Programa A Deus, Todomundo

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SESC PIEDADE

Texto e Direção

JOÃO DENYS

Curso de Interpretação para Teatro apresenta:

Uma imoralidade do nosso tempo


Respeitável público! Supervisão do Curso de Interpretação Para Teatro Ana Julia da Silva Instrutora de Atividades Artísticas Almir Manoel Martins da Silva Professor II

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Curso de Interpretação para Teatro, promovido pela Unidade Executiva do SESC em Piedade - Jaboatão dos Guararapes - apresenta o espetáculo teatral A Deus, Todomundo. Resultado do trabalho de formação de atores realizado pela Escola SESC de Teatro, esta montagem pedagógica permite aos alunos/atores testar-se e, ao mesmo tempo, revelar-se publicamente enquanto artista, possibilitando ainda a conquista do registro profissional, validado pelo SATED-PE (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão no Estado de Pernambuco), além da inserção no mercado de trabalho, como vem ocorrendo com a maioria dos atores formados por esta Instituição. Ressaltamos que o Curso de Interpretação para Teatro e esta montagem pedagógica


é motivada pelo desejo da Instituição de continuar investindo no desenvolvimento artístico e cultural de nossa sociedade por meio da difusão das artes, e neste caso em especial, promovendo a continuidade de um projeto teatral e pedagógico por meio de um trabalho sério e criativo. Assim, depois de viver/sentir, através das lentes e mente dos professores/encenadores Wellington Júnior (Psicoses, de Sara Kane-2006 e De uma Noite de Festa, de Joaquim Cardozo-2008) e Antonio Cadengue (A Morte do Artista Popular-2010, texto escrito por Luís Reis sob encomenda para revelar ao público os doze atores que andavam à procura de seus personagens), convidamos todos para assistir/embarcar na viagem desta nova turma que, sob a magistral direção pedagógica/ estética do dramaturgo/encenador e professor João Denys, se faz e refaz a todo instante se (re)inventando e (re)apresentando nesta odisséia teatral que remete A Deus, Todomundo sobre os questionamentos, controvérsias e humores tão comuns aos humanos. A peça do século XV, de autoria desconhecida, reescrita por João Denys, é o resultado de mais de dois anos e meio de trabalho,


dedicação e empenho dos alunos/atores e dos professores convidados Adriana Milet, Almir Martins, Ana Elizabeth Japiá, Antonio Cadengue, Célio Pontes, Durval Cristóvão, Eron Vilar, Flávia Layme, Gera Cyber, Giordani Gorki, João Denys, Leidson Ferraz, Luiz Felipe Botelho, Marianne Tezza Consentino, Murilo Ferreira, Rakelly Nogueira, Rodrigo Dourado, Sérgio Sandes e Wellington Júnior que tanto contribuíram para a formação dos alunos ao ministrar as disciplinas curriculares e extracurriculares, possibilitando o exercício contínuo da criatividade, da ética e do fazer/pensar teatral. Registramos ainda as enormes contribuições, preocupações e sugestões que fizeram de nossas reuniões pedagógicas um espaço de crescimento para o próprio curso e para cada aluno que por aqui passou. Um agradecimento especial ao professor João Denys por sua parceria, seu olhar pedagógico, sua paciência, sabedoria e generosidade para com nossos discentes e equipe de trabalho. Obrigado também a Daniela Travassos, pela contribuição nos momentos difíceis, aos colegas professores e parceiros desta Unidade Executiva: Diogo Barbosa,


Ivana Motta e Rakelly Nogueira e aos estagiários como um todo, em especial a Lucrécia Forcioni e Gabriela Fernandes por nos trazer renovação, apoio e parceria. Agradecemos também a estes alunos por toda reflexão e ensinamento que nos trouxeram, pela possibilidade de rever e (re)pensar nossa pedagogia e didática, enriquecendo e fortalecendo os processos de ensino/ aprendizagem do teatro - suas especificidades, dificuldades, seu caráter, suas funções, finalidades e todo esse universo que permeia o fazer/pensar teatral. Obrigado também ao Teatro Barreto Júnior na pessoa de Marcelino Dias pela grande parceria na reta final. Obrigado aos que fazem o CDRM, do Sesc Casa Amarela, por todo apoio na gravação da sonoplastia do espetáculo. E para finalizar, agradecemos muito especialmente a Gerência do Sesc Piedade na pessoa de Rudimar Constâncio por todo apoio e empenho nessa produção e pelo olhar instigador a esta atividade. Agradecemos também a Galiana Brasil e José Manuel, por estarem sempre por perto, dando suas contribuições e reflexões para questões que impulsionam qualidade ao curso.


Mais que uma peça, vemos nesta montagem um exercício provocador e instigante em que a encenação dialoga com a contemporaneidade e suas mazelas ao mesmo tempo em que lança luzes sobre as possibilidades de mudança, tornando o enredo mais precioso ainda. E independentemente de provocações, reprovações e/ou aprovações críticas, apostamos na magia inerente ao teatro para transcender as limitações e expectativas ainda pulsantes para que o teatro se realize e aconteça, a crítica e o público apareçam e as cortinas continuem abertas aos sonhos e desejos que permeiam os delírios artísticos de quem não sobrevive sem ar, quer dizer, sem arte.



O corpo alegórico de Todomundo: ressonâncias de uma pedagogia do amor e do teatro João Denys

Ter fé na possibilidade do amor, como fenômeno social e não apenas excepcional e individual, é uma fé racional baseada na compreensão da natureza verdadeira do homem.1 Erich Fromm

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enhum sentimento pode ser mais forte e resplandecente do que o amor em todas as suas formas, expressões e práticas. Agostinho nos diz que o meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que vá, é ele que me leva. O Vosso Dom inflama-nos e arrebata-nos para o alto. Ardemos e partimos. Fazemos ascensões no coração e cantamos ‘o canto dos degraus’. 1. FROMM, Erich. A arte de amar. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 165.


É o Vosso fogo, o Vosso fogo benfazejo que nos consome enquanto ardemos e subimos para a paz da Jerusalém celeste.2

É essa chama reluzente que nos eleva para o infinito e nos aproxima mais e mais de nossa prática mundana e teatral. A busca desse paradoxo crepitante e barroco tem sido o alicerce da nossa encenação. Mesmo desintegrado na sociedade contemporânea, como aponta Erich Fromm, o amor é o outro lado dessa imoralidade para iniciantes do teatro.

2. SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1984, p. 363.


Atuar com os sete sobreviventes dessa busca para além da representação, no Curso de Interpretação para o Teatro do Sesc Piedade, tem sido uma luta para manter aceso esse sentimento maior que nos faz aprender radicalmente. Esse amor que barroqueamos não é “o ridículo da vida”, mas uma relação com o mundo, com todo o mundo. “O amor não é principalmente uma relação com certa pessoa. Ele é uma atitude, uma orientação de caráter que determina como alguém se relaciona com o mundo como um todo, e não com um ‘objeto’ de amor”.3 Como nas ruínas de Walter Benjamin4 restaram aprendizes brilhantes feito brasas, lutando comigo e com as forças vivas do teatro para chegar aos deuses, alcançar o prazer, apreender a alegria. Para compor a reescritura da imoralidade que entregamos aos públicos, precisei desse grupo heterogêneo e contraditório que minguou aos poucos, num processo de seleção natural e auto-exclusão. Precisei compreender essas criaturas devotas e libertinas 3. FROMM, Erich. Op. cit. p.57. 4. Conf. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: 1984.


ao mesmo tempo. Ao longo do processo, elas deram todas as pistas do que desejavam, do teatro que queriam fazer, das provas que queriam passar. Da colaboração recíproca, dos laboratórios intensivos, surgiu A Deus, Todomundo, costurada para eles sob medida. Quando José Rudimar Constâncio e sua equipe de coordenadores do Curso de Interpretação para Teatro me convidaram para assumir o trabalho de conclusão dessa turma de 2012, vi diante de mim mais um dos grandes desafios pedagógicos entre muitos que já enfrentei. Não posso esquecer que a pedagogia teatral é uma atividade mortífera, transformativa, que nos consome até a alma, como o fogo que evoco na abertura deste texto. Em busca de uma pedagogia do amor, provoquei esse grupo com questões éticas, questões teóricas, questões práticas, desafios cognitivos e corporais. Como resposta ao que eles e elas queriam dizer com o teatro, apontavam os caminhos do expressionismo e eu perscrutava o erotismo na superfície de seus corpos e de suas ações adolescentes. Impressionava-me com a relação que todos mantinham com a religião e mais: a mistura indiscriminada de devoção religiosa e profana. O desejo de


ofertar seus corpos nus no altar do teatro e o desejo de ocultarem-se nos seus relicários individuais e narcísicos. A alegoria daqueles corpos sempre em mutações queria dizer algo que me escapava, ia além da aprendizagem do teatro stricto senso, mas me tocava, era um sintoma que eu, sem muitas certezas, fui reconhecendo como o motor da possível aprendizagem que ali se esboçava. Devassos ou místicos? Ambos impuros e exagerados. A Idade Média despejando-se no Barroco foi a trilha que abri nesse abismo. A essa altura do nosso processo de aprendizagem já me sentia em


casa, solidário e feliz com os meus aprendizes. Eu já conseguia viajar ao encontro de seus corações e fazer deles os meus desejos. Após inúmeros testes, quase científicos, e laboratórios desconcertantes, retomo ou reencontro-me com uma ideia. Reconquisto meu tempo de principiante do teatro. Foi Luiz Maurício Carvalheira que me apresentou Todomundo (Everyman, c. 1495), moralidade inglesa de autor desconhecido, na tradução de Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça. Com esta peça antiga, fiz minha primeira encenação no Curso Regular de Teatro do Teatro Hermilo



Borba Filho, em Olinda, capitaneado por Marcus Siqueira e Luiz Maurício Carvalheira. Lá se vão trinta e oito anos. De lá para cá percebo a ressonância torcida da inadequação em encenar uma moralidade em nossos tempos sem moral. Montar uma moralidade hoje é uma imoralidade. Então que seja uma imoralidade nesses últimos dias de 2014. As dificuldades de produzir um espetáculo são imensas e desestimulantes. Mas o prazer de ver esses rebentos crescerem com seus limites e conflitos é revigorante. Para além das frustrações técnicas e estéticas há o fato pedagógico, a relação estabelecida nesta atividade que provoca revoluções individual e grupal. Esse grupo cheio de Deus e sexo, de Amor, de


descobertas próprias dos verdes anos, me provoca a redescoberta sempre surpreendente do amor ao teatro, do amor ao ensino, do amor e do respeito ao trabalho. Entre meus queridos aprendizes Bruna Bastos, Gabriel Albuquerque, Luciana Lemos, Marco Antonio Lins, Moisés Ferreira Jr., Patrick Nogueira e Sheila Mendonça e a estética do reamar, recodificar, ressignificar, refazer, referenciar, encontro-me no lugar teatral em que exponho uma obra impura, entre católicos, evangélicos, espíritas, budistas, judeus, maometanos, xangozeiros, umbandistas a provocar o improvável baile ecumênico em nome de Deus e da subida à Casa do Criador. Poesia flamejante, labareda que se consome no ar, subindo... Qual o peso do nosso amor? Nossa peça híbrida, plena de corpos alegóricos e alegorias, caracteriza-se pela citação e pela homenagem. Reaviva e reafirma o


Barroco sem nenhum pudor; reforça a sua amplidão de assuntos, sua dilatação de temas, seu poder a-histórico, sua dimensão miscigenada, sua interpenetração e acomodação a nossa cultura, brasileira, latina, contemporânea. Ao aglomerar as dimensões do barroco antigo com o barroco dos nossos dias de século XXI, encontramos no cineasta Peter Greenaway nosso modelo, nossa inspiração metodológica: passado, presente, plástico ordinário, ouro falso, multiplicidade autoral, atuação antirrealista, sadomasoquismo, eroticidade mística, desconstrução do mundo, revivificação de nossos duplos, tangibilidade das nossas ambiguidades e abstrações. Descobrimos nesse longo processo, que somou mais de doze meses, que fazer teatro é uma gota preciosa na construção de nossas individualidades, de nossa humanidade, de nossa cidadania. Esse árduo trabalho


nos ensinou a reescrever com propriedade, a reviver com intensidade, a relembrar com qualidade, a renascer com um pouco de sabedoria. Nossa encenação rever Karlheinz Stockhausen, Johann Sebastian Bach, George Frideric Handel, a banda de metal brasileira Sepultura, Ludwig van Beethoven e Arvo Pärt; insere retalhos relevantes do quadro Cimon e Pero (c. 1630), de Peter Paul Rubens, e da Última Ceia (1594), de Jacopo Bassano. As vicissitudes do convívio humano nos configuraram no número sete. Sete atores para Todomundo. Um número muito significativo para os que estão concluindo sua iniciação no reino do teatro. “O sete indica o sentido de uma mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva”5. Ainda no âmbito dos significados e das significações de nossa obra, “o sete, número do homem perfeito – i.e., do homem perfeitamente realizado – é portanto e compreensivamente , o número do andrógino hermético, como é, na África, o dos Gêmeos míticos”6. Confluência sígnica que 5. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Coordenação Carlos Sussekind. Tradução Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988, p. 826. 6. Ibidem, p. 831.


reverbera na imagem central da encenação de A Deus, Todomundo: o vigésimo primeiro arcano do Tarot: A Coroa dos Magos ou O Mundo. Análogo ao número sete, esta imagem simboliza a totalidade do mundo e do homem. “o mundo assim figurado é o símbolo das estruturas equilibradoras ou, melhor ainda, segundo uma expressão de Gilbert Durand, uma estrutura de antagonismo equilibrado”.7 Eis a súmula dos nossos propósitos. O desafio dionisíaco nos move à procura de uma crueldade difícil de explicar aos que nos recebem nessa cerimônia mágica, sacra e profana. Tocar nessa busca de Deus é algo vulgar nesses tempos em que proliferam os falsos profetas, as incontáveis igrejas e a dominação religiosa. A Deus, Todomundo pretende ser um grito na selva das cidades, uma possibilidade de aprendizagem do amor, do amor a todos e a tudo que nos rodeia, do nosso amor ao teatro. Aos sete sobreviventes dessa aventura corporal e espiritual, nosso desejo mais vívido de que todos atinjam uma grandeza humana e artística. Recife, Madalena, novembro de 2014. 7. Ibidem, p. 626.





A Deus, Todomundo: da mesa à cena Durval Cristovão

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dramaturgo mitificado ficou cara a cara com o criador João Denys Araújo Leite. Tiveram uma longa conversa que atravessou décadas. O assunto predileto dos dois? Inutilidades. Santo Agostinho dividia as coisas do mundo em duas ordens distintas. A ordem do “uti” e a do “frui”. A primeira está ligada as coisas que são utilizáveis: utensílios e ferramentas. A segunda engloba tudo que é desfrutável, que podemos usufruir; gozar; que podem ser amadas por causa delas mesmas. Das sucessivas visitas do Incriado, do eterno duelo entre o criador e a criatura, nasceu A Deus, Todomundo. O último pedido do Altíssimo, do Maravilhoso, do Digníssimo: inventariar os vícios e as virtudes do homem no mundo, uma prestação de contas em que não se pode sonegar nada. Essa imoralidade dos nossos tempos é uma obsessão antiga, nasceu de uma moralidade do século XV chamada Todomundo, de autor desconhecido. Foi a primeira peça encenada por João Denys quando ainda era aluno.


A paródia, estratégia literária que reúne em um só texto dois discursos ambíguos e complementares, é um dos principais recursos estilísticos utilizados pelo dramaturgo. Ela é essencialmente crítica e subversiva. É capaz de arrancar do leitor um riso desbotado. Há tanto no texto quanto no espetáculo um princípio de delicadeza que se estende por todas as cenas. Durante o espetáculo, a ideia barroca, de que o mundo é, todo ele, teatro, se faz presente: “alguma coisa está podre neste cenário.” No introito os comediantes apresentam a peça, convocam todos para uma aventura singular. Na primeira cena que se segue, Deus zomba das criaturas e ri de si mesmo como um bobo. Do mais alto de sua torre, sobre as nuvens do céu, cospe o Senhor sem consultar a direção dos ventos. Passeávamos pelo Éden quando a nudez ainda era possível. As personagens todas estão em “trajes sumários”, definição do encenador. Ainda existe alguma pureza no corpo nu? Soaram os suores na crueldade do teu verbo divino e comemos do teu proibido. O Criador se diverte com os seus jogos: “como pulga para os moleques, somos nós para os

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deuses, [...] eles nos matam por esporte.” resmungou o velho Lear. O Deus sádico assiste a penúria dos homens desesperados diante do inevitável. Divertiuse outras vezes, apostou com o diabo a alma de Jó, queria provar que existe um amor gratuito, um amor do qual não se pode escapar. A nossa genitália insubmissa desafia-te, Senhor. Foi assim desde que nos concedestes o que no princípio só a ti era permitido: o dom da criação. Somos imagem e semelhança Tua e o inverso se aplica perfeitamente. O Pai do Céu manda chamar todomundo para prestar contas de sua vida. Estão diante do “abraço inevitável da morte”. A vergonha é mesmo um instrumento poderoso de regulação social. Enquanto estivermos protegidos por nossas nebulosas consciências, tudo vai muito bem, obrigado. Em nosso imaginário podemos fazer mil estripulias, realizar todos os crimes e sair impunes, com a consciência limpa. A razão nos ensinou a nos livrarmos das nossas vilezas, a consciência é uma terra de ninguém. No Juízo Final Todomundo é descarnado, seu corpo é macerado. Gradativamente os ossos de todo mundo estarão à mostra.


Quando finalmente a “indesejada das gentes” se instala, o anjo Gabriel vem anunciar a Boa Nova e o peso do amor divino fica eternamente pregado na cruz. É a sombra de um certo Galileu que nos persegue. Fui chamado e escolhido para banquetear na mesa da criação. Pairei com ele sobre o abismo. Lá, o nada era um profundo e impenetrável. As trevas reinavam sobre ele. Trabalhamos sobre o meio termo entre a forma e o nada: o caos. Quando entrei na sala de trabalho, toda a massa informe da criação estava posta. Orientado carinhosamente pelo demiurgo, que magicamente enxergava a cena mover-se no meio do lixo da criação, de todo o entulho dos experimentos acumulados. A mesa, poderoso instrumento de trabalho que me foi negado pela cena contemporânea, que tão preocupada com os suores provocados pela ação dos grandes músculos, esqueceu ou relegou a um segundo plano os soares provocados pela ação dos pequenos. O espírito é solidário aos músculos menores, afirma Bachelard. Quando os pequenos músculos não estão interessados, a vida intelectual se ensombra. Trabalhamos junto aos atores de dentro para fora e de fora


para dentro, duas vias possíveis que não se anulam, são caminhos complementares. Quando decidimos pela mesa nos primeiros encontros da montagem, não desconsideramos o impacto que causou o mestre polonês Grotowski quando disse aos atores ingleses liderados por Peter Brook: Deixem tudo que vocês têm do outro lado da porta. Não tragam nenhuma bolsa, jornal, cachimbo, cigarro, nada exterior deve entrar na sala de ensaio. Deixem lá fora todas as roupas que não são necessárias. Entrem de pés descalços com o mínimo de roupa possível1

O “shortinho” de Ryszard Cieslak, um dos principais nomes que compunha o elenco do Teatro Laboratório, causou verdadeiro impacto não só aos atores do Royal Shakespeare Company, que vivenciariam um processo inteiramente novo durante a montagem de US, espetáculo de Peter Brook, mas em toda história do teatro, principalmente no tocante ao trabalho de ator. 1. BROOK, Peter. Avec Grotowski; tadução de Celina Sodré e Raphael Andrade. Brasília: Teatro Caleidoscópio & Editora Dulcina, 2001. p. 39.



A minha chegada coincidiu com o término da escritura dramatúrgica de A Deus, Todomundo, que nasceu em grande parte dos experimentos feitos com os alunos do Curso de Interpretação para Teatro do SESC de Piedade. Junto ao artífice do texto e da cena, presenciei os pequenos milagres da criação teatral, a passagem da escritura dramatúrgica à escritura cênica. Eis a grande lição: plasmar um mundo, fazer dançar a realidade e não representa-la apenas. Como disse o astrônomo norte-americano Carl Sagan: Tudo fora construído com um sentido [...]. Na trama do espaço, como na natureza da matéria, e ainda numa grande obra de arte, lá está em letras pequenas, a assinatura do artista. Sobrepondo-se aos homens, aos deuses e aos demônios [...] há uma inteligência que antecede o Universo.2

Estive sentado à direita da inteligência que antecedeu o universo da criação, a mim foi revelado alguns segredos da sua assinatura.

2. SAGAN, Carl. Contato. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 414.


OS SETE CAMINHOS Gabriel Albuquerque

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começo de um texto parece com o começo de uma vida: primeiro pensamos em mil coisas, queremos abarcar tudo, uma tempestade de ideias e vontades lhe sopra o que parece ser o melhor caminho. E então você vai, começa, mas sem mal começar a jornada você quer recomeçar. Porém, na vida, diferentemente do texto, não há como voltar atrás; como o velho Chico disse: “Ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo...” Então aproveitando que já comecei esse texto, vamos falar da vida. Continuando a oração do Chico Xavier: “Ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo. Embora qualquer um possa recomeçar e fazer um novo fim”. É isso! Assim se deu minha vida, ou pelo menos o começo dela. Mas, pulemos esse introito engendrado pela aflição de um ser em começar a escrever o princípio do que pode ser sua vida, e vamos trazer para essa historia outros “mortais íntegros”. Éramos 10 quando o processo deu inicio, ainda chamado: Everyman, (uma Moralidade


medieval) fomos apresentados ao mundo barroco e seus componentes. Começamos com as alegorias, experimentamos e vivenciamos em nosso corpo, com exercícios em que tínhamos de nos transformar em corpos alegóricos, primeiro esses corpos estavam sozinhos, em outras semanas, os corpos em outras formas e expressando um outro conceito, dialogavam em duplas e na última semana em grupos. O crescimento e melhoramento das alegorias ficaram registrados nas lentes tecnológicas e nas da alma. Juntamente com os corpos alegóricos, conhecemos o cineasta Peter Greenaway e seus filmes de estética barroca. Nesse momento do processo já sabíamos que nossa peça seria uma adaptação de Everyman. Então, tudo o que víamos e fazíamos devia estar diretamente ligado ao nosso trabalho final. Denys sempre deixou claro para todos nós que a peça teria nosso DNA. A partir dessa proposta, de construir o texto da peça com o que há de mais puro e mais terrível de nós, ele nos fez chorar, sorrir, pensar, confessar, odiar, amar e tantas outras sensações e vivências que ficarão impregnadas em cada um que participou daquelas “seções coletivas”.


Perdoem meu esquecimento, não lhes atualizei de que nesse momento somos 9 alunos-atores. E chegou o momento de sermos apresentados ao nosso assistente de direção, um jovem que assim como nós, também é aluno e do mesmo mestre. Tivemos uma oficina de máscaras com Durval, e logo percebemos que ele era um cara que (talvez por estar no mesmo “status” que a gente, o de aluno) encaixava muito bem com a turma, já era de esperar, nenhum passo de Denys é impensado. Os encontros com Durval foram incrivelmente tocantes, viscerais, transcendentes, emocionantes, energéticos. Desde já, meu muito obrigado a essa pessoa tão luminosa e entregue à arte que nos proporcionou momentos inesquecíveis e conselhos que levaremos na bagagem. Pela primeira vez estávamos tendo o contato com máscaras, pela primeira vez pudemos sentir o poder que aquelas vidas nos dão. A cada encontro era uma nova vivência, a cada nova vivência uma nova percepção e dessas novas percepções que se atrelaram a nosso corpo surgiam novas formas, novos seres, novos corpos e alunos cada vez mais atores. Além do trabalho com máscaras, pudemos iniciar um trabalho com instrumen-


tos de percussão, recurso muito utilizado na peça, tanto os sons gravados quanto os produzidos em cena por nós . O trabalho com máscaras e com os instrumentos tem um poder enorme sobre mim e acredito que também se fez na turma; ele nos faz transcender, nos faz expor nossos “demônios”, somos tomados por forças que vivem ou viveram em nós, ou fomos nós, e temos de controlar tudo isso e tomar posse . Com certeza esses trabalhos foram os que mais mexeram comigo e me afetaram por completo. Um trabalho que foi apenas uma semente, mas que já se enraizou. Além desses trabalhos, Denys também focou muito nas atividades de ritmo e pulso, uma carência da turma. Mas antes de entrarmos no mundo do tempo corpo-espaço, mais uma baixa nos finalizadores do curso de interpretação teatral do Sesc: somos agora 8 comediantes. Comediantes esses, que já iam conhecendo seus personagens, iam lendo as primeiras cenas, iam se encontrando nas páginas da peça que agora se chama A Deus, Todomundo. Foi incrível ver como Denys conseguiu transcorrer para o papel, tudo o que ocorreu em confidencialidade naquela pequena sala, em toda


linha havia uma vivência feita em sala, em cada página um pouco do ser de cada um dos integrantes que resistiram e resistem no oficio. As primeiras leituras foram feitas na sempre presente mesa. A mesa marrom de madeira meio velha, mas muito resistente, palcos e cenários de tantos trabalhos nossos, a mesa que nos acolheu, mas nos fez doer, a mesa que nos preparou, acompanhou nossa evolução, a mesa que por muitas vezes foi nossa confidente, nossa alavanca, nossa fortaleza que cedeu seu tempo e experiência para mais uma turma que lhe contaminou e foi contaminada, mesa essa que só nos disse adeus quando nos deixou prontos, ao menos para esse primeiro exercício. Desde já, meus agradecimentos à mesa que jamais deixará de existir em mim. E cada vez mais deixamos de ser alunos, demos adeus para a sala que por dois anos e meio foi nossa, deixamos muitas partes de nós nela: sentimentos, anseios, pecados, segredos, vontades, lagrimas, sangue, medos, historia. Aquela sagrada sala, está marcada de nós, assim como estamos dela. Chegamos agora ao teatro. Sem esquecer os anos de trabalhos, chegamos para ensaiar


agora numa nova casa, a casa de todo ator (ou deveria ser). Chegamos com uma consciência nova, deixamos para trás a fase de curso, o oficio está pra começar, “o tempo que resta é um nada”, e então, liderados por um militante engajado e apaixonado, com seus “500 anos de teatro”, fomos à luta. Posso dizer que essa fase dos ensaios no teatro foi onde tudo ficou mais claro pra mim. É quando vai chegando no fim que vamos dando conta do caminho percorrido, de tudo o que já trilhamos. Nunca fomos um grupo homogêneo, os professores e coordenação sempre deixavam claro isso para todos nós. Algumas vezes esse fator chegou a nos fazer mal, chegou a nos prejudicar e a mexer com as nossas cabeças. Mas sempre tivemos essa consciência de que não éramos um grupo, e por mais que pressionassem o surgimento de um, “nada acontecia”. Mas, hoje percebo o quão importantes foram essas querelas, pois separaram os que de fato lutaram e resistiram dos que não estavam prontos para permanecer nessa luta. Somos muito diferentes, por muitas vezes não soubemos lidar um com o outro, por vezes cansamos um do outro, alguns pensaram em abandonar o barco, mas quando se tem um


mestre no comando, fica mais fácil remar. Quem disse que não conseguiríamos? Quem nos subestimou? Quem desacreditou? Sim, houve indivíduos para todas essas perguntas, mas não foi por eles que permanecemos na luta, não foi por eles que permanecemos apaixonados, não foi por eles que nos aceitamos. Foi por nós. Também fomos abençoados com grandes professores apoiadores. Graças ao Sesc, tivemos a oportunidade de conviver e aprender com pessoas incríveis que nos faziam cada vez mais pessoas resilientes. Obrigado aos que acreditaram em nós. Porque nós merecemos a vitória, independente de sermos um grupo ou não. “Eles se amam de qualquer maneira”, e nós nos amamos, na nossa maneira, nas nossas dificuldades e nas dificuldades que nos impuseram. Não quisemos ser os melhores ou os mais unidos e talvez surjam outras turmas com o sentimento de grupo mais aflorado, não sei. O que tenho certeza, é que esses 7 atores foram honrados como a primeira turma no novo modelo de curso do SESC. Chegamos onde muitos não tiveram a ousadia de chegar. Não perca as contas, agora somos 7. E pelo fato de estarmos cada vez mais próximos do juízo final, o


adeus torna-se mais doloroso, em contrapartida, já estamos acostumados com despedidas, afinal éramos 23. Mas, o fogo continua nos consumindo, e esse que vos fala, que por tanto tempo de sua vida carregou o 7 nas costas, hoje caminha ao lado dele. Que o orgulho de fazer parte de um grupo tão merecedor como este, permaneça sempre vivo. E por fim, deixo toda minha admiração ao mestre João Denys Araújo Leite. Um mestre que muito mais que ensinamentos sobre a arte de atuar, nos ensinou por meio de teorias e práticas, a arte de ser ator. Desde enriquecimentos de o que ler, assistir, ouvir, à forma de se tratar o companheiro de cena, o palco, um ensaio. Denys riscou suas iniciais em nosso íntimo, com gestos que para muitos passariam despercebidos, como: perguntar ao garoto raquítico, que está com problemas de saúde, como anda sua cabeça (psicológico). É essa sua sensibilidade com o outro, com o espaço, com a arte, que nos faz perceber que ser ator é muito mais do que pensávamos. Saio desse processo, sem dúvida, uma nova e melhor pessoa, um ator consciente de seus deveres com a sociedade, com o outro, comigo e com a arte. Que todo-


mundo aprenda com esse senhor de 500 anos. E que possamos disseminar seus ensinamentos e seu amor pelo ofĂ­cio, nos caminhos que nos aguardam e nas pessoas que por eles passarem. Deixo aqui, em nome dos sete nomes, dos sete guerreiros, dos sete loucos, dos sete pecadores, nosso MUITO OBRIGADO!







a deus, todomundo Texto, Direção e Mise-en-scène João Denys ELENCO Comediantes Bruna Bastos, Gabriel Albuquerque, Luciana Lemos, Moisés Ferreira Jr., Patrick Nogueira e Sheila Mendonça Deus  Marco Antonio Lins Voz de Deus  João Denys e Marco Antonio Lins Morte Luciana Lemos Todomundo Bruna Bastos e Moisés Ferreira Jr. Amizade Gabriel Albuquerque Parente  Patrick Nogueira Riqueza Luciana Lemos Caridade  Sheila Mendonça Sabedoria Luciana Lemos Oficiantes Gabriel Albuquerque, Luciana Lemos, Marco Antonio Lins, Patrick Nogueira. Vozes dos Oficiantes Bruna Bastos, Gabriel Albuquerque, Marco Antonio Lins e Patrick Nogueira Mãos da Confissão  Marco Antonio Lins Voz da Confissão Gabriel Albuquerque Arcanjo Gabriel Gabriel Albuquerque


FICHA TÉCNICA Cenário, Figurino e Maquilagem  João Denys Direção geral de cenografia  Manuel Carlos Adereços  Manuel Carlos e João Denys Iluminação  Eron Villar Sonoplastia ao vivo  Adriana Milet Sinos  Marco Antonio Lins Tambores Bruna Bastos, Gabriel Albuquerque, Patrick Nogueira e Luciana Lemos Sonoplastia gravada  João Denys Confecção de tambores  Charly Jadson Design de aúdio Luciano Brito Studio  CDRM – Sesc Casa Amarela Design Gráfico  Hana Luzia Ilustração da carta de Tarot O Mundo  João Denys Assistente de Direção  Durval Cristovão Assistente de Maquilagem Bruna Bastos Operação de luz  Eron Villar e João Pedro Leite Operação de som Lucrécia Forcioni Fotografias do Espetáculo  Hans Von Manteuffel Contra-Regra Elenco Confecção das Máscaras dos Comediantes  João Denys Confecção do Figurino  Manuel Carlos e Irani Galdino Cenotécnico  Ernandes Ferreira Serralheiro  Israel Marinho Confecção de Adereços  Manuel Carlos, João Denys, Aline Rodrigues, Luiz Antônio Júnior, Nil Arruda, Jeronimo Barbosa


Direção de Produção  Ana Júlia da Silva Assistência de Produção  Almir Martins, Ana Júlia da Silva, Daniela Travassos, Gabriela Fernandes, Diogo Barbosa e Ivana Motta Produção  Sesc Piedade Realização  Fecomércio PE | Sesc Pernambuco

Recife, novembro de 2014


SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO DEPARTAMENTO NACIONAL Antonio Oliveira Santos Conselho Nacional Maron Emile Abi-Abib Direção Geral Nivaldo da Costa Pereira Coordenador de Educação e Cultura Márcia Costa Rodrigues Gerência de Cultura Raphael Vianna, Mariana Pimentel, Vicente Pereira Equipe de Artes Cênicas DEPARTAMENTO REGIONAL PERNAMBUCO Josias Albuquerque Presidente Antônio Inocêncio de Lima Diretor Regional Fernando Soares Ouvidor Wladimir Paulino Vilela Diretor de Administração e Finanças Teresa Ferraz Diretora de Educação e Cultura


Ana Paula Cavalcanti Diretora de Atividades Sociais Maíra Rosas Assessora de Comunicação José Manoel Sobrinho Gerente de Cultura Galiana Brasil Professor II - Artes Cênicas UNIDADE EXECUTIVA – SESC PIEDADE Rudimar Constâncio Gerente Daniela Travassos Supervisora de Cultura Ana Júlia da Silva Instrutora de Atividades Artísticas Almir Martins e Diogo Barbosa Professores de Teatro Ivana Motta Professora de Dança Rakelly Nogueira Professora de Música Gabriela Fernandes Estagiária de Teatro




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