surgindo posteriormente obras com elementos góticos em obras mais românticas. Mesmo assim os romances góticos não aparecem nos “clássicos” indicados. O próprio estilo gótico só aparece como subgênero do romantismo. Essa concepção pode derivar da própria crítica literária Inglesa e europeia. Na própria Inglaterra do século XVIII e XIX o estilo Gótico foi depreciado pela crítica literária não apenas pelas suas características. mas muitas vezes pela classe social que fez esse estilo literário popular na época. Como vimos, a urbanização e industrialização do final do século XIX fez com que muita gente que “não deveria saber ler” (segundo algumas opiniões das elites da época) começassem a aprender a ler. E a literatura que se popularizou no final do século XIX entre estes novos leitores foi principalmente o Romance Gótico (Gothic Novel). 87

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Isso criou um conflito entre as três partes interessadas em literatura: os leitores, os autores e os críticos literários. Ironicamente, na virada do século XVIII para o XIX (entre 1790 e 1810), escrever romances góticos ou com influência gótica dava popularidade e dinheiro, mas falar mal dessas obras garantia status frente a elite intelectual e aristocrática. O romance gótico era considerado literatura popularesca, indigno de uma mente refinada e bem-educada. Esse discurso, obviamente, era apenas a manifestação de um preconceito de classe. A situação ficou paradoxal para alguns autores que eram também críticos literários, chegando a esquizofrenia de criticar o próprio estilo que o influenciou ou em que trabalhava. O caso mais famoso dessa contradição é o do romancista Sir Walter Scott. Essa visão elitista da crítica literária dessa época a respeito dos romances góticos influenciou a crítica até o século XX e em muitos casos até hoje. Porém, felizmente, isso não mudou o gosto dos leitores que seguiram século XIX e XX adentro ávidos por qualquer sombra de estética gótica que se esgueirasse das catacumbas infectadas da literatura. Em 1800, o que era intelectualmente elegante na Europa era ser Romântico. Não é acaso, portanto, que o Romantismo (ou Romanticismo) apareça retratado nos manuais de literatura de forma muito mais abrangente e simpática. O Goticismo, ou Romance Gótico, por sua vez, aparece frequentemente reduzido por críticos a uma ramificação menos importante do Romantismo, mesmo tendo sido influenciador do Romantismo e em muitos casos anteriores cronologicamente. Além disso, muitas das características essenciais do estilo gótico diferem muito do romantismo. Por isso é importante que olhemos com mais atenção para as características essenciais do romanticismo e do goticismo, para percebermos suas características, semelhanças e diferenças. CRÍTICA E ENSINO NO BRASIL A maioria dos manuais de literatura do Brasil traz nenhuma ou pouca informação sobre as primeiras obras da literatura gótica do perí88

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odo 1764-1821, limitando-se a comentar autores românticos do final desse período ou muito posteriores com influência Gótica. Um motivo disso é que o próprio Romantismo começa tarde no Brasil, quando já quase acabava na Europa, chegando aqui já como um pacote de várias fases e outras influências. Outro motivo é que a própria crítica literária Europeia do século XIX fez um trabalho de desvalorização e apagamento da história dos romances góticos e, como era de se esperar, aqueles que montaram os primeiros manuais de literatura no Brasil seguiram essa tendência. A importância da literatura Gótica só seria recuperada por estudiosos muito depois, mas como a maioria dos manuais de literatura brasileiros seguem preguiçosamente, até hoje, nossos modelos do século XIX, continuamos não tendo uma descrição ou análises decentes sobre o começo dos romances góticos e sua importância na formação do público leitor na época em que os romances, enquanto objeto de consumo, popularizavam-se entre classes menos abastadas da sociedade, na Europa do final do século XVIII. As obras do período 1764 a 1821 consolidaram uma série de padrões (tropos) e modelos que são reproduzidos e reconhecidos até hoje, mais de 250 anos depois, como “góticos”. Posteriormente traços, tropos, arquétipos e outros elementos góticos vão ser misturados a outras escolas literárias, como o Romantismo, Simbolismo, Naturalismo, Realismo etc. No século XX são incorporados também em outras formas de arte, como o cinema e os quadrinhos. Importante lembrar que muitos destes autores não foram apenas autores: foram desenvolvedores de tendências estéticas em outras áreas, criando uma moda gótica no final do século XVIII que abrangia diversos aspectos da sociedade.

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6. O INÍCIO: OTRANTO, VATHEK E O MONGE Dois nomes são essenciais para entender o começo da estética Gótica entre 1764 e 1800: Horace Walpole e William Beckford. Estes dois autores não apenas criaram o Gótico como um estilo literário, mas criaram a estética Gótica como a entendemos desde aquela época, envolvendo recriação arquitetônica, paisagismo, decoração, design, vestimenta e outros detalhes. Antes deles “Gótico” era ainda apenas um adjetivo negativo usado pelos renascentistas para denegrir a arquitetura escolástica da baixa idade média. Com sua obra, Walpole lança uma moda que se torna popular, criando um “novo estilo Gótico” que não existira até então. Ele explica conceitualmente seu plano estético em um texto introdutório ao seu romance. É preciso lembrar que Walpole era um rico aristocrata filho de um poderoso primeiro ministro Inglês e que Beckford era extremamente rico também. Com suas excentricidades literárias e arquitetônicas, popularizaram um novo estilo feito da bricolagem de diversos estilos antigos, dando o nome de “Gótico”. Suas construções se tornaram pontos turísticos enquanto permaneceram em pé (especialmente no caso de Beckford, pois suas últimas recriações arquitetônicas ruíram no começo do século seguinte). A “mansão gótica” de Walpole pode ser visitada até hoje, apesar de alguns detalhes ornamentais feitos em material perecível terem se perdido. A Literatura Gótica tem seu início oficial em 1764 quando Walpole publica “O Castelo de Otranto” com o subtítulo “a gothic novel” (um romance gótico). A obra foi um sucesso literário e comercial gerou diversos seguidores e imitações até o final do século XVIII (século dezoito: 1701-1800). Mas antes de escrever, Walpole já tinha iniciado a moda Gótica na jardinagem, “arquitetura” e decoração, desde que comprou a propriedade batizada de Strawberry Hill em 1749 e imediatamente começou a “goticizá-la”. Walpole ignorou o fato de que a mansão era de outro estilo arquitetônico e foi acrescentando os adereços, reformas e decorações passadistas. A moda pegou e pessoas visitavam 90

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sua mansão para aprender como goticizar suas propriedades. Ainda no século XVIII William Beckford, cujo estilo de vida escandaloso não era muito diferente do hedonismo e heretismo de seu mais famoso protagonista, escreve “Vathek” ou “Vathek, an Arabian Tale or The History of the Caliph Vathek”. Existem versões originais publicadas em Inglês e Francês, devido as idas e vindas e confusões do autor em sua conturbada vida de milionário. Mas podemos datar as versões iniciais entre 1782 e 1787. Beckford também investiu em “arquitetura simulacral”, como Walpole, e gastou boa parte de sua fortuna construindo impressionantes reproduções de prédios e ambientes góticos. As características do Gótico literário não podem ser confundidas nem reduzidas a meras variantes do Romantismo (apesar de pontos em comum). A fase formadora do estilo Gótico tem sua origem em 1764 e desenvolvimento até o final do século XVIII, portanto, antes da Era Vitoriana (1837-1901) no século XIX. É importante fazer essa distinção, pois as obras Góticas desenvolvidas no período Vitoriano foram as mais popularizadas pelo cinema do século XX, criando uma confusão de sentido entre gótico e vitoriano. Confundir essas duas estéticas, todavia, seria reduzir o estilo Gótico a apenas um de seus vários momentos. Observando as obras Castelo de Otranto e Vathek temos um protagonista que é atacado pela “síndrome de prometeu” ou “complexo de lúcifer” (ou o Fausto de Marlowe). Vathek em sua busca por prazer sensual, conhecimento e poder místico não reconhece nenhum limite, desafiando suas próprias divindades e não respeitando a vida humana. Manfred também passa a ignorar regras sociais e religiosas e decide publicamente transformar em sua amante a jovem noiva do filho que acabara de morrer, iniciando uma caçada implacável pelos corredores e porões de seu castelo. Em ambas as obras o sobrenatural é apresentado como fato natural. Walpole explica isso teoricamente, dizendo que um homem da “idade média” não buscaria explicação para fatos sobrenaturais: eles existiam da mesma forma que os fatos naturais. De fato, a divisão entre fatos naturais e sobrenaturais soaria sem sentido para 91

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um indivíduo da época anterior ao desenvolvimento do pensamento científico e racional. 1796: O MONGE de Matthew G. Lewis: Além de redefinir o estilo na época, a obra fez tanto sucesso que o autor passou ser chamado de “Monk Lewis”, como se o nome dessa obra fizesse parte de seu nome. Porém, o sucesso não diminuiu o choque que a obra causou, ainda mais vindo de um membro do parlamento britânico. A obra foi denunciada como blasfêmia pornográfica (para os padrões da época). De fato, além de incesto, escatologia, sequestro, assassinato, ter como uma das tramas a história de um monge com aspirações de perfeição que sucumbe aos prazeres da carne com um noviço que na verdade é uma moça disfarçada é apenas uma parte da história. A obra de Lewis foi considerada referência de qualidade literária por escritores da época, o próprio Marquês de Sade escreveu que preferia o estilo de Lewis ao gótico mais refinado de Ann Radcliffe. Contemporâneos, de fato, o gótico de Lewis se aproxima de Sade e afasta da estética romântica mais bem-aceita na época. Mas “O Monge” posteriormente conquistou também a admiração de Walter Scott, Byron, Keats e muitos outros. Em 2011, “O Monge” também virou filme, em uma produção franco-espanhola com Vincent Cassel. Vale a pena conferir. Os personagens O Castelo de Otranto, Vathek e O Monge servirão de molde para anti-heróis góticos e, no começo do século seguinte, inspirar a formação do que ficou conhecido como “Herói Birônico”, nomeado assim pela vida e personagens do autor Lord Byron (17881824). O escritor foi fortemente influenciado pelas obras e vidas de Walpole e Beckford. Mas na época em que Byron publicou (18071824), a moda medievalista ou gótica já tinha se espalhado pela Europa, sendo forte também na restauração francesa. O SOBRENATURAL EXPLICADO Ann Radcliffe (1764-1823) foi um sucesso literário no final do século XVIII (década de 1790) e é um dos melhores exemplos de como o conceito de sublime de Burke é aplicado em romances góticos. Suas obras também se aproximavam mais do gosto romântico e 92

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eram menos socialmente ofensivas e escandalosas do que as de Horace Walpole, William Beckford e Matthew Lewis. Ela popularizou também um modelo de “sobrenatural explicado”, em que uma aparente ameaça sobrenatural tem ao final uma explicação racional, modelo mais adequado ao “bom gosto” racionalista da época. Décadas depois o sobrenatural explicado será explorado por Edgar A. Poe em muitos de seus contos. A autora influenciou muitos escritores românticos do começo do século XIX. O sucesso do Romance Gótico gerou muitos imitadores, levando a escritora Jane Austen a satirizar os clichês do gênero em “Northanger Abbey”. A protagonista é uma ávida leitora desse estilo e cita obras que por muito tempo se pensou serem fictícias. Mas depois descobriu-se que todas existiram, sendo recuperadas e republicadas em conjunto – ou separadamente - sob o título “Northanger Horrid Novels” ou “The Northanger Novels”.

7. RELAÇÕES ENTRE O GÓTICO SUBCULTURAL E A LITERATURA GÓTICA Há 250 anos o estilo Gótico comenta o presente olhando para o futuro, vestindo passados cerzidos em uma manta de retalhos. Também a subcultura gótica se chama “gótica” por motivos bem significativos: qualquer outro nome não agregaria a pluralidade e profundidade de significados atuais que o discurso subcultural gótico produz e invoca hoje. Se as pessoas escolheram primeiro o nome, ou o nome depois influenciou a subcultura, cabe a resposta que se dá sobre qualquer poema ou obra de arte: forma e conteúdo surgem como um todo que não é separável na realidade. E sendo coletivo, processo é contínuo. Para qualquer Inglês com cultura média das décadas de 1960 ou 1970 o adjetivo “gótico” (gothic) remetia a uma parte bem conhecida da literatura de língua inglesa ou a filmes por ela inspirados. Assim, quando bandas e pessoas se autodenominaram góticas na 93

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Inglaterra entre 1978 e 1984, se referiam a uma estética artística definida e encontrável em qualquer biblioteca, TV ou cinema. O gótico permanece necessário para a cultura ocidental pois o:

“uso do passado esvaziado em fantasmas simulacrais, consequentemente, permite que o neogótico seja preenchido com antiquados repositórios dentro dos quais os dilemas modernos podem ser ao mesmo tempo projetados e rejeitados. Por conseguinte, Gótico tem sido há muito tempo um termo usado para projetar preocupações modernas dentro de um passado deliberadamente vago, e até ficcionalizado.” (Hogle, 2002) Podemos ver esse processo - de injetar questões insolúveis ou problemáticas da cultura dominante - tanto nos primeiros romances da tradição literária Gótica - como em “O Castelo de Otranto” de Walpole, “Vathek” de Beckford e seus seguidores, como na estruturação da subcultura Gótica no final do século XX. A diferença é que ela se apropriou e continua se apropriando de outros elementos do século XX e XXI e incluindo-os no esqueleto Gótico. O Gótico, como o conhecemos, surge no imaginário do ocidente por meados do século XVIII. Já a subcultura Gótica emergiu nos anos 1980.

“O Gótico não é como as outras subculturas, pois ela se desenvolve não apenas a partir seus precedentes subculturais imediatos, mas também a partir de uma tradição de 250 anos e ela (a subcultura Gótica) tem uma presença na cultura contemporânea que transcende seus participantes individuais e ultrapassa a presença de virtualmente qualquer outra subcultura até hoje.” (Spooner, 2012) A diferença é que no final do século XX e começo do XXI há mais repertório para servir a este propósito do que 100 ou 250 anos atrás. Assim, verificamos um imaginário social com um funcionamento estrutural semelhante que vem desde romance Gótico original (Final do século XVIII: Walpole, Beckford, Radcliffe…) atravessando e influenciando sucessivamente o Romantismo, seguindo pelo simbolismo, decadentismo e neogótico da segunda metade do século 94

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XIX, continuando no expressionismo do início do século XX, sendo retomado pela subcultura Gótica. Temos aproximadamente 250 anos de uma expressão estética resolvendo simbolicamente as mesmas questões em seus respectivos contextos históricos. Assim,

“A riqueza da longevidade da cultura Gótica é dependente de sua habilidade de canibalizar novos estilos e incorporá-los ao seu repertório (...)” (Spooner, 2012). Já tínhamos visto esta dinâmica canibalizante no capítulo Absorção de Elementos de Estilos Relacionados, no volume 1. Os góticos do século XX coletam e colam em sua estrutura estética Gótica elementos de sistemas estéticos não góticos da mesma forma que Horace Walpole criou sua estética “Gótica” a partir de elementos das origens mais incongruentes do passado, e ainda – no caso de sua mansão - sobre um prédio não-gótico. Walter Scott (autor de “Os Três Mosqueteiros”) em um ensaio em que comenta a influência de Walpole sobre ele, escreve sobre o romance “O Castelo de Otranto”:

“se assemelharia a uma roupa moderna, decorada artificialmente com ornamentos antigos”. (Walter Scott). O mesmo que Walpole fez com sua mansão e góticos fazem até hoje, mantendo o estilo atualizado e continuamente comentando o presente através e uma estética de bricolagem que faz questão de deixar claras suas montagens, excessos e “mau gosto” programático. É importante não confundir a estrutura da estética Gótica com as características dos movimentos influenciados por ela, nem confundir os movimentos e estéticas “canibalizados” pela subcultura Gótica com as origens destes “pedaços” comidos e resignificados. Estes novos itens são absorvidos e recontextualizados pelos Góticos, gerando um novo significado (veja o capítulo sobre Resignificação). Porém o caráter libertário, criativo e questionador da subcultura gótica é demarcado tanto pelos próprios sentidos de gótico na cultura geral quanto pelo recorte e reforço que o grupo social gótico faz desses sentidos. 95

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Como em um poema, significado e forma surgem juntos, e não é possível separar forma e conteúdo sem destruir o significado. Essa separação seria uma abstração apenas didática: como nos ensina o linguista Louis Hjelmslev, há um conteúdo da forma, e uma forma do conteúdo, inseparáveis. Não existe expressão sem conteúdo: nem conteúdo sem forma. FUTURO Por isso, “(a subcultura Gótica) é provavelmente a única subcultura

a manter uma cena de escala internacional por um período de tempo tão longo”. (Spooner, 2012)

Assim, podemos esperar que a subcultura Gótica continue a se desenvolver, modificar-se e ver novos galhos florescerem como vem acontecendo há mais de 30 anos, da mesma forma que literatura Gótica faz nos últimos 250 anos. Além disso, nos últimos 30 anos, vemos indícios da subcultura e da literatura terem uma reação dialética, não apenas de descendência ou influência em uma só direção: elementos e conceitos da subcultura gótica são absorvidos também pela produção cultural Gótica não subcultural, que atinge a sociedade como um todo, como vemos por meio da popularidade dos filmes de Tim Burtom e roteiros e livros de Neil Gaiman, apenas para citar dois autores conhecidos fora da subcultura Gótica.

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PARTE 3: GÓTICO E SUBCULTURAS NO SÉCULO XXI

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1. ALGUMAS DIFERENÇAS ENTRE OS CONCEITOS DE “TRIBO” E “SUBCULTURA” No volume 1 fizemos uma introdução explicando o conceito de subcultura e subcultura translocal. Aqui vamos partir deste ponto e aprofundar esses temas com novas questões relativas ao século XXI. Michel Maffesoli popularizou o termo “tribos pós-modernas” com seu livro “Tempos das Tribos” de 1986. Na onda da ideologia pós-moderna e ascensão do neoliberalismo, como e por quê esse conceito se tornou moda nos anos 90? Qual a diferença entre o termo subcultura como usado nos anos 1970 e a reformulação do conceito de subcultura do final dos anos 1990 até hoje? Para entender esse processo é preciso recapitular alguns fatos históricos e teorias desse período e posteriores. David Harvey e Fredric Jameson definem pós-modernidade como o estágio do capitalismo avançado de consumo e pós-modernismo como a ideologia que sustenta a fase avançada deste capitalismo - no final do século XX - que precisa de uma ideologia de identidades flexíveis (tanto para viabilizar modas consumistas cada vez mais rápidas, quanto para designar a precarização das condições de trabalho e salários piores). De um momento para outro ter uma identidade pessoal ou social, trabalho ou utopia se tornou “conservador e ultrapassado”, segundo a ideologia pós-moderna. Se teoria de Maffesoli não foi cunhada especialmente para este contexto, caiu como uma luva e foi adotada sequiosamente por setores da mídia e da comunicação (publicidade, jornalismo etc) popularizando-se rapidamente no meio acadêmico destas áreas e caindo no senso comum. Como nem tudo que se fala sobre tribos estava na sua teoria, vamos analisar alguns de seus detalhes. Importante lembrar que, na mídia de massa, muitos usam o termo “tribos” desconhecendo a teoria Maffesoliana e usam o termo como algo referente às tribos indígenas ou autóctones do Brasil ou outro lugar. Assim o termo tribo, além de não ser adequado para todos os tipos de grupos sociais alternativos, muitas vezes é usado de forma errada ou pejorativa. 98

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Também o termo subcultura é considerado às vezes de forma equivocada: é preciso lembrar que o prefixo “sub” não se refere aqui a “inferior”, mas sim a algo que faz parte de outras coisas. Subculturas fazem sentido somente em relação ao pano de fundo das culturas “dominantes” das épocas e regiões em que se desenvolvem ou desenvolveram. Vejamos então as diferenças essenciais entre o conceito de “tribo pós-moderna” e de “subcultura translocal”: CARACTERÍSTICAS DAS NEO-TRIBOS PÓS MODERNAS: Maffesoli descreve “neo-tribos pós modernas” como:

-fluidez, ajuntamentos pontuais e dispersões (p. 132);

-não são estáveis, são efêmeras;

-pensamento de massa em detrimento do indivíduo – a massa ou o povo não se apoiam em uma lógica de identidade, logo, o vão e vem entre várias identidades ou tribos (p.31, 243) “mudando o figurino ela vai…assumir seu lugar a cada dia, nas diversas peças do ‘theatrum mundi’ ”(p.133); -a metáfora da tribo permite dar conta do processo de desindividualização (o autor comemora o fim do individualismo moderno, ou seja, do indivíduo como uma identidade estável);

-as tribos são grupos afetuais (p. 31);

-proxemia como elemento essencial desse tipo de sociabilidade, presença próxima ou localismo (p. 227). CARACTERÍSTICAS DAS SUBCULTURAS TRADICIONAIS X SUBCULTURAS TRANSLOCAIS Anteriormente, no volume 1, (2008) indiquei algumas características da definição atual de “subcultura” alternativa, especialmente de “subcultura translocal”, baseado especialmente em Hodkinson. Vamos repassar o básico: 99

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Subcultura pode significar uma “parte de uma cultura” que possui um conjunto diferenciado de “valores, crenças, normas e padrões de comportamento, portanto, um modo de vida compartilhado por parte de uma população” (Vila Nova, 2004). Podemos dar como exemplo as subculturas regionalistas tradicionais do Brasil, como a nordestina ou a gaúcha. Elas estão inseridas na sociedade brasileira e em sua cultura, mas, ao mesmo tempo, possuem um sistema de significação e representação do mundo próprio e único. (Kipper, 2008) O QUE É SUBCULTURA URBANA E TRANSLOCAL? “Com a industrialização, urbanização e globalização das informações, a situação das culturas mudou bastante. Principalmente na segunda metade do século XX, com o aparecimento da televisão e outros métodos de radiodifusão e, mais tarde, com o surgimento da Internet. Temos um cenário no qual a cultura das zonas urbanas industrializadas tende a perder características locais e a adotar características de uma cultura global economificada: a cultura da sociedade de consumo contemporânea. Neste contexto, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), começam a surgir algumas subculturas urbanas, como os Beats, Rockers, Mods, Skinheads, Hippies, Glam-Rockers, Punks, Góticos etc. Algumas delas desapareceram em pouco tempo, mas outras permaneceram e mantiveram coerência interna por um longo tempo. Hoje, estas subculturas apresentam diversas características, entre elas, a translocalidade (não serem limitadas geograficamente). Da mesma forma que as subculturas tradicionais ou regionais, o participante de uma subcultura translocal continua participando, de alguma forma, da cultura dominante local.” (Kipper, 2008) Paul Hodkinson (2002) identifica na subcultura Gótica (e outras), quatro fatores interligados e complementares de consistência subcultural: - DIFERENCIAÇÃO CONSISTENTE - IDENTIDADE - COMPROMETIMENTO - AUTONOMIA 100

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Esses fatores são explicados um por um no capítulo 6.1) Indicadores de Consistência Subcultural de “A Happy House in a Black Planet”. Exatamente devido ao fato do conceito de tribo ter este significado específico que optamos neste livro por usar o conceito de subcultura como definido modernamente como por Paul Hodkinson. Este é um conceito de subcultura atualizado, que leva em conta os avanços da teoria sociológica e etnográfica do final do século XX. Ken Gelder em seu livro “Subcultures Reader” (1997/2002) edita um histórico do uso do termo subcultura ao longo do século XX e seus desenvolvimentos no século XXI. Por isso, convém não tomar o termo subcultura como usado anteriormente: os conceitos ultrapassado da teoria subculturalista já foram criticados e revisados pelos próprios autores que hoje usam o termo atualizado e contextualizado para o século XXI. Hodkinson (2002) sugere o uso de “tribos” para o tipo de grupamento social definido por Maffesoli (1986, 2010) e de “subcultura” para o tipo de grupamentos sociais com maior consistência e perenidade. O “sub” de subculturas não indica de forma alguma, portanto, “inferioridade”, mas sim, subdivisão ou divergência em relação a algo. Assim, podemos também chamar as subculturas de “culturas” ou “culturas alternativas” se tivermos em mente que são “culturas alternativas” e “alternativo” exige que seja algo “alter” ou outro, diferente em relação a uma cultura de referência, geralmente dominante ou hegemônica em determinada época, região e contexto social. E sempre lembrando que nos referimos a um tipo de vivência humana que tende mais a perenidade e vinculação significativa de relações sociais, e menos à transitoriedade e relações impessoais que marcam o capitalismo de consumo, o descarte e a ideologia pós-moderna, como comentamos mais longamente no artigo “Etnofobia”. Nos próximos capítulos vamos também falar mais sobre o conceito de translocalidade cultural.

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2. CULTURAS E SUBCULTURAS NUNCA ESTÃO “PRONTAS” Existem dois tipos principais de mudança em uma cultura: os motivados internamente e os motivados (ou impostos) externamente. No primeiro caso, da motivação interna, imagine se, por um acidente histórico, uma sociedade de habitantes indígenas da América tivesse permanecido isolada desde 1400 até hoje sem colonização de nenhum tipo. Ela não estaria igual à 500 anos atrás: teria continuado a mudar e a evoluir coerentemente de acordo com seus valores e dinâmicas internas. Ou seja: mesmo uma cultura mantida em um estado ideal de “pureza” mudaria com o tempo. (R. B. Laraia, 2009) Fenômeno semelhante ao que acontece com as línguas, mesmo a mais “pura”: o Inglês ou Português de hoje são diferentes de 500 ou 200 anos atrás, mas continuam sendo Inglês ou Português, mesmo tendo absorvido e deglutido palavras e expressões de outras línguas, inserindo-as no sistema do Português e do Inglês. Este seria um exemplo de mudança por contato com fatores externos. Podemos compará-lo com o que acontece com uma cultura ou subcultura ao “deglutir” e ressignificar elementos isolados de outras culturas, mantendo, todavia, a coerência própria de seu sistema. Também, ninguém sustentaria que o “verdadeiro brasileiro” é só o do século XVIII, sendo o brasileiro do século XX e XXI “deturpações ou descaracterizações”. Várias características culturais que temos como brasileiros hoje foram consolidadas no século XVIII, mas estas características foram adquirindo novas formas de expressão e incorporando outros elementos. Seria absurdo querer que os brasileiros de hoje vivessem como os brasileiros do século XVIII ou XIX para provar que são “verdadeiros brasileiros”. Ignoraríamos, por exemplo, Portinari, Carlos Drummond e Guimarães Rosa. Mesmo o carnaval e o futebol são fenômenos historicamente recentes na cultura brasileira (final do século XIX e começo do XX). Logo, não faz sentido dizer que o “verdadeiro gótico” é só o dos 102

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anos 80, tanto no sentido de estilo musical quanto de modelo de cena subcultural. Da mesma forma que a cultura brasileira continuou evoluindo e absorveu novos elementos ao longo dos séculos sem deixar de ser brasileira, também a subcultura Gótica continuou a evoluir e absorver novos elementos nos últimos 20 anos sem perder sua identidade. Uma cultura ou subcultura nunca está pronta, principalmente no caso de culturas jovens como a brasileira ou subculturas ultra-novas como a subcultura Gótica (mais de 30 anos). Vários elementos novos da cultura brasileira tem em torno de 100 anos e ainda estão em processo de mistura e re-significação dentro do sistema cultural que já existia. O mesmo pode ser dito do Gótico, que continuou e continua incorporando novos elementos. Poderíamos dizer apenas que, em certos momentos uma cultura ou subcultura, está mais ou menos consolidada ou definida. Isso não significa confundir características de uma cultura com as de outra. Nem com consumo de “cultura erudita” estrangeira, algo que não muda nossas características culturais: consumir música alemã ou pintura francesa ou literatura russa não faz com que deixemos de ser culturalmente brasileiros. Seremos apenas brasileiros “cultos” e não alemães, franceses ou russos. Importante também não confundir evolução de uma cultura com avanço tecnológico. Tecnologia não é sinônimo de cultura. Culturas com “menos” tecnologia (ou tecnologias baseadas em valores diferentes) possuem sistemas culturais tão complexos quanto as outras. Por isso, não devemos nos preocupar com as atualizações na forma do discurso da subcultura Gótica através de elementos que não existiam ainda nos anos 1980: isso só prova que esta subcultura está viva. Se permanecesse exatamente igual à origem, seria apenas revival de uma cultura ou subcultura morta. Saindo da questão antropológica: é natural de toda geração idealizar a época de sua juventude, independente do presente ser melhor ou pior. Mas isso já é questão psicológica e de saudosismo pessoal.

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3. O QUE É HOMOLOGIA: O SIGNIFICADO DOS ESTILOS “… quando aquele objeto é colocado dentro de um conjunto totalmente diferente, um novo discurso é constituído, uma nova mensagem é veiculada.” (Clarcke, 1976, em Hebdige, 1979) Uma das principais diferenças entre o estilo em uma subcultura e o estilo no mercado de massas é a questão da homologia subcultural. Subculturas e culturas estabelecem redes de símbolos homólogos, historicamente fundados e mais estáveis (apesar da atualização constante e absorção de novos elementos). Já o mercado de massa trabalha com fragmentos mais desconectados que são descartados por outro fragmento sem ligação no próximo ciclo e este por outro e assim por diante. “ “Homologia é o estudo das coisas homólogas. Coisas homólogas seriam aquelas que, apesar de diferentes na forma, guardam uma relação de significado ou, ainda, a relação entre um conceito ou ideia e suas formas e símbolos. Muito importante salientar que a homologia em um sistema cultural ou subcultural não é uma relação nem fechada nem estática. De forma comparável à língua de um povo, ela evolui de acordo com a sua utilização pelo grupo social e também tem um espaço grande de ‘ruído’ que permite a sua renovação coerente e a criatividade dos indivíduos.” (Kipper, 2008) A HOMOLOGIA NAS SUBCULTURAS

“Paul Willis (1978) aplicou a palavra ‘homologia’ a uma subcultura no seu estudo dos hippies e motociclistas, usando o termo para descrever a relação/adequação simbólica (symbolic fit) entre os valores e o estilo de vida de um grupo, sua experiência subjetiva e as formas musicais que este grupo usa para expressar ou reforçar o que considera importante. No texto ‘Profane Culture’, Willis mostra como (...) a estrutura interna de qualquer subcultura é caracterizada por uma extrema ordenação: cada parte é organicamente relacionada a outras partes e é através da adequação entre elas que os membros de uma subcultura entendem o sentido do mundo.” (Dick Hebdige, 1979) 104

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Culturas e subculturas nunca estão prontas. Os estilos nas subculturas evoluem (e se atualizam) dentro do mesmo sistema e mais lentamente. Ao contrário, os estilos no mercado de massa são substituídos cada vez mais rapidamente e por fragmentos de estilo geralmente diferentes do anterior. Cada subcultura possui seu micromercado e sua micro-mídia, mas estes estão a serviço do sistema subcultural e não o contrário: a partir do momento que um agente subcultural busca desenvolver uma dinâmica fragmentada e acelerada de mercado de massa, ele acaba desacreditado ou expelido do sistema subcultural. Já no mercado de massa em geral o estilo das obras e objetos não está relacionado a nenhum contexto, pois devem ser substituídas na próxima estação ou tendência: um estilo musical ou banda deve ser vendido apenas como “música” e uma roupa deve ser todo o estilo (e “experiência”) em si, sem necessitar de mais nada. Exatamente por isso essas modas satisfazem por pouco tempo: é aplicação do princípio de insatisfação programada ao mercado do estilo. É assim para que o círculo de consumo seguido de descarte e novo consumo continue girando. Importante não confundir homologia com ressignificação, um processo relacionado mas diferente. Vamos analisar e comparar apenas algumas poucas características e valores relacionados em algumas subculturas. Importante lembrar que aqui não estamos comentando nem estilos musicais de mesmo nome, nem indivíduos mas, isto sim, a estética e valores vinculados ao estilo (músicas, visuais, design, pôsteres, maquiagem, comportamentos, letras, padrões de beleza etc) de cada grupo social. Resumimos alguns pontos bem básicos abaixo: -PUNK: o Punk (1977) tem um discurso estético urgente, literal e fragmentado: a estética dos fanzines é intencionalmente descuidada e “tosca”, assim como a música, a atitude, a roupa e maquiagem. Tudo negligente, com partes sobrepostas e “remendadas” (seja zine ou roupa). As letras geralmente são diretas (sem muitas metáforas e figuras de linguagem), explícitas e muitas vezes agressivas (como a música, a atitude, as roupas e os zines). “Havia uma relação homológica entre as roupas toscamente remendadas, o cuspir, o vomitar, o formato dos fanzines, as poses insurgentes e a música conduzida freneticamente” (Hebdige, 1979)”. Tudo que for muito elaborado 105

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e planejado é geralmente rejeitado no plano do discurso punk. É comum em alguns grupos punks um discurso político explícito (às vezes anarquista, outras vezes anarco-sindicalista ou comunista, entre outros). Na questão da aparência de gênero (masculino/feminino), o estilo punk subverte o modelo dominante no sentido da androginia, ou seja, do neutro: o visual punk não diferencia muito o que deve ser visual masculino e o que é visual feminino, mas a atitude comportamental, seja para homens ou mulheres punks, é a mesma. No estilo punk a força física não é valorizada na forma de massa muscular nem do tipo “saudável”. -EBM: o estilo ligado ao EBM tradicional tem, historicamente, um discurso ligado a estética marcial (militar) ou do homem marcializado no trabalho industrial: isso fica claro na estética dos elementos musicais, visual das bandas e iconografia do material gráfico etc. As letras em geral são curtas ou simulam slogans. Símbolos políticos são muito usados. É comum um discurso distópico (utopia negativa sobre o futuro). O uso farto de roupas camufladas e outros elementos militares também faz parte deste sistema estético. Da mesma forma, máquinas, sejam de produção industrial ou destruição industrial são fetichizadas. Os uniformes podem ser de trabalhadores industriais ou militares. O uso de cortes de cabelo em estilo militar complementa o quadro. Isso muitas vezes é usado como crítica ao militarismo, porém alguns não se atraem por isso no contexto metalinguístico e sim no contexto de apologia ao militarismo. Na questão da aparência de gênero (masculino/feminino), esta estética reforça caracteres historicamente relacionados ao masculino, como força, rigidez de movimento e massa muscular. Um padrão estético seria do tipo “herói da classe trabalhadora” que se via, por exemplo, em cartazes soviéticos de meados do século XX. Não por coincidência, no Cyber-Goth esse padrão estético migra mais para o padrão gótico. -SKIN-HEADS (1969): Stuart Hall comenta que “as botas, os sus-

pensórios e o cabelo raspado só foram considerados apropriados e, consequentemente, significativos, porque eles comunicavam as qualidades desejadas, como dureza, masculinidade e a classe trabalhadora local. Desta forma, os objetos simbólicos - roupa, aparência, linguagem, ocasiões de ritual, estilos de interação, música - foram feitos para formar uma unidade com as relações, situações e experiência do grupo” (Hall, 1976).

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-GÓTICO: o estilo Gótico tem, historicamente, um discurso de rejeição ou desencanto com o presente e idealização do passado (perdido). Dificilmente vemos um discurso político explícito e direto como é mais comum no punk ou EBM: a subversão do estilo gótico percorre outros caminhos. Vemos todo um discurso com ligação com uma estética lunar (ou predominantemente Ying nos símbolos mais recorrentes): isso fica claro tanto em elementos musicais, visual das bandas, obras literárias cultuadas, comportamento, estética e iconografia do material gráfico etc. E, nos símbolos usados, principalmente organizado em torno dos eixos O Sombrio e o Macabro / O Feminino e o Ambíguo. Por comparação, vemos uma apologia à cultura erudita (como valor) que não encontramos no Punk e EBM. Como o punk, o gótico também confunde o sistema de caracteres sexuais estabelecidos, mas no sentido da feminilidade e não do neutro. O padrão de beleza tende a reforçar ainda mais elementos feminilidade nas mulheres, seja de forma tradicional ou alternativa, mas sem determinar um tipo físico padrão. Já no padrão de beleza masculino não há necessariamente uma valorização simbólica da força, músculos e outras características historicamente associadas ao masculino. Detalhamos essas características no volume 1 e em outros capítulos deste livro. -HEAVY-METAL: o estilo do METAL tradicional tem, historicamente, um discurso de resgate do masculino: o padrão de fotos geralmente traz homens em poses másculas (braços cruzados, maxilares projetados, pernas entreabertas, muitas vezes musculosos etc). Em muitos subestilos de heavy-metal é usada a simbologia de guerreiros de algum tipo, com os tradicionais cabelos longos. Uma estética de agressividade exteriorizada é comum e fica clara em alguns tipos de vocais e instrumentação. Mesmo em bandas com vocalistas mulheres a divisão de estética de masculino e feminino permanece a tradicional. Letras e músicas tendem a ser mais elaboradas, com uma valorização da técnica musical clássica, em oposição a valorização do minimalismo que encontramos no punk e EBM e, de forma menos generalizada, no Gótico e Darkwave. Estes são exemplos generalizantes e didáticos. É claro que existem subtipos e muitas variantes. Mas, de forma mais sutil, ou mais explícita como nestes exemplos, podemos verificar o funcionamento de relações homólogas entre os diferentes elementos estéticos de uma subcultura. O mesmo tipo de análise pode ser feito em outras subculturas de longa duração. 107

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“…podemos dizer que um estilo nos atrai, pois de alguma forma – provavelmente não consciente – reconhecemos afetivamente em seus símbolos algo que buscamos, talvez a simulação ou a realização de um dos artigos mais raros atualmente: o sentido. Quando nos sentimos atraídos por uma subcultura, muitas vezes intuitivamente ou apaixonadamente, somos envolvidos pelas representações da visão de mundo que ela engloba e combina parcialmente ou produz uma integração na nossa visão de mundo pessoal”. (Kipper, 2008)

4. O QUE É RESSIGNIFICAÇÃO E REAPROPRIAÇÃO Como o mesmo significa outra coisa? “É dando que se recebe”. Essa frase tem significados diferentes se for dita por um monge franciscano, por um político ou por uma meretriz. Ou seja, o mesmo elemento estético (no caso, texto ou fala) pode ter mais de um significado. Mas não qualquer um: esse significado depende do restante da frase e de quem a enuncia. De forma semelhante o símbolo suástica (ou swastika) é originalmente um símbolo religioso comum em várias culturas da ásia. Nos anos 1930, porém, ela foi reapropriada e ressignificada pelo regime nazifascista, tornando-se no ocidente símbolo deste regime, descolado do primeiro sentido. Posteriormente, nos anos 70 do século XX, neonazistas e punks se reapropriam e ressignificaram a suástica, mas com sentidos diferentes: os primeiros no mesmo sentido dos nazistas originais, enquanto alguns punks se apropriam do símbolo como elemento de choque, buscando explorar o fato de que apenas 30 anos depois do final da segunda guerra mundial a suástica provocava choque, repulsa e ódio à qualquer inglês. Acontece da mesma forma com a formação de culturas como a Brasileira (construída a partir de elementos de diversas outras) ou subculturas como a Gótica, a Hip-hop, a Punk, a Hippie etc. Esses elementos estéticos, sejam símbolos ou estilos musicais, sejam estilos de roupa ou comportamentos etc, podem ter seu sentido original reforçado ou alterado, dependendo por qual sistema cultural ou subcultural for reapropriado e ressignificado. 108

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RESIGNIFICAÇÃO X HOMOLOGIA: Homologia e resignificação são dois processos diferentes mas que convergem dinamicamente na bricolagem que constitui todas as culturas e subculturas vivas, assim como qualquer sistema estético vivo. É um processo sem começo e sem fim, podemos apenas escolher o momento histórico em começamos a observá-lo. Mas dentro de recortes históricos bem definidos os significados são bastante bem identificáveis dentro de seus contextos. • No processo de homologia elementos diferentes apontam para significados semelhantes em uma mesma subcultura, cultura ou outro contexto. • Já no processo de ressignificação/reapropriação, o mesmo elemento aponta para significados diversos em diferentes subculturas, culturas ou outro contexto. Por exemplo, na subcultura Gótica, o símbolo Ankh foi ressignificado e reapropriado a partir da religião Egípcia antiga. Além disso, a partir do significado que tudo que é egípcio ou oriental pode ser adotado como símbolo de fantástico e não-europeu desde o romantismo. No caso deste símbolo temos um deslocamento de sentido: o sentido original ligado à imortalidade é reforçado e enfatiza outros símbolos sobre a questão vida/morte na subcultura Gótica. O mesmo acontece com itens de vestuário e estilos musicais. Um estilo musical ou item de vestuário pode aparecer em mais de uma subcultura com significados diferentes. Por isso, não adianta analisar apenas o elemento isolado para tentar entender seu significado em uma cultura ou subcultura. O mesmo elemento pode aparecer ainda descolado de qualquer contexto como produto de alguma moda passageira. Por isso, o significado do discurso estético de uma cultura ou subcultura deve ser buscado na relação ativa entre seus vários elementos reapropriados e ressignificados, e não apenas nas “profundezas” de um desses elementos isolados. Como na frase do começo desse texto, não adianta apenas saber 109

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tudo sobre o verbo “dar”: sem análise dos outros elementos da frase e também da posição e interesse de quem fala a frase, não chegaremos jamais ao significado da frase. O enunciador é tão significante quanto o contexto e a frase. Seja qual for a “frase”.

5. A TRANSLOCALIDADE DA POPULAÇÃO GÓTICA Desde o final do século XX, as subculturas ou culturas alternativas são translocais ou glocais. O que significa translocal e glocal? Significa que você participa de uma comunidade que pode ser ao mesmo tempo local e global, ou espalhada geograficamente, ou em mais de um local:

“As subculturas hoje se estendem pelo mundo todo, sem que necessariamente um indivíduo dependa de uma ‘liderança’ ou ‘grupo’ local para mediar sua participação subcultural. Esse processo se torna mais notável nas subculturas substanciais e de longa duração, como a Gótica.” (Paul Hodkinson, 2002) Isso é diferente do que acontecia até os anos 1950 ou 1960. Por exemplo, os “Zoot-Suiters” tinham uma delimitação local nos EUA. Os “Teds”, igualmente, na Inglaterra. Com o advento da televisão, nos anos 1950, estilos começam a ser conhecidos globalmente, mas a comunicação entre os membros continua extremamente local, até com disputas, como vimos entre “Mods” e “Rockers”. “Beatnicks” e “Hippies” seguem na mesma estrutura. Nos anos 1970, 1980 e início dos 1990 do século passado subculturas como a Glam, Gótica e Punk também são divulgadas globalmente, mas a comunicação entre membros continua local e limitada pela presencialidade. No final dos anos 1990, a internet se populariza e fornece algo que as subculturas esperavam há muito tempo: micromídia a custo quase zero e pontos de troca de informação sem limites espaciais. Especialmente no caso da subcultura gótica, isso gera um boom global na virada do século. 110

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Hoje, no século XXI, vivemos a era das subculturas translocais. Você pode participar de uma subcultura sem representação local além de você e pode ser o único em sua cidade. E pode interagir com pessoas de uma cidade próxima ou da Europa da mesma forma. Sua interação poderá até ser mais rica afetiva e culturalmente do que se você tiver apenas presença física sem maiores identificações. Então, no século XXI a população gótica pode interagir virtualmente mesmo estando na mesma cidade ou estando a centenas ou milhares de quilômetros. Essa população gótica pode interagir presencialmente ou não. Essa população pode interagir com regularidade ou raramente ou mesmo nunca se encontrar. “SMALL TOWN GOTH”: GÓTICOS EM CIDADES PEQUENAS OU SEM CENAS Hoje, mesmo isolado em uma cidade distante, você pode ter acesso a toda música, literatura, visuais, vídeos e interação social virtual que desejar e sua identificação com a subcultura gótica (ou qualquer outra) dependerá apenas de você. Assim, a vivência presencial não é mais uma exigência para sua identificação subcultural. A vivência presencial é uma consequência opcional. Sem dúvida positiva e enriquecedora se você for do tipo de pessoa mais sociável, mas, de forma alguma, obrigatória. E entre as interações sociais há vários tipos, para todos os gostos: pic-nics, passeios, festas, baladas, festivais musicais, shows, saraus, compras em lojas especializadas em música ou visuais góticos, festivais de cinema etc. Também, a interação online permite uma especialização subcultural. Se você se interessa apenas por temas relacionados a subcultura gótica, pode se concentrar nisso. Assim, temos hoje uma população gótica espalhada, com alto nível de acesso a informação e interação social cotidiana virtual e afetiva. Parte dela tem interação presencial com periodicidade que varia de acordo com diversos fatores e outra parte não. 111

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Entre os que tem participação presencial, essa varia de acordo com vários fatores: idade, condição econômica, trabalho, formação de família etc. Contudo, ninguém jamais pensaria em avaliar a quantidade ou as características da população brasileira ou chinesa apenas por aqueles que “participam regularmente do carnaval ou vão a estádios” ou “aqueles que visitam shoppings regularmente”. Seria um grande erro de recorte estatístico. E nos daria informações parciais e erradas sobre a cultura brasileira ou chinesa. Da mesma forma seria equivocado calcular a quantidade ou características da população gótica apenas pelas interações presenciais em determinados pontos geográficos. Podemos, então, pensar em uma cena translocal, com polos de concentração periódica em locais específicos, em que parte da população gótica se encontra. Entretanto, muitos góticos não tem interação presencial e isso não muda seu nível de identificação. A diferença em relação ao século passado é que a quantidade da interação presencial não é a base de definição cultural. Aliás, como nunca foi: grande parte das pessoas interagindo presencialmente do passado não se identificavam com a subcultura gótica ou simplesmente não se identificaram a longo prazo. A participação diária virtual ou translocal tende a reforçar a participação no longo prazo. Outra boa notícia é que não há mais locais específicos para ser aceito ou não. Sua identidade depende de sua identificação afetiva e cultural. E isso depende só de você, não depende de local, tempo, idade, geografia ou de qualquer outra pessoa. Isso não significa que “qualquer coisa seja Gótico”, mas significa que qualquer um, em qualquer lugar, pode ser Gótico. TRASNLOCALIDADE X PROXEMIA NO SÉCULO XXI A ideia de proxemia ou relações proxêmicas (Edward T. Hall, 1977, 1966) concebia que a proximidade física entre as pessoas em zonas urbanas determinava o tipo de relação e de comunicação entre elas, 112

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tanto em termos de poder quanto relações afetivas e políticas. Esse conceito pode ainda se relacionar com a ideia de tribo urbana . Não é preciso dizer que o advento das relações virtuais e redes sociais no final do século passado faz com que esses conceitos precisem ser reavaliados e reaplicados para as novas realiadades de grupos sociais translocais. Mas se a geração pós internet não tem informação via mídia de massa como no passado, tem várias outras vantagens. Desde o final dos anos 1990, o acesso direto a informação permitiu o desenvolvimento de comunidades translocais ou glocais (aquilo que é global e local ao mesmo tempo) ou mesmo dispersas geograficamente. Simplesmente o local geográfico em que você está não importa mais. A Internet trouxe também a ética do compartilhamento. Se anteriormente havia a ética da competição e acúmulo por informação exclusiva ou rara, hoje temos a ética de quem compartilha mais. Paralelamente, as comunidades online permitiram a especialização: comunidades góticas acabam agregando cada vez mais góticos e, cada vez, mais se especializando em todos os seus aspectos. A ideia geográfica de “cena” perde o sentido a menos que nos refiramos a algum lugar específico. Mas faz sentido falar em “góticos de São Paulo” ou “góticos de Belo Horizonte” se todos estão em contato diariamente? Hoje você pode ser um gótico isolado em uma cidade sem outros góticos e talvez tenha mais identificação e conhecimento sobre a subcultura gótica do que alguém que frequente uma festa em uma grande cidade e não tenha outro interesse além de sair com os amigos (o que também é muito bom e saudável, mas existe desde que o mundo é mundo e não é um comportamento alternativo ou subcultural em si). O interesse e identificação subcultural inclui esses comportamentos, mas vai além.

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6. MICROMÍDIA E MICROCOMÉRCIO NAS SUBCULTURAS TRANSLOCAIS Nas últimas duas décadas, a existência de redes de micromídia e microcomércio mostrou ser um dos elementos essenciais para a existência (1) de subculturas alternativas com as características de: diferenciação, translocalidade, identidade, comprometimento e autonomia (ver Happy House 1, capítulo 6.1) . Aqui falamos especialmente da subcultura Gótica, mas estes conceitos podem ser aplicados a outras subculturas. No aspecto específico das mídias e comércio, foi exatamente a constituição de redes de micromídia e microcomércio que permitem a existência de grupos subculturais independentes e alternativos consistentes e mais duradouros. Isso acontece simplesmente, pois estas redes são colocadas a serviço dos valores subculturais destes grupos sociais, e não apenas a serviço das redes do mercado de massa e mídia de massa. As redes de comércio e mídia subculturais permitem que as subculturas resistam ao processo de acelerado obsolescência planejada (e descartabilidade) que caracteriza o capitalismo e a propaganda (e modas) dos últimos 30 anos. Não por coincidência, a principal crítica da mídia de massa em relação as subculturas é que estas são “ultrapassadas” ou “fechadas e bitolantes”. Em geral, a mídia de massa só acredita nas verdades e preconceitos que cria, e o que ela não mostra, crê que não deveria existir. Assim, não consegue conceber o fato de subculturas consistentes e substanciais terem continuado não só a existir mas também a evoluir e se desenvolver sem aparecerem na grande mídia ou grande comércio. Também uma outra previsão do início dos anos 1990 de que as pessoas usariam a internet para pulverizar seus interesses, inviabilizando grupos sociais consistentes, mostrou-se insustentável. Essa previsão fazia parte da propaganda ideológica para que as pessoas descartassem suas identidades de grupo, algo que interessa ao consumismo de descarte e outras formulações políticas. Se algumas pessoas pulverizaram seus interesses, ao mesmo tempo a internet serviu de instrumento para que pessoas ligadas a grupos sociais alternativos conseguissem viabilizar interesses pessoais centrais e especializados que eram antes inviabilizados, pois não 114

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podiam contatar de forma barata e rápida outras pessoas que tinham esses mesmos interesses alternativos. Esta rede de micromídia especializada também ajudou o fortalecimento de uma rede de microcomércio subcultural que permitiu um nível de diversificação e aprofundamento cultural sem precedentes, tanto na música (CDs, DVDs, shows, festivais, festas) quanto em revistas, roupas, livros, visuais etc. Revistas de baixa tiragem, sites especializados, blogs e redes de relacionamento online. Estes são alguns elementos de micromídia que complementam o microcomércio dos pequenos selos musicais, artesãos especialistas, eventos segmentados, bandas diversificadas e lojas especializadas dos mais variados itens subculturais. Podemos notar que este comércio e esta mídia seguem estruturas e padrões diferentes da grande mídia e comércio de massa, apesar dos pontos e áreas de contato entre os dois sistemas. De forma diferente, a mídia e comércio de massa tendem a programar sua obsolescência (troca de modas e descartabilidade) em um ritmo cada vez mais acelerado, sendo que nestas trocas a sequência dos estilos trocados não guarda uma ligação de coerência entre si. Pelo contrário, é importante que a troca seja feita por uma “novidade totalmente nova”. Também, por isso, é importante que cada item de consumo não tenha ligação de significado com outras coisas, pessoas ou produtos. A aceleração da troca de modas e sua diversificação serve única e exclusivamente ao aumento da rentabilidade econômica e a novas formas de controle social. De formas diferentes, se nos grupos subculturais também vemos ciclos de moda, estes são muito mais lentos e regidos em grande parte por pressões internas. E, principalmente, seguem uma linha evolutiva que tira seu valor exatamente do fato de manter uma ligação com o passado subcultural e de manter ligação de significado com outros elementos estéticos daquela subcultura. Não ignoramos que as relações de custo/lucro funcionam da mesma forma que na mídia e mercado de massa, a diferença é que aqui estes são colocados em uma posição semelhante aquela que a economia tinha em culturas antigas: como um elo da cadeia social que servia aquela cultura, e não como um fim em si. Vemos, assim, que é exatamente a existência de um microcomércio e uma micromídia especializada e subcultural que permite e 115

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permitiu, especialmente nos últimos 20 anos, que subculturas diferenciadas se viabilizassem com autonomia e autossuficiência. É exatamente esta autossuficiência econômica e midiática que permite que estas subculturas se aprofundem nas suas características diferenciais e durem, resistindo à diluição no sistema dominante de consumo e descarte (baseado na ausência de identidades significativas de grupo). E, também, permite que subculturas se mantenham independentes dos rótulos fragmentadores da mídia e mercado de massa, que buscam sistematicamente dessubstancializar qualquer fenômeno cultural e social como forma de inseri-lo em seu sistema de mídia e comércio que – devido à velocidade e foco apenas lucrativo - só funciona com elementos desconectados. (Os elementos não são descartáveis em si: são descartáveis, porque são desconectados de nossa história pessoal e social. Assim, deixam de significar. Tudo que não significa é descartável, sejam pessoas, carros, relacionamentos, música, prazer, livros etc.) Com esta nova estrutura, é muito provável que as subculturas significativas que existem hoje não venham a acabar em um futuro previsível. Simplesmente porque, cada vez mais, estão independentes da mídia e mercado de massa. O segundo motivo pelo qual estas subculturas permanecerão é o fato de serem, de fato, alternativas no sentido de elaborarem conteúdos culturais que não são tão valorizados nas culturas mundiais majoritárias. Sobre essa segunda questão comentamos na parte 2, sobre história e literatura.

(1) Esse fato ficou mais claro nos últimos 25 anos, contradizendo a teorização e previsões de duas das principais e antagônicas correntes de pensamento dos últimos 50 anos. Tanto os descendentes da teoria crítica da cultura de massa quanto os apologistas da pós-modernidade (e também os pós-subculturalistas ou antisubculturalistas, deles derivados). Os primeiros acreditavam que a existência circuitos de mídia e comércio condenavam a cultura a degeneração e os segundos celebravam estes circuitos, mas acreditavam que não existiria mais culturas substanciais neste contexto. No ponto específico das subculturas alternativas, ambos falharam pelo extremismo de suas previsões e podemos dizer que outro caminho tem sido buscado por uma nova teoria subculturalista desde o final dos anos 1990.

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7. O TEMPO & O RITMO NA ECONOMIA SUBCULTURAL “A velocidade é a velhice do mundo... carregados por sua violência, nós não vamos a lugar algum, nós nos contentamos de partir e nos separar do vivo em proveito do vazio da rapidez” (Paulo Virilo, 1977, Vitesse et Politique) A ideia de underground foi desenvolvida no século passado como resistência ou alternativa a outro modelo de sociedade. Sua transposição para nosso século traz inúmeras inadequações, pois as relações sociais são diferentes hoje. Mas outro nó dessa questão é a relação entre arte e economia. A forma de mercado dominante do mundo hoje é o consumismo de massa e descarte, em que as pessoas consomem as atualizações, não mais produtos. Isso exige uma aceleração da realidade. O mercado atual incorporou a ideia de mudança dentro de seu modelo conservador e, pela primeira vez na história, a ideia de mudança constante serve ao status quo. O florescimento de subculturas desde a popularização da internet se deve ao fato desta ter permitido uma mídia quase gratuita e uma forma de pessoas com interesses culturais semelhantes se encontrarem e se reforçarem mutuamente contra a pressão da cultura hegemônica global por homogeneização, que busca nos convencer que não devemos nos rotular e não ter identidades para sermos um consumidor adequado ao modelo acelerante de consumismo e descarte. Assim, a velocidade e a mudança compulsória são hoje a essência da homogenização cultural global: ela só pode existir em uma sociedade individualista, mas sem individuação, ou seja, de egoísmo sem identidade. Nessa realidade o indivíduo é obrigado a aceitar se tornar qualquer coisa para ser aceito em um mercado de trabalho e social muito mais violento do que na segunda metade do século XX. Esse é um modelo socioeconômico muito diferentes daquele que as primeiras subculturas encontraram: no passado, o modelo econômico era baseado em identidades fixas e imutáveis (tanto que mudança, no passado, era sinal de rebeldia, hoje é algo exigido nos currículos pessoais pelas empresas). 117

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MICRO MÍDIA E MICRO COMÉRCIO A SERVIÇO DAS SUBCULTURAS A internet também permitiu um desenvolvimento de um microcomércio subcultural, com padrões e ritmo diferentes das empresas reguladas pelo modelo de consumo/descarte. Essa microeconomia subcultural se parece mais com a economia das antigas culturas integradas, em que as trocas econômicas eram apenas uma esfera que servia, como as outras esferas de conhecimento (artes, mitologia, educação, trabalho, esporte, ciências etc), aos valores e conceitos daqueles grupos sociais. Ao contrário do que acontece hoje na cultura global hegemônica, em que o mercado é a esfera central de valor, que esvaziou e transformou todas as demais de sentido/valor, reduzindo-as a produtos sem sentido e descartáveis. Assim, a resistência das economias subculturais está exatamente em: A) Ter um ritmo de atualização orgânico dos produtos, ou seja, suas mudanças são evoluções naturais dos estilos e conceitos, sem pressão por trocas periódicas por algo “totalmente novo” como acontece no mercado de consumo/descarte; B) Ter coerência interna com valores e visões de mundo (homologia) da subcultura em questão, diferente da “cultura” global dominante, em que o valor central é um valor abstrato, o valor econômico, logo permite qualquer incoerência. No modelo hegemônico de cultura de consumo/descarte, um produto é um item isolado de quaisquer relações de significação com outras esferas de conhecimento ou identidade pessoal mais permanente, tornando-se um avatar vazio de um conceito, logo facilmente descartável, pois insatisfatório. Permite que nova moda seja inciada a cada seis meses ou periodicamente. Já nas subculturas modernas, o desenvolvimento de micromídias e microcomércio subculturais permitem exatamente que subculturas alternativas floresçam como espaços culturais independentes (Hodkinson, 2002) e não sejam dissolvidas no modelo fluido da economia hegemônica atual, de consumo e descarte acelerado. A manutenção de espaços de diversidade cultural coerentes e estáveis depende disso. 118

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O consumo subcultural tende a ser mais lento na atualização e homológico. Não há mudança de estilo a cada estação. Não é a cultura servindo a produção de valor econômico abstrato, mas um sistema microeconômico servindo a sobrevivência de uma subcultura. Isso entra em certo conflito não só com o modelo de economia de consumo/descarte atual, mas também com o conceito de underground do século passado. No século passado, a ideia de underground era geograficamente localizada, anticomercial e antimídia, focada em grupos locais e pequenos de pessoas, com acesso e troca de informações locais e personalizadas. Era um modelo romântico, adequado a resistência a um modelo de capitalismo global mais lento e, por vezes, mais localizado e com alguns valores morais. Esse modelo de underground sobrevive apenas como relíquia ou revival, porém seu conceito, aplicado ao século XXI, pode prejudicar seriamente a necessidade de resistência subcultural a formas de relações sociais e culturais muito mais aceleradas e despersonalizantes do que a cultura dominante do século passado. CONSUMO SUBCULTURAL INTEGRADO X CONSUMO FRAGMENTADO E DESCARTÁVEL Já uma multiplicidade de redes subculturais translocais (global) pode incluir uma parcela significativa de população. Não há mais a necessidade de subculturas serem grupos com pequena população em um local determinado, pois hoje podem estar conectadas por redes de comunicação e mídia (via internet) que não impõe seus padrões de gosto e custo econômico. A internet não é neutra, mas pode ser usada de forma muito mais independente do que as mídias do século passado. Contudo, isso não é apenas diversificação de consumo? A questão é importante: o que diferencia uma vivência subcultural não é apenas “o quê” você está consumindo, mas sua relação de integração homológica e a significação dos objetos. Uma pessoa pode consumir um CD e isto não significar nada para ela além de “mais um produto música” dentro de “seu gosto musical fluido”, provavelmente descartável. Por outro lado, outra pessoa pode consumir aquele CD como parte de seu sistema de visão de mundo da subcultura X ou Y. Provavelmente neste segundo caso o produto não vai ser tão facilmente 119

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descartado, porque significa algo mais para o indivíduo. Uma diferenciação do consumo subcultural está exatamente nesta lentidão e significação do padrão de consumo, paralela e complementar aos sistemas de micromídia e microcomércio subculturais que permitem que as subculturas permaneçam coerentes conceitualmente ao mesmo tempo em que integram uma população maior que não é limitada nem geograficamente nem em quantidade. Assim, na realidade do século XXI, o modelo de underground popularizado pelas subculturas do século passado vai parecer naturalmente elitista se comparado ao modelo subcultural translocal e inclusivo do século XXI. Mas apesar do romantismo envolvido no saudosismo de um modelo do passado, é preciso entender como o modelo de underground do século passado prejudica a capacidade de resistência das subculturas contra um capitalismo global que hoje é muito mais veloz, violento e brutal. Assim, a questão não é demonizar o consumo, mas identificar que tipo de relação de consumo estamos estabelecendo. As empresas que estamos apoiando tem um compromisso com coerência subcultural? Respeitam o público específico, artesãos e apoiam outras esferas subculturais? CUSTOMIZAÇÃO E ANTROPOFAGIA CULTURAL Por outro lado, temos uma tradição na cena gótica de incorporar e customizar produtos não específicos. Então, em última análise, cabe ao indivíduo fazer sua seleção, lembrando que ao apoiar redes comerciais subculturais (artesãos, artistas, lojas, selos musicais, editoras, eventos, shows etc) está fomentando e ajudando a subcultura X ou Y a sobreviver, a resistir a absorção, assimilação e desaparecimento em uma cultura hegemônica global baseada na fragmentação, fluidez e descartabilidade (de produtos e pessoas). A cultura hegemônica periodicamente oferecerá produtos fragmentados inspirados em uma ou outra subcultura, para logo substituir por qualquer outra coisa. Isso não nos ameaça nem ajuda, pois não significa que a cultura global está mais tolerante a diversidade, apenas que precisa simular e apresentar “novas novidades” a um ritmo cada vez mais acelerado de troca e descarte. Porém, indivíduos que se interessam por estética gótica ou alterna120

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tiva fragmentada em alguma moda mainstream passageira podem vir a se interessar realmente por outros aspectos e se identificar com alguma subcultura de forma mais consistente, saindo assim do modelo de modas indefinidas e substituíveis da cultura dominante. Provavelmente, a maioria dos góticos atuais deve ter começado a se interessar por algum elemento solto e fragmentário que identificou em alguma mídia mais massificada, buscando depois a rede de mídia subcultural onde encontrou informações coerentes e duradouras. Precisamos entender que esse é um processo normal de entrada em subculturas hoje, pois a música e estética gótica não são mais moda mainstream nem estão na mídia de massa como nos anos 1980. Ao mesmo tempo, o acesso não é mais regulado presencialmente, sendo que temos boa parte de nossa experiência subcultural online e no mais das vezes, individual e isoladamente. Hoje, quando partimos para vivências presenciais e locais, geralmente já trazemos uma grande bagagem. Como comentamos no texto sobre formas de acesso no underground, hoje fazemos a seleção e coisas novas online, e partimos para experiências presenciais somente daquilo que já sabemos que gostamos. É utópico e deletério esperar que alguém atualmente tenha uma experiência de acesso de informação como nos anos 1980, pois as realidades sociais e de acesso a informação são muito diferentes. ASSEMBLAGE, BRICOLAGE, DIY e DIT Após a segunda guerra, no final dos anos 50 e começo dos 60 o termo “faça-você-mesmo” (Do it Yourself) entra na linguagem popular. Os Beatnicks e depois Hippies popularizaram a poesia espontânea, ready-mades e música improvisada. Na música, performances e outras artes, o movimento Fluxus definiu uma nova forma de fazer arte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3652/fluxus Mais tarde, nos anos 1970 e 80 o Punk e outras subculturas também resignificam o DIY, cada uma no seu contexto, desenvolvendo-o msmo até uma forma de empreendimento cultural focado na independência artística. Mais recentemente surgiu o conceito de DIT (Do It Together, ou “faça junto”). Nos últimos 20 anos, após o surgimento da internet e de diversas formas de crowdfunding e finan121

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ciamento coletivo, vimos artistas e criadores dos segmentos mais pulverizados e alternativos conseguirem viabilizar suas produções e levar seus conteúdos até as pessoas em escalas e quantidades que seriam inviáveis até o final do século XX. Hoje a resistência não se dá mais apenas no modo de produção, mas na velocidade, integração e seleção pessoal e no próprio uso de tecnologia, redes de comunicação e mercado para uma finalidade que é culturalmente motivada. A questão é: você usará todos os recursos sociais tecnológicos atuais para viabilizar uma produção cultural que faz sentido para você e seu grupo social, no seu ritmo pessoal e interno, ou usará tudo isso para se integrar de forma submissa em uma cultura global de velocidade, consumo e descarte (tanto de produtos, pessoas quanto de profissionais)? A quantidade e forma técnica da reprodução não é determinate neste novo contexto histórico, importando muito mais os conteúdos e formas de troca. Os meios ainda são parte da mensagem, mas novos meios mais livres de pressão e custo não determinam relações de poder econômico específicas. SUBCULTURAS: RESISTÊNCIA CONTRA A “CULTURA” DA “NÃO-CULTURA” Dessa forma, as subculturas translocais globais são uma resposta e resistência a uma cultura hegemônica igualmente global, mas com características opostas: fragmentariedade, velocidade, consumo e descarte, repúdio a identidades e a sistemas culturais significativos. Subculturas, por sua vez, tendem a construir sistemas de integração parciais ou totais entre as esferas de conhecimento (homologia simbólica), seu ritmo de atualização é orgânico, mais lento e internamente motivado, e suas redes de micromídia e microcomércio servem aos valores e conceitos da subcultura em questão. CONCLUSÃO SOBRE MÍDIA, ECONOMIA E RITMO SUBCULTURAL Os espaços de identidade subcultural são uma forma positiva de manutenção da diversidade e liberdade individual. A manutenção 122

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social de identidades públicas e classificação pessoal é uma necessidade social (pública) de resistência para garantir nossa liberdade ontológica (essa sim, sempre autoquestionante) contra uma homogenização identitária global realizada pela aceleração da mudança, consumo e descarte. As subculturas têm uma economia integrada e um mercado a serviço dos valores de sua subcultura, como nas sociedades integradas do passado. Nas subculturas o processo de evolução e mudança é internamente motivado, tendo um ritmo não previsível, diferente da mudança externa e artificialmente motivada do mercado de consumo e descarte globalmente dominante hoje, que precisa forçar mudanças ou atualizações a cada seis ou 12 meses para forçar o descarte. Além disso, as mudanças no mercado de descarte podem não seguir lógica alguma, especialmente na moda e na música, mudando de um conceito para outro sem nenhuma ligação. Isso só é possível, pois no mercado de consumo e descarte as esferas de conhecimento são fragmentadas, um CD, roupa ou sapato não tem nada a ver com qualquer outra coisa ou significado, podendo ser tomado ou descartado isoladamente, sem comprometimento ou identificação significativa. Assim, diferenças estruturais da economia subcultural: • O mercado subcultural é motivado interna e organicamente, é mais lento na sua evolução e mudança; • Os objetos de consumo (roupas, CDs, calçados, livros, shows, maquiagens etc) formam um sistema e se referem homologicamente aos mesmos conceitos, como nas culturas integradas; • Não há “estações” periódicas em que novos produtos são lançados, ou atualizações necessárias têm que ser adquiridas; • Artistas, artesãos e empresas tem maior identificação e um compromisso de longo prazo com o estilo e a subcultura em questão. “Temos nosso próprio tempo”, como diz a canção do Legião Urbana, e esse tempo é motivado internamente, tem duração de vida (Bergson) e é geralmente mais lento.

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8. O CONHECIMENTO “DESLOCALIZADO” Qual a semelhança entre bibliotecas, shows de bandas autorais e baladas alternativas? No século passado, eram o único caminho para conhecer algo novo. Porém, hoje conhecemos coisas novas via internet e em um universo de informações muito maior e diversificado do que no século XX. Não estamos mais presos ao nosso universo local de conhecimento. Acessamos o local e o global “aqui” e “agora”. Ainda existem bibliotecas, shows locais e eventos alternativos, mas só vamos a eles depois que já conhecemos muita coisa e depois que selecionamos o que nos interessa desse oceano de informações. Hoje posso ouvir ou baixar a maioria dos livros e músicas online, em meu computador ou smartphone, sem depender de ninguém. O mesmo que acontece com filmes e séries. Fico conhecendo pessoas, estilos e sua história acessando redes sociais alternativas. E posso fazer isso através do conceito ou palavra, não através de pessoas e locais físicos. Por isso, ficamos cada dia mais exigentes com o acesso as novidades do mundo inteiro como se estivéssemos lá. Aliás “lá” e “aqui” deixam de fazer sentido. A atividade presencial ficou hoje mais destinada a diversão e celebração pura daquilo que já se conhece virtualmente. Incluindo, aliás, os amigos virtuais. A interação social subcultural também não depende apenas de festas ou “rolês” para seu início, como acontecia no passado. Hoje se inicia em redes sociais, com uma quantidade de informação muitas vezes superior ao que acontecia no passado. Isso permite que pessoas em cidades sem cenas alternativas ou isoladas de suas cenas locais desenvolvam vinculação subcultural de forma consistente e duradoura. Depois, se e quando vão desfrutar de ambientes subculturais físicos e presenciais, já têm um nível alto de identificação pessoal com os repertórios e códigos culturais. 124

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Assim, da mesma forma que as bibliotecas, shows e baladas deixaram de ser o local inicial único de acesso a informação e de interação social. Hoje procuramos e selecionamos o novo individualmente antes e depois buscamos os lugares físicos para desfrutar esse novo. No futuro continuaremos a frequentar bibliotecas, shows e baladas, comprar livros e CDs ou ir ao cinema, mas pelos principais motivos pelos quais continuamos em contato com algo sem nenhuma obrigação: porque nos dá prazer e faz sentido para nós. Mas não vamos mais a esses lugares para conhecer o novo. O novo já conhecemos e selecionamos antes, online.

9. COLAPSO DO CAPITAL SUBCULTURAL COMO INSTRUMENTO DE PODER Em 1997, Sara Thornton popularizou o termo “capital subcultural” ,inspirando-se no conceito de “Capital Cultural” como usado por Pierre Bordieu. O capital cultural seria o status que individuo adquire em seu grupo social e cultura por possuir ou consumir certos discursos, gostos, conhecimentos e produtos culturais. O capital cultural não é necessariamente ligado ao capital econômico, podendo aparecer tanto em conjunto quanto em separado deste. O conceito de capital cultural como desligado do capital econômico fica claro no exemplo de “potlatch” citado por Levi Strauss, em que dois grupos autóctones competem por quem destrói mais recursos em uma celebração, sendo o vencedor aquele que mostra poder de destruir mais recursos. Vemos um reflexo disso no costume ocidental urbano de esbanjar e ostentar. Porém o objeto de ostentação pode não ser caro, mas apenas raro ou secreto, igualmente para poucos. Assim elites underground, subculturas alternativas e grupos culturais excluídos podem estabelecer dinâmicas de poder internas e elitismos mesmo no limite da pobreza e são dinâmicas estruturalmente semelhantes a quem usa recursos econômicos para isso. Assim, a raridade de um conhecimento, a edição limitada de um vinil ou de um fanzine podiam funcionar como elemento de formação de capital cultural ou subcultural excludente. Não só os objetos em si, mas a forma e circulação dos objetos entre as pessoas importava, 125

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devido a sua escala limitada. Assim, algo caro como um exemplar uma tiragem limitada de um vinil podia ter o mesmo poder de conferir status que algo grátis ou quase como um zine xerocado. A função é a mesma, não importa o preço do objeto, mas sua raridade e forma de circulação e troca. O objetivo do capital cultural é sempre gerar distinção dentro de um grupo social ou estabelecer um círculo de elite cultural em que só quem tem o capital correto é valorizado. Um item de capital cultural pode perder valor se grande quantidade de pessoas tem acesso a ele. Nesse caso, o grupo de distinção ou elite, automaticamente, estabelecerá um novo item de valor cultural que seja mais inacessível. Ou nova rede social que deve ser usada, ou nova marca ou banda que se tornou “in” ou “diferencial” naquele momento e círculo. Nesse sentido, não importam as características do item cultural e sim as características e quantidades de quem os consome. Tanto samba, rock quanto hip hop foram considerados como música de gueto um dia e nessa época socialmente criminalizados. Com o tempo, como classes sociais mais ricas passaram a consumir estes estilos musicais, eles foram validados socialmente como formas artísticas aceitáveis. O mesmo aconteceu com a Literatura Gótica no final do século XVIII, que passou posteriormente a ser considerada mais aceitável. Essa dinâmica nunca termina. Os métodos e meios de valoração cultural podem ser os mais diversos. Eugênio Trivinho apontou recentemente como a aceleração da atualização tecnológica serve como novo vetor de exclusão. Podemos aplicar esse conceito ao princípio de capital subcultural. Sempre que uma rede social ou mídia se torna acessível de muitos, ela passa a ser desvalorizada. E um novo reduto produtor de capital cultural é buscado. Assim, a própria escolha de plataformas, mídias ou certos equipamentos pode servir de meio para o elitismo, e este pode ser tanto baseado em valor econômico quanto em um conhecimento especial. Acesso geográfico também é um meio tradicional de seleção social. Baladas de elite econômica historicamente evitam áreas em que o transporte público é fácil. Assim vemos a localização de baladas de elite sempre “fugindo” da expansão dos transportes públicos. O acesso ser possível só de carro já determina uma seleção social. Recentemente em São Paulo se popularizaram festas em condomínios fechados. 126

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Entretanto, a seleção pode depender de outros fatores. Lembremos que Sarah Thornton escreveu inicialmente sobre capital subcultural em meados dos anos 1990, ou seja, refere-se a uma realidade subcultural ainda não alterada radicalmente pela internet. Veremos que nos últimos 20 anos esse capital sofreu um grande abalo na sua capacidade de exercer poder e criar distinção, devido ao surgimento de várias gerações que têm uma mentalidade de compartilhamento e não de seleção, acúmulo e exclusão. O capital subcultural ainda age, mas suas dinâmicas mudaram. A internet implodiu todas as dinâmicas sociais. Primeiro, as subculturas deixam de ser fenômenos locais e o conhecimento passa a ser acessível a muita gente sem necessidade de mediação pessoal. Assim, grandes quantidades de pessoas podem compartilhar grande quantidade de informação, culturalmente coerentes, sem estabelecer relações de seleção ou exclusão. A exclusão por geografia ou contato pessoal era a natureza da realidade social do século XX (como comentamos no texto sobre as formas de acesso a conhecimento no século passado). Porém, se esse modelo subcultural da era pré internet que servia como proteção e resistência a um tipo de mídia e capitalismo que não existem mais for aplicado a realidade atual, gera automaticamente um choque que será percebido como elitismo e exclusão, devido aos valores e dinâmicas do passado serem representações daquela realidade do passado. A informação, atualmente, é acessada de outras formas e a apologia da presencialidade e conceitos de underground seletivo automaticamente são considerados como absurdos excludentes para quem nasceu a partir de 1990. Hoje o repertório cultural valorizado em uma subcultura não tem mais o poder de capital de exclusão e poder dentro de uma subcultura, mas serve para diferenciar as subculturas da cultura hegemônica. DEMOCRATIZAÇÃO DO CAPITAL CULTURAL As subculturas alternativas podem ser divididas em AI (Antes da Internet) e DI (Depois da Internet). Não nos referimos apenas as subculturas surgidas na internet, mas as que já existiam antes e perduraram em novas formas. A internet não criou apenas um mundo paralelo separado do mundo 127

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“real”. Não se trata de uma oposição real x virtual. A internet mudou os valores, contextos sociais e relações de poder culturais no mundo “real”. As mesmas funções são realizadas de outras formas. O capital subcultural continua a existir, mas na era pós internet ele perdeu seu poder de exclusão e controle subculturais. A dinâmica de poder e relações nas subculturas atuais mudou radicalmente em relação ao modelo do século passado. Boa parte das tensões atuais no interior das subculturas se deve ao conflito entre a tentativa de manter ideias e comportamentos do modelo antigo em uma realidade de dinâmicas sociais totalmente diversas. Ou entre tentativas de manter o um modelo de subcultura apenas presencial em oposição a uma realidade glocal (ao mesmo tempo local e translocal). Mas antes de observar as novas dinâmicas da subculturas translocais na era pós-internet, vamos relembrar as dinâmicas das subculturas e do capital subcultural na era local e pré internet. Como já comentamos, as relações de poder e informação se davam na era pré internet apenas localmente e eram mediadas por indivíduos que possuíam a informação. As mídias existentes eram vistas como inimigo, pois as mídias de massa (TV, jornais, revistas de grande circulação e álbuns musicais populares) eram todas de alto custo e voltadas para informações não alternativas. Assim, havia um conceito, na época parcialmente correto, de que algo alternativo não poderia usar de mídias, sendo a mídia alternativa uma mídia presencial, pela fala ou produções de baixa tiragem, inicialmente mimeografadas e depois xerocadas, fitas K7 etc. Estas mídias tinham a função de estreitar as relações entre um círculo de pessoas que já tinha contato e, pela própria dinâmica, não poderia ser muito grande. Apesar disso, paradoxalmente, alguns artistas alternativos cultuados foram lançados em grandes tiragens por grandes gravadoras, fenômeno que só se alterou posteriormente. Assim, os poucos lançamentos musicais alternativos em vinis eram extremamente difíceis e caros de conseguir, daí o grande status atribuído a seus possuidores e aos DJs naquela época. 128

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Também a informação dos grupos subculturais só podia ser transmitida presencialmente, o que no final gerava um sistema de copiar para ser aceito. Só com muito tempo e conversas se conseguia organizar mais informações de conjunto. Essas relações de acesso a informação só aconteciam em locais específicos, geralmente subculturas tinham seus territórios ou clubes específicos em cidades ou regiões específicas. Inicialmente não havia como saber o que acontecia em outras cidades. Por isso o território e o presencial era tão importante no século passado, e mídia e comércio eram vistos como inimigos dentro de uma perspectiva romântica. Porém com o advento da internet as coisas começaram a mudar. Ela se popularizou tarde no Brasil, mas em outros países já na segunda metade dos anos 1990 a internet ajudou a subcultura gótica e outras a terem um renascimento que mostrou toda sua força no começo do novo século. As pessoas descobriram que essa era uma mídia de custo quase zero que podia ser usada a favor da coesão e consistência cultural, promovendo informações alternativas sem pressões econômicas e, principalmente, ajudando-nos a encontrar outros que tinham os mesmos interesses alternativos que nós, pessoas que as vezes estavam em nossa própria cidade, as vezes em outro país. O nexo mudou da proximidade física e geográfica para a proximidade e coerência cultural. Também, subitamente, a informação ou produtos exclusivos que geravam capital cultural e status no século passado passaram a ser acessíveis a uma grande massa por custo baixo ou nulo. Isso gerou não só uma democratização da informação, mas também uma “ascensão subcultural” em termos de capital subcultural de grande quantidade de indivíduos de classe econômica mais baixa (especialmente no Brasil, onde mesmo um CD importado tinha preços inacessíveis para a maioria, especialmente até o final dos anos 1990). O nível básico médio de informação musical subiu absurdamente na comparação entre 1993 x 2003 e mais ainda posteriormente. Se vinte e poucos anos atrás só poucos DJs tinham acesso (e capacidade econômica) de ter uma discografia completa, hoje qualquer iniciante ouve essa mesma discografia quase de graça no Spotify, Bandcamp ou por outros meios. 129

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Isso gerou uma série de respostas incoerentes e irracionais em segmentos subculturais que buscavam manter o antigo modelo de controle e status. Por exemplo, sempre que um item raro de alto valor subcultural se tornava público e compartilhado, grupos que buscavam manter o modelo de status e poder da era pré internet passavam a cultuar algum novo item mais raro ou ainda pouco conhecido pela novidade. Porém, como esses novos itens passaram a ser cada vez mais rapidamente compartilhados em massa, o valor de capital cultural desses itens para exercício de distinção, status e poder de exclusão se perdia quase que instantaneamente. Isso gerou uma corrida irracional pela busca de estilos cada vez mais obscuros ou raros, a ponto de se chegar a escolha de itens claramente “ruins” que seriam rejeitados mesmo que acessados. De qualquer forma, ficou claro até para os mais conservadores que era impossível defender qualquer tipo de “cidadela de status”, pois uma vez estabelecida, ela seria imediatamente varrida como um castelo de areia construído na orla marítima. Se CD, vinis e outros itens materiais continuaram a existir hoje como importantes itens de colecionador, perderam há muito tempo o poder que tiveram no século passado de meios únicos de acesso à informação. O mesmo vale para os shows e festas. De qualquer forma, o discurso de posse e a posse de itens materiais ou presenciais não são mais um meio de informação, mas sim o final de um amplo processo seletivo de informação que começa online.

10. SOBRE AZEITONAS, RÓTULOS E HAMLET Qual a diferença entre um rótulo e uma classificação social? Uma azeitona verde não tem a escolha de ser ou não ser azeitona… nem de ser uma azeitona preta. Por isso, colocamos rótulos nos grupos de azeitonas em potes, mas aos grupos de seres humanos aplicamos classificações. 130

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Além disso, você já ouviu alguém reclamando “não me rotule de inteligente!!” ou “não me rotule de especial!” ou “não me rotule de linda!”? Pois é… É importante não confundir “TAXONOMIA” (classificação) com o sentido pejorativo da palavra “RÓTULO”. Todos sabemos que as taxonomias são relativas a determinada cultura, mas, nem por isso, deixam de ser válidas e corresponderem a um tipo de “verdade” social dentro daquela cultura, que no caso da civilização ocidental, convenhamos, é um contexto bastante abrangente. Assim, por exemplo, a classificação entre vertebrados e invertebrados na biologia é um exemplo de classificação taxonômica de nossa cultura. Claro que nas ciências sociais e humanas as classificações são mais complexas (e polêmicas) que nas ciências exatas, mas nem por isso deixam de ser válidas no devido contexto. Essa classificação é uma representação da realidade, como tudo que o ser humano cria ou criou. Estamos falando de cultura e representações sociais. Já rótulo é “aquilo que se coloca por fora para identificar o conteúdo”. Quando estamos falando de leite condensado ou azeitonas a questão é simples. Quando falamos de grupos sociais e seres humanos entramos em uma confusão comum: confundir a questão ontológica e a questão social (ver a seguir). Semanticamente, portanto, rótulo e classificação são coisas diferentes. Geralmente a palavra rótulo é usado com carga semântica negativa. Por outro lado, as definições ou classificações positivas raramente são consideradas rótulos. SER: QUESTÃO ONTOLÓGICA X QUESTÃO SOCIAL Ontologia é o estudo do ser. Ontologicamente, o ser humano é um eterno autoquestionamento e um processo infinito de construção, de um “vir-a-ser”. Portanto, sua identidade é sempre uma questão que não pode ser “fechada”. Mas mesmo ontologicamente você tem uma historicidade: sua identidade é sua trajetória passada e sua escolha presente. É aquela questão do Hamlet: “ser ou não ser…”. Socialmente, porém, a identidade é uma questão de grupo e de rela131

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ções sociais e não apenas ontológica. Mas é exatamente a liberdade social que permite a realização da liberdade pessoal e individual (ontológica). Por exemplo, uma pessoa pode escolher ser X, mas em determinadas sociedades ela pode ser presa ou sofrer discriminação por aquela escolha X. Ou simplesmente não ter aquela escolha aberta naquela sociedade. Nesse caso, você precisa defender uma classificação social para si mesmo, exatamente como forma, e defender sua liberdade (ontológica também) pessoal. Sua e de outros! Assim, mesmo sendo questões diferentes, uma influencia na outra. É importante notar que a eliminação de grupos sociais e culturas se dá exatamente pela eliminação de sua classificação (e nome) e definição por um grupo social dominante. Se observarmos a história do século XX, veremos que os grupos sociais anteriormente reprimidos ou desprovidos de direitos que conseguiram ser aceitos e conquistar direitos iguais foram exatamente aqueles que assumiram uma identidade de grupo social forte. Ex: feministas, afrodescendentes, grupos LGBT etc. Se estes grupos não tivessem adotado identidades sociais de grupo continuariam como “indivíduos errados”, isolados dentro de uma classificação social em que não existiam conceitualmente, sofrendo restrição de direitos, preconceitos e outros problemas. Portanto, exatamente pela adoção de uma definição ou classificação social de grupo que estes indivíduos garantem sua liberdade ontológica (de ser o que escolheram ou de se definir dentro de determinado projeto de identidade). Por isso, é importante não confundir a questão social com a ontológica: ao contrário das azeitonas, humanos tem autoquestionamento ontológico até o dia da morte, isso é uma das coisas que nos define como humanos. Mas humanos também vivem em sociedade e se não defendemos socialmente o espaço e a existência das nossas escolhas ontológicas, a liberdade possibilidade social dessas escolhas tendem a deixar de existir. Portanto, a defesa das classificações sociais garantem a nossa (e de todos) liberdade ontológica (de ser ou não ser ou o que ser). Ga132

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rantem que, ao contrário dos vegetais ou minerais, possamos fazer várias escolhas não deterministas, tanto aqui e agora como ao longo de nossa vida. Você pode escolher uma classificação social para preservar as possibilidades de liberdade de todos, mas isso não muda o fato de que você vai se questionar ontologicamente (o que eu sou? quem eu sou?) na frente do espelho todos os dias até o dia de sua morte. Mas até lá, é importante que vivamos em sociedades em que exista espaço para expressão de diferenças. A existência de subculturas e culturas alternativas, todas diferentes umas das outras, é uma das formas de garantir a manutenção dessas possibilidades de realização social de nossas possibilidades ontológicas. Assim, possibilidades ontológicas dependem de história e escolhas pessoais e individuais, mas possibilidades de realização social dependem de histórias e definições coletivas. Uma depende da outra para existir, apesar de serem coisas diferentes. Complexidades que as azeitonas não têm, mas a vida delas é bem mais chata que a nossa. A única vantagem delas é que os picles e palmitos não fazem campanha tentando provar que as azeitonas não existem ou que são inerentemente maléficas...

11. O “ROLÊ” NÃO É A “CENA”: A PONTA DO ICEBERG Quebrando o clichê da ideologia pós-moderna, a realidade nos mostra que subculturas não são nem apenas urbanas, nem apenas juvenis e, como já vimos, não são tribos. Se você fizer pesquisa sobre a cultura chinesa em um shopping center de Honk Kong ou Pequim você concluirá que a população chinesa é muito jovem e ocidentalizada. Hoje, no Brasil em crise econômica, se você fizer censo da população brasileira nas baladas, vai concluir erroneamente que a população nacional diminuiu. Ambas as conclusões acima têm pouco a ver com realidade, são distorções causadas pelo pressuposto das pesquisas: de que certos grupos sociais são encontrados em certos locais ou em relação pre133

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sencial entre si. Ou limitados a apenas uma fase da vida. Da mesma forma, se você fizer censo de população gótica em shows ou baladas, você vai ter um resultado com a mesma distorção “intencional”. Mas, felizmente, a vivência dos góticos não se dá apenas em shows e baladas em grandes cidades. “O Rolê não é a Cena”. A população gótica é muito maior que o “rolê” e realiza sua vivência e identificação de diversas formas. Muitos não saem em festas. Alguns já têm família e trabalho e mantém sua identidade e participação em outros ritmos, após os 30 ou 40 anos de idade. Outros estão participando ouvindo música em casa, vendo filmes, lendo, escrevendo, utilizando roupas e maquiagens, entre outras atividades. Ou ainda interagindo online. Os demais vivem em cidades pequenas sem cenas, mas têm toda identidade e informação do estilo porque a internet hoje permite informação e vivência real e de qualidade, melhor do que tínhamos presencialmente no passado, na maioria dos casos. Eventualmente, muitos vão também frequentar alguma festa, show ou festival gótico. Mas essa participação não é o que vai definir a identificação subcultural dessa pessoa. Será uma experiência que é exatamente complementar e resultado de uma identificação realizada a longo prazo. Assim, não são góticos apenas os que estão saindo no rolê. Isso sempre foi apenas a ponta do iceberg... e a parte que derrete, some e reaparece de acordo com as estações. Precisamos rever nossos conceitos do que significa “participação subcultural”, pois os conceitos do século passado se tornaram ou prejudiciais para o cenário alternativo ou mesmo preconceituosos e cegos em relação a realidade. Translocalidade (ou glocalidade): significa que você está vivenciando o local e outros locais ao mesmo tempo ou o local e o global ao mesmo tempo. Essa é uma das características das vivências do século XXI. No século passado íamos a locais para obter informação. Hoje, no século XXI, conhecemos tudo (e muito mais coisas) antes, na tela de 134

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nosso PC, notebook ou Smartphone. Selecionamos o que gostamos e vivenciamos isso… só depois de distinguirmos é que vamos a algum lugar para vivenciar de outra forma o que já escolhemos antes. Assim, hoje, o volume de conhecimento disponível, a quantidade de pessoas acessando a informação e a autonomia individuais para seleção e escolha são maiores. Claro que isso incomoda muita gente: todos aqueles que no século passado detinham o poder de intermediar e selecionar informação nos locais de acesso. Esses locais ainda existem, mas a relação de poder com as pessoas que os acessam deixou de ser unilateral, para ser no mínimo uma via de mão dupla. Este é nosso mundo. O século XX acabou mesmo, apesar de muitos de nós vermos o presente com olhos do século passado. Provavelmente aqueles de nós nascidos até os anos 1980 soframos em maior ou menor grau dessa miopia. Cabe a nós tentar enxergar melhor.

12. AS IDEIAS DE UNDERGROUND QUE PREJUDICAM O “UNDERGROUND” Uma definição de loucura é continuar a fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes... O que mais prejudica o “underground” atual são as antigas ideias e conceitos que tínhamos no passado. Por isso, infelizmente, temos muito a lamentar: Lamentamos não termos tantas festas, shows e festivais internacionais como na Europa ou mesmo quanto alguns outros países latino-americanos. Lamentamos que as bandas nacionais não vendam CDs em quantidade ou tenham público suficiente para poderem se dedicar inteiramente a música. Lamentamos que lojas, profissionais, artesãos e artistas góticos e alternativos locais são consigam vender seus produtos em quantidade suficiente para continuar a trabalhar com o estilo que amam. Lamentamos que festas góticas muitas vezes aconteçam em lugares com qualidade e segurança duvidosa. 135

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Lamentamos isso tudo e muito mais, mas o que lamentamos é resultado direto de nossas ideias e concepções ultrapassadas de “underground” e “cena”, que se eram adequadas ao século passado, hoje são um lento suicídio programado. Sem perceber, tentamos fazer o melhor possível com ideias que nos condenam sempre ao fracasso… e ainda nos surpreendemos por isso acontecer! Contudo, nos últimos 30 anos, os estilos e subculturas evoluíram e o mundo mudou totalmente. Para fazer algo com a mesma essência de antigamente, é preciso fazer algo diferente nos tempos atuais. O QUE MUDOU? A RELAÇÃO COM O ESPAÇO Uma coisa importante entre outras que mudaram: no século passado as pessoas iam a lugares para conhecer coisas, como vimos no texto anterior. Para fazer pesquisas de escola, íamos a bibliotecas. Para comprar livros, íamos a livrarias. Para conhecer bandas íamos a lojas de CDs ou shows. Para saber qual era a música nova que o DJ tocou, só perguntando para ele ou algum amigo dele. Esse era o século XX: havia uma divisão clara entre o que era “mainstream” e o que era alternativo. O “mainstream” tinha grandes financiamentos e era reproduzido nos grandes e poucos meios de comunicação da época. O alternativo tinha poucos territórios e locais específicos, dependia de relações pessoais de mútuo apoio e relações de poder e seleção severa de novos integrantes, seleção essa que buscava preservar a pureza desses espaços. No século XX, o “underground” era o que estava escondido e o nome fazia todo sentido (underground = subterrâneo). Da mesma forma que “mainstream” significa “fluxo principal”: o paradigma dominante. Entretanto, no século XXI a realidade é outra. Com o advento da internet, o acesso à informação deixou de ser algo localizado geograficamente ou regulado pelo poder pessoal de indivíduos: acesso a livros, músicas, filmes, arte, informação em geral deixou de ser mediada por um controle (seja pessoal ou de redes de TV) e passou a ser livre a qualquer um em qualquer lugar. Assim, até mesmo as cenas alternativas deixaram de ser “underground” no sentido literal: a informação alternativa deixou de ser 136

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mediada e o acesso deixou de ser pessoalmente controlado. Até mesmo os DJs perderam o poder exclusivo de definir o que é tendência e com isso boa parte de seu status. Hoje a tendência é, no mínimo, uma via de mão dupla. Atualmente, conhecemos uma infinidade de coisas online (muito mais coisas do que no passado) e selecionamos nossas preferências. Só depois vamos a “lugares”, mas só para vivenciar o que já escolhemos gostar e nos vinculamos afetivamente antes, virtualmente. E há muitas, muitas opções. Assim, no século XXI o “underground” deixa de ser um local de difícil acesso ou escondido, e passa a ser um conjunto de tendências alternativas que podem ser acessadas por qualquer um que tenha interesse. Podemos continuar a chamar de “underground” se soubermos que significa uma coisa diferente do que era chamado de undergrond no século XX. O PROBLEMA ESCONDIDO Todavia… então onde está a contradição, que nos impede de desenvolver um circuito alternativo viável e grande como em outros lugares? É aí que a porca torce o rabo. Um dos problemas está em algumas ideias românticas sobre a realidade que são compartilhadas tanto por hippies quanto punks (e outros grupos), apesar de ambos os grupos expressarem esse romantismo de forma diferente. No fundo, é a mesma concepção de realidade do século passado (ou retrasado), reforçadas por algumas ideias da escola (de filosofia) de Frankfurt sobre a oposição entre economia e arte, entre comércio e cultura. A oposição antiga entre “underground” e “mainstream” era corretamente baseada nessas ideias, em uma época em que o “mainstream” significava padronização e ordem. Mas não são mais corretas, pois a realidade mudou: o capitalismo de consumo e rentismo superou o capitalismo de trabalho e produção, mudando os valores da sociedade. Se antes o capitalismo era baseado em ordem, moral rígida e progresso, hoje significa mudança constante e desapego a identidades individuais e coletivas 137

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duradouras, demandando que as pessoas mudem de identidade a qualquer momento, sem princípios ou ética (ao contrário do capitalismo tradicional, que exigia que as pessoas mantivessem identidades padrão e massificadas e tinha algumas regras morais rígidas). A sociedade atual se parece muito mais com uma versão acelerada de “Admirável Mundo Novo” de Huxley do que com “1984” de Orwell. Hoje o controle social é feito por ofertas de descontrole e hedonismo massificado, e incentivo ao individualismo egoísta, velocidade e violência. AGITANDO SUA BANDA DE UM SÉCULO PARA OUTRO Vejamos um exemplo mais objetivo. No século passado, se uma banda quisesse ficar conhecida e gravar um álbum que chegasse até as pessoas, ela começava fazendo muitos shows, para ficar conhecida pelo público, e na esperança de “ser descoberta” por um produtor que a indicasse para uma gravadora. Isso porque na época era preciso muito dinheiro e recursos técnicos para gravar um álbum e para lançar uma banda ou cantor. Com o advento dos vídeos e o surgimento da MTV, agregou-se mais o custo de produção de vídeos. No século XXI, porém, temos uma realidade diferente. Os custos de produção e lançamento musical se reduziram muito, e as formas de divulgação e produção de vídeo se tornaram quase gratuitas. Mas por outro lado fazer shows não adianta quase nada no início da carreira de uma banda (a não ser como exercício de autodesenvolvimento), pois hoje as pessoas não buscam mais conhecimento em “lugares”, pois recebemos uma quantidade enorme de informação diariamente, em casa. A boa notícia é que você pode fazer sua banda ser famosa na Europa antes de tocar na cidade vizinha; a má é que você concorrerá pela atenção das pessoas em pé de igualdade com bandas do Brasil e mundo inteiro. Nesse sentido as cenas musicais locais não existem mais: são “glocais” ou “translocais”, ou seja, locais e globais ao mesmo tempo. Continua não sendo fácil, mas é completamente diferente do passado: hoje depende totalmente do artista e seu trabalho. Isso não quer dizer que você virará o próximo U2 ou Rolling Stones, mas que pode 138

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conseguir, pelo menos, viver do seu trabalho alternativo sem precisar vender a alma e mudar de estilo para uma grande gravadora. Não há mais desculpas para cultivar o ego e status de “artista genial incompreendido” ou “limitado pelo sistema econômico”. Mesmo que na sua cidade existam apenas 10 pessoas que apreciem um artista singular, ao redor do mundo ele pode encontrar mais 10 mil ou 100 mil. A diversidade cultural, assim, permite hoje uma liberdade que acaba com o “artista incompreendido” e reclamações de mídia opressora que existiam no século passado. TRANSLOCALIDADE E PERMANÊNCIA NO SÉCULO XXI A translocalidade vale também para a participação individual nas “cenas” ou subculturas alternativas. Não temos apenas um grupo pequeno de pessoas de uma única cidade que tem relações presenciais. Temos uma pluralidade de pessoas que não se relacionam ou encontram regularmente, na mesma cidade, em cidades diferentes, ou até de países diferentes. Pessoas de todas as classes sociais, origens, idades, etnias e opções de vida. Algumas dessas pessoas estão em cidades com muitos indivíduos que coincidem em seu interesse subcultural. Já outras pessoas estão distantes ou isoladas em cidades onde elas são as únicas com este interesse cultural. O que importa hoje é que todas essas pessoas têm participação, acesso e vivências com a mesma qualidade e, principalmente, perenidade. Aliás, a experiência nos mostra que a busca de informação online acaba por fomentar uma consistência e perenidade maior de identificação subcultural do que em muitos casos acontece com a participação presencial sem um suporte informativo. Afinal, boa parte dos jovens que estão “saindo de rolê” estão fazendo isso apenas pela afetividade do “rolê” e não pela identificação mais duradoura. Em geral, a maioria que está só de “rolê” acaba se afastando com a idade, enquanto aqueles que tiveram uma formação cultural não 139

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presencial acabam por posteriormente também a frequentar atividades presenciais, mas se mantendo vinculados por mais tempo. Assim, outro ponto importante é que as subculturas alternativas também não são mais um reduto exclusivamente de jovens, mas incluem pessoas de todas as idades, com ritmos, frequência e formas de participação diferenciados. Até aqui é algo simples de resolver, mas o que complica são as ideias arraigadas de seleção “local” de novos integrantes, baseadas em lógicas de territorialidade e status de conhecimento herdadas do século passado, que não fazem mais sentido hoje. O maior conflito acontece quando as ideias e estratégias do século passado de “manutenção de um espaço ‘underground’ pequeno e puro” conflitam com a realidade atual, em que mais pessoas buscam e acessam informação alternativa. Essas ideias antigas acabam prejudicando as próprias bandas, lojas, festivais, selos, publicações etc. O conceito de “underground” ou “cena” como uma “seita ou grupo fechado” é uma dessas ideias. Sociedades e culturas do passado tinham economias (“oiko nomia”= administração doméstica, em grego) que serviam a suas culturas, e não o contrário. Da mesma forma, hoje temos a possibilidade de desenvolver meios midiáticos e comerciais que sirvam aos interesses das subculturas alternativas, devido ao barateamento e fácil acesso da produção de CDs, vídeos, áudios, publicações e divulgação online ou em redes sociais. No século XXI, em um mundo em que as zonas urbanizadas e industrializadas do planeta são submetidas uma mesma cultura global hegemônica (do capitalismo especulativo e sua ideologia pós-moderna), a experiência nos mostra que, em oposição a essa hegemonia e pasteurização global, as subculturas alternativas florescem fazendo uso de micromídias e microcomércio submetidos a seus interesses e que viabilizam suas produções culturais alternativas. Assim, se desejamos um desenvolvimento da subcultura alternativa que nos interessa, precisamos entender o que significa underground, alternativo e subcultural sem ideias e comportamentos autossabotadores, herdados de realidades e contextos que não existem mais. 140

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ENTÃO O QUE DEFINIRIA “UNDERGROUND” NO SÉCULO XXI? Entre outras coisas, não é mais a territorialidade, nem as festas e shows em lugares precários e sem segurança, nem a inviabilidade comercial e realizações que acabam rapidamente, baseadas em relações puramente pessoais. Não são as bandas que viram “cult”, porque não se viabilizaram e acabaram, condenando seus integrantes a desperdiçarem seu talento em profissões que não amam. Também não é um grupo pequeno de pessoas que garante seu status controlando severamente o fluxo de entrada de novos integrantes. Não é nada disso que destrói a longo prazo as possibilidades de desenvolvimento e crescimento de cenas alternativas e artísticas. Se ainda podemos usar a palavra “underground” no século XXI, ela significará um dos vários conteúdos socioculturais (logo, também artísticos) que são alternativos em relação aos paradigmas socioculturais dominantes (ou hegemônicos). Nesse sentido, é sinônimo de “alternativo”, e existem diversos alternativos diferentes. Esses conteúdos artísticos e comportamentais, como em um movimento artístico, são discursos que não são de ninguém. Logo, não é a quantidade, presencialidade ou localização que define se algo é subcultural ou não, mas sim a vinculação e identificação do indivíduo com aquele discurso cultural alternativo. QUEBRANDO A PROGRAMAÇÃO PARA O FRACASSO: As pessoas veem a subcultura gótica (e outras) e seu desenvolvimento de duas formas principais e opostas: o modelo de seita ou elite, e o modelo cultural ou subcultural. 1- O MODELO DE SEITA: é que criticamos aqui - é o modelo de seita secreta ou elite alternativa. Esse modelo de relacionamento pode ser visto também em grupos especiais do exército, no mundo acadêmico ou em grandes empresas. Seitas e elites buscam de toda forma garantir que o grupo mantenha um número reduzido de integrantes, pois isso garante o status elevado dos “poucos conhecedores”. Grupos deste tipo desenvolvem sempre uma forte polícia de controle que fiscaliza a entrada de novos membros com estratégias de 141

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seleção, punição e/ou ridicularização. Claro que o novo integrante aceita esses rituais de passagem com a perspectiva de ganho de status futuro e poder se tornar um novo sádico ou fiscalizador da entrada dos novatos. 2 - O MODELO CULTURAL: Nesse o status pessoal vem da participação construção de um grupo social com características específicas, e quanto maior seu desenvolvimento em qualidade e quantidade, melhor. Quanto mais bandas, mais e melhores eventos, mais lojas, mais pessoas, melhor. Nesse caso você não é “grande” por ser único ou parte de uma pequena elite, mas porque você faz parte de algo grande e especial. Nesse modelo a recepção de novos integrantes é de formação e integração. O que importa são os conteúdos culturais e visão de mundo compartilhados, não a quantidade de pessoas que os compartilham. Se queremos no futuro ter algo vagamente parecido com o que vemos nas cenas e festivais góticos da Europa ou outros países da América com cenas mais desenvolvidas, ou, pelo menos, desde já ter uma vivência gótica e alternativa minimamente saudável, o modelo que faz sentido é o segundo. Até o século XIX as guerras eram feitas de uma forma que se tornou suicida quando aplicada à realidade do século XX. Mudanças de tecnologia e contexto histórico exigem que a mesma coisa seja feita de forma diferente para que signifique a mesma coisa, ou para que realize a mesma função social. Também o modelo de subcultura ou tribo do século passado se torna destrutivo ou elitista quando aplicado às dinâmicas subculturais do século XXI, simplesmente porque o modelo do século passado era adequado para a realidade daquela época, que era baseada em relações geográficas locais e mídias de massa de mão única. Como já vimos nos capítulos anteriores, o contexto social hoje é totalmente outro. Há muitas outras questões envolvidas a comentar, mas é preciso começar a debater essa questão e atualizar o que entendemos por “underground” e “subculturas alternativas” no século XXI.

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13. EXISTE UMA IDEOLOGIA GÓTICA? Muitos perguntam qual é a ideologia gótica. Isso é o mesmo que perguntar qual a é a ideologia de movimentos artísticos como o Romantismo, Simbolismo ou Cubismo. A ideologia destes movimentos está expressa no seu uso da estética, gerando uma visão e discurso sobre o mundo. Melhor: oferecem um tipo de lente para ver o mundo. Esperar uma ideologia do tipo “ideologia política” - ou partidária - expressa em um manual é equivocado: a arte é extremamente política, mas pelos seus próprios meios, estética e linguagem. Roman Jacokbson explica isso com muito mais propriedade:

“Ora, todo signo é ideológico. Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a ‘ideologia do cotidiano’, que se exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas. Se a língua é determinada pela ideologia, a consciência, portanto o pensamento, a ‘atividade mental’, que são condicionados pela linguagem, são modelados pela ideologia.” (Roman Jacokbson, comentando Bathkin) Assim, a ideologia ou os discursos góticos, as representações de mundo góticas (ou como vocês preferirem chamar), estão expressas claramente na história da construção de seu repertório de símbolos e alegorias (sistemas semióticos ou de símbolos) que se organizam como homologias (ver capítulo sobre homologia) em constante atualização. Assim, esse sistema ou conjunto não é fechado e continua incorporando novos elementos e se atualizando, deixando claro por quê o gótico continua e continuará sendo necessário na sociedade ocidental por muito tempo:

“O Gótico tem sido e permanece necessário à cultura ocidental moderna, porque ele nos permite, no fantasmagórico de uma ficcionalidade descaradamente falsa, confrontar as raízes de nossos seres em contraditórias multiplicidades (da vida se transformando em morte aos gêneros se confundindo até o medo se transformando em prazer e muito mais) e a definir nossos seres em oposição a essas assombrosas contradições, ao mesmo tempo que nos sentimos atraídos por elas, tudo isso em um tipo de atividade cultural que, enquanto o tempo passa, pode continuar inventivamente a 143

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mudar seus fantasmas de mentira para que abordem anseios e medos culturais e psicológicos mutáveis.” (Jerrold E. Hogle) É preciso também lembrar que existe uma intensa propaganda ideológica do mercado e mídia de massa sobre a “apatia da juventude” e “desaparecimento das subculturas”, que busca nos convencer que estes são processos naturais de nossa sociedade, e não uma luta de convencimento constante entre uma ideologia que busca esvaziar o sentido das culturas e a parte de nós que resiste a isso. Esmiuçamos essa questão que vai além das subculturas, mas aborda o pensamento dominante hoje, o pós-modernismo como ideologia do capitalismo de descarte, no capítulo Etnofobia. Por ora, cabe o jocoso comentário em um artigo sobre subculturas, que busca:

“chamar a atenção para um ativismo negligenciado ou marginalizado pelas jeremiadas (nota: papagaiadas) acerca da apatia política da ‘juventude pós-moderna’, retratada (ou antes caricaturada) em uma quantidade prodigiosa de filmes, reportagens, romances e pesquisas patrocinadas pelo mercado ou universidades. A audiência estupefata e fiel de tais produções da indústria cultural ou acadêmica não deixa dúvida: ninguém perderá dinheiro, apostando em mais um relato alarmante sobre a geração das compras, do êxtase e das raves – um presságio do apocalipse tantas vezes adiado...” (João Freire Filho) Então, adotar uma persona social gótica será sempre uma atitude política? Para quem vê, sempre será, se é para você ou não, depende de como você vivencia seu cotidiano subcultural. E afinal, qual seria a ideologia – ou visão de mundo - gótica? Não se pode dar uma resposta curta ou fechada a essa pergunta, mas conhecendo o conjunto de elementos formadores do que chamamos de gótico cada uma pode chegar a conclusões apropriadas. Apesar de polissêmico (ter vários sentidos), o termo gótico não é aleatório. Por isso, lemos na parte sobre história e literatura sobre um pouco da formação do imaginário daquilo que chamamos de gótico. Pois “representação de mundo” é outro significado da palavra “ideologia”. E é entendendo a estética e imaginário de um movimento artístico ou cultural que aprendemos a ler sua visão de mundo. 144

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PARTE 4: CONTEXTO SOCIOLÓGICO

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1. GLOCAL: ETNOPAISAGENS E DROMOCRACIA Se o tempo é o principal campo de batalha da atualidade e a velocidade o principal vetor de dominação cultural, fragmentação identitária e expropriação de valor (Virilio, 1977; Trivinho, 2001, 2005) um dos eixos de resistência das subculturas contemporâneas é a produção orgânica - e logo mais lenta - de sua atualização e evolução, internamente motivada, como já comentamos, e baseada na sua integração homológica das áreas ou “esferas de conhecimento” (Kurz, 1997). Assim vemos que da mesma forma que no mundo pré-internet e local as subculturas se apropriavam de elementos da cultura hegemônica e os subculturizavam. Hoje os mesmos meios que possibilitam a dominação global “dromocrática” (1) são utilizados pelos indivíduos para criar espaços de diferença subculturais que escapam as leis e regras da velocidade crescente, fragmentação e descarte. Assim, hoje o “... glocal é o vetor de articulação e modulação não somente de todas as instâncias e setores sociais, mas também de sua produção simbólica, imagética e material, nele se expressando ou por ele passando (...) o glocal influi até mesmo, indiretamente, nas formas de produção cultural que não são ou prescindem de ser objeto de consideração por parte da agenda mediática”. (Trivinho, 2005) Glocal é aquilo que é local e global ao mesmo tempo, como o que é translocal é o que é local e distante ao mesmo tempo. O fato é que tudo isso está real, presente, aqui e agora. A oposição real x virtual, usada nos primórdios da internet, não faz mais sentido hoje. Mas o uso consciente da realidade não presencial de forma a resistir a ideologia embutida nesse meio supostamente neutro (tecnologia, internet, velocidade, fragmentação e diluição de identidadades) é uma opção cultural e subcultural que cabe a cada um. O que é incontornável hoje, porém, é que nossa identidade (ou nossas identidades) são formadas tanto local quanto translocalmente. Nossas relações afetivas e de identificação cultural mais fortes podem se dar online e com pessoas e culturas distantes geograficamente. 146

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Essa realidade faz com que algumas visões tradicionais da etnografia sejam revistas. Se no passado “ir morar com os autóctones” era a regra de ouro do antropólogo, hoje a convivência em um ambiente urbano geograficamente limitado não vai nos dizer muito (ou tudo) sobre um grupo cultural (ou subcultural) cujo “território” conceitual não é sempre físico ou local. Talvez os segredos e sentidos de determinada subcultura e suas relações interpessoais, hoje, estejam escondidos muitas vezes nas relações online, sendo as relações presenciais tomado o local do espaço superficial em que uma subcultura ainda engana quem olha de fora. Contudo, não nos enganemos: o entendimento da realidade encontra-se aqui, lá e online ao mesmo tempo. E mais: não encontraremos os indivíduos de determinada subcultura todos em um só lugar: a maior parte do tempo eles estarão geralmente espalhados, mas unidos digitalmente e ligados ao seu espaço de diferença conceitual. Continuam sendo góticos, punks ou headbangers, na multidão indefinida, como um brasileiro continua culturalmente brasileiro se perdido em uma ilha deserta ou em um país estrangeiro. Se essas identidades serão puras ou não, cabe questionar a existência de algo puro no reino do humano, tão pouco platônico. Como disse o antropólogo indiano:

“Enquanto grupos migram, reagrupam-se em novos locais, reconstroem suas histórias, e reconfiguram seus projetos étnicos, o ‘etno’ em ‘etnografia’ toma uma qualidade não localizada, deslizante, à qual as práticas descritivas da antropologia terão que responder. As paisagens de identidade grupal – as ‘ethnoscapes’ (2) - não são mais objetos antropológicos familiares, ao mesmo tempo que grupos não são mais firmemente territorializados, espacialmente unidos, historicamente desprovidos de autoconsciência, ou culturalmente homogêneos”. (Appadurai, 2003) Os grupos ligados digitalmente online têm esta característica descrita acima para culturas de migrantes: uma grande autoconsciência cultural, necessária quando seu ambiente não é nem mais homogêneo culturalmente nem geograficamente delimitado. Essa autoconsciência cultural (ou subcultural) permanece, claro, mesmo quando os indivíduos estão offline e sozinhos em meio a uma multidão que tem outras consciências culturais. Assim, faz com que a questão da proxemia deixe de ser determinante na determinação das identidades de grupo. 147

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A “presencialidade” foi endeusada há algum tempo por teóricos pós modernos como o suprassumo do pertencimento tribal transitório e fragmentário, como se isso fosse uma libertação de uma suposta “escravidão” a culturas e identidades fechadas. Essas suposições são mais uma proposta ideológica ligada a propaganda do capitalismo rentista de consumo e descarte contemporâneo. Experiências sociais presenciais hoje serão mais significativas se ligadas a uma vivência cultural ou subcultural mais ampla e integrada, que geralmente acontece não apenas presencialmente mas translocalmente. O que é virtual vem resgatar e religar o que a vida urbana havia separado: o compartilhamento coletivo de crenças e visões de mundo. Dito de outra forma: se você não torce nem para o time X nem Y, ou nem gosta de futebol, estar no meio da torcida no estádio não integra você em um grupo social, nem o torna torcedor. Mas se você for torcedor, continuaria sendo até mesmo sozinho com um radinho de pilha em uma ilha deserta. Essas meras experiências presenciais como as que acontecem em uma feira de alimentos de bairro, multidão aglomerada em uma liquidação, flash mob de usuários de XPhone, fila de banco ou balada genérica não indica uma intersecção cultural em torno de uma visão de mundo escolhida (a não ser da própria cultura de fragmentação e esvaziamento de sentido). A apologia destas vivências como “grupo cultural” ou “tribo pós-moderna” esvazia o conceito de grupo cultural de características essenciais, e só faz sentido em uma sociedade que fragmentou as áreas de conhecimento, esvaziando-as de sentido. O que é o contrário de uma subcultura ou cultura integrada.

(1) “Dromocrático” conceito usado por Virilio e Trivinho, significa “o governo dos mais rápidos e aptos na sociedade tecnológica”. De “Dromos” (veloz, velocidade) + “Kratos” (governo). (2) “Ethnoscapes” é um neologismo desenvolvido por Appadurai de difícil tradução em nossa língua. Seria a mistura de “Ethno” com “LandScapes”, algo como “paisagens étnicas” ou “ambientes étnicos”. Étnico, aqui, no sentido amplo de cultura, não no sentido meramente biológico.

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ETNOFOBIA: DEMONIZAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO DISCURSO PÓS-MODERNO Analisamos demonização do termo “Etnocentrismo” pelo discurso pós-modernista. Buscamos demonstrar como este discurso deprecia os conceitos de cultura e identidade cultural em seu programa ideológico coerente com o capitalismo tardio. Consideramos a existência uma nova forma de colonialismo cultural embasado no discurso pós-moderno e de globalização cultural, um colonialismo que equaliza e homogeneíza diferenças e alteridades e pode ser uma das origens das regressões fundamentalistas e xenofóbicas do começo do século XXI. ETNOCENTRISMO: ETNOCÍDIO x ETNOFOBIA A palavra “etnocentrismo”, cunhada no contexto do debate acadêmico, caiu no uso cotidiano. (CLASTRES, 1982, p. 52). Pierre Clastres descreve a diferença entre etnocentrismo, etnocídio e genocídio. “Denomina-se etnocentrismo a vocação para julgar as diferenças a partir da sua própria cultura”. Por outro lado, “o termo etnocídio acena não para a destruição física dos homens (neste caso permaneceríamos na situação genocidária), mas para a destruição de sua cultura”. Assim, “o ocidente seria etnocidário, porque é etnocentrista. Porque se pensa e quer ser ‘a’ civilização”. (CLASTRES, 1982, p. 55). Aqui é importante ter clara a diferença entre os conceitos de cultura e o de civilização. O destaque que Clastres coloca no artigo definido “a” antes de civilização indica que o problema é o ocidente considerar que sua cultura é a ponta de lança do processo de civilização. Não é mais necessário argumentar contra essa ideia na sua forma passada. Nossa intenção aqui é apenas deixar claro que cultura não é um termo singular nem é sinônimo de civilização. A antropologia já nos ensinou que culturas diversas, muitas vezes, desenvolvem-se em direções opostas. O que é avanço para uma pode parecer regressão aos olhos de outra. Temos um exemplo no trecho abaixo de Davi Kopenawa Yanomami: 149

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“Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas não têm nenhuma sabedoria. (…) Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam de Europa.(...) eles acabaram com suas florestas e sujaram seus rios. Agora só bebem água ‘embrulhada’, que precisam comprar. (…) o pensamento dos brancos está cheio de vertigens, (…) Eles não fazem mais que dizer ‘Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro e ferro! Os Yanomami são mentirosos!’ (…) Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo em suas mercadorias como se fossem suas namoradas” (YANOMAMI, 1999, p. 15-21). Também é preciso ter clara a distinção entre Cultura como sistema cultural de um grupo social e Cultura como erudição ou acúmulo de conhecimento. Apenas por motivos de clareza, neste texto grafaremos a primeira com letra maiúscula. Clastres nos explica que o etnocídio não é resultado direto nem do etnocentrismo nem é resultado mecânico de todas as Culturas. Mas, isto sim, o etnocídio seria uma necessidade que surge em determinado tipo de sociedade e em dados contextos históricos.

“Pertence à essência da Cultura ser etnocentrista, na medida exata em que toda Cultura se considera como a Cultura por excelência. Em outros termos, a alteridade não é jamais apreendida como diferença positiva, mas sempre como inferioridade sobre um eixo hierárquico”. Mas “se toda Cultura é etnocentrista, somente a ocidental é etnocidária”. Decorre daí que a prática etnocidária não se articula necessariamente com a convicção etnocentrista, senão toda Cultura seria etnocidária.” Então “o que faz com que a civilização ocidental seja etnocidária?” E “pode-se colocar legitimamente (…) Ocidente como Cultura etnocidária, como sociedade de Estado? Se fosse assim, compreender-se-ia porquê as sociedades primitivas podem ser etnocentristas sem serem por isso etnocidárias, pois são precisamente sociedades sem estado”. (CLASTRES, 1982, p. 53-62). MAS TODOS OS TIPOS DE ESTADO SÃO IGUAIS?

“O que contém a civilização ocidental, que a torna infinitamente mais etnocidária que qualquer outra forma de sociedade? É seu regime de produção econômica, (…) seja ele liberal e privado como 150

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na Europa do Oeste ou planificado, de Estado, como na Europa do Leste. A sociedade Industrial (…) é por isto mesmo a mais assustadora máquina de destruição. Raças, sociedades, indivíduos, (…) natureza, (...) tudo. (…) A escolha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o etnocídio ou o genocídio”. (CLASTRES, 1982, p. 61). Vemos, assim, que não são todos os tipos de Cultura e sociedade que precisam praticar o etnocídio ou o genocídio. Culpar a cultura ou a identidade grupal ou comunitária pelos males do genocídio ou etnocídio seria o mesmo que culpar a vida pela existência de doenças: simplesmente tira o foco de atenção das causas específicas. Podemos considerar a hipótese de que na segunda metade do século XX o discurso etnofóbico avança também como função ideológica de um processo de industrialização (terceira fase) e capitalismo de consumo (seja ela de modelo estatal centralizado ou liberal descentralizado, pois vemos a China avançar como “global player”). Este processo chegaria ao extremo no final do século passado. Cabe lembrar que o papel do conceito de cultura é totalmente diferente na sociedade do capitalismo de produção (exemplo: século XIX e começo do século XX) e do capitalismo de consumo e descarte (segunda metade do século XX e começo do século XXI). Porém estas fases dependem dos estágios de desenvolvimento e peculiaridades locais ao redor do globo. No Brasil, por exemplo, vemos pontos de capitalismo de consumo ou descarte ao lado de realidades do capitalismo de produção e muitas vezes um tecido social permeado por realidades e valores pré-modernos. Mas antes de considerar a validade desta hipótese, vamos analisar alguns exemplos do discurso etnofóbico e anti-identitário. ATAQUE AO CONCEITO DE CULTURA Terry Eagleton define pós-modernidade como:

“uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em 151

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relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades”. (EAGLETON, 1998, p. 7). Esta linha de pensamento estaria relacionada à mudanças concretas no ocidente que emergiram concomitantemente a uma nova forma de capitalismo e de indústria cultural no final do século XX (EAGLETON, 1998, p. 7). Também Fredric Jameson (2002) e David Harvey (2005) descrevem minuciosa e extensamente como o discurso Pós-Moderno é a expressão ideológica do capitalismo tardio ou do também chamado capitalismo pós-industrial. Com o deslocamento de uma ética do trabalho para uma ética de consumo e descarte, os valores sociais e de identidade passam a ser os da transitoriedade, flexibilidade, inconstância, efemeridade, fragmentação, ausência de regras, de padrões e de limites. O capitalismo de consumo adota os valores do hedonismo transfigurado em cartões de crédito sem limites e valores sociais claramente homólogos ao capitalismo de capital especulativo e ao consumismo de descarte. Terry Eagleton comenta que “o pós-modernismo, em suma, rouba um pouco da lógica material do capitalismo avançado e a volta agressivamente contra seus fundamentos espirituais” (EAGLETON, 1998, p. 129). Mas essa liberalidade de consumo e crédito não corresponde automaticamente a um liberalismo nas relações humanas, abertura ao diálogo e no reconhecimento do outro:

“Apesar de toda a sua tão alardeada abertura para o Outro, o pós-modernismo pode se mostrar quase tão exclusivo e crítico quanto as ortodoxias a que ele se opõe. Pode-se, em geral, falar da cultura humana mas não da natureza humana, de gênero, mas não de classe, do corpo mas não da biologia, de fruição, mas não de justiça, do pós-colonialismo, mas não da burguesia mesquinha. Trata-se de uma heterodoxia de todo ortodoxa, que como qualquer forma imaginária de identidade precisa de seus bichos-papões e alvos imaginários para manter-se na ativa. (…) Embora inspire-se no espírito crítico, raras vezes o usa para tratar das próprias proposições”. (EAGLETON, 1998, p. 34-35). O discurso pós-moderno busca se opor a uma modernidade que ele mesmo forja (Eagleton, Jameson, Harvey), de forma semelhante a que o discurso do Renascimento e do Iluminismo rejeitavam uma 152

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Idade Média que era unificada exatamente por seus discursos. Mas a modernidade apresenta as características que a Pós-Modernidade lhe imputa? Por exemplo, Bauman estabelece que “a noção de Cultura foi cunha-

da segundo o modelo de fábrica de ordem” (BAUMANN, 1998, p. 163). A descrição de Cultura da modernidade que o autor faz se pa-

rece muito com uma fábrica fordista, tanto que este é um exemplo usado por ele. Em substituição a esta Cultura, propõe uma nova metáfora: em vez de Cultura, uma “cooperativa de consumidores” (BAUMANN, 1998, p. 168). Compreende-se o subtexto: o Mercado seriam hoje a única Cultura válida e as Culturas locais deveriam ser apenas culturas com c minúsculo, todas igualmente niveladas na sua insignificância. Um multiculturalismo de igualdade negativa, como veremos adiante. Mas teria sido a Cultura no Iluminismo ou Modernidade um homogêneo conceito de “fábrica de ordem”? Seriam a modernidade, o iluminismo e o capitalismo entidades homólogas? Ellen Wood comenta que “tornou-se o auge da moda atacar o chamado projeto iluminista. Supõe-se que os valores iluministas (…) estejam na raiz dos desastres que abalaram a humanidade ao longo de todo este século’’, (…) das guerras mundiais e do imperialismo até a destruição ecológica.” E acrescenta que “estamos sendo solicitados a jogar fora tudo o que há de melhor no projeto iluministaespecialmente seu compromisso com a emancipação humana universal- e a responsabilizar esses valores pelos efeitos destrutivos que deveríamos atribuir ao capitalismo” (WOOD, 2001, p. 120). Assim, a estratégia retórica contra a cultura e as identidades culturais ressaltada por Clastres no caso do uso indevido do termo etnocentrismo, aparece como um exemplo de uma estratégia geral de um discurso ideológico que usa este argumento sistematicamente, acusando o projeto modernista de todos estes males. CAVALO DE TROIA: O QUE ESTE CONFLITO ESCONDE? Mas o que o discurso pós-moderno busca esconder? Que é - em sua totalidade - uma parte da modernidade. Mas qual parte? Todorov, em “Nós e os Outros” (1993, p. 32-41) já descreve as di153

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ferenças entre as correntes Humanistas e Cientificistas no seio do Iluminismo. Ellen Wood (2001) salienta também que “a ideologia

burguesa francesa do século XVIII teve pouco a ver com o capitalismo e muito mais com as lutas em torno de formas não capitalistas de apropriação”. (WOOD, 2001, p.118) Já a Inglaterra estava “em meio a um processo de criar um capitalismo industrial”. Todavia, “quais eram as expressões culturais

características do capitalismo inglês no mesmo período? Não o racionalismo cartesiano e o planejamento racional, mas a ‘mão invisível’.” Pois “a ideologia (…) que distinguiu a Inglaterra (…) foi (…) a ideologia do ‘melhoramento’: não a ideia iluminista do aperfeiçoamento da humanidade, mas o melhoramento da propriedade, a ética (…) do lucro.” Assim, “se quisermos procurar as raízes de uma ‘modernidade’ des-

trutiva- digamos, a ideologia do tecnocentrismo e da degradação ecológica - podemos buscá-los no projeto do ‘melhoramento’, na subordinação de todos os valores humanos à produtividade e ao lucro, e não no iluminismo.” Portanto, “a ideia de pós-modernidade deriva de uma concepção da modernidade que, no que tem de pior torna o capitalismo historicamente invisível, ou, para dizer o mínimo, torna-o natural” (WOOD, 2001, p. 113-123). Não se trata, assim, de uma questão do indivíduo estar preso a uma Cultura ou a uma identidade, em oposição a um indivíduo supostamente livre e sem Cultura. Trata-se de uma luta política e ideológica entre dois (ou mais) tipos de Cultura e de Civilização. E de uma defesa, por parte do discurso pós-moderno, de uma nova forma de civilização que precisa eliminar as demais Culturas como entidades geradoras valores e significados. Mas como se dá este novo colonialismo Cultural, que paradoxalmente, ostenta um discurso de diversidade e sincretismo cultural?

“O neoliberalismo, com sua ênfase no mercado e no consumo, não é apenas uma questão econômica, é uma nova forma de civilização. A atual impossibilidade ou falta de credibilidade de histórias universais ou mundiais não é postulada por uma teoria pós-moderna, mas pelas forças econômicas e sociais a que geralmente nos referimos como globalização” (MIGNOLO, 2003, p. 47) Grifo nosso. 154

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O etnocídio praticado pelo colonialismo tradicional visava destruir (ou “civilizar”) outras Culturas de forma material e grosseira. Porém, nos últimos 50 anos ou mais, os centros mais avançados da Cultura econômico industrial já realizaram no seio de suas próprias sociedades uma cisão e redução da esfera da cultura para um campo não significativo, reduzido apenas a entretenimento, lazer ou erudição. Por isso hoje temos acesso a todos os livros e produção cultural, mas ela nos desperta pouco ou nenhum interesse. UM NOVO COLONIALISMO SEM “VALORES CULTURAIS” Assim, a igualdade que a civilização industrial econômica estabelece como “vantagem” para Culturas historicamente subalternas, é um cavalo de troia. Essa igualdade entre Culturas é oferecida exatamente no momento em que a Cultura dos países da vanguarda industrial já foi reduzida a apenas cultura, a não valor e não-significado pelo seu próprio novo modelo de Cultura Economificada. O que vem na barriga desse cavalo? O modelo de cisão das esferas de conhecimento com estabelecimento da esfera econômica como valor único e central de articulação e significado. Esta é a nova Cultura e civilização colonialista que busca abarcar o globo com suas estruturas e narrativas. Isso é “ser civilizado” hoje e o discurso pós-moderno é a ponta de lança deste novo processo “civilizatório” do novo colonialismo global. Um colonialismo sem nações. Seguem-se as novas cruzadas contra as “primitivas” sociedades de Cultura integrada e “indivíduos atrasados” de identidades definidas e peculiares. Pois para a pós-modernidade as Culturas se tornaram algo primitivo, algo para se visitar no museu ou no zoológico: temos aí o retorno de um discurso teleológico. Porém, em oposição ao discurso de eliminação das narrativas universais que buscam esconder a existência de uma única narrativa global que pela sua hegemonia já se naturalizou tanto que não precisa mais ser enunciada, existe “a forte necessidade de construir

macronarrativas na perspectiva da colonialidade. Essas narrativas não são a contrapartida da história mundial ou universal (…) mas uma ruptura radical com tais projetos globais. Não são (…) nem narrativas revisionistas nem narrativas que pretendam contar uma verdade diferente, mas, sim, narrativas acionadas pela busca de uma lógica diferente” (MIGNOLO, 2003, p. 47). 155

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Como, por exemplo, a narrativa de Davi Yanomani citada anteriormente. NOVAS FORMAS DE CONTROLE SOCIAL: O INDIVIDUALISTA SEM INDIVIDUAÇÃO Até os anos de 1970, aprendemos a considerar natural ser da natureza do poder homogeneizar os grupos que controla. Vimos isso na formação do estado-nação capitalista ocidental. Todavia, nos últimos 40 anos a sociedade industrial entrou em nova fase. Neste

“mundo pós-industrial onde os consumidores são incitados a individualizarem-se e onde as operações de poder parecem favorecer a classificação e a segregação, é difícil ver a diferença como necessariamente progressiva.” (THORTON, 1995, p. 191)

Se o poder moderno se dava pela homogeneização, já o poder e o controle social pós-moderno é exercido pela compulsoriedade da mudança e educação para que todos se transformem em “coletores de sensações” (Baumann) de forma relaxada e bem-humorada em uma “sociedade humorística” (Lipovetsky). O hedonismo (quando ligado a um tipo específico de sujeito, como veremos adiante), junto ao consumismo, anomia e descartabilidade, são as várias faces da nova forma de controle social. As formas de controle sociais contemporâneas buscam privar os indivíduos da capacidade de constituir discursos significativos grupais e historicamente embasados. Ao mesmo tempo que a Cultura economificada padroniza a estrutura das sociedades ao redor do globo -tanto em relação a modos de produção quanto e relação a concepção de cultura como uma esfera não significante- o mercado implanta um sistema de mudança compulsória que permite uma fantasia de mudança e identidade individual. O indivíduo pode consumir roupas ou cultura indiana, brasileira, tailandesa, russa ou francesa, comer em fast-foods de todas estas nacionalidades e encontrar livros de autores destas origens na livraria mais próxima. Também pode mudar de discurso e moralidade a qualquer instante, mas esta multi-culturalidade é equalizada e homogeneizada:

“Forjada como um recurso do gosto ocidental, a equalização se transforma em um procedimento de hibridização tranquilizadora, redução dos pontos de resistência de outras estéticas musicais e resistência aos desafios que trazem culturas diferentes. Sob a aparência de uma reconciliação amável entre culturas, se escon156

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de a simulação de que podemos estar perto dos outros sem nos preocuparmos em entendê-los. (...) como tantas superproduções cinematográficas transnacionais, a equalização é na maioria das vezes uma tentativa de climatização monológica, de acomodamento acústico em meio ao estrondo do mundo.” (CANCLINI, 2009) O que é dito sobre música, pode ser estendido a toda lógica cultural e ideológica. O indivíduo pós-moderno já tem uma outra Cultura, que julga ser a Civilização, que lhe faz acreditar que nada disso tem importância, a não ser como lazer, ou outro tipo de produto. O máximo que pode fazer, realmente, é se identificar com alguma

“cooperativa de consumidores” (Bauman).

O novo colonialismo global exporta um conceito de Civilização (uma Cultura) ou sociedade em que toda produção cultural - além de não significativa - é também equalizada e homogeneizada. E, por isso, mantida em uma esfera separada e submetida ao nexo único do valor econômico. O conceito de “cultura” não interessa mais para a vanguarda do desenvolvimento econômico capitalista. Os valores culturais do capitalismo tradicional (de produção) são algo que a ideologia do capitalismo atual (de consumo e descarte) procura combater. Nada estorva mais o capitalismo – ou o socialismo avançados - de consumo do que a lógica de apego a qualquer valor que não o valor econômico acelerado e cambiante. Sem dúvida, do ponto de vista do colonizador que visa converter todos os “índios” do mundo a sua única “Cultura Civilizada”, a resistência destes aparece como lamentavelmente “reacionária”. Neste sentido, Zizek descreve o multiculturalismo como a expressão ideológica do atual capitalismo global:

“essa atitude que, a partir uma posição global oca, trata todas e cada uma das culturas locais da mesma forma que o colonizador costuma tratar seus colonizados: “autóctones” cujos costumes deve-se conhecer e ‘respeitar’. A relação entre o velho colonialismo imperialista e a atual autocolonização do capitalismo global é a mesma que existe entre o imperialismo cultural ocidental e o multiculturalismo. Da mesma forma que o capitalismo global supõe o paradoxo da colonização sem Estado-Nação colonizador, o multiculturalismo 157

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promove a distância eurocêntrica e/ou o respeito em relação às culturas locais não europeias. Isto é, o multiculturalismo é uma forma inconfessada, invertida, autorreferencial de racismo, um ‘racismo que mantém as distâncias’: ‘respeita’ a identidade do Outro, o concebe como uma comunidade ‘autêntica’ e fechada em si mesma, a respeito da qual ele, o multiculturalista, mantém uma distância assentada sobre o privilégio de sua posição universal. O multiculturalismo é um racismo que esvaziou sua própria posição de todos os conteúdos positivos (o multiculturalista não é diretamente racista, pelo fato de não contrapor ao outro os valores particulares de sua cultura), mas, não obstante, mantém sua posição enquanto privilegiado ponto oco de universalidade a partir do qual ele pode apreciar (ou depreciar) as outras culturas” (ZIZEK, 2008) O mesmo processo que Zizek descreve no aspecto social e cultural, Freitas descreve na sua expressão individual eu/outro e psicológica: quando a diferença é o fundante, não há identidade para fundar uma relação de igualdade e respeito pela particularidades do outro como sujeito e

“Na perspectiva oposta, a diferença é componente dialético da identidade. A identidade é incluída com parte da definição da diferença. Na realidade, não há identidade sem diferença nem diferença sem identidade. Ou seja, o indivíduo é produto desta dialética que resulta na sua particularidade. O que se reivindica para o indivíduo não é a pura diferença (que fragmenta) mas sua particularidade (que une, porque expressa a sua diferença na identidade). As particularidades podem expressar mais diferença ou mais identidade ante outras particularidades, mais ou menos contradição e eventualmente até antagonismos. A ideia de que o idêntico reprime o diferente subestima e exclui o sujeito (e sua subjetividade) da construção de sua própria particularidade e termina sendo um mecanismo de justificação do individualismo, abrindo igualmente uma via de justificação para o autoritarismo” (FREITAS, 2004, p. 141). Em ambos os níveis vemos a destruição ou negação da particularidade da identidade. A diferença como fundante é apenas uma paráfrase do vazio colonizador do multiculturalismo. Ambos tem a incapacidade de se relacionar com o outro como sujeito com suas particularidades, exatamente pela incapacidade de estabelecer uma 158

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verdadeira relação dialética. A incapacidade de verdadeiro antagonismo é sintoma desta situação. Longe de ser uma “psicologização”, que nega processos sociais e econômicos materiais, esta constatação visa apenas apontar que modelos sociais e econômicos produzem e são reproduzidos -em massa- por discursos ideológicos constituintes de traços psicológicos que se manifestam em toda população destas... Culturas. Traços e discursos que, se não são homólogos àqueles modelos sócio-econômicos, pelo menos são convenientemente complementares e divulgados pelo discurso ideológico destas Culturas ou Ideologias como “naturais” ou “saudáveis”. Fica a pergunta: então, o que pode fundamentar o ódio homicida (ou etnocida) ao outro? DO OCO E APATIA DO SUJEITO PÓS-MODERNO À XENOFOBIA E EUGENIA O modelo socioeconômico nos dá uma resposta parcial. Este modelo tem produzido um tipo de sujeito que produz um discurso incongruente, em uma fala multiculturalista que pode sustentar um isolamento e ódio ao diferente. Para tentar elucidar este paradoxo, podemos relacionar duas ideias de Eugène Enriquez: “A renovação

do individualismo tem, por fim, suprimir o sujeito e a vida interior” (ENRIQUEZ, 1994, p. 42) e “o ódio inconsciente de si é projetado sobre os outros, donde um desenvolvimento da xenofobia e do racismo.” (ENRIQUEZ, 1994, p. 49). Enriquez nos explica: “Esse ódio inconsciente de si vai ser tão forte que os indivíduos não poderão se representar como causas de si próprios (...) quando os indivíduos estão nesta situação, (...) por um processo de contra investimento, são aprisionados em fantasias de ‘renascimento e de auto-engendramento de tonalidade megalomaníaca”. (ENRIQUEZ, 1994, p. 50) “Podemos ter aí o modelo de sujeito que sustenta os sintomas de xenofobia e eugenia na pós-modernidade, intimamente ligados aos sintomas de anomia e hedonismo. Estes dois últimos termos seriam um prêmio e sinais de liberdade para um indivíduo com uma interioridade estruturada, mas, em um contexto socioeconômico que exige a criação de identidades compactas que sejam totalmente mutantes, submissas e exteriormente pragmáticas, 159

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essa anulação de-si só é suportada pela compensação sádica do ódio ao outro que é o que é (ódio aquilo de que somos privados) e um consumismo e hedonismo compensatórios. (ENRIQUEZ, 1994, p. 41- 55) Assim, o discurso pós-moderno de “cultura como conceito reacionário” e de “identidades definidas como malignas” pode ser lido como um discurso ideológico que busca criar uma justificação ou racionalização para um modelo de indivíduo adequado e submisso ao modelo de sociedade industrial e economificada contemporânea, baseada na descartabilidade e consumismo. Também podemos entender melhor o recrudescimento de radicalismos e movimentos xenófobos exatamente no seio de sociedades que teoricamente estão adotando o discurso multiculturalista pós-moderno. Como já foi dito, da mesma forma que o modelo de estado industrial destruiu primeiro as culturas dos grupos sociais para depois exportar um modelo economificado de igualdade cultural “cavalo de troia” em que a cultura não importa (é substituída pela cultura “igualitária” industrial consumista), também a igualdade com o outro existe em um contexto em que primeiro o eu já não existe senão como exterioridade. Nas palavras de Eugène Enriquez:

‘Apagar, destruir toda possibilidade de ser tocado’ (M. Enriquez), tal é o ser apático que é movido não somente pelo processo de contra-investimento (...) mas igualmente por um processo de desinvestimento letal que visa, como escreve P. Auligner, ‘à destruição da atividade de ligação e de articulação de sentido’. Compreende-se, então que todos aqueles que buscam articular sentidos, todas as ‘minorias ativas’, todos os ‘exotas’, todos os ‘marginais’, todos os ‘estrangeiros’ (…) possam se tornar objeto de ódio ou, pelo menos, de desprezo por parte de todos que vivem na certeza e não na ‘perturbação de pensar’ (ENRIQUEZ, 1994) Assim, a igualdade oferecida ao outro é apenas outro cavalo de troia: um rebaixamento ao mesmo nível de não-identidade e submissão que eu, do mesmo tipo que a igualdade cultural pós-moderna oferece para as culturas peculiares. Obviamente, se outro insistir em “ser” e não se submeter a mesma anulação identitária que já aceitei e suporto, ele merecerá todo meu ódio. 160

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CONSIDERAÇÕES FINAIS E O INDIVIDUALISTA ABELHA Da reflexão aqui desenvolvida podemos inferir que o etnocentrismo, as culturas integradas, as identidades culturais ou individuais e peculiares não podem ser consideradas causas diretas, únicas ou principais de fenômenos como o etnocídio, o genocídio ou o ódio aniquilador ao outro. Ao mesmo tempo percebemos que o etnocídio, genocídio ou ódio aniquilador do outro são também possíveis e, talvez, até mais prováveis, em um mundo de valores economificados sob a hegemonia do discurso anticultura e anti-identidade. Também, apesar das identidades nacionais desenvolvidas no estado-nação - como ele existiu na fase anterior da industrialização - terem beneficiado o consumo de massa, não podemos mais nem dizer que todo tipo de identidade cultural serviu historicamente a formas de capitalismo, nem considerar que hoje as identidades culturais ainda sirvam a tal propósito, visto que a fase contemporânea do capitalismo de consumo se baseia mais na mudança, diferenciação e em um consumidor sem caráter ou identidade definidos. As tentativas de relacionar culturas e identidades integradas com os males do etnocídio, do fascismo ou do capitalismo são hoje mais recursos retóricos usados para forjar um discurso de distração e de retirada do foco de discussão das causas e contextos específicas destes fenômenos. Finalmente é importante não confundir o individualismo clássico com o individualismo “de abelhas”. O individualista clássico era assim exatamente por valorizar sua identidade, crenças e valores pessoais: o seu individualismo era resultado de um processo de individuação ou autoconhecimento. Já o individualismo “de abelha” é apenas um egoísmo vazio, uma competição entre abelhas iguais pela sobrevivência, um retorno da lei do mais forte (ou mais rápido e sem ética) em que exatamente se abre mão de sua identidade, crenças e valores pessoais. Sem ethos ou sem ética, restam as abelhas.

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BIBLIOGRAFIA GERAL & SUGESTÕES DE LEITURA (não inclui algumas obras já citadas ao longo do livro) LITERATURA GÓTICA E LITERATURA EM GERAL: BOTTING, Fred- Gothic- Routledge; 1 edition, 1995 BOLLON, Patrice - A Moral da Mascara – Ed. Rocco, 1990 BLEIBER, E. F. - Three Gothic Novels- ed. e intro. (1966) Dover Publications; 2nd ed. Edition, 2012 BURKE, Edmund - “Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo” , 2013, Ed. Unicamp. HUME, Robert D. Hume - Gothic Versus Romantic: A Revaluation of the Gothic Novel - PMLA, 84:2 (March 1969), 282-90 GAMER, Michael – Romanticism and The Gothic: Genre, Perception and The Canon Formation. Cambridge University Press; 1 edition (2006) HIGH, Peter B. - An Outline of American LiteratureLongman- 1986, 11th edition 1995 HOGLE, Jerrold E. - The Cambridge Companion to Gothic Fiction- Cambridge University Press 2002 MALARMÉ, Stephane - Preface a Vathek- scan da edição de 1876 OUSBY, Ian - The Wordsworth Companion to Literature in English- (1988) Wordsworth Editions Ltd, 1992 PAES, José Paulo Paes e João MOURA JR. - W.H.Auden- 1986. Companhia das Letras PUNTER, David and BYRON, Glennis - The GothicWiley-Blackwell; 1 edition 2004 PUNTER, David: Editor - A New Companion to the Gothic – Wiley-Blackwell; 1 edition 2015 PRAZ, Mario - Three Gothic Novels- ed. P. Fairclough e intro. 1968 – Penguin Books, 2006 SADE, Marquês de- Os Crimes do Amor & A Arte de Escrever Ao Gosto do Público – Ed. L&PM, 2000 SCOTT, Walter – Citado na Introdução de à “The Castle of Otranto”, editado por E. F. Bleiber (1996) SNODGRASS, Mary Ellen - Encyclopedia of Gothic LiteratureFacts On File Library Of World Literature: Literary Movements) Facts on File; 1st Edition edition 2004) TURNER, Sarah Victoria; edited by Maureen Daly Goggin and Beth Fowkes Tobin. Authors. Women and Things 1750–1950: Gendered Material Strategies WATT, James- Contesting The Gothic- (1999) Cambridge University Press; Reissue edition (2006)

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BIOGRAFIA DO AUTOR Henrique Antonio Kipper nasceu no inverno de 1970, e frequenta a cena gótica de São Paulo desde 1990, e a partir de 2003 passou a ser DJ, depois produtor de eventos Góticos junto com sua esposa Flávia, como o Projeto Absinthe e outros, também co-fundadora do site (desde 2008) Gothic Station. Desde 2017 é editor geral da primeira revista gótica brasileira, a Gothic Station. Paralelamente fez carreira nas artes aplicadas e imprensa desde 1988 como desenhista, ilustrador, cartunista e roteirista, publicando nas maiores revistas e jornais do Brasil e Portugal. Organizou coletivos artísticos como o FRONT e foi seu co-editor (1998-2003), premiada série mix de HQ autoral e artes gráficas. Graduado em Letras e Literatura, é também apaixonado pelas Ciências Sociais. Criador das séries de quadrinhos Mondo Muerto e Escola de Deusinhos. Publicou, de sua autoria: A Happy House in a Black Planet 2: Introdução à Subcultura Gótica (2018) Mondo Muerto 2: Contra o Planeta dos Palhaços, quadrinhos (2016) A Salamanca do Jarau- Adaptação de Simões L. Neto em quadrinhos (2015) Mondo Muerto, quadrinhos (2014) A Happy House in a Black Planet: Introdução à Subcultura Gótica (2008) Participou com HQs, ilustrações ou Contos: FRONT 15 Anos, organizador (2016) “A Peste”, conto, em Mundo de Fantas, org. Celly Borges (2015) “O Marsupial”, conto, em Noites Sombrias, org. Raquel Pagno (2015) FRONT, quadrinhos, textos e edição, edições 7, 8, 9 e 10 (2001-2004) Escola de Deusinhos, quadrinhos, Folhinha (2001-2002) Folha de S. Paulo (1994-2004) Chargista, revista Focus, Portugal (2000-2002) Jornal Público, Portugal, ilustrador (1999-2002) Mil Perigos, quadrinhos (1995) Dragon, quadrinhos (1994) Sport Gang, quadrinhos (1990-1994) Paranoia, ilustrações de quadrinho, Malibu Comics, USA, 1990 James Jeans, tira de quadrinhos, Zero Hora, Diário Catarinense, etc (1989-1994) Charges e quadrinhos, Gazeta do Sul e Alto Falante (1987-1989) www.gothicstation.com.br/ www.facebook.com/hakipper/

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