a tempestade

Page 1

A

T E M P E S T A D E



A

T E M P E S T A D E



A

T E M P E S T A D E

W i l l i a m

S h a k e s p e a r e


pe r s o n a g e n s

D A

P E Ç A

AL O N S O R e i d e Ná p ol e s S E B A S T I Ã O s e u i rmã o PR Ó S PER O o l e g í t i mo D u q u e d e M i l ã o A N T Ô N I O s eu i rmã o, d u qu e u s u rp a d or de Milão F ER D I N A N D O f i l h o d o R e i d e Ná p ol e s G O N Z AL O u m v e l h o e h o n es t o c o n s e l h ei ro A D RIA N O n o bre F RA N C I S C O n o bre CALI BÃ e scr avo se l v a g e m e d i s f orme T R Í N C U L O palhaço E S T É F A N O d e s p e n s e i ro bê ba d o MIRA N D A f i l h a d e P ró s p e ro ARIEL e sp í r i to d o a r Í RI S e sp í r i t o C ERE S e sp í r i t o J U N O e sp í r i to C o m a nd a nt e d e u m n a v i o cont r a m e st r e m a r i n h e i r os N i nf a s e sp í ri t o s S e g a do r e s es p í ri t o s O ut r os

e s p í r i tos


A T O

I

C e n a

I

(A b o r d o d e u m n a v i o n o ma r. Te mpe st ade , co m r e l â mpa gos e t ro v õ e s . E n t ra m, por lados dife re nt e s, um co m a n d a n t e d e n a v i o e u m c on t rame st re ) C O MA N D A N T E C on t ra mest re ! C O N T RAME S T RE A qu i , comandant e ! Tud o b e m? C O MA N D A N T E B em. F a l a i com os m ar i n h ei ros . P e g a i f i rme, s e n ã o, i re mos dar à cost a. M ão s à o bra ! M ã os à obra ! (E nt r am ma ri n h ei ros ) C O N T RAME S T RE Va mos, coraçõe s! C o r ag e m! C ora ge m, me u s c o ra ç õe s ! Força! C orag e m! A m ai na i a mez e n a ! P re s t a i a t en ç ã o ao apit o do co m and a n t e ! — S o pra , v e n t o, a t é a r re be nt ar, se houv e r e sp aço ba s t a n t e ! (E nt r am A l on s o, S eba s t i ã o, A n t ôn i o , Fe rdinando, Go n z al o e ou t ros ) . AL O N S O C u i d a d o , c u i d a d o , bondoso cont rame st re ! O n d e es t á o c o ma n d a n t e ? S ed e h o me ns! C O N T RAME S T RE P o r obsé quio, ficai l á e m ba i x o. A N T Ô N I O Contramestre, onde está o comandante? C O N T RAME S T RE Nã o o e st ais ouv indo? M as, as s i m, a t ra p a l h a i s n o s s o t ra ba lho. Pe rmane ce i nos cam ar o t e s ; es t a i s ma s é a j u d a n d o a te mpe st ade .

3


G O N Z AL O Ten d e pa c i ê n c i a , a mi g o. C O N T RAME S T RE Qu a n d o o ma r t i v e r paci ênci a. Vam o s, f ora d a q u i ! Qu e i mport a a es t e s berra d o r e s o n o m e d e re i ? I d e pa ra os c a ma rot es! Si l ên ci o ! N ão n o s p rej u d i q u ei s ! G O N Z AL O B em; ma s l e mbra - t e d e qu em le v as a bord o . C O N T RAME S T RE Ni n gu ém a q u em e u ame m ai s d o q u e a mi m própri o. S o i s c on s e l h ei ro, não? S e p u d e r m o s i mp or s i l ên c i o a es t e s el e me nt os e estabe l e ce r o r d e m i med i a t a , n ã o t o c a re mos em uma só corda m ai s. R e co r r e i a v os s a a u t ori d a d e; ma s s e e la for i nope r an te , d ai g r aç a s a o c éu p or t erd es v i v i d o t ant o e fi cai no s cam ar o te s pre pa ra d o s p a ra o qu e v o s s a hora v os reser vo u . — C o r ag e m, me u s c o ra ç õe s ! — Saí d o cam i nh o , já d i s s e! ( S a i . ) G O N Z AL O Ten h o mu i t a c on f i a n ç a n e s t e cama r ad a. N ão te m c a ra d e qu em h á d e morre r afog ado. Tem m ai s car a d e e n f o rc a d o . P ers i s t i , b on d os o Fado, no enfo r cam e n to d el e . F a ze i qu e a c ord a d e s eu de st ino sej a n o sso cab o , q u e o n o s s o me s mo n ã o of e re c e nenh um a r e si stê n cia . M a s s e e l e n ã o n a s c e u p a r a a forca, noss a si t uação é m is e rá v e l . (Saem . Vo l t a o C o m a n d a n t e. ) C O N T RAME S T RE A ma i n a i o j o a n e t e! Vamos! Depre ssa! M ai s b ai x o ! M a i s ba i x o! E x pe ri me n t e mos dei x ar só a ve l a g r a n d e! ( Ou v e - s e u m gri t o n o i nt e rior. )

4


A p e ste l e v e e s s e s gri t a d o re s ! F a ze m mais barulho do q u e a t empe s t a d e e t o d a s a s ma n o bras. ( Volt am Se b asti ã o, A n t ôn i o e G on za l o . ) Ou t r a v e z ? Que faz e is aq ui ? S erá p re c i s o l a rga r t u d o e pe re ce r afog ado? Q u e r e is i r p a ra o f u n d o ? S E B A S T I Ã O Qu e a b e x i ga vos at aque a g oe la, cão g r i t a d or, b l a s f e mo e s em c a ri d a de ! C O N T RAME S T RE Ne s s e caso, t rabalhai! A N T Ô N I O Va i t e e n f o rc a r, m ast im! Vai t e e n fo r ca r, gri t a d o r i n s ol e n t e e s em- v erg onha! Te m o s men o s med o d e pe re c er a f o g ado do que t u. G O N Z AL O S i rv o e u d e f i a d or e m como e le não m o r r e r á a f og a d o, a i n d a qu e o n a v i o fosse t ão re sist e nt e q u an to u ma c a s c a d e n o z , e v a z a s s e t ant o quant o uma r ap ar i g a i n c o n t i n en t e . C O N T RAME S T RE Orç a ! Orça! Larg ai duas ve l as! V i ra i d e bord o ou t ra v e z ! A o larg o! Ao larg o! (E nt r am ma ri n h ei ros c om rou p a s molhadas. ) MARI N HEIR O S E s t á t u d o pe rdido! Vam o s rez a r! Va mos rez a r! E s t á t u d o pe rdido! ( S ae m) C O N T RAME S T RE C o mo! Te re mos de ficar co m a b oc a f ri a ? G O N Z AL O O rei e o f i l h o re z am; imit e mo-los, q u e o n o s s o c a s o é o me s mo . S E B A S T I Ã O É i n t o l e rá v e l ! A N T Ô N I O A v i d a t e mos à me rcê de uns bê be dos, tr ap ace i ro s n o j o g o. A qu el e bi l t re d e boca e scancarada. . .

5


Só q ui se r a ve r- te a a f o g a r, e qu e l e v a d o f os s e s p or dez mar é s! G O N Z AL O E s pe ra - o ma s é a f o rc a , mu i t o embo r a a i sso se o p u s es s e m t o d a s a s got a s d e á gua e se al arg asse m , p ar a tra gá - l o d e u ma v ez . (Rum o r e s co n fuso s n o i n t e ri or. ) “ M i s e ri c ó rd i a ! ” “O n av i o e stá ab r i n d o! Na u f ra g a mo s ! ” “ A d eu s , i rmão! ” “Esta m o s n au fr ag an d o ! ” A N T Ô N I O P ere ç a mos c om o re i . ( S a i . ) S E B A S T I Ã O D e s p e ç a mo- n o s d e l e . ( S a i . ) G O N Z AL O D a ri a a g ora mi l es t á d i os d e mar por uma je i r a d e te r r a e s t éri l c o m u rze s l o n ga s , t o j o e scuro. . . fosse o q ue fo sse . S e j a f e i t a a v on t a d e l á d e c i ma ; mas p r e fe r i a t e r m o rt e s ec a . ( S a i . )

C e n a

II

(A i lh a. D i an te d a c el a d e P ró s p e ro. Entram P r ó sp e r o e M i ra n d a . ) MIRA N D A S e c o m v o s s a a rt e, pa i q u eri d o , as ág uas se l vag e n s l ev a n t a s t es , a c a l ma i - a s . D erramaria o céu p e z e scal d ant e , s e a t é s u a f a c e o ma r n ã o se el evasse , p ar a ap aga r o f og o. C o mo a v i s t a d os q ue sofriam m e e r a d o l o ro s a ! Um n a v i o t ã o bra v o, que , sem d úv i d a, co n d uz i a p e s s oa s e x c e l e n t e s , red u z ido a pedaço s! Tr an sp ass a ra m- me o c o ra ç ã o s eu s g ri t o s. Pobre s al m as! P e r e c era m. S e e u f o s s e u m d e u s pot e nt e , pel a te r r a ab so r vi d o o ma r s e ri a , a n t e s d e n a u f ra g ar t ão

6


b o m na v i o c o m s u a c a rga d e a l ma s . PR Ó S PER O Tra n q ü i l i za - t e . Acalma o sust o e co nt a a o t eu p i e d o s o c o ra ç ã o qu e não houv e ne nh um d a n o . MIRA N D A Oh ! Qu e d i a ! PR Ó S PER O Neh u m. Tu d o o que fiz , fo i p o r t i , s i mp l e s men t e , mi n h a f i l h a, por t ua causa, fi l ha i d o l a t ra d a , q u e n ã o s a be s q u em é s, ne m t e ns not ícia d e o n d e e u t e ri a v i n d o, n em qu e e u possa se r mais que P r ó sp e ro, t a l v ez , o d o n o d es t a gru t a e t e u pai não m u i to g ra n d e. MIRA N D A D es ej o s n u n c a t i v e de obt e r o u tr as i n f orma ç õe s . PR Ó S PER O É t e mpo d e s a be re s alg uma coisa m ai s. A mã o me e mpre s t a e d o s o mbros me t ira o mant o m ág i co . — P e rf e i t a me n t e . ( Ti ra o mant o. ) Fica aí, minha ar te . — A s l á gri ma s e n x u ga ; f i c a a l e g re . O e spe t áculo te r r í v el d o n a u f rá g i o qu e e m t i f ez de spe rt ar a própria fo r ça d a c ompa i x ã o , por mi m f oi d e t al modo dirig ido, co m ta n t a s eg u ra n ç a , q u e, d e t o d a e ssa g e nt e , cuj os g r i to s o u v i s t e e qu e à t u a v i s t a n a u f rag ou, ne nhuma al m a, n en h u ma , n em u m f i o d e c a be lo sofre u ne nhum p r e ju í z o. S en t a - t e a q u i ; p re c i s a s s a be r t udo. MIRA N D A M a i s d e u ma v ez quise st e s re v e larm e q ue m e u s ou ; ma s p a rá v ei s , en t re g ando-me a v ãs co g i t aç õ e s , e me d i zí e i s : “E s p e ra ma is; é ce do” . PR Ó S PER O C h eg ou a h o ra , não, o minut o j ust o

7


em q ue é p r e ci so tere s o ou v i d o a b e rt o . Ora o be de ce -me e ate n ção p r e sta a t u d o . Te n s a l gu ma l e mbra n ç a da é poca em q ue n ó s ai nd a n ã o v i v í a mo s n e s t a c e l a p obre ? Não acr e d i to , p o i s n a q u el e t empo n ã o c o n t a v a s t rê s anos. MIRA N D A Oh ! d ec ert o , s en h or, p os s o l e mbrar-me . PR Ó S PER O P or qu e i n d í c i o s ? Ou t ra c a s a ? Pessoas d i fe r e nt e s? A i ma ge m me re v el a d o qu e possas ai nd a te r co n se r v ad o n a me móri a . MIRA N D A Tu d o mu i t o d i s t a n t e . É ma i s um sonh o d o q u e ce r t ez a o qu e a remi n i s c ên c i a me le v a a asseve r ar. N ão ho uv e u ma é poc a , h á mu i t o t empo, em q ue d e m i m cu i d a v a m q u a t ro ou c i n c o mu l h e re s? PR Ó S PER O S i m, M i ra n d a ; e ma i s , a t é . Poré m , co m o t e l e m bra s d e s eme l h a n t e c o i s a ? Que d i sti ng ue s, al é m d i s s o , n o e s c u ro d o pa s s a do e no se i o d o t e m p o ? S e c o n s e g u es l embra r- t e d e a lg o acon t e ci d o e m é p o c a a n t e ri or à t u a v i n d a , t a mbé m pode s l embr ar- t e co m o p a ra c á v i es t e . MIRA N D A D i s s o, poré m, n ã o t en h o i d éi a alg uma. PR Ó S PER O H á d o z e a n os , M i ra n d a , s i m, doze ano s, e r a t e u pa i u m pod eros o prí n c i pe , e Du q u e d e M i l ão . MIRA N D A E n t ã o , s en h or, n ã o s o i s meu p ai? PR Ó S PER O Tu a mã e f oi u m mo d el o d e v irt ude , e me d i sse q ue , e m v e rd a d e, mi n h a f i l h a t u era s . Teu p ai e r a, p o i s, D u q u e d e M i l ã o. C o mo h erd eira única ti nha e l e u m a p r i n c e s a , n a d a me n o s .

8


MIRA N D A Oh c éu s ! P or qu e t raição pe rde mos i sso ? O u f o i me l h o r a s s i m? PR Ó S PER O A mb a s a s c o i s a s. S im, por t raição, co m o d i s s e s t e , v i emos p a ra r a q u i ; m as re dundou e m no ssa f e l i c i d a d e . MIRA N D A Oh c éu s ! O c ora ç ão me sang ra só d e p e n s a r em qu a n t o v o s f u i c a u s a d e sofrime nt o, d o q u e n ã o me re s t a n a d a ma i s n a m e mória. Prosse g ui, p o r o b s équ i o . PR Ó S PER O M e u ma n o , e , pois, t e u t io, de nome A nt ô n i o . . . P eç o - t e pre s t a r- me t o d a at e nção. — C o n ce be - s e qu e pos s a s e r u m i rmã o t ão pé rfido a e sse p o nt o ? — D epoi s d e t i , era a e l e que e u amav a mais d o q u e t u d o n es t e mu n d o , t en d o- l h e confiado a dire ção d e m e u E s t a d o , qu e, n a é poc a , pri mav a sobre t odos, tal co mo P ró s p e ro e n t re os o u t ros p ríncipe s. Goz ando d e t ão a l t a d i g n i d a d e , n ã o a c h a v a riv al no que re spe it a às ar t es l i b e ra i s . A e s t a s d ed i c a n d o t odo o me u t e mpo, o p e so d o g ov ern o t ra n s f e ri a meu m ano, assim to r nand o- me c a d a v ez ma i s e s t ra n h o à minha t e rra, p o r q ue à s c i ên c i a s s ec ret a s d e d i c a d o. Te u falso t io, e n tan to . . . E s t á s me ou v i n d o? MIRA N D A S ou t od a ou v i d o s , me u se nhor. PR Ó S PER O H a v en d o f i c a d o int e irame nt e a par d e co mo s a t i s f a ze r pe d i d os o u n e g á -los, a que m fav o r e c er, a qu em d e t o d o bu rl a r n a s pre t e nsõe s, cr i o u d e n o v o mi n h a s c ri a t u ra s , ou m e lhor, mudou-lhe s

9


a nat ur e z a, o ut r a fe i ç ã o l h es d a n d o . A u m s ó t empo di spo nd o d o s o fí ci os e d a c h a v e d o c a rg o, a f i n ou t odos os co r açõ e s d e aco rd o c o m a t oa d a q u e a o s o u v i dos mais grata l h e so asse , e n a h e ra s e mu d ou , p oi s , q u e me u trono p r i n ci p e sco e s c o n d i a e qu e l h e a s e i v a v i t al sug av a toda. M as não p r e st a s a t en ç ã o a o qu e e u d i g o. MIRA N D A P res t o, s i m, meu b on d os o s en h or. PR Ó S PER O Nã o pe rc a s n a d a p e ç o - t e. D e scurando dos a ssun to s t e m p o ra i s e v i v e n d o i n t e i ra men t e re t irado, a cui d ar, t ão - só , d o s mei os d e a p e rf e i ç o a r o e s p í rit o com as ar t e s q ue , a n ã o s ere m s ec ret a s , n o c o n c e it o dos h o m e n s su b i r i a m, f i z i n s t i n t o s p e rv ers o s d e spe rt ar no m an o p é r fi d o . M i n h a c on f i a n ç a , c omo pa i b ondoso, fez n asce r n e l e u m a t ra i ç ã o t ã o g ra n d e qu a n t o minha boa- fé , q u e e r a, e m v e rd a d e, s em l i mi t es , i men s a. Assi m, to r nad o se n h or n ã o s ó d e qu a n t o mi n h a s re ndas l he facu l tav am , m as t a mbé m d e t u d o qu e me u p ode r, então , l he p e r m i t i a — c omo a l gu ém qu e o pe c a do da m e m ó r i a co m e t es s e , por d a r i n t e i ro c réd i t o às suas próp r i as m e n ti r as, en u n c i a d a s c o mo v erd a d es p uras — cheg o u e l e a acr e d i t a r q u e e ra , d e f a t o, o d u qu e, por s e r o su b sti tut o e e s t a r a f e i t o à s mos t ra s e x te riore s da re al e z a e ao s p r iv i l é g i os i n e re n t e s a e l a . Ten d o sua a m b i ção to m ado v u l t o . . . E s t á s me ou v i n d o? MIRA N D A E s t ou , s e n h or, q u e a v os s a n a r ração curar i a o s p r ó p r i o s s u rd o s . PR Ó S PER O P orqu e a n t epa ro a l gu m s e

10


i nt e r p u s es s e e n t re o pa p e l qu e e n t ã o lhe compe t ia e o at o r d es s e pa p e l , j u l g ou p re c i s o t o rnar-se de Milão o ún i co d on o . E u , c oi t a d o , d u c a d o muit o g rande j á m e e r a a bi bl i ot ec a . E l e j u l g ou - me i ncapaz da re ale z a te m p o rá ri a ; c on f ed erou - s e c o m o R e i de Nápole s — tal e r a a s u a s ed e d e d o mí n i o ! — prome t e ndo pag ar-lhe an ual t ri bu t o e pre s t a r- l h e h o me n a g e m, suj e it ando sua co r o a à d el e , e , a s s i m, d e i x a n d o- a — pobre Milão, q u e nu n c a s e d o bra ra ! — n a ma i s v il suj e ição. MIRA N D A Oh c é u s ! PR Ó S PER O R e f l e t e s o bre e s s as condiçõe s e as co n s e qü ên c i a s d e s eme l h a n t e a l i a nça, e ora me diz e se e r a u m i rmã o e s s e h o me m. MIRA N D A F ora gra n d e pe c a do aj uiz ar mal de m i n ha a v ó . J á s e t êm v i s t o mu i t o n o bre s v e nt re s dar à l uz r u i n s f i l h o s . PR Ó S PER O M a s c h eg u emos às condiçõe s. Se n d o es s e R e i d e Ná p ol e s meu i n i mig o acé rrimo, a p r o p o s t a d e me u i rmã o a c e i t a , i s t o é , e m t roca da vassal a ge m e d o e s t i pu l a d o t ri b u t o — não se i quant o — co m p rome t e- s e a me e x p u l s a r e aos me us do me u d ucad o , en t re g a n d o M i l ã o, a i n c o mparáv e l, com suas ho nr as t o d a s , a me u ma n o . A s s i m, re unido um t raiçoe iro e x é r ci t o , e m c ert a n o i t e a p ropri a d a ao fe it o abriu A nt ô n i o a s port a s d a c i d a d e e e m pl e na e scuridão o s se u s a s s e c l a s me t i ra ra m d a l i ra pidame nt e , cont ig o, p o b r e z i n h a , es f ei t a e m l á gri ma s .

11


MIRA N D A Oh , q u e t ri s t ez a ! Te n d o- me e sque cido como e u ch o r av a e n t ã o , d es ej o s s i n t o d e c h ora r novam e n te ; o s o l h os f o rç a - me e s t a o port u n i d a d e . PR Ó S PER O A l gu n s mo me n t os ma i s d e a te nção, para che g ar m o s l o g o a o pon t o pri n c i pa l , s e m o que fora toda e st a hi stó r i a a s s a z i mpe rt i n e n t e . MIRA N D A P o r qu e n ã o n o s t i ra ra m l og o a v ida? PR Ó S PER O B el a p e rg u n t a , j o v em, s u s c i t ada por mi nh a n ar r ati va. N ã o ou s a ra m, qu eri d a — t a n t o o pov o me e st i m ava — p ô r u m s el o t ã o ru b ro n es s e a s s u nt o; mas e m p r e star am c o re s ma i s ri s on h a s a s e u s n ef andos fi ns. E m su m a, à p r e s s a , p u s e ra m- n os n u m b a rc o e a al gum as l é g u as d a c o s t a n os l ev a ra m, o n d e t i n h a m prest e s u m a car caç a a pod rec i d a d e n a v i o , s em mast ros, sem co r d o al h a, se m v el a , n a d a , en f i m. Os próprios rat os o havi am , p o r i nsti n t o , a b a n d o n a d o . G u i n d a ra m-nos para aí , po r q ue cho r ássemos à s o n d a s mu gi d o ra s e s u spiros envi ásse m o s ao s ven t os , q u e, pi e d o s o s , d e v o l v endo os susp i r o s, n o s faz i am s o f re r por a mi za d e . MIRA N D A Oh ! Qu a n t o i n c ômod o n ã o v o s cause i! PR Ó S PER O Um qu eru b i m t u f os t e , qu e a v ida me sal v o u . E nt ão so rri a s , e n q u a n t o e u b orri f a v a o mar com l ág r i m as sal g ad a s , a ge me r s o b o me u f a rd o . Isso me d e u a i r r e si st í ve l f orç a pa ra a gü en t a r q u a n t o o fut uro i ncer to m e r e se r vas s e a i n d a . MIRA N D A E d e qu e mod o f omos b a t e r à praia? PR Ó S PER O A P rov i d ê n c i a d i v i n a n os gu iou.

12


C o n o sc o t í n h a mos a l i me n t os a l g u n s e um pouco d e ág ua pot á v el qu e G on za l o , d a n o bre z a napolit ana, e q u e i n c u mb i d o f ora d a ex ec u ç ã o de t odo e sse proj e t o, p o r p i e d a d e, t ã o- s ó , n o s c on c e d era , alé m de ricas v e st e s, l i nh o , pa n os e mu i t a s ou t ra s c o i s a s , que t ê m sido de g r an d e u t i l i d a d e. A s s i m, por pu ra g e nt ile z a, sabe ndo q u an to a p e g o e u t i n h a a os l i v ros , t rouxe -me de m i n ha b i bl i ot ec a v o l u mes q u e e u p re z av a mais do que meu ducado. MIRA N D A Oh ! S e a l gu m d i a pude sse e u v e r e sse h o me m! PR Ó S PER O Ora f i c o d e pé out ra v e z . ( Torna a ve sti r o ma n t o . ) S e n t a d a c on t i n u a , para ouv ire s o fi m d e n os s os l o n gos d i s s a b ore s ma rít imos. C he g amos a e sta i l h a , e a q u i me f oi pos s í v el , como t e u pre ce pt or, faz e r q u e prog re d i s s es ma i s d o qu e out ras prince sas que d i sp õ e m d e mu i t a s h o ra s f ú t e i s e n ã o cont am com um m e st r e t ã o a s s í d u o e d ed i c a d o. MIRA N D A O c éu v os rec o mpe nse . E ora diz e i-me , p o r fav or, q u e a i n d a t en h o i n q u i et o o e spírit o: por que e ssa t empe s t a d e l e v a n t a s t es ? PR Ó S PER O A pre n d e rá s ma i s isso. Por acaso m u i to es t ra n h o a F o rt u n a g e n eros a , minha se nhora mui p r e z ada a g ora , t rou x e os meu s i n i mig os a e st a praia. A ci ê n c i a d o f u t u ro me re v el a q u e o me u z ê nit e se acha d o m i na d o por u m a s t ro a u s p i c i o s o , cuj a influê ncia me cu m p r e a prov ei t a r, c a s o n ã o qu ei ra q ue se apag ue de v e z

13


a min ha so r te . E ag ora b a s t a d e pe rg u n t a s . M os t ras-t e i ncl i nad a a d o r m i r, s e n d o pre c i s o c ed er a es s e t o rpor em t ud o g r ato . N ão p od es es c ol h er, t e n h o c ert ez a. (Mi r an d a ad o r m e ce . ) S e rv i d or, es t ou p ron t o n o v ame nt e ! Vem, m e u A r i e l ! A q u i ! (Entra A r i e l .) ARIEL M e u g r a n d e me s t re , s a l v e! S a l v e , g rav e senh o r ! Vi m p ar a em t u d o obe d ec er- t e, ou s e j a para v oar, nada r, no fo g o m e r g u l h a r, ou mo n t a r n a s n u v en s de nsas. Tua vo n tad e fo r t e é qu e d o mi n a A ri e l e s eu p od er. PR Ó S PER O E x e c u t a s t e , e s p í ri t o , d i rei t o a tem p e stad e , co nfo rme t e ord en ei ? ARIEL P o nt o p or pon t o. A s s a l t e i o re a l b a rc o; ora na p r o a, o r a n os f l a n c os , n a c obe rt a , e m t o dos os ca m ar o te s ace nd i o s u s t o. D i v i d i d o , por v ez e s, i nfl am ava- m e e m di v e rs o s l u g a res : s obre o ma s t r o, no gur up é s, nas ve r ga s , e m d i s t i n t a s c h a ma s a p are cia, para n um a, d e p o i s, me c o n c e n t ra r. Nã o s ã o ma i s rápidos nem m ai s o fu scad o res o s rel â mp a gos d e J o v e, pre cursore s das t r o vo ad as assus t a d o ra s . Ta n t o f og o e o e mbat e do sul fúr i co e st r o nd o p a rec i a m t o ma r d e a s s a l t o o muit o pode r o so N e t un o e a med ro n t a r s u a s b ra v a s on d as. Si m, até o tr i d e nt e f ormi d á v el l h e t remi a n a s mãos. PR Ó S PER O M e u b ra v o e s p í ri t o ! Qu e m t erá si do tão co n st an te e f i rme qu e a ra z ã o n ã o pe n d e sse em t al r e vo l t a? ARIEL N ão ho u v e a l ma qu e a f ebre d a l ou c ura não

14


r e ve l as s e e n ã o mos t ra s s e c ert o s s i nais de de se spe ro. C o m e x c e ç ã o d o s ma ri n h e i ros , t od o s me rg ulharam na e sp u m o s a v ora ge m, d es ert a n d o o n a v io, que e m chamas e u d e i x a ra . O h erd ei ro d a c o roa , F erdinando, com os cab e l o s em pé — ma i s p a rec i a j u n c o do que cabe lo — d e u o e x e mpl o, e , a o a l t a r, e x c l a mo u: “ Ficou v az io to d o o i n f ern o ; os d e môn i o s es t ã o s o lt os! ” PR Ó S PER O M u i t o be m, me u e spírit o! F o i i sso pe rt o d a pra i a , n ã o? ARIEL B em pe rt o , me s t re . PR Ó S PER O M a s A ri el , e s t ã o salv os me smo t odos? ARIEL Nã o s e pe rd eu u m f i o d e cabe lo, ne m há nas ve s t e s c om qu e s e s a l v a ra m u ma mancha se que r; m ai s fre s c a s t o d a s es t ã o d o qu e a n t es. E, de acordo se m p r e c o m o qu e re c o me n d a s t e, d ispe rse i-os e m b and o s p or t o d a a i l h a . O h e rd ei ro príncipe , fi-lo che g ar a te r r a p or s i p rópri o. D e i x ei - o a refre scar o ar com su sp i r o s , s e n t a d o a u m c a n t o e s t ra n ho da ilha, os braços tr i ste m e n t e c ru z a d os , d e s t e mod o . PR Ó S PER O O re a l n a v i o, c o m se us marinhe iros, d i z e o n d e f oi pa ra r, e os ma i s d a f ro t a? ARIEL O n a v i o d o re i e s t á n o port o, no g olfo e m q ue u ma v e z me c o n v oc a s t e pa ra buscar orv alho d as Be rmu d a s t empe s t u o s a s . A l i s e acha e scondido. To d o s o s ma ri n h e i ros es t ã o d en t ro da e scot ilha; co m me u s e n c a n t a me n t os s e c u n d a n do a fadig a dos tr ab al h o s , d e i x ei - os a d o rmi r. Os out ros barcos que

15


eu d i sp e r sar a e stão d e n o v o j u n t os . P e l o M ed i t e rrâne o agor a si n g r am , tr i st eme n t e ru ma n d o pa ra Ná p ol e s, certo s d e te r e m v i s t o a c a p i t a n i a , qu e o re i l e v a v a, soçob r ar e S ua Gr a n d e z a p e re c er. PR Ó S PER O A ri el , c u mpri s t e t u a mi s s ã o a pont o; mas ai n d a te r ás o q u e f a ze r. Qu e t empo é a gora ? ARIEL M e i o - di a p a s s a d o . PR Ó S PER O P e l o me n o s d e d u a s a mp u l h e t as. Preci so q u e ap r o ve i t a r s a i ba mo s o i n t e rv a l o d e ag ora até se i s ho r as. ARIEL M ai s fa d i g a s ? J á qu e n o v o s t ra b a l h os me d e st i nas, p e r m it e qu e t e l e mbre u ma prome ssa que ai n d a não cu mpri s t e . PR Ó S PER O Qu ê ! Z a n g a d o? Qu e pod es d e se j ar? ARIEL A l i b e r d a d e. PR Ó S PER O A n t es d o t empo c ert o ? Nu n ca! ARIEL L e m b r a - t e qu e t e pre s t e i s erv i ç os i m port ant e s nunc a m e nt i , não d es c u i d e i d e n a d a n em me most re i queix o so o u r ab ug e n t o. P ro me t es t e a b a t e r- me u m ano i nt e i r o . PR Ó S PER O P a rec es es q u ec i d o d o t o rme nt o de que t e l i b e r t e i . ARIEL E u, e sq u ec i d o? PR Ó S PER O S i m, e s q u ec es t e , e j u l g a s d e mais peso p i sar no l i m o d o s a l g a d o pé l a go, i r e mpós d o cortant e ve n to no r t e, n a s v e i a s , pa ra mi m, d es c e r da te r r a, q uand o o g e l o a rec o z e .

16


ARIEL S e n h or, n ã o ! PR Ó S PER O M en t e s , c oi s a malig na! N ão te l e mbra s d a re pe l e n t e bru x a Sicorax, que a idade e a i nv e j a e m a rc o re c u rv a ra m? J á t e e sque ce st e de la? ARIEL Nã o, s en h or. PR Ó S PER O S ó pa rec e qu e s im. S e não, me diz e : d e o n d e e ra el a ? On d e n a s c e u ? R es p onde . ARIEL Na A rg é l i a , meu s e n h or. PR Ó S PER O A h ! s i m? P re c i s o t odos os me se s r e p e ti r qu em f os t e , c o i s a d e qu e t e e sque ce s a t oda hora. E ssa b r u x a ma l d i t a , S i c ora x , por c ri m e s horrorosos e te r r í v e i s f ei t i ç a ri a s q u e os mo rt a i s o uv idos não pode m su p o r t a r, s e v i u ba n i d a , c o mo s a be s , da Arg é lia. U m a só c o i s a — i a s er mã e — p ôd e salv ar-lhe a v ida. N ão é v e rd a d e t u d o ? ARIEL S i m, s en h or. PR Ó S PER O P o r g rá v i d a e n c ont rar-se , e ssa me g e ra d e o l h os a z u i s f oi pa ra c á t ra z i d a e abandonada pe los m ar i n h e i ros . Tu , me u es c ra v o, c o mo t e nome ias, e r as, en t ã o , s eu c ri a d o. M a s p or s ere s um e spírit o muit o d e l i cad o pa ra s u a s ord en s por d ema is t e rre nas e r e p u gn a n t e s , n ã o t e s u bme t i a s a quant o e la orde nav a, r az ão c l a ra d e t e h a v er e l a , o u v i n d o o impe rat iv o d e se u f u ror i me n s o e c o m o a u x í l i o de se us minist ros d e p o d er ma i s f ort e, f e c h a d o n u ma f e nda de pinhe iro. N e ssa ra c h a d e t ro n c o, a t orme n t a d o, uns doz e anos fi cast e , n o qu a l t empo v ei o a mo rre r a amaldiçoada

17


brux a, n a p r i são te d ei x a n d o, on d e s o l t a v a s ge midos tão fr e q ü e n te s co m o a s rod a s d o moi n h o e m s eu g irar. Entã o , e st a i l ha — s e e x c e t u a rmo s o f i l h o qu e e la t e v e , um m o str e ng o m an c h a d o — f o rma h u ma n a n en h uma a eno b r e ci a. ARIEL Si m , seu f i l h o C a l i bã . PR Ó S PER O C oi s a obt u s a , é o qu e t e d i go. É o m e sm o C al i b ã q u e ora me s erv e. Ni n gu ém me lhor que tu sab e o s to r me n t os em qu e t e a c h ei . Fazi am t e u s g e m i d o s u l u l a r l o bos e c a l a v a m f u n d o no co r ação d o s ur so s i n d omá v e i s . E ra ma rt í ri o para os co nd e nad o s ao s s u p l í c i o s et ern o s , q u e d es f ei t o j á não p o d i a se r p o r S i c ora x . ARIEL A g r ad e ç o- t e, me s t re . PR Ó S PER O C a s o v en h a s d e n o v o a mu rmurar, fend o um car val h o e c o mo c u n h a t e c o mpri mo de nt ro de se u no d o so co r p o , a t é qu e v en h a s u l u l a d o d u rant e doze i n ve r no s. ARIEL P e r d ão , me s t re ; ma s h ei d e c o n f o rmar-me a qu ant o m e o r d e na re s , p e rf a ze n d o d e g ra d o mi nha obri g ação d e e sp í r i t o. PR Ó S PER O F a z e a s s i m, p orqu e d en t ro de dois di as d ar- t e - e i a l i b e rd a d e. ARIEL E i s o me u n obre me s t re , n o v a me n t e ! Que é p r e ci so faz e r ? D i z e . Qu e ma n d a s ? PR Ó S PER O A f o rma a d q u i re l og o d e u ma ninfa, a mim e a t i v i sí v e l, t ã o - s o me n t e , a n i n gu ém mais.

18


A ssum e e s s a p os t u ra e v o l t a pa ra c á . Vamos! D e pre ssa! (Sai A ri el . ) A c ord a , c o ra ç ã o , a c ord a log o; já d o r mi s t e ba s t a n t e . MIRA N D A ( d e s p e rt a n d o) O ext raordinário d e vo ss a h i s t óri a me d ei x o u c om s o no. PR Ó S PER O S a c o d e- o. Va mos v e r o me u e scrav o C al i b ã, q u e s ó t em pa l a v ra s d u ra s p ara minhas pe rg unt as. MIRA N D A É u m v e l h a c o , me u se nhor, cuj a v ist a me repugna. PR Ó S PER O C o n t u d o, n ã o pode mos dispe nsá-lo. A ce nd e - n o s o f og o, t ra z - n o s l en h a e nos pre st a se rv iços var i ad o s d e mu i t a u t i l i d a d e . Ol á ! E scrav o! Bl o co d e t erra ! C a l i bã ! R e s p on d e ! C ALI B Ã ( d e n t ro) H á mu i t a l enha e m casa. PR Ó S PER O Vem! J á d i s s e . Vou dar-t e out ro se r v i ço . Ta rt a ru g a , v e m l og o! Ve n s ? ( e nt ra Arie l, m e tam o rf os ea d o e m n i n f a d o ma r. ) Q ue linda aparição! M e u p r ec i o s o A ri e l , ou v e - me à p a rt e . ARIEL S e rá f ei t o , s en h or. ( S a i . ) PR Ó S PER O Vem pa ra f ora , escrav o v e ne noso, p e l o p r ópri o d i a bo g e ra d o e m t u a m ãe maldit a. (E nt r a C a l i b ã . ) C ALI B Ã Qu e e m v ó s d oi s c a i a orv alho t ão nociv o co m o o q u e mi n h a mã e t i n h a por h á bit o colhe r nos ch ar co s p ú t ri d o s c om u ma a s a n e g ra de corv o. E m vó s s opre o s u l oe s t e e v o s d e i x e cobe rt os de fe ridas. PR Ó S PER O P o r i s s o, f i c a c ert o, hás de e st a noit e

19


sofre r cãi b r as co n tí n u a s e pon t a d a s s en t i r qu e te hã o d e p e r tur b ar o f ôl e g o. À n o i t e, t o d o o t empo e m que p u d e r e m m e x e r- s e os d u en d e s , h ã o d e e x ercit ar-se sem p ausa so b r e ti . Tã o d en s a men t e c o mo u m f a v o de mel se r ás p i cad o , sen d o ma i s d o l oros a c a d a u ma de ssas ferre t o ad as d o q ue q u a n t a s d êe m a s própri a s a b e lhas. C ALI B Ã E st á n a h o ra d o me u j a n t a r. E s t a ilha é mi n ha; he r d e i - a d e S i c ora x , a mi n h a mã e. R oubast e -ma; adulavas- m e , q u an d o a q u i c h eg a s t e; f a zi a s - me c a rícias e me d avas ág u a co m b a ga s , c o mo me e n s i n a s t e o nome da l uz g r and e e d a pe qu en a , qu e d e d i a e d e n o i t e semp r e q ue i m am . N a q u el e t empo, t i n h a - t e a mi zade , most r e i - t e as fo nt e s f re s c a s e a s s a l g a d a s , on d e e ra a terra fé r ti l , o n d e e s t éri l . . . S ej a e u ma l d i t o por hav ê -lo fei to! Q ue e m ci m a d e v ó s c a i a qu a n t o t i n h a d e e ncant os Si corax : b e so ur o s, s a p os e morc eg os . E u , t o d o s o s vassa l o s d e q u e d i s pon d e s , era n e s s e t empo me u próprio sobe r ano . M as ag o r a me e n c h i q u ei ra s t es n e s t a d ura rocha e me p r o i b e s d e an d a r p e l a i l h a t od a . PR Ó S PER O E s c ra v o me n t i ros o , s ó pa n c a da t e pode co m o v e r, nu n c a o bom t ra t o . S u j o c o mo é s, t rat e i-t e como g e n te , al o jan d o - t e e m mi n h a p rópri a c e l a , até ao m o m e n to e m qu e t i v e s t e o ou s i o d e qu ere r deso nr ar a m i nh a fi l h a . C ALI B Ã O h o h ! Oh o h ! Qu i s e ra t ê - l o f e i t o ; mas m o i m p e d i st e . S e n ã o f ora i s s o , c o m C a l i bã s houv e ra a i l h a p o vo ad o .

20


PR Ó S PER O E s c ra v o a b omi n á v e l, care ce nt e d a m e n o r c h i s p a d e bon d a d e , e a p e nas capaz de faz e r m al ! Tiv e pi e d a d e d e t i ; n ã o me poupe i canse iras, para e n si n ar- t e a f a l a r, n ã o s e pa s s a n d o uma hora e m q u e não t e d i s s es s e o n o me d i s t o ou daquilo. Ent ão, co m o s el v a g e m, n ã o s a bi a s n em me smo o que que rias; e m i ti as a pe n a s gorg ore j o s , t a l c omo os brut os; d e p al a v ra s v á ri a s d o t ei - t e a s i n t e n ç õe s, porque p u d e ss e s t omá - l a s c on h e c i d a s . M a s embora t iv e sse ap r e nd i d o mu i t a s c o i s a s , t u a v i l ra ç a e ra dot ada de al g o q u e a s n a t u re z a s n o bre s n ã o c o mport am. Por isso, m e r e cid a men t e , f os t e re s t ri n gi d o a est a rocha, se ndo ce r t o q u e ma i s d o qu e pri s ã o t u me re cias. C ALI B Ã A f a l a r me e n s i n a s t e s, e m v e rdade . M i n ha v a n t a ge m n i s s o , é t er f i c a d o sabe ndo como am al d iç oa r. Qu e a p e s t e v erme l h a v o s carre g ue , p o r m e t erd es en s i n a d o a f a l a r v os s a ling uag e m. PR Ó S PER O F ora d a q u i , f i l h o de fe it ice ira! Vai b u s c a r l e n h a e n ã o d emore s n a d a, e o que t e dig o, q u e ai n d a t en s s erv i ç o. A h ! P o u c o se t e dá, de mônio? C aso n e g l i g e n c i e s o u f a ç a s d e ma u g rado quant o e st ou a m and a r, c om v el h a s c ã i b ra s a t ra t os ficarás, che ios t e us o sso s d e d o re s l a n c i n a n t e s , q u e t e obrig ue m a rug ir de tal m o d o, qu e a t é a s f e ra s h ã o d e t reme r à t ua g rit aria. C ALI B Ã Nã o , por f a v or. . . ( à p art e . ) F o r ço so é obe d ec er. S u a a rt e é t ã o pot e nt e , que lhe fora p o ssí ve l d o mi n a r a t é S et ebos , o d eus de minha mãe e

21


transfo r m á- l o e m seu v a s s a l o, a t é . PR Ó S PER O Va i l o g o, e s c ra v o! ( S a i C a l i bã. Vol ta A r i e l , i nv i sí v e l , t o c a n d o e c a n t a n d o ; Ferd i n an d o o se g u e. ) C A N T I G A

D E

ARIEL S o bre e s t a are ia

amare l a sau d ai a b e l a . E a pós a t erd es b e i j a d o e o mar cai ad o , can t a i , e s p í ri t o s l ed o s , em c o ro, vosso s b r i nq ue d o s. Ou v i ! Ou v i ! (Cor o d i sp e r so .) A u ! A u ! Os c ã es l a d ra m e m s a rau (Cor o d i sp e r so .) A u ! A u ! Ou v i s equ er o c a n t o do ch an te cl e r : C o - c o - ri - c ó ! F ER D I N A N D O De onde vem esta música? Da terra? Do céu, talvez? Parou. É dirigida, certamente, a algum deus desta bela ilha. Na praia eu me encontrava, a lastimar-me pelo naufrágio de meu pai, o rei, quando por sobre as águas esta música chegou até a mim, deixando serenada com o seu doce encanto, a um tempo, a fúria delas e a minha mágoa. Acompanhei-a até aqui, ou melhor: fui arrastado. Mas já parou. Não! Ei-ia novamente. ARIEL cant a: Teu p ai e stá a ci n co b ra ç a s . Dos o sso s nasce u cora l , dos o l ho s, p é r o l as ba ç a s . Tudo n e l e é p e r e n a l ; mas e m al g o p e r e g ri n o transfo r m a- o o m ar d e c o n t í n u o O si n o d as n i nfas s o a :

22


(C o r o .) D i m, d i m, d ã o! E scut ai c o mo re boa : (C o r o .) D i m, d i m, d ã o! F ER D I N A N D O F a z- me l e mbrar a t oada o pai d e fu nt o. Nã o é mort a l c a n t i g a , n e m t e rre nos são e sse s so ns. A g ora o s o u ç o e m c i ma . PR Ó S PER O A f a s t a a s f ra n j a s que t e os olhos co b r e e d i ze o qu e a l i v ê s . MIRA N D A S erá es p í ri t o ? Oh cé us! Que olhar o d e l e ! A c red i t a i - me, s en h or, a f orma é be la. M as é e s p í ri t o . PR Ó S PER O Nã o , me n i n a ; el e dorme , come e b e b e co mo n ó s d oi s , e t em i g u a i s s e nt idos. Pe rfe it ame nt e i g u ai s. E s s e ma n c ebo qu e a l i v ê s é um dos náufrag os. N ão fos s e ora a c h a r- s e a l gu m t a n t o maculado pe la tr i ste z a — o v erme d a be l e z a — pode rias chamar-lhe um h o m em be l o. P erd eu o s c ompa n he iros e ora v ag a p e l a i l h a a proc u rá - l o s . MIRA N D A C h a ma r- l h e- i a , d e g rado, alg o div ino. Jam ai s c o i s a n a t u ra l v i t ã o n o bre . PR Ó S PER O ( à pa rt e ) Tu d o marcha como na alma d e se jo . — a b e l o e s p í ri t o , s ó por i s t o dar-t e -e i a libe rdade ne st e s d oi s d i a s . F ER D I N A N D O C ert a me n t e é a de usa a que m e r a d e d i c a d a a q u el a mú s i c a . — D a i -me sabe r se t e nde s na i l h a a s ed e e s e pod ei s i n s t ru i r- m e sobre o modo de co m p o r t a r- me a q u i . M i n h a p ri me i ra pe rg unt a, que por

23


úl ti m o e n un ci o , se rá : Ó ma ra v i l h a ! S o i s h u ma n a ou d i v i na? Q u e so i s ? MIRA N D A Nã o ma ra v i l h a , n ã o d i v i n a , s enhor; mul h e r, d e ce r t o . F ER D I N A N D O M i n h a l i n g u a g e m! C é u s ! Sou o m ai s al to d o s qu e e s t a l í n g u a f a l a m! S e d e nov o me ach asse n o p aí s e m qu e é f a l a d a ! PR Ó S PER O C omo a s s i m? O ma i s a l t o ? Que diria, se te o uv i sse fal ar, o R e i d e Ná p ol e s ? F ER D I N A N D O A l go mod es t o, t a l c o mo ora so u, q ue se m o s t ra a d mi ra d o por ou v i r- t e f a lar do R e i d e N áp o l e s. E l e ou v e - me ; por i s s o me s mo , choro. Eu, só , so u N áp o l e s , q u e c o m e s t e s o l h o s , d e s d e e nt ão em p r ant o , v i o r e i n a u f ra ga r, o re i me u p a i . MIRA N D A Oh , d or! F ER D I N A N D O É c e rt o ; c o m s eu s n o bre s t odos. O Du q u e d e M i l ão , t a mbé m c o m e l e s , e s eu v a l ent e fi l ho , p e r e ce r am . PR Ó S PER O ( à p a rt e ) O D u qu e d e M i l ã o e s ua fi l ha n ão m e n o s v a l oros a pod eri a m c on t ra d i z e r-t e , se m ai s o p o r t un a fo s s e a o c a s i ã o. — L og o à p ri me ira vi sta tr o co u co m e la o l h a re s . S ó por i s t o, me u d e licado Ari el , v o u l i b e r tar- t e . — Uma p a l a v ra , me u s e n h or. Rece i o q u e d i z e nd o i s s o, v o s p re j u d i q u ei s . MIRA N D A ( à pa rt e ) P or qu e me u p a i s e e xpre ssa por man e i r a tão p ou c o d el i c a d a ? E s t e é o t erc ei ro home m que jam ai s v i , se nd o o pri me i ro qu e me f e z s u s p irar.

24


Q u e a p i e d a d e pos s a i n c l i n a r meu p ai para o me u lado. F ER D I N A N D O ( à pa rt e ) S e forde s v irg e m e se n ão t i v e rd es c omprome t i d o o c o ração, de Nápole s r ai nh a v os f a re i . PR Ó S PER O M a i s d e v a g a r, c a ro se nhor. U m a p a l a v ra , a i n d a . ( à p a rt e . ) A mb os e st ão re ndidos. É p r e cis o, poré m, d ei x a r u m p ou c o mais difícil e ssa co nq uis t a , pa ra qu e a v i t ó ri a f á c i l d e mais não de sme re ça o p r e ço. ( a F e rd i n a n d o . ) Uma p a l a v r a. Int imo-t e a e scu tar- me . U m n ome u s u rp a s qu e não t e pe rt e nce e co m o e s p i ã o c h e g a s t e a es t a i l h a , para ma t omare s, a m i m , o s en h or d el a . F ER D I N A N D O Nã o ; por minha honra d e ho me m, v o - l o a f i rmo . MIRA N D A Na d a d e ma u pod e abrig ar t al t e mplo. Se d e c a s a t ã o n o bre d i s pu s e s s e o e spírit o ruim, tud o o qu e é be l o s e e s f o rç a ri a p a ra morar ne la. PR Ó S PER O ( a F e rd i n a n d o . ) Acompanha-me ! (a M i r a n d a . ) D el e n ã o me f a l es . É u m t raidor. (a F e r d i n a n d o . ) Va mo s l o g o. H e i d e pre nde r-t e com fort e s e l o s o p e s c oç o e a s pe rn a s . Á gu a d o mar t e rás como b e b i d a; c omo a l i men t o e n c on t ra rá s s ome nt e me xilhõe s d o s r e g a t os , res s e qu i d a s ra í ze s e f ol he lhos, onde as g l an d es t e n h a m f ei t o s eu s l e i t o s . Vamos log o! F ER D I N A N D O Não; vou opor-me a esse tratamento até que meu inimigo me domine. (Saca da espada, mas, por encantamento, fica sem poder mover-se.)

25


MIRA N D A Oh! Não o provoqueis, pai extremoso, com tanta rispidez. Ele é educado, não temeroso em nada. PR Ó S PER O C omo! Ten h o d e obe d ec er a o s pé s? — G u ar d a e ssa e sp a d a , t ra i d or! F a z e s men ç ã o , t ão-só, de u sá- l a, m as co r a g e m n ã o t en s , qu e, a s s a z pe s a da, te re p r i m e a co n sci ên c i a . D ei x a l og o d e t o ma r p osição, que e u p o d e r i a co m meu b a s t ã o f a ze r c a i r- t e e s s a arma. MIRA N D A P a i , c o mpa i x ã o ! PR Ó S PER O S ol t a - me a ro u p a , d i g o! MIRA N D A P i ed a d e, pa i . S e re i t u a f i a d o ra. PR Ó S PER O Nem ma i s u ma pa l a v ra ! Do co n tr ár i o , r e p r e e n d e r- t e- e i , s e n ã o c h e g a r a odiar-t e . Como ! A d v o g an d o d e u m t ra i d or a c a u s a ? S i l ên c io, disse ! Pens as q ue n o m u n d o n ã o h á n i n g u ém a s s i m, p orque só vi ste a C al i b ã e a e s t e . R a p a ri ga s e m j u í z o! C omparado a mu i t o s h o m e n s, e s t e é ou t ro C a l i bã , c omo s ã o anj os os ho m e n s p e r t o d el e MIRA N D A Ne s s e c a s o , mu i t o mod es t os s ão me us senti m e n to s; não am b i c i o n o v er n i n g u ém ma i s be lo. PR Ó S PER O Ve m c o mi g o; obe d ec e- me . Teus m ú scul o s ai n d a e s t ã o n a i n f â n c i a n ã o t êm força. F ER D I N A N D O R ea l men t e ; c o mo e m s o nho tenho o e sp í r i t o : ac o rre n t a d o. A mort e d e me u p ai, a fra q ue z a q ue si nt o, n u m n a u f rá g i o pe rd i d os o s amig os, as am e aças d e ste se n h or, d e qu em s o u p ri s i o n ei ro, t udo eu sup o r tar i a, se p u d es s e , u ma s ó v ez a o d i a , d e me u cárce r e co n te m p l ar es t a j ov em. Qu e me i mport a que

26


e m t o d o o v a s t o mu n d o a l i b e rd a d e possa e ncont rar g u ar i d a ? A s s a z e s p a ç o t ere i n es t a p risão. PR Ó S PER O ( à pa rt e ) Va i b e m. ( a Fe rdinando. ) Si g am o s . ( a A ri e l . ) Tra ba l h a s t e a p ri mor, que rido Arie l. (a F e r d i n a n d o . ) A c ompa n h a - me . ( a Arie l. ) Ag uarda as m i n has ord en s . MIRA N D A S en h or, f i c a i t ra n qüilo; me lhor g ê nio te m m e u p a i d o qu e o i n c u l c a m t a i s palav ras. O que e l e fe z a gora é i n t e i ra men t e f ora d o nat ural. PR Ó S PER O S erá s t ã o l i v re como o v e nt o, m as faz e e x a t a me n t e t u d o o qu e e u t e mandar. ARIEL P on t o por pon t o. PR Ó S PER O A c o mpa n h a i - me . — Não me d i g as n a d a . ( S a em. )

27


28


A T O C e n a

I I I

(O u tr a p a rt e d a i l h a . E n t ra m A l o n s o, S e bast ião, A nt ô n i o, G on za l o , A d ri a n o , F ra n c i s co e out ros. ) G O N Z AL O P o r obs équ i o , s enhor, ficai ale g re . Te n d e s mot i v o, c o mo n ó s , d e j ú bi l o, pois de muit o ul t r ap a s s a o qu e s a l v a mos a t u d o o que pe rde mos. N o ssa c a u s a d e t ri s t ez a é c o mu m. Todos os dias uma m u l he r d e ma ri n h ei ro, o c h e f e d e a lg um barco de carg a, o u m e s mo o d o n o d es s e ba rc o, o me smíssimo mot iv o tê m d e t ri s t ez a . M a s n o qu e re s p e i t a ao milag re , r e fi r o - me , s em d ú v i d a , à n o s s a s a l v ação, poucas pe ssoas fal ar ão c o mo n ó s . P or i s s o, pe n s o, caro se nhor, que co nt r ab a l a n ç a d a s e s t ã o a s pe rd a s c om o que lucramos. AL O N S O C a l a - t e, por obs équ io. S E B A S T I Ã O E s s a s pa l a v ra s são para e le tal q u a l u m c a l d o f ri o. A N T Ô N I O M a s o v i s i t a d o r a inda insist e . S E B A S T I Ã O O re l óg i o d o e spírit o e le apre st a; vai d ar h o ra s . G O N Z AL O S en h or! S E B A S T I Ã O U ma ! F a l a i . G O N Z AL O Qu a n d o a s t ri s t ez as são assim t rat adas, sab e i s o qu e s e g a n h a ? S E B A S T I Ã O S ei ; u m d ól a r. G O N Z AL O I s s o me s mo : u ma dor. F al ast e s c om ma i s a c e rt o d o qu e pode ríe is imag inar.

29


S E B A S T I Ã O E v ó s i n t erpre t a s t e s o d i t o com m ai s e sp í r i to d o qu e e u es p e ra v a q u e o f i z é sse is. G O N Z AL O A s s i m s e n d o, me u s e n h or. . . A N T Ô N I O O h c éu s ! C omo e l e é pród i go com a l í ng ua! AL O N S O P o r f a v or, p a ra i c o m i s s o. G O N Z AL O J á p a rei . C o n t u d o. . . S E B A S T I Ã O E l e pre c i s a c on t i n u a r a f a l a r. A N T Ô N I O Q u e m s erá o pri me i ro a c a n t a r: el e o u A d r i ano ? Vam os a pos t a r? S E B A S T I Ã O O g a l o v el h o . A N T Ô N I O N ã o, o n o v o . S E B A S T I Ã O F e i t o . Qu a n t o a p os t a mo s ? A N T Ô N I O U ma ga rga l h a d a . S E B A S T I Ã O A c ei t o . A D RIA N O C o n q u a n t o e s t a i l h a p a reç a d ese rt a. . . S E B A S T I Ã O A h , a h , a h ! J á e s t a i s pa go. A D RIA N O I n a b i t a d a e qu a s e i n a c es s í v el . . . S E B A S T I Ã O C o n t u d o. . . A D RIA N O C o n t u d o. . . A N T Ô N I O E l e n ã o pod eri a d e i x a r d e a c h á -la. A D RIA N O P re c i s a rá s er d e s u t i l , d oc e e agrad áv e l te m p e ra n ç a . A N T Ô N I O Tempe ra n ç a e ra u ma ra pa ri ga de licada. S E B A S T I Ã O E s u t i l , c omo e l e d i s s e c o m mui t a e r ud i ção . A D RIA N O S en t i mos - l h e o s u a v e ba f ej o .

30


S E B A S T I Ã O C o mo d e pu l m õe s podre s. A N T Ô N I O Ou c o mo s e t i v e s s e sido pe rfumado p o r um p â n t a n o . G O N Z AL O Tu d o a q u i é v a n t aj oso para a v ida. A N T Ô N I O S i m, c o m e x c e ç ã o dos mant ime nt os. S E B A S T I Ã O Qu e é o qu e não se e ncont ra, o u m uit o pou c o. G O N Z AL O Qu e a p a rên c i a f resca e ag radáv e l a d e sta re l v a ! C omo é v erd e! A N T Ô N I O R ea l men t e ; o c h ã o é ale onado. S E B A S T I Ã O Com uma pequena tonalidade verde. A N T Ô N I O E l e qu a s e n ã o e rra. S E B A S T I Ã O R e a l men t e ; a p e nas afast a-se p o r co mp l e t o d a v erd a d e. G O N Z AL O M a s o ma i s ra ro de t udo isso, que , p o r ass i m d i ze r, é i n a c red i t á v e l . . . S E B A S T I Ã O C o mo s e d á c o m a maioria d as r ar i d a d es mu i t o re c o me n d a d a s . . . G O N Z AL O . . . é qu e a s n o s s a s v e st e s, molhadas, co m o o f o ra m, p e l a á g u a d o ma r, n a da pe rde ram d o fr e s c or e d o l u s t re. M a i s p a rec em t ing idas pe la ág ua d o m ar, d o qu e ma n c h a d a s por e l a . A N T Ô N I O S e a o me n o s u m de se us bolsos pude sse fal ar, t a c h á - l o- i a d e me n t i ros o . S E B A S T I Ã O A me n o s q u e e mbolsasse co m ha b i l i d a d e os s e u s d i ze re s . G O N Z AL O Te n h o a i mp re s s ã o de que nossas

31


veste s e stão ag o r a t ã o f re s c a s c o mo qu a n d o a s puse mos pel a p r i m e i r a v e z n a Á f ri c a , n o c a s a me n t o d e C laribe l, a bela fi l ha d o r e i , c om o P rí n c i p e d e Tú n i s . S E B A S T I Ã O F oi u m b e l o c a s a me n t o, t endo sido nós, ao r e to r no , m u i t o be m s u c ed i d os . A D RIA N O N u n c a Tú n i s t i v era a g ra ç a d e possuir uma r ai nh a tão i n co mpa rá v el . G O N Z AL O É c e rt o ; d es d e o t empo d a v i ú v a D ido. A N T Ô N I O V i ú v a , c omo? A pe s t e qu e a c arre g ue ! Por que e ssa vi úv a, a gora ? Ora , a v i ú v a D i d o! S E B A S T I Ã O E s e e l e t i v e s s e d i t o t a mbé m: o vi ú vo E né i as? C o mo i n t e rpre t a i s a s c oi s a s ? A D RIA N O “ A v i ú v a D i d o” ; n ã o f oi o qu e di sse st e s? L e v aste s- me a ref l e t i r s obre o c a s o ; el a n ão e r a d e Tún i s , ma s d e C a rt a g o. G O N Z AL O E s s a Tú n i s , s e n h or, era C a rt a go. A D RIA N O C a rt a g o? G O N Z AL O P os s o a s s eg u ra r- v o s : C a rt a go. A N T Ô N I O S u a pa l a v ra pe s a ma i s d o qu e a har p a m i r acu l o sa. S E B A S T I Ã O Nã o l e v a n t ou a pe n a s mu ralhas, mas tam b é m casas. A N T Ô N I O Q u a l s e rá o próx i mo i mpos s í v el que el e v ai d e i x ar fáci l ? S E B A S T I Ã O S o u d e pe n s a r q u e e l e a c a b ará l evan d o a i l ha n o bol s o , pa ra c a s a , a f i m d e d á - l a para o fi l h o , co m o um a ma ç ã .

32


A N T Ô N I O C u j a s s eme n t e s ele se me ará no mar, p ar a q u e n a s ç a m ma i s i l h a s . AL O N S O C omo? A N T Ô N I O S i m, n o t empo c ert o. G O N Z AL O ( a A l on s o) E s t á v a mos diz e ndo, se nhor, q u e no s s a s v es t e s p a rec em a gora t ã o fre scas como q u an d o n o s en c on t rá v a mo s em Tú n i s, no casame nt o d e vo ss a f i l h a , h oj e ra i n h a . A N T Ô N I O A ma i s c ompl e t a rainha que j á foi te r àq u el a s pl a ga s . S E B A S T I Ã O C o m l i c en ç a : s e e xce t uarmos a vi úv a D i d o. A N T Ô N I O Oh ! a v i ú v a D i d o ! S im, a v iúv a D ido. G O N Z AL O M eu gi bã o , s en h or, não e st á t ão fre sco co m o n o pri me i ro d i a e m qu e o v es ti? Que ro diz e r, d e ce r t o mod o . A N T Ô N I O Um mod o mu i t o be m pe scado. G O N Z AL O Qu a n d o o v es t i n o casame nt o d e vo ss a f i l h a . . . AL O N S O E n t u pi s - me os o u v i dos com palav ras que d e to d o me s ã o i n s u p ort á v ei s . A n t es e m t al lug ar nunca e u t i ves s e c a s a d o mi n h a f i l h a , p oi s , à v olt a, pe rdi me u fi l ho , c omo t a mbé m a el a , p orqu e d a It ália e st ando t ão d i st an t e , j a ma i s a rev ere i . Ó, me u h e rde iro de Milão e d e N ápol e s , q u e e s t ra n h o pe i x e t erá de t i fe it o alime nt o? F RA N C I S C O S e n h or, p rov a v e lme nt e ainda e stá vi v o. V i - o por c i ma d a s o n d a s , a bat ê -las, as crist as

33


caval g and o - l he s. D a s á gu a s a c ó l e ra a f a s t a v a , a a v ançar semp r e , e o p o n d o o pe i t o à t ú mi d a c orre n t e ; mant inha a ou sad a fr o n te se mp re a c i ma d a s on d a s c o n t e n c iosas e remav a co m o s b ra ç o s f o rt es mu i g a l h a rd a ment e , em d i r e ção à p r ai a, q u e, i n c l i n a d a s o bre a b a s e bat ida pel o o ce ano , p ar e cia , a ba i x a n d o - s e, a j u d á - l o . Tenho q uase ce r te z a d e qu e pôd e s a l v o a l c a n ç a r a praia. AL O N S O N ão; morre u . S E B A S T I Ã O A v ó s , s e n h or, é qu e d ev ei s dar g r aças p o r se m e l h a n t e pe rd a . Nã o qu i s e s t e s à noss a E ur o p a co nce d er a gra ç a d e pos s u i r v os s a filha, prefe r i n d o vi r a p e rd ê - l a p a ra u m a f ri c a n o , on d e bani d a a t e n d e s, p a ra s empre , d o s o l h o s q u e c o m causa ora a p r an te i am . AL O N S O P az , por obs équ i o . S E B A S T I Ã O Tod o s n ós , d e j o e l h o s , i n s tant e s, vos pe d i m o s, e e l a própri a — be l a a l ma ! — v a c i lant e se m o str ava so b r e o pra t o a p e n d e r: o d a obe d i ência ou o d a ave r são . P e rd emos v os s o f i l h o , re c ei o- o, para semp r e . M ai s vi úv a s ga n h o u M i l ã o e Ná p ol e s c om isso do que h o m e n s p o d e rí a mo s l ev a r- l h es p a ra c o n s olo de las, e foi tud o , tud o p o r v os s a c u l p a . AL O N S O A maior perda também me coube em sorte. G O N Z AL O S e ba s t i ã o, e s s a s v erd a d es s ã o i nopo r tun as e i n d e li c a d a s ; a rra n h a i s a ú l c e ra , em v e z de pô r- l he e m p l astro . S E B A S T I Ã O M u i t o be m.

34


A N T Ô N I O E c i ru rgi c a me n t e dout rinado. G O N Z AL O P a ra n ós t od o s , m e u se nhor, o t e mpo fi ca r uim, qu a n d o f i c a i s n u b l a d o. S E B A S T I Ã O M u i t o ru i m? A N T Ô N I O H o rrí v el . G O N Z AL O S e e u t i v es s e n es ta ilha, me u se nhor, um a l a v ou ra . . . A N T Ô N I O Urt i ga p l a n t a ri a . S E B A S T I Ã O Ou ma l v a e g rama. G O N Z AL O E e u , q u e f a ri a , s e re i de la fosse ? S E B A S T I Ã O Nã o v o s embriag aríe is, p o r não t erd es v i n h o pa ra be be r. G O N Z AL O Nã o ; n a re pú b l i c a faria t udo pe los se us con t rá ri o s , p oi s n ã o a d mi t i ri a e spé cie alg uma de co m é r c i o ; d e ma gi s t ra d os , n a d a , n e m me smo o nome ; o e stud o f i c a ri a i gn o ra d o d e t o d o ; s u primiria, de v e z , r i co s e pobre s e os s e rv i ç os ; c on t ra t os, suce ssõe s, q u e stõ e s d e t erra , d e ma rc a ç õe s , c u idados da lav oura, p l ant aç ã o d e v i n h ed o s , n a d a , n a d a . Ne nhum uso, tam b é m, d e ól e o e d e v i n h o , t ri go e me t al. Ocupação, ne nh um a . Tod o s o s h ome n s , oc i o s o s, t odos. E as m u l he re s , t a mb é m; ma s i n o c en t e s e puras. Falt aria, d e i g u a l mod o , s o be ra n i a . . . S E B A S T I Ã O M a s o re i e ra ele . A N T Ô N I O D a re pú b l i c a o f i m e sque ce o início. G O N Z AL O Tod a s a s c oi s a s em comum se riam, se m su o r n em e s f o rç o , prod u z i d a s p e l a n at ura.

35


Espad as, e sp i n g ar d a s , f a c a s , c h u ç os , t ra i ç õe s e f e lonias, eu não ad m i t i r i a. A n a t u re z a p rod u z i ri a t u d o por si me sm a, só p ar a a l i men t a r meu p ov o i n gê n u o. S E B A S T I Ã O E c a s a me n t os , h a v e ri a en t re e le s? A N T Ô N I O N ã o, me u c a ro s en h or; v a d i o s t odos: vi l ãos e p r o sti tut as. G O N Z AL O D e t a l mod o g ov ern a ri a , que d e i t ar a so m b r a à p rópri a i d a d e d e ou ro . S E B A S T I Ã O D e u s v o s gu a rd e, ma j e s t a d e ! A N T Ô N I O G o n za l o v i v a ! V i v a ! G O N Z AL O E v ós , s e n h or, n ã o me e s t a i s ouv indo? AL O N S O P ára , p or obs équ i o ; pa ra mi m n ã o falast e coi sa n e n hu m a. G O N Z AL O A c re d i t o n o qu e d i z Vo s s a A l t e z a; mas assi m fi z , p ar a a prov ei t a r a o port u n i d a d e d e most rar a est e s caval h e i r o s q u e e l e s s ã o d e pu l mõ e s t ã o de licados e sensí ve i s, q u e r i e m por c o i s a n en h u ma . A N T Ô N I O E s t á v a mo s ri n d o d e v ó s . G O N Z AL O D e mi m, qu e e m ma t é ri a d e g race j os, sou co i sa n e n hu m a p a ra v ó s . A s s i m, c on t i n u a i s a rir de co i sa n e n hu m a. A N T Ô N I O Q u e g ol pe c ert ei ro! S E B A S T I Ã O S e n ã o ba t e u d e l a d o. G O N Z AL O S oi s c a v a l h e i ros d e h u mor v a le nt e , capaz e s d e l e van tar d e s u a es f era a l u a , n o c a s o de vi r e l a a fi car ci nco s ema n a s s em s e mod i f i c a r. (Entra A r i e l , i nv i sí v e l , t o c a n d o mú s i c a s o l e n e. )

36


S E B A S T I Ã O S i m, f a rí a mo s isso, para de pois i r m o s c a ç a r morc eg os c om a rc h o t es . A N T Ô N I O Nã o v o s a g a s t ei s , me u caro se nhor. G O N Z AL O Tra n qü i l i za i - v os ; não v ou pe rde r o se nso a s s i m c om t a n t a f a c i l i d a d e . S int o os olhos pe sados; q u e r e i s ri r, v e n d o- me d o rmi r? A N T Ô N I O D o rmi e e s c u t a i - n os. (To d o s a d orme c em, c o m e x c e ç ã o d e Alonso, Se b asti ã o e A n t ôn i o . ) AL O N S O C omo a s s i m! J á d o rmiram? Tão de pre ssa? Q u e m me d era q u e os o l h o s , a u m s ó t e mpo, se me fe chass em e e s t e s p e n s a men t os ! M a s pare ce que e st ão p r o p e n s os a i s s o. S E B A S T I Ã O Nã o re c u s ei s s ua pe sada ofe rt a; m u i r ar a me n t e e l e v i s i t a a má g oa , m as, quando o faz , é d e r e a l c on s ol o. A N T Ô N I O Nó s d oi s , c a ro s enhor, vo s g ua rd a remos . Ve l a remos , en q u a nt o re pousarde s, p o r vo s s a s eg u ra n ç a . AL O N S O A gra d e c i d o. C a n s a ç o e xt raordinário! (A d o r me c e. A ri e l s a i . ) S E B A S T I Ã O Qu e c u ri os a f adig a se apossou d e to d o s el e s ! A N T Ô N I O S e m d ú v i d a é d o clima. S E B A S T I Ã O E n o s s a s pá l p e bras, por que não b ai x a o c l i ma ? Nã o me s i n t o s o nole nt o. A N T Ô N I O Nem e u , t a mp ou c o. Te nho de spe rt os

37


os esp í r i t o s. C aí r am t o d o s a u m t e mpo, c o mo por vontad e . P ar e ce m s u c u mbi d o s p or u m ra i o. M eu dig no Sebasti ão , q u e p o d erí a mo s . . . S i m, qu e n o s f o ra . .. Não; sobre st e jam o s ni sso p or ora . No e n t re t a n t o, l e i o-t e no rosto t ud o o q ue p od i a s s e r. É a oc a s i ã o qu e t e chama. A mi nh a ví vi d a fan t a s i a p e rc ebe u ma c o roa q u e t e baixa à cabe ça. S E B A S T I Ã O E s t á s d es p e rt o ? A N T Ô N I O N ã o ou v e s mi n h a v o z ? S E B A S T I Ã O Ou ç o. C o n t u d o, é u ma l i n guag e m sono l e n ta. F al as d o f u n d o d e t eu s on o . Qu e d i s s est e ? Repo u so e x tr ao r d i n á ri o, e s s e ; c o m os o l h o s a be rt os, e a d o r m i r ; d e p é , f a l a n d o , mov en d o- t e, e a d o r m i r p e sad am en t e . A N T Ô N I O M e u n obre S eba s t i ã o, d ei x a s a tua ad o r m e ce r, mo rre r d e t o d o , pi s c a r, e n q u a nt o fi cas aco r d ad o . S E B A S T I Ã O R on c a s d i s t i n t a me n t e . H á a lg um senti d o n e sse t e u r on c o. A N T Ô N I O E s t ou f a l a n d o s éri o, ma i s d o que d e co st um e , o q u e d ev í ei s f a z e r t a mbé m, porque me co m p r e e nd e sse is . A s s i m, t u a v a l i a t ri pl i c a ra . S E B A S T I Ã O S o u u ma á g u a pa ra d a . A N T Ô N I O Vou mo s t ra r- v os c omo e l a h á d e corre r. S E B A S T I Ã O F a ze i - o; mi n h a p re g u i ç a h e re dit ária me e nco r aja m ai s a re f l u i r. A N T Ô N I O O h ! S e s o u b é s s e i s q u a n t o d a i s força

38


à i d é i a a s s i m zomba n d o d el a ! Qu a n to, t orce ndo aos te r m o s o s en t i d o , os d e i x a i s a j u s t a d os a v ós me smo! E ce r t o , q u em re f l u i , p or v ez e s c h eg a quase a t ocar o fun d o , s ej a a c a u s a d i s s o o me d o ou a pre g uiça. S E B A S T I Ã O F a l a l og o. O rost o e os olhos te an un c i a m a l g o c u j o pa rt o t e c u s t a muit as dore s. A N T Ô N I O E n t ã o, s en h or, o u vi. C onquant o aque le no b r e a l i , d e me móri a s u m t a n t o f raca e que mais fraca há d e f i c a r, d e poi s q u e e l e ba i x a r à t e rra, t e nha quase p e r suad i d o o mon a rc a — p oi s é o e spírit o da pe rsuasão, se m q u e ou t ra c oi s a f a ç a , a n ã o s er isso me smo — que se u fi l h o a i n d a e s t á v i v o . . . Tã o a b s u rdo é que e st e não se te n ha a f o g a d o c o mo a es s e h o me m que ali dorme nadar. S E B A S T I Ã O Nã o t en h o a m ínima e spe rança d e q u e e l e h a j a e s c a p a d o. A N T Ô N I O Oh ! C omo d es s a m ínima e spe rança vo s n as c e u ma e s p e ra n ç a mu i t o g ra n de ! Não t e r sobre i st o a mí n i ma es p e ra n ç a , é t er s o bre out ra coisa uma tão g r a n d e, qu e a p rópri a v i s t a d a a mbição não pode d e v assa r- l h e os a rc a n o s , d u v i d a n d o de quant o ali d e sco b re . C o n c e d ei s - me qu e F e rd i n ando pe re ce u? S E B A S T I Ã O Concedo. A N T Ô N I O P od ei s d i z e r- me , e nt ão, que m se j a o he r d e i ro ma i s próx i mo d o t ro n o ? S E B A S T I Ã O C l a ri be l . A N T Ô N I O A R a i n h a d e Tú n i s, que de mora de z l é g uas p a ra a l ém d a v i d a h u ma n a , que not ícias não pode

39


ter d e N áp o l e s, sal v o s e o s o l s erv i s s e d e c o rre i o — fora l e r d o d e m ai s o h o me m d a l u a — a n t e s d e um que ixo recém- nad o achar- s e n o pon t o d e ba rb e a r- s e ? E l a, por caus a d e q ue m fo m os t ra ga d os p e l a s on d a s , e mbora al gun s se v i sse m v omi t a d o s p or e l a s ou t ra v e z , para que p ar t e to m ar p u d es s e m n u ma gra n d e pe ç a e m que o pas sad o é p r ó l o g o e o f u t u ro d epe n d e s ó d e n ó s? S E B A S T I Ã O Qu e t ra pa l h a d a ! C o mo d i s se st e s? É ver d ad e : a fi l h a d e me u i rmã o ra i n h a ora é d e Túnis; herd e i r a e l a é d e N á p ol e s , h a v e n d o a l gu m es p a ç o e nt re esses d o i s p aí se s. A N T Ô N I O S i m, ma s e s p a ç o e m qu e t o d o s os cú b i t o s n o s p ar ec em g ri t a r: “ D e qu e ma n e i ra há de a vo l t a m e d i r- n o s p a ra Ná p ol e s es s a t a l C l a ri b e l? Que fi q ue e m Tún i s , e a c ord e S eba s t i ã o! ” Ora, ad m i tam o s q u e a mo rt e f os s e qu e a es t e s d ominasse neste m o m e n to . N ã o s e e n c on t ra ri a m e m pi or s i tuação. V i ve q ue m p o d e N á pol e s gov ern a r t ã o be m c o mo e sse que d o r m e al i e st e n d i d o , c o mo h á n o bre s t ã o f a ladore s como e sse Go n z al o, d es n e c es s a ri a me n t e t a g a rel a. Eu, t am b é m , se o q u i s e s s e , pod eri a p a p a gu ea r c omo e le . Oh, se t i vé sse i s m e u mo d o d e pe n s a r! C o mo e s t e sono em v o ssa p r o m o ção v o s a j u d a ra ! C o mpre e n d e i s - m e ? S E B A S T I Ã O P a re c e qu e c o mpre e n d o. A N T Ô N I O E c o mo a p l a u d i rei s a v o s s a d i t a? S E B A S T I Ã O L embro- me a gora q u e j á destro n aste s v o sso i rmã o P ró s p e ro.

40


A N T Ô N I O É v e rd a d e. Ved e como e st as v e st e s me vão b e m n o c o rpo; mu i t o me l h o r d o que ant e s. O s v ass a l os d e me u i rmã o, me u s c o mpanhe iros e ram; ho je sã o me u s c ri a d o s . S E B A S T I Ã O Qu a n t o à v os s a consciê ncia. . . A N T Ô N I O Ora , s en h or! On d e é que há isso? Se fo ss e u ma f ri e i ra , o bri g a r- me- i a a calçar as chine las; m as no p e i t o n ã o s i n t o e s s a d e i d a d e. S e coube sse m e n tr e m i m e M i l ã o v i n t e c o n s c i ên c i as pode riam g e lar e d e r r e ter- s e, s em qu e me mol e s t a s s em. Ali se acha v osso i r m ão . E m v erd a d e, n ã o v a l e ra ma i s do que a t e rra sobre q u e r e p ou s a , s e f os s e o qu e pa rec e se r: de funt o, se ndo q u e e u p od eri a f a c i l men t e , c o m e s t e aço obe die nt e — usan d o a p e n a s t rê s p ol e g a d a s d el e — para se mpre de ixál o p r e so a o l e i t o . D e i g u a l mod o f a ríe is v ós, lançando nu m sil ê n c i o qu e n u n c a a c a be a q u ele v e lho t rast e , o t al se nh o r C on s e l h o , qu e, d es t a a rt e, n ã o nos ce nsuraria. Q u an to a o s o u t ros , a c ei t a m s u g e s t õe s t ão facilme nt e co m o o s g a t i n h os , l ei t e. E s t ã o d i s post os a faz e r soar as h o r a s q u a n t a s v ez e s l h e s d i s s e rmos que é t e mpo. S E B A S T I Ã O C a ro a mi go, t eu caso é o me u fan al . D o me s mo mod o qu e obt i v e s t e Milão, he i de obt e r N áp o l es . S a c a d a es p a d a ; u m g ol pe v ai liv rar-t e de um tr i b ut o , e n q u a n t o e u , t e u s obe ra n o, t e v ot are i afe t o. A N T Ô N I O S a q u emos j u n t o s ; ao le v ant ar a mão, faz e i o me s mo pa ra a t a c a r G o n za l o . S E B A S T I Ã O U ma pa l a v ra !

41


(Con ve r sam à p ar t e . M ú s i c a . Toma a e n tr ar A r i e l , i n v i s í v el . ) ARIEL M e u mes t re , g ra ç a s à s u a pa rt e , soub e d o p e r i g o e m qu e e s t á s e u gra n d e a mi go. Por isso me m an d o u — q u e , d o c o n t rá ri o , l h e f a l h a ri a o plano — porq u e a vi d a te co n s e rv a s s e n es t a c on j u n t u ra . (Can t a ao o uv i d o d e G on za l o . ) Enqu an to d o r m e s tra n qü i l o , a tra i ção , co m o d o e s t i l o, está d e sp e r ta. Se ai nd a t e n s am o r à v i d a , põe fi m à se st a co mp ri d a . Al ert a! A l e r t a! A N T Ô N I O E n t ã o , s ej a mos rá pi d o s . G O N Z AL O A gora , b on s a n j o s , a mpa ra i o re i. (Desp e r tam .) AL O N S O Q u e é i s s o? Qu e é i s s o? D e s p e rt a i! Por que ar r an cast e s d a s es p a d a s ? P o r qu e e s s e olhar de fan tasm a? G O N Z AL O Qu e a c on t e c eu ? S E B A S T I Ã O E n q u a n t o n ó s es t á v a mo s a v os vi gi ar o so no , cu i d a d os o s , u m ru í d o c a v o ou v i mos, qual r u g i d o d e t o u ro s o u d e l e õe s . Nã o a c ord a s t e s? Para m i m e r a um r u í d o i n s u p ort á v el . AL O N S O N ão ou v i n a d a d i s s o . A N T Ô N I O O h ! Um e s t ron d o d e a p a v ora r o ouv ido até d e um m o n st r o , d e prod u z i r u m t e rre mot o .

42


C e r to , era o ru gi r d e l e õe s em g ra n de s bandos. AL O N S O G o n za l o , ou v i s t e s a l g o? G O N Z AL O Por minha honra, senhor, ouvi apenas um sussurro muito estranho, realmente, que, de pronto, me fez ficar desperto. Sacudi-vos, senhor, e vos chamei. Foi quando os olhos abri, vendo as espadas assim nuas. Houve barulho, é certo; é mais prudente de guarda nós ficarmos, ou mudarmos de lugar. Arranquemos as espadas. AL O N S O S a i a mo s l o g o, pa ra procurarmos m e u p o b re f i l h o . G O N Z AL O P os s a o c éu gu a rdá-lo de ssas fe ras te r r í v ei s , p oi s é c ert o e n c on t ra r- s e ne st a ilha. AL O N S O Va mos l o g o. ( S a i c om os out ros. ) ARIEL O qu e o me s t re ma n d o u, cumpri com brilho. P ar t e , re i , à p roc u ra d e t eu f i l h o. ( Sai. )

C e n a

II

(O u tr a pa rt e d a i l h a . E n t ra C a l i b ã , c om uma carg a d e l e n h a . Ou v e - s e ru í d o d e t ro v ã o. ) C ALI B Ã Qu e qu a n t a s i n f ec ç õe s o sol aspira dos at o l e i r o s , d o s p a u i s e c h a rc os , s obre Próspe ro caiam, m o r t e l e n t a f a z e n d o- o pa d e c er. Nec essidade t e nho de am al d iç o á - l o , mu i t o e mbora s e u s e s p írit os me ouçam. É v e r d a d e qu e e l e s s ó me be l i s c a m, me ame dront am co m vi s a g e m d e d u e n d e s , s ó me a t i ram nos lodaçais, o u d o c a mi n h o c ert o , n o e s c u ro , me de sv iam, sob a fo r m a d e t i ç õe s mo v ed i ç os , q u a n d o Próspe ro os manda

43


assi m faz e r. M as p or c o i s i n h a s d e n a d a s o bre mi m e le s se at i r am , às v e z e s c omo mon o s c a ret ei ros , q u e os de nt e s batem e d e p o i s m e mord em; s o b a f o rma d e porcoespi n ho , às v e z e s, q u e s u a s pon t a s e ri ç a m, ma c hucandome d e m ai s o s p é s d e s n u d os . Ou t ra s v e z e s , f i c o t odo envo l v i d o p o r se r p e n t e s q u e me s i b i l a m c om s u as l í ngu as b í fi d as, d e me d ei x a re m l ou c o. ( E n t ra Trínculo. ) Justa m e nt e ! E i s u m d e s eu s e s p í ri t o s . S ó v ei o para me atorm e n tar, p o r e u s er t a rd o n o t ra n s port e d a l e nha. Vou d e i tar- m e r e n te a o c h ã o ; pod e s er qu e n ã o me v e j a. T R Í N C U L O Por aqui não há nem bosques, nem arbustos, para a gente se resguardar do tempo, e já se anuncia nova tempestade. Já ouço assobiar o vento. Aquela nuvem escura lá embaixo, aquela grande ali, parece-se com um alforje sujo, que esteja prestes a derramar o seu conteúdo. Se trovejar como da outra vez, não sei onde esconder a cabeça. Aquela nuvem não poderá deixar de despejar-se aos baldes. — Olá! Que temos aqui? E homem ou peixe? Está vivo ou morto? É peixe; o cheiro é de peixe, esse velho cheiro de ranço, que lembra muito a peixe, no jeito de bacalhau meio passado. Mas, que peixe esquisito! Se eu estivesse agora na Inglaterra — como já me aconteceu de outra feita — e fosse dono deste peixe pelo menos em pintura, não haveria tolo de feira que não pagasse uma moeda de prata para vê-lo. Este monstro me deixaria homem. Naquela terra não há animal estranho que não faça homens.

44


Não dão um ceitil para auxiliar um aleijado, mas darão dez para ver um índio morto. As pernas são como as de gente; as barbatanas parecem braços... E está quente, por minha fé! Abandono minha primeira idéia; não é peixe, mas um insulano que a trovoada derrubou. (trovões.) Ai de mim! Recomeça a tempestade. O melhor que tenho a fazer é ficar debaixo do manto dele; em toda a redondeza não há outro abrigo. A necessidade nos faz habituar com estranhos companheiros de leito. Vou esconder-me aqui, até que passe a borra da tempestade. (E nt r a E s t éf a n o, c a n t a n d o , c o m u ma g arrafa na mão. ) E S T É F A N O J a ma i s a o ma r v olt are i. De se jo morre r n a pra i a . . . E s s a mel odia é muit o lúg ubre p ar a o en t e rro d e u ma pe s s oa . M u i t o be m. Aqui e st á o m e u c on s ol o. ( B ebe . ) O c oma n d a nt e , o cont rame st re e e u , e o g ru met e t a mbé m, g os t á v a m os do Me g , Isbe l e I se u; ma s d e K a t e, n i n g u ém, porque nos e spachav a co m r i s o t a : “ Va i t e e n f o rc a r, i d i ot a ! ” Não g ost av a de p i che e d e a l c a t rã o ; ma s o a l f a i a t e ne la punha a mão. A o m ar, ra pa ze s ! E l a q u e s e e n f o rque ! Essa t ambé m é té t r i c a ; ma s a q u i t e n h o o c o n s ol o. ( Be be . ) C ALI B Ã Nã o me a t orme n t e m, oh! E S T É F A N O Qu e s erá i s s o ? Te re mos de mônios p o r aq u i ? P reg a i - n os p e ç a s , f a n t a s i a n do-v os de se lv ag e ns e ho m e n s d a Í n d i a ? A h ! Nã o e s c a p e i de morre r afog ado, p ar a t e r me d o d es s e s q u a t ro pé s . É d it o conhe cido: não há h ome m d e qu a t ro pé s q u e me faça ce de r t e rre no;

45


o que p o d e r á se r r e pe t i d o e n q u a n t o E s t é f a n o re spirar pel o nar i z . C ALI B Ã O e s p í ri t o me a t orme n t a , o h ! E S T É F A N O D e v e s er u m mo n s t ro d a i l h a , com q u at r o p e r nas, qu e prov a v el me n t e a p a n h o u fe bre . Mas o n d e d i ab o te r á el e a p re n d i d o n o s s a l i n g u a g e m? Que n ão se ja p o r m a i s n a d a , v ou d a r- l h e a l gu m forti fi cant e . S e o d ei x a r bom e pu d e r d o me s t i c á -lo e l evá-l o co m i g o p ar a Ná p ol e s , s e rá p re s en t e pa ra qualque r i mper ad o r q ue and e s o bre c o u ro d e boi . C ALI B Ã P o r f a v or, n ã o me a t orme n t e s ma is; l evo já a l e nh a p ar a c a s a . E S T É F A N O E s t á c om a c e s s o a gora , n ã o have nd o m ui t o se n s o n o qu e f a l a . Vo u d a r- l h e a p rov a da m i n ha g ar r afa. S e e l e n u n c a b e be u v i n h o, h á muit a prob ab i l i d ad e d e l i v ra r- s e d a f e bre . S e o d ei x a r bom e o d o m e sti car, n ão t e rá s i d o mu i t o g ra n d e o d ese mbolso; quem fi car co m e l e , p a ga rá c o m s o bra . C ALI B Ã P o r e n q u a n t o, n ã o me a t orme n t a s muit o; mas d e n tr o d e p o u c o i rá s f a zê - l o, v ej o - o pe l o t eu t re mor. Neste m o m e nt o P r ós p e ro e s t á i n f l u i n d o s o bre t i . E S T É F A N O C ri a i â n i mo! A b ri a b oc a . I s t o, gato, vo s far á so l t a r a l í n gu a . A bri a b oc a ; i s t o v os sacu d i r á o p r ó p r i o t re mor, é o qu e v o s d i g o à ma rav ilha. (Dá d e b e b e r a C al ibã . ) Ni n gu ém s a be on d e t em um ami g o . A b r i n o v am e n t e a ma n d í bu l a . T R Í N C U L O P a re c e- me qu e c o n h e ç o e s s a v oz .

46


De ve s er d e. . . Nã o , pe re c eu a f og a d o; e st e s aqui são d e m ô n i o s . Oh ! D ef e n d e i - me ! E S T É F A N O Qu a t ro pe rn a s e duas v oz e s; é um m on s t ro pri moros o . C o m v o z da fre nt e , fala be m d o s ami g os ; c om a d e t rá s c a l u n i a e pronuncia discursos ho r r o r o s o s . S e ba s t a r t o d o o v i n h o de minha g arrafa, he i d e c u ra r- l h e a f ebre . Va mos . A m é m. Vou pôr t ambé m um p o u c o n a qu el a o u t ra b oc a . T R Í N C U L O E s t é f a n o! E S T É F A N O A t u a o u t ra b oc a me chamou pe lo no m e ? P i e d a d e! P i e d a d e! Nã o é monst ra, é de mônio. Vo u d e i x á - l o; n ã o t en h o c o mi g o u ma colhe r g rande . T R Í N C U L O E s t é f a n o! S e f ore s Est é fano, to ca- m e e f a l a - me , porqu e s o u Trí n culo. Não t e nhas m e d o ; s ou o t eu b om a mi go Trí n c u l o . E S T É F A N O S e f ore s Trí n c u l o, v e m para cá. Vo u p u x a r- t e pe l a s pe rn a s ma i s c u rt as. S e aqui há pe rnas d e Tr í n c u l o , t êm d e s er f orç o s a me n te e st as. És Trínculo, e m v e r d a d e ! M a s c o mo é qu e f i c a s t e se ndo o e xcre me nt o d e ste b e z e rro d a l u a ? S erá q u e e l e e xpe le Trínculos? T R Í N C U L O P en s e i qu e e l e houv e sse sido ví ti m a d e ra i o . M a s n ã o morre s t e a f o g ado, Est é fano? Te n ho es p e ra n ç a , a gora , d e qu e n ã o t iv e sse s morrido, r e al m en t e . J á pa s s o u a t empe s t a d e ? D e me do da te m p e s t a d e, e s c on d i - me d eba i x o d a capa do be z e rro d a l ua. E t u , E s t é f a n o, e s t á s v i v o? Oh, Est é fano! Do i s na p ol i t a n o s s a l v os !

47


E S T É F A N O P o r f a v or, n ã o me v i res d e s s e j e it o; não te n ho o e st ô m a g o mu i t o f i rme . C ALI B Ã (à p a rt e ) S e s ã o e s p í ri t o s , s ã o c o i sa fi na. A q ue l e é um d e u s v a l e n t e , qu e me pod e d a r licor cel esti al ; v o u ajo e l h a r- me . E S T É F A N O C o mo e s c a p a s t e? C o mo c h e g ast e até aq ui ? J ur a- m e p or e s t a ga rra f a c omo c o n s e g uist e escap ar. E u m e sal v ei e m c i ma d e u ma ba rri c a d e xe re z que o s m ar i nh e i r o s a t i ra ra m a o ma r. J u ro por e s ta g arrafa que e u fi z d e u m a c a s c a d e á rv ore c o m mi n h a s próprias mãos, d e p o i s q ue fu i l a n ç a d o à p ra i a . C ALI B Ã Q u e r o j u ra r p or e s s a ga rra f a q u e ficare i send o te u v assal o fi el , porqu e e s s e l i c o r n ã o é t erre no. E S T É F A N O A qu i ! E a gora j u ra - me : como co n se g u i st e es c a p a r? T R Í N C U L O Na d a n d o pa ra a p ra i a , h o me m, como u m p ato . N ad o c o mo u m p a t o, pos s o j u rá - lo. E S T É F A N O A qu i , b e i j a o l i v ro . ( D á a Trínculo a garr afa.) P o d e s na d a r c o mo u m p a t o, ma s f os t e fe it o como u m g anso . T R Í N C U L O Ó E s t éf a n o, a i n d a h á ma i s ? E S T É F A N O U ma ba rri c a i n t ei ra , h ome m. Minha adeg a fi ca n um r o ch ed o pe rt o d o ma r. F oi l á q u e e u esco nd i o vi nh o . E n t ã o , be z e rro d a l u a , c o mo v a i a fe bre ? C ALI B Ã N ão c a í s t e d o c éu ? E S T É F A N O C a í d a l u a , pos s o a s s ev era r- te . Já houv e te m p o e m q u e e u era o h o me m d a l u a .

48


C ALI B Ã E u j á t e v i d e n t ro d ela e me prost re i d i an te d e t i . M i n h a a ma me mos t ra va onde t u e st av as, te u cão e o f e i x e d e l e n h a . E S T É F A N O Va mos ; j u ra por ist o; be ij a o liv ro! De nt r o d e pou c o t o rn a re i a en c h ê- l o. J ura! T R Í N C U L O P or e s t a b oa l u z , e sse monst ro é be m si m p l ó ri o . E e u t i v e me d o d el e ! M u it o fraco, e m v e rdade , o tal mon s t ro . Ora , o h o me m d a l u a ! Que monst ro i ng ê n u o! B o n i t o t ra g o, mon s t ro , por minha fé ! C ALI B Ã Tod a s a s p ol e g a d a s v o u most rar-t e . De t e r ra f é rt i l d a i l h a . Os pé s t e be i j o. S ê me u de us, p o r fav or. T R Í N C U L O P or e s t a l u z , é um monst ro borracho e m u i to pé rf i d o . Qu a n d o o d eu s d el e e st iv e r dormindo, e l e l h e rou b a rá a ga rra f a . C ALI B Ã B e i j o - t e os p é s e qu ero v assalag e m p e r m an en t e j u ra r- t e . E S T É F A N O E n t ã o v em; a j oe lha-t e e j ura. T R Í N C U L O H ei d e ri r a t é morre r, à cust a de st e m o nstro d e c a be ç a d e c a c h orro. Nã o pode hav e r monst ro m ai s i n d e c en t e d o qu e e s t e . Te n h o g ana de dar-lhe um a b o a c o ç a . E S T É F A N O Va mos , b e i j a . T R Í N C U L O C omo e s t á b ê bado o pobre monst ro! Q u e mo n s t ro a b omi n á v el ! C ALI B Ã H e i d e mos t ra r- t e a s font e s mais saud ávei s ; p e s c a rei pa ra t i , c ol h ere i bag as, t rare i le nha

49


basta n te . P o ssa a p e s t e c a rre g a r o t i ra n o a q u e e st ou preso . Já não l he l e v a rei f e i x es d e l e n h a ; s i m, v o u se g uirte, ó ho m e m p r o d i g i o s o ! T R Í N C U L O E u m mo n s t ro e x c e s s i v a me nt e ri dí c u l o ; faz e r d e u m pobre bê ba d o u m p rod í gi o! C ALI B Ã P e r m i t e qu e t e t ra g a ma ç ã s b ra v a s ; com m i n has un has gra n d es v ou t i ra r- t e d a t erra be las túbar as; um n i nh o d e g a l o v o u mo s t ra r- t e e o me io fácil de ar m ar ci l ad as p a ra o s ma c a qu i n h o s . I re i c o n t ig o aos bosq ue s d e av e l e i r a s e a l gu ma s v e z e s t e t ra re i d a s rochas fi l ho te s d e g ai v o t as . Va mos ? Va mo s ? E S T É F A N O S ó qu ero a gora q u e me i n d i que s o cam i nh o , se m m a i or pa l a v rea d o. — Trí n c u l o, uma ve z q ue o r e i e t o d o s o s d a n os s a c ompa n h ia perece r am afo g ad o s , t o ma remos p os s e d i s t o . — Aqui! Leva a g ar r afa! — A mi go Trí n c u l o , d a qu i a pou q uinho torna r e m o s a e n ch ê- l a . C ALI B Ã A d e u s , mes t re ! A d e u s ! A d e u s ! (Can t a, e m b r i ag ad o . ) T R Í N C U L O U m mo n s t ro qu e u i v a ; u m monst ro que se e m b r i ag a! C ALI B Ã Já nã o f a rei ba rra g e m pa ra pe i x e, nem fo g o i r e i b usca r, q u a n d o e l e me ma n d a r. Nã o lav o prato n e m car r e g o f e i x e. B ã , b ã , b ã , C a l i b ã ! ou t ro me st re aman h ã! L i b e r d ad e ! V i v a ! L i be rd a d e! L i be rd a d e! E S T É F A N O Vá bra v o mon s t ro ! Va mo s ; m ost ra-nos o cam i nh o . ( Sae m .)

50


A T O C e n a

I I I I

(Di ant e d a c el a d e P ró s p e ro. E nt r a F e rd i n a n d o , c a rre g a n d o u m f eixe de le nha. ) F ER D I N A N D O H á j og os f a t ig ant e s, mas au m e nt a - l h e s a f a d i g a a a t ra ç ã o . M u it os se rv iços de b ai x a q u a l i d a d e s ã o l e v a d o s a c a bo com nobre z a, e assu nt o s mí n i mos a ri c o s f i n s p od em le v ar por v e z e s. E st a ta ref a h u mi l d e pod eri a s e r- me t ão re pug nant e q u an to od i o s a ; ma s a d a ma a q u e s i r v o anima os mort os e e m p ra ze r me t ra n s f orma es t a s c a nse iras. D e z v e z e s m ai s g e n t i l el a s e mos t ra d o qu e o pai int rat áv e l, t odo fe i t o d e a s pe re z a e ri g or. E m o be d i ência à sua imposição, p r e ci so a g ora c a rreg a r e e mpi l h a r a lg uns milhe iros de st as achas d e l e n h a . M i n h a d oc e s en h ora sofre , quando m e co n t empl a n e s t e á s pe ro t ra ba l h o, e diz que nunca i m p o sta f o i t a re f a a s s i m t ã o ba i x a a um t al t rabalhador. So u e sq u e c i d o; ma s e s t e s p e n s a men tos ag radáv e is as fo r ç a s me e s t i mu l a m; qu a n t o me nos pe nso na sit uação, m ai s p r o d u t i v a s e me t o rn a a t a ref a . (E nt r a M i ra n d a ; P ró s p e ro a s e g u e a ce rt a dist ância. ) MIRA N D A Oh! Por obséquio, não trabalheis assim! Antes o raio queimasse toda a lenha que obrigado sois a empilhar. Quando ela for queimada, há de chorar por vos haver cansado. Agarrado meu pai está com os livros. Descansai, por favor. Nestas três horas ele não aparece. F ER D I N A N D O Ó, mu i p re z ada se nhora,

51


bai xa r á o so l n o o ca s o , s em qu e e u p os s a c on c l uir mi nh a t ar e fa. MIRA N D A S e v o s q u i s e rd es a s s e n t a r, u m pouco carreg ar e i as achas . P o r obs équ i o , d a i - me e s s a ; eu me sma a dep o r e i na p i l ha. F ER D I N A N D O Não, preciosa criatura; preferira quebrar o dorso, arrebentar os nervos, a vos ver degradada num serviço tão humilhante, enquanto eu fico ocioso. MIRA N D A É t ã o d i gn o d e mi m e s s e t ra balho quan to d e vó s, so b r e me s er pos s í v el e x ec u t á - l o muit o mai s d e p r e ssa, p o r qu e n ã o me re pu gn a , c o mo v ej o que aco n te ce co nv o s c o. PR Ó S PER O ( à p a rt e ) P obre c ri a n ç a ; j á est ás tocad a; e st a vi si t a o prov a . MIRA N D A P a re c ei s f a t i ga d o. F ER D I N A N D O Nã o, mu i n obre s en h ora; para m i m faz m an h ã f res c a , n a n oi t e e m qu e d e v ós esti ve r p e r to . D i z e i - me, por obs équ i o , v o s s o n o me ; só desejo i ncl uí - l o , d e ora em d i a n t e , n a s mi n h a s o raçõe s. MIRA N D A Ó pa i ! R e v el e i - o, d e e n c on t ro ao qu e o r d e n aste s. F ER D I N A N D O A d mi rá v e l M i ra n d a ! Si m, r e m at e d e to da p e rf e i ç ã o, d i gn a d e qu a n t o no mun d o h á d e m ai s ra ro . A n u me ros a s d a ma s j á d irig i ol har e s t e r no s, p o r v e z e s t e n d o- me f i c a d o pre s o s os aten to s o uv i d o s n a h a rmon i a d e s eu d oc e f a l a r. Dote s v ar i ad o s m e f i ze ra m gos t a r d e ou t ra s mu l h e re s,

52


se m , co n t u d o, e mpe n h a r n i s s o a a l ma t oda, porque se m p r e s e opu n h a a l gu m d e f e i t o à s suas qualidade s mais su b l i m es , p a ra o v a l or ma n c h a r- l h e s. Vós, no e nt ant o, ah! tão p e r f ei t a e i n c ompa rá v el , f os t e s f e it a de t udo o que d e m ai s c u s t o s o pod e h a v er n a c ri a ção. MIRA N D A Nã o me re c o rd o de ning ué m do me u se x o , n e m v i n u n c a f e i ç õ e s d e ou t ra mulhe r, t irant e as m i nh a s , q u a n d o a o e s p e l h o e s t ou. D o me smo modo, jam ai s t i v e a n t e os o l h o s , d e n t re os se re s a que e u podia d ar o n o me d e h o me m, s en ã o v ó s , c aro amig o, e me u b o m p a i . C omo a ge n t e é l á f o ra , d e sconhe ço. Mas por m i n ha p u rez a — a j ói a ra ra d e me u dot e de noiv a — não q u i s e ra t e r ou t ro c o mpa n h ei ro e m t odo o mundo se não v ó s t ã o - s o me n t e , n em c o mi g o criar na imag inação o u tr a p e s s oa a qu e e u p u d e s s e a ma r. Mas falo muit o, ve jo - o a g ora , o l v i d a d a i n t ei ra men t e das re come ndaçõe s d e m e u bom pa i . F ER D I N A N D O P o r pos i ç ã o , Miranda, e u so u u m p rí n c i pe , ou , p orv en t u ra , re i — ant e s não o fo sse ! — a qu em f ora t a mp ou c o s u port áv e l e st e se rv iço vi l d e c a rrea r l en h a c omo s en t i r n o s lábios uma mosca. M i n ha a l ma é qu e v o s v a i f a l a r a g ora: no me smo inst ant e e m q ue v os v i , v o ou - me d o pe i t o o coração, para se rv irvo s, r azã o d e e u me t er f e i t o v o s s o e scrav o. Por v ossa causa, a pe n a s , t ra n s f o rme i - me n u m pacie nt e le nhador. MIRA N D A A ma i s - me ? F ER D I N A N D O Ó c éu ! Ó t e rra!

53


Sede t e ste m un has d o qu e ora v ou d i z e r, e c o m propício resul t ad o co r o ai m e u j u ra me n t o, s e e u f a l a r a v erdade . Send o e u fal so , p o r d e s gra ç a s t ro c a i qu a n t o o f ut uro me r e se r ve d e b e ns . M a i s d o qu e a t u d o n es t e mundo eu v o s am o , e sti m o e h o n ro . MIRA N D A S o u t ol a p or c h ora r d o qu e me ale g ra. PR Ó S PER O ( à p a rt e ) B el o e n c on t ro d e dois afe t os raros. P o ssa o cé u c h o v er g ra ç a s n o qu e e n t re a m bos neste i n st an te g e r m i n a . F ER D I N A N D O Qu a l a c a u s a d e c h ora r de s? MIRA N D A D e mi n h a d e s v a l i a , qu e n ã o s e at re v e a ofere ce r- v o s t ud o q u e e u d e s ej a ra d a r e, mu i t o me nos, a recebe r o q ue m e fo ra mo rt e n ã o c h e g a r a pos s uir. Mas é cr i an ci ce tud o i s s o; qu a n t o ma i s t en t a es c onde r-se mi nh a afe i ção , m ai o r s e pa t e n t e i a . F o ra , f o ra , espe r t e z a ve r g o nh o s a ! S a n t a i n o c ên c i a , en s i n a - me a expr e ssar- m e ! S o u v o s s a es p os a , s e me d es p os a rde s; caso co n tr ár i o , m o rre re i s erv i n d o - v o s ; p od ei s me re cusar por c o m p an he i r a, ma s v o s s a c ri a d a p od ere i s er se mpre , quer o q u e i r ai s, q u e r n ã o. F ER D I N A N D O

( a j oe l h a n d o- s e) M i n h a que rida,

mi nh a se n ho r a! E e u s e mpre a s s i m, h u mi l d e . MIRA N D A M eu ma ri d o , port a n t o? F ER D I N A N D O S i m, a c e i t a - v o s o c o ra ç ão com o m e sm o e n tus i a s mo qu e a es c ra v i d ã o a c e i t a a l i b e r d ad e . E i s m i n h a mã o. MIRA N D A E a mi n h a a q u i ; c om e l a v os d ou me u

54


co r ação. E a gora , a d eu s , por u ma me ia hora. F ER D I N A N D O Oh , p or milhare s! (F e r d i n a n d o e M i ra n d a s a em por l a d os dife re nt e s. ) PR Ó S PER O Tã o a l eg re qu a nt o e le s não pre sumo q u e p o s s a es t a r, poi s f o ra m s u rp re e ndidos por quant o aco n te c e u ; c oi s a n en h u ma me d ei x a mais ale g re . M as é t empo d e v o l t a r a meu l i v ro, pois pre ciso re aliz ar at é à c ei a mu i t a c o i s a d e e x t re ma rele v ância. ( S ai. )

C e n a

II

(O u tr a p a rt e d a i l h a . E n t ra C a l i b ã c om uma g arrafa, E st é fan o e Trí n c u l o . ) E S T É F A N O Nã o me f a l es ! Quando o barril fi car va z i o, be be re mos á g u a . A n t e s d isso, ne m uma g o ta. P or i s s o, c ri emos c ora ge m e v a mos abordá-lo! — M o nstro - c ri a d o , be be à mi n h a s a ú d e . T R Í N C U L O M on s t ro - c ri a d o ! A loucura de st a i l ha! D i z e m qu e s ó h á c i n c o h a bi t a nt e s na ilha. Trê s aqui e stão ; s e os o u t ros d oi s t i v ere m o c ére bro como nós, o E st ad o n ã o i rá l á mu i t o be m d a s p e rnas. E S T É F A N O B e be , mon s t ro - criado, quando e u m an d a r. Ten s os o l h o s q u a s e e n f iados na cabe ça. T R Í N C U L O On d e qu eri a s que e le os t iv e sse ? Se r i a u m mo n s t ro mu i t o f a mo s o , e m v e rdade , se t iv e sse o s o l ho s n a c a u d a . E S T É F A N O M eu s e rv o - mon s t ro afog ou a líng ua e m x e rez . Qu a n t o a mi m, o ma r n ã o pode rá afog ar-me .

55


Sem t o car p é e m t e rra , p os s o n a d a r, d e i d a e v i n da, tri nt a e ci n co l é g u a s . P or e s t a l u z . M o n s t ro , s erás o meu te n e n te , o u o meu p ort a - ba n d ei ra . T R Í N C U L O Te n en t e , s e qu i s e rd es , p oi s s e g urar a ban d e i r a é o q u e e l e n ã o pod erá . E S T É F A N O Nã o h a v ere mos d e c o rre r, monsi e ur M o n st r o . T R Í N C U L O Nem a n d a r, t a mp ou c o; fi care i s d e i t ad o s, como c ã e s , s e m d i ze r pa l a v ra . E S T É F A N O B e z e rro d a l u a , f a l a u ma v ez na v ida, se fo r e s um b o m b ez e rro d a l u a . C ALI B Ã C o mo pa s s a t u a H o n ra ? D e i x a - me lambe r a sol a d e te u s sap at os . Nã o h ei d e c o n t i n u a r n o se rv iço del e; n ão é co r ajo so . T R Í N C U L O M e n t e s , mo n s t ro i g n o ra n t e! Encont r o - o e m co n d i ç õe s d e e s b a rra r n u m of i c i a l de j u sti ça. Vam o s, re s p on d e , pe i x e d ev a s s o: j á houv e al gum co var d e q u e be be s s e t a n t o x ere z c o mo e u be bi hoj e? N ão q u e r e r ás d i z e r u ma me n t i ra mo n s t ru osa, send o , co m o é s, m e t a d e pe i x e e me t a d e mon s t ro ? C ALI B Ã Vê co mo e l e z omba d e mi m! Conse n te s i sso , p r í n c i p e ? T R Í N C U L O “P rí n c i p e ” , f oi o qu e e l e d i s se ! Com o u m m o nstr o a s s i m pod e s er t ã o i n gê n u o! C ALI B Ã Vê ! Vê ! Va i rec o me ç a r! P or f a v or, mat a-o a den tad as. E S T É F A N O Trí n c u l o , pá ra c o m e s s a l í n g ua suj a.

56


Se p r o v oc a re s d e s o rd em. . . a p ri me i ra árv ore ! O p o b r e mon s t ro é me u s ú d i t o e n ã o sofre rá ne nhuma i nd i g nid a d e. C ALI B Ã Obri g a d o, me u n obre lorde . Que re s m ai s um a v ez ou v i r mi n h a p ropos t a ? E S T É F A N O Qu ero, s em d ú v ida. Aj oe lha e r e p e t e - a . E u e Trí n c u l o f i c a re mos de pé . (E nt r a A ri e l i n v i s í v e l . ) C ALI B Ã C omo j á t e d i s s e, s o u se rv o de um t irano, d e um f ei t i c e i ro, qu e por me i o d e s u a ast úcia m e d e s p oj o u d e s t a i l h a . ARIEL M en t e s ! C ALI B Ã Tu é qu e me n t e s , s í mio bobo. P o r m im, meu v a l en t e a mo t e ma t a va. Não me nt i nada. E S T É F A N O Trí n c u l o , s e o i nt e rrompe rde s m ai s um a v e z e m s u a h i s t óri a , p or e st a mão, arranco-v os al g un s d e n t e s . T R Í N C U L O Nã o f a l ei n a d a . E S T É F A N O E n t ã o , ps i u ! Nem mais uma palav ra. (a C al ibã . ) C o n t i n u a . C ALI B Ã F o i por f e i t i ç a ri a , c o mo disse , q u e e l e f i c ou c om a i l h a . C a s o t u a Honra se dispuse r a cast i g á - l o — p oi s s e i qu e t en s c o ra ge m, que é o que falt a àq ue l e t i p o — . E S T É F A N O I s s o é v erd a d e. C ALI B Ã S e rá s o d o n o d a i l h a e e u t e u criado. E S T É F A N O M a s d e qu e modo le v are mos a cabo

57


o em p r e e nd i m e n to ? P o d es c on d u zi r- me a t é a o i nimig o? C ALI B Ã P o ss o , s i m, meu s e n h or. H ei d e e nt re g ar-t o quan d o e sti ve r d o r m i n d o , on d e pos s í v el t e f or me t e r-lhe na cab e ça u m p r e g o . ARIEL É m e n t i ra ! Nã o pod es . C ALI B Ã Bo b o s a ra p i n t a d o! Ti po i mu n d o ! Supl i co à t ua A l t e z a d a r- l h e g ol pe s e t o ma r- l h e a g arrafa; el a c o no sco , e l e q u e be ba á g u a d o ma r, s o me n t e , poi s não l he m o str a rei a s f on t e s f res c a s . E S T É F A N O Trí n c u l o , n ã o e n f ren t e s o u t ro pe rig o. Se i n te r r o m p e r e s m a i s u ma v ez o mon s t ro c o m uma úni ca p al avr a, p o r es t a mã o, ma n d a re i e mbora a minha mi ser i có r d i a e te fa rei v i ra r ba c a l h a u . T R Í N C U L O M a s q u e f i z e u ? Nã o f i z n a da. Vou m ud ar d e l ug ar. E S T É F A N O Nã o d i s s es t e qu e o mon s t ro estav a m e nt i nd o ? ARIEL M e nt e s ! E S T É F A N O M i n t o , n ã o? E n t ã o t o ma i s t o . (Bate e m Tr í ncul o .) S e g os t a res d i s t o, d es men t e -me mai s um a ve z . T R Í N C U L O E u n ã o t e d es men t i . A l é m de tr ansto r nad o d o e s p í ri t o , f i c a s t e s c om os o u v idos pertu r b ad o s? A p e s t e s ej a d e v o s s a ga rra f a . Tu d o isso é efei to d o x e r e z . Qu e a p e s t e c a rre g u e v o s s o monst ro e o d i ab o vo s ar r an q u e os d e d o s . C ALI B Ã A h! A h ! A h !

58


E S T É F A N O A g ora , p ros s e g u e a t ua hist ória. Tu, aí , c o l oc a - t e ma i s l on ge ! C ALI B Ã B a t e - l h e c o m v o n t a d e ! Mais um pouco, q u e e u b a t e re i t a mbé m. E S T É F A N O M a i s l o n ge ! — Adiant e ! C ALI B Ã Ora , c omo e u t e d i s s e, e le t e m o hábit o d e d o r mi r t od a t a rd e. A í , t e f ora p ossív e l asfixiá-lo, ap ó s o t e re s p ri v a d o d e s eu s l i v ro s ; ou, munido de um p au, l h e pa rt i rá s e m d o i s o c râ n i o ; se não, o e st riparás co m q u a l qu er v a ra , o u a g a rga n t a c o m faca lhe se ccionas. M as, p ri mei ro, é pre c i s o qu e t e l e mbre s de lhe t omar o s l i v r o s , p oi s , s e m e l e s , é u m p a l erma como e u, já não d i s p on d o d e e s p í ri t o n en h u m sobre que mande . To d o s, c omo e u , l h e t êm ód i o e n t ra n hado. Basta q u ei ma r- l h e os l i v ros . Ut en s í l ios v aliosos t ambé m te m — a s s i m l h e s c h a ma — pa ra e nfe it ar sua fut ura casa. M as o q u e é s o bre t u d o d e e s t i ma r- s e é a be le z a da filha, q u e e l e própri o c o n s i d era s e m pa r. Mulhe r ne nhuma jam ai s e u v i , t i ra n t e S i c ora x , mi n h a mãe , e e la me sma. M as tã o l on ge d ei x a e l a S i c o ra x c o mo o que é g rande ao q ue é mu i t o pe qu en o . E S T É F A N O A s s i m bon i t a ? C ALI B Ã M u i t o , s en h or; h á d e e nfe it ar-t e o le it o, p o sso j u ra r- t e, e d a r- t e be l a p rol e . E S T É F A N O M o n s t ro , v o u m at ar e sse home m. Sua fi l h a e e u s e re mos rei e ra i n h a . — V iv a nossa Graça! — E Trí n c u l o e t u própri o s ere i s v i ce -re is. Ag rada-t e a

59


prop o st a, Tr í ncul o ? T R Í N C U L O Excelente. E S T É F A N O D á - me a mã o. E n t ri s t e c e- me hav e r-t e bati d o ; m as e nq uan t o v i v e re s , gu a rd a u ma boa l íng ua na cab e ça. C ALI B Ã É cert o e l e d o rmi r n es t a mei a h ora. Quer e s, e nt ão , d e st ru í - l o? E S T É F A N O P o r mi n h a h on ra . ARIEL Vo u co n t a r i s s o pa ra o me u s e n h or. C ALI B Ã Tr an s bord o d e pra ze r; d ei x a s - me ale g re . Rej u b i l e m o s, p o i s. C a n t a r n ã o qu ere s o e s t ri bi l ho que há po u co m e e n si n a s t e ? E S T É F A N O F a rei o qu e me pe d es , mo n s t ro; farei tud o o q ue m e pe d i res . C a n t emos , Trí n c u l o. (Can t a.) Zomb e m o s d e l e , o h o h ! Va mos ri r d e l e ! Vamo s r i r d e l e , o h o h ! Z o mbe mos d e l e ! O pe nsam e n to é l i v re. C ALI B Ã N ão é e s s a a me l od i a . (Ari e l t o ca a m e l o d i a n u m t a mb ori l e n u ma f l a u ta. ) E S T É F A N O Qu e s i gn i f i c a i s s o ? T R Í N C U L O É a mel od i a d e n o s s o e s t ri bi lho, tocad a p e l o fan tasma d e Ni n gu ém. E S T É F A N O S e f ore s u m h o me m, mos t ra -t e sob a tua v e r d ad e i ra f o rma ; s e f ore s o d emôn i o , assume a qu e b e m t e ap r o u v er. T R Í N C U L O Oh ! Qu e os meu s pe c a d o s

60


se jam p erd o a d os ! E S T É F A N O Qu em morre , s a lda as dív idas. De safi o - t e! M i s eri c ó rd i a ! C ALI B Ã E s t á s c o m me d o ? E S T É F A N O Nã o , mon s t ro ; e u, não. C ALI B Ã Nã o t en h a s me d o ; e s ta ilha é se mpre che ia d e so ns , ru í d o s e a gra d á v e i s á ri a s , que só de le it am, se m causar- n o s d a n o. M u i t a s v e z e s es t rondam-me aos ouv idos m i l i ns t ru me n t os d e pos s a n t e bu l h a ; out ras v e z e s são vo z e s, q u e me f a ze m d o rmi r d e n o v o , e mbora de spe rt ado te n ha d e u m l o n go s o n o . E n t ã o , e m sonhos pre sumo v e r as n uv e n s qu e s e a f a s t a m, mo s t ra n do se us t e souros, co m o p res t e s a s o bre mi m c h ov ere m, de t al modo que , ao aco rd a r, c h oro porqu e d es ej o prosse g uir a sonhar. E S T É F A N O Qu e re i n o e t a n to me v ai se r e st e ! Vo u t e r mú s i c a d e g ra ç a . C ALI B Ã U ma v ez d es t ru í d o P r óspe ro. E S T É F A N O O qu e s e d a rá d e nt ro de pouco. N ão m e e s q u ec i d a h i s t óri a . T R Í N C U L O O som está se distanciando; acompanhemo-lo, para depois liquidarmos o nosso negócio. E S T É F A N O M o n s t ro , v a i n a fre nt e , q u e nó s t e a c ompa n h a mos . Qu i s era v e r e sse t amborile iro; te m t ale n t o, d e f a t o. Nã o v en s ? T R Í N C U L O E u t a mb é m v o u Est é fano. (Sae m .)

61


C e n a

III

(Out r a p ar te d a i l ha . E n t ra m A l on s o, S eba s t i ã o, Antô ni o , Go n z al o , A d ri a n o, F ra n c i s c o e Ou t ros ) G O N Z AL O Oh ! P or Nos s a S e n h ora ! É - me i mpossí ve l , se n ho r, d a r ma i s u m p a s s o . Os v e l h o s ossos me d o e m d e r achar. I s s o é u m p e rf e i t o l a bi ri n t o, ora re t o, ora co m vo l t as. C o m l i c e n ç a , p re c i s o d e d es c a n so. AL O N S O N ão t e c en s u ro , v el h o , porqu e e u próprio fati gad o m e si nt o d e t a l mod o , qu e os es p í ri t o s te nho obnu b i l ad o s. A sse n t a - t e e d es c a n s a . Ne s t e pon t o, de ixo toda e sp e r an ça, r e c u s a n d o- me a o u v i r- l h e a s v ã s lisonj as. Já não v i ve q u e m t a n t o proc u ra mo s ; a f og ou - s e , rindo-se o mar d o no sso afã n a t e rra . P oi s q u e s e v á ! A N T Ô N I O ( à p a rt e , a S e ba s t i ã o) A l eg ro- me por v ê - l o t ão d e se sp era n ç a d o . S ó por c a u s a d e u m pri m e i r o m al o g r o , c ert a me n t e n ã o h a v ei s d e a b rir mão de vo sso i n te n to . S E B A S T I Ã O ( à pa rt e , a A n t ô n i o ) A p rov eit e mos o prim e i r o e n se jo . A N T Ô N I O ( à p a rt e , a S e ba s t i ã o) Qu e s ej a à noi te , p o i s e st an d o t o d o s p ros t ra d os d e f a d i g a , embo r a o q ue i r am , n ã o pod erã o f i c a r t ã o v i gi l a n t e s, como q uand o d i sp o s t o s . S E B A S T I Ã O ( à pa rt e , a A n t ô n i o ) B em, à noit e . (Músi ca so l e n e e e s t ra n h a . No a l t o, P ró s p e ro, i nv isív e l. Embai x o e n tr am fi g u ra s b i z a rra s , q u e c a rre g a m u ma mesa co m i g uar i as; d a n ç a m à v ol t a d a me s a , s a udando

62


g e nt i l me n t e ; d epoi s d e c o n v i d a re m o re i e as de mais p e sso as pa ra c o me r, d e s a pa rec em. ) AL O N S O Que harmonia! Escutai, meus bons amigos. G O N Z AL O Qu e s u a v e e d el i ciosa me lodia! AL O N S O Ó c é u s ! D a i - n o s b ons g uardas. Q u e fo i i s s o? S E B A S T I Ã O S ã o f a n t o c h e s com v ida. A g o r a c re i o qu e h a j a u n i c ó rn i o s , q ue na Arábia se rv e um a ár v ore d e t ro n o pa ra a f ên i x que a re inar lá se e nco n t ra n e s t e i n s t a n t e . A N T Ô N I O C re i o n o s d oi s ; e t udo o mais que d e hábi t o t em s i d o pos t o e m d ú v i d a , procure -me ; j urare i q u e é v erd a d e n u a e c ru a . Os v i a j a nt e s não me nt e m, m u i to embora n a p á t ri a o s t ol os o s a coime m disso. G O N Z AL O S e e u rel a t a s s e e m Nápole s t udo ist o, al g ué m me a c re d i t a ra ? S e c o n t a s s e de que j e it o são e st e s i nsul an os — poi s s ã o , s em d ú v i d a , h abit ant e s da ilha — q u e e m b ora s e j a m d e e x t e ri or mon s t ruoso — obse rv ai b e m ! — rev el a m ge n t i l e z a mu i t o maior do que o fariam m u i to s — mel h o r, n i n gu ém — d a ge ração humana? PR Ó S PER O ( à pa rt e ) F a l a s t es com ace rt o, no b r e h o n es t o, qu e mu i t os d o qu e e st ão hoj e ne st a ilha são p i o res q u e o d i a bo. AL O N S O A o f i m n ã o c h e g o d e minha admiração an te e s t a s f o rma s , e s t e s ge s t os e s o ns, que , e mbora d o uso d a f a l a c a rec en t e s , c on c re t i zam uma ling uag e m m u d a e e l oqü en t í s s i ma .

63


PR Ó S PER O E l o g i o à s a í d a . F RA N C I S C O E l es s u mi ra m por mod o mui t o e str anh o . S E B A S T I Ã O P o u c o i mport a , u ma v ez que as vi an d as n o s d e i x a ra m, p oi s f o me n ã o n o s f a l t a , sois servid o s a p r o var o qu e h á a q u i ? AL O N S O M u i t o obri g a d o. G O N Z AL O Ora , s en h or, n ã o t en h a i s me d o . Quan d o nó s é r am o s me n i n os , q u em c reri a , p orv ent ura, que ho uv e sse m o n t a n h e s es c om ba rb e l a d e t o u ro na garga n ta, a p e n d e r- l h e s d o pe i t o c o mo s a c o ba l o uçant e de car n e ? O u g e nt e h o u v e s s e c o m a c a b e ç a n o pe it o? Ora, tudo isso nos é presentemente asseverado pelos viajantes sobre os quais apostas correm de um contra cinco. AL O N S O Vo u s e n t a r- me pa ra c o me r, embora pe rca a vi d a. O m e l ho r já p a s s o u ; t od o o re s t a n t e n ã o v ale nada . M an o , n o b r e d u q u e, v i n d e, i mi t a i - n o s n i s s o. (Trovõ e s e r e l âm p ag os . E n t ra A ri e l s o b a f o rma d e uma har p i a, ag i t a a s a s a s s o bre a mes a e f a z d es a pare ce r as i guar i as p o r m e i o d e u m a rt i f í c i o e n ge n h os o . ) ARIEL Tr ê s p e c a d o re s s oi s q u e ora o D e s t i no — que te m co m o i nstru men t o o ba i x o mu n d o e t u do o que el e e nce r r a — fe z n a s p ra i a s — v o mi t a r pe l o mar nunca saci a d o , justam e n te n es t a i l h a q u e n ã o d ev e c o nt e r se re s human o s, p o r não s erd es d i g n o s d e c o n v i v er c o m os outro s ho m e ns. Vo u d ei x a r- v o s p ri v a d o s d a ra z ã o . (Ven d o A l o nso , S e b a s t i ã o, e t c . s a c a r d a s es p a d a s . )

64


É co m v a l or c o mo e s s e qu e os h u ma nos se e nforcam e se afog a m. L ou c os t od o s ! E u e me us companhe iros so m o s s e rv o s d o F a d o. Os el e me n t os de que v ossas e sp ad a s s ã o c o mpos t a s , pod eri a m t ã o be m fe rir os ve n to s s i b i l a n t es , o u ma t a r c o m pa n cadas irrisórias as ág uas qu e n ã o c es s a m d e re u n i r- s e, como e st rag ar de l e v e um a p e n u g e m, s equ er, d e mi n h as asas. Ig ualme nt e i nv ul n e rá v e i s s ã o me u s c o mpa n h ei ros. Mas e mbora p u d é ss e i s f a z e r a l go: ora a s v os s a s e spadas se t ornaram m u i to p e s a d a s p a ra v o s s a s f orç a s ; n ão as le v ant aríe is. M as l e m b ra i - v os — qu e e s t a é a mi n ha incumbê ncia ne st e i n s t a n t e — q u e v ó s t rê s o bom Próspe ro e x p ul sa s t e s d e M i l ã o, e n t re g a n d o - o, e sua filha, ao m ar q u e ora v os p u n e . F oi por e sse fe it o facinoroso q u e as P o t ên c i a s — q u e t a rd a r pod em, mas j amais e sq u e ce m — c on t ra v os s o s o s s e g o concit aram t ant os m ar e s f u ri o s o s , t a n t a s p ra i a s , s i m, t o das as criat uras. De t e u f i l h o, A l on s o, t e pri v a ra m. P e la minha v oz t e an un cia m d es t ru i ç ã o moros a , pi or do que qualque r m o d al id a d e d e mort e re pe n t i n a , qu e v os há de passo a p asso s eg u i r p or on d e f ord es . P a ra v os pre se rv arde s d e ssa c ó l e ra — qu e s o bre v ó s h á d e cair se m falt a ne st a i l h a d e s o l a d a — s ó d e a u x í l i o v os se rá cont rição m u i to s i n c e ra e, d e ora em d i a n t e , uma e xist ê ncia pura. (De sapa rec e e m me i o d e t ro v õ e s . A se g uir, ao som d e um a mú s i c a a g ra d á v e l , t o rn a m a e nt rar as fig uras b i z ar r a s , qu e s e põe m a d a n ç a r f a ze ndo momice s e

65


cont o r çõ e s e d e p o i s c a rre g a m a me s a . ) PR Ó S PER O ( à p a rt e ) C om mu i t a p e rf e i ç ã o tomaste a fo r m a, me u A ri el , d e h a rpi a : era gra c i osa, a um t e m p o , e am e a ç a d ora . E m t e u d i s c u rs o, n ã o t e afastaste e m n ad a d o qu e e u d i s s e . D o me s mo modo, os cri ad o s se cun d ár i o s , c om mu i t a ex a t i d ã o e s empre a pon to , d e se u s p a pé i s s a í ra m. E f i c i en t e s es t ã o se ndo meus al to s so r ti l é g i os , a c h a n d o - s e e s t e s meu s i mig os preso s à su a p r ó p r ia l o u c u ra . Tod o s el e s es t ã o e m minhas mãos. M as vo u d e i x á - l o s c om s eu s d el í ri os , p a ra ir v e r o moço F e r d i n an d o , q u e mort o t o d o s c rê e m, e à m inha e sua a m ad a e str e m e c i d a . ( D es a pa rec e. ) G O N Z AL O E m n ome d e qu a n t o h á d e mais sagra d o , p o r q u e , sen h or, o l h a i s t ã o f i x a me n t e ? AL O N S O É m o n s t ru os o ! mo n s t ru os o ! P a rece u-me que as o nd as ti nh am v o z e me f a l a v a m, qu e v en tos me can tav am e q ue o própri o t ro v ã o — ó rg ã o profundo e pav o r o so — o no me v i n h a m me d i ze r d e P ró s p e ro e com vo z g r ave a m o rt e me a n u n c i a v a m. É c ert o , e nt ão: l ei to e nco n tr o u m e u f i l h o n o c h ã o l od o s o . I rei , pois, procu r á- l o at é o n d e n ã o c h e g ou s on d a n e n h u ma e na l ama co m e l e se p ult a r- me. ( S a i . ) S E B A S T I Ã O D á - me d e c a d a v ez u m s ó de mônio, que as l e g i õ e s v e n c e re i . A N T Ô N I O E s t ou c on t i g o. (Saem S e b asti ão e A n t ô n i o . ) G O N Z AL O A q u el e s t rê s es t ã o d es es p e ra d os.

66


Tal q u a l v e n en o , c u j a a ç ã o d emora p ara se pat e nt e ar, o cr i m e d e l e s s ó a gora o s ró i por d en t ro. Assim, concit ovo s — p or t erd es t od o s j u n t a s ma i s fle xív e is — a ir at rás d e l e s, p a ra os res gu a rd a rmos d a s c o nse qüê ncias a que p o d e r i a l e v á - l os a l ou c u ra . A D RIA N O V i n d e, pe ç o - v o s . (Sae m .)

67


68


A T O C e n a

I V I

(Di ant e d a c el a d e P ró s p e ro. E nt r am P ró s p e ro, F e rd i n a n d o e M i ra nda. ) PR Ó S PER O S e v o s p u n i c o m muit a aust e ridade , far to p rê mi o os t ra b a l h os v os c ompe nsa, pois o fio vo s d o u d e mi n h a v i d a , d e qu e e u p róprio de pe ndo. N o vam e n t e n a s mã os t a d e pos i t o. Todas e ssas v e xaçõe s não p as s a v a m d e e x p e ri ê n c i a s a q u e t ua afe ição foi su b m e t i d a . G a l h a rd a men t e re s i s t i s t e a t odas. R at i fi co a n t e o c éu meu ri c o mi mo. Ó Fe rdinando! N ão m e j u l g u es f ú t i l p or e l og i á - l a a s sim, pois v ais e m b r e v e c o n v e n c e r- t e d e qu a n t o e l a ult rapassa q u ai sq u e r l ou v ore s , q u e a c ox ea r s e e sforçam, m as e m v ã o, por s eg u i - l a . F ER D I N A N D O C rei o n i s s o , e mbora o co nt e s t a s s e a l gu m o rá c u l o . PR Ó S PER O E n t ã o re c ebe minha filha, como p r e se n t e me u e t u a a qu i s i ç ã o d i gn a me nt e alcançada. Mas se acas o o l a ç o v i rgi n a l l h e d es a t a re s ant e s de hav e re m si d o cel e bra d a s , s em omi s s ã o , a s s a nt as ce rimônias e se us r i t o s s a gra d os : mu i t o l on ge d e abe nçoar e ssa união o cé u, d e i t a n d o s o bre e l a o g ra t o orv alho, há de o ódio e sté r i l , o d es d é m d e ol h o ma u e a a t roz discórdia o le it o vo s ju n c a r d e e rv a s d a n i n h a s d e t a l modo noj e nt as, que r e p u l sa p or e l e s en t i re i s . A c a u t el a i - vos, por isso, e que vo s i l u mi n e a l â mpa d a d e H i me n eu .

69


F ER D I N A N D O Pelo meu desejo ardente de vir a ter, com tal amor, tranqüilos dias, vida mui longa e bela prole: as cavernas mais negras, os lugares mais oportunos, os mais poderosos argumentos dos gênios da maldade que em nós próprios habitam, nunca me há de mudar a honra em luxúria, nem deixar-me sem fio o gume desse dia santo. Antes de tal pensar, ficarão mancos os cavalos de Febo e acorrentada nos abismos a noite. PR Ó S PER O Bela jura. Senta-te, pois, e fala-lhe; pertence-te. Aqui, Ariel, meu servo diligente! (Entra Ariel.) ARIEL Que deseja meu mestre poderoso? Aqui estou. PR Ó S PER O M u i t o a p on t o re a l i za s t e c o m meus se r vo s m e n o r e s mi n h a s o rd en s ma i s re c en te s. Preci so no vam e n te d e t o d o s v ós , p a ra u ma pe ç a idê nt ica. Vai b uscar- m e o s e s p í ri t o s , d e pre s s a , s obre os q uais t e dei f o r ça, e aq ui o s re ú n e . C o n c i t a - os a mov ere m-se de pr o nt o , p o r q u e d es ej o a p re s en t a r a os o l h o s d e st e amor o so e jo v e m p a r a l gu ma s i l u s õ e s d e mi n h a a rt e . Prom e ti - l he s q u e o f a ri a , e d e mi m i s s o ora es p e ram. ARIEL N e st e mo me n t o? PR Ó S PER O S i m, n u m pi s c a r d e ol h o s . ARIEL Se m q u e d i ga s “ M u i t o be m! ” ou me g rit e s “Vai e ve m !” Ve l o z e s c omo n i n g u ém a q u i es t a rã o sem p o r é m . A m ai s- me , me s t re , t a mbé m? PR Ó S PER O D e c o ra ç ã o , me u d e l i c a d o A rie l. Ante s d e e u t e ch am a r n ã o t e a p rox i mes . ARIEL M u i to b e m. C o mpre e n d i . ( S a i . )

70


PR Ó S PER O Ol h a , s ê v erd a d eiro; não afrouxe s a r é d e a d o s c a ri n h o s ; o s ma i s f o rt es j urame nt os são palha p ar a o f o g o d o s s e n t i d o s . P roc u ra c ome dir-t e ; d o co n t rá ri o, boa n oi t e, j u ra men t os ! F ER D I N A N D O S en h or, f i c ai t ranqüilo; a b r an c a e f ri a n e v e d a v i rgi n d a d e que ora t rag o no co r ação me a b a t e por c o mpl e t o o c a lor dos se nt idos. PR Ó S PER O M u i t o be m. — Ag ora, me u Arie l, vo l t a d epre s s a ! A n t e s d e h a v er e s p í rit o de sobra do q u e falt a r- n os u m. S ê pre s t i mos o . — E ag ora, ape nas o l h o s; n i n g u ém f a l e. (M ú si c a s ere n a . M a s c a ra d a . E n t ra Í ris. ) Í RI S C e re s , d e u s a b e n éf i c a , a p re ssada de t e us campos te afast a d e c ev a d a , d e t ri go, a v e i a , e rv ilha e de ce nt e io, d e te u s p ra d os v i re n t e s , o n d e , e m me io de forrag e m, r u m i n a o l e n t o g a d o; d o s c órre g os d e marg e ns com b o r d ad o d e pe ôn i a s e c a n i ç os , em que abril faz nasce r, ao t e u ge s t o, f l ore s mi l , p orqu e c o roas cast as as pudicas ni n fas p os s a m t e c er; d a s ma t a s ri c a s de sombra, a que se aco l h e m n a mo ra d os d o d es d é m d a s zag alas j á cansados; d as v i n h a s e s p e c a d a s , d a s ru i d os a s p raias do mar, e , assi m , d a s a l t eros a s mo n t a n h a s o n d e ao sol cost umas p ô r- t e .. . A ra i n h a q u e n o a l t o t em a cort e . de que m sou p o nt e d e á gu a e me n s a ge i ra , t e ord ena de ixar t udo e , m e su r e i ra , à s u a gra ç a j u n t a r- t e s o be rana, para que aqui, co m co rt e s i a l h a n a , bri n q u es c om e la. S e us pav õe s, de vê - l a já s e u f a n a m. Vem, C ere s , rec ebê -la!

71


(Entra C e r e s.) C ERE S Mensageira de cores variegadas, que a consorte de leve sempre agradas, que com tuas asas de açafrão às flores deitas orvalho e restituis as cores e com teu arco azul linda coroa nos bosques pões e na sutil lagoa: linda charpa da terra dadivosa, que quer de mim tua rainha airosa? Por que me mandou vir para o gramado? Í RI S P o r q u e um c o n t ra t o s ej a c el e bra d o d e amor si nce r o , e p ar a q ue s e a p re s t e v o l u n t á ri o pre s en te . C ERE S A r co cel e s t e , s a be rá s i n f o rma r- me s e com el a est ão Vê nu s e o f i l h o ? D e s d e a q u el a v e z e m que , por a stúci a, a fi l h a a ma d a me t i ra ra m, em pre s a cobiçada de D i s a t r ansfo r m a n d o , a es c a n d a l os a c o mpa n h ia abj ure i da d e u sa ai r o sa e d e s eu f i l h o c eg o. Í RI S A co m p an h i a d o s d oi s n ã o t e a med ro n t e , que na vi a d e P afo o s e n c o n t re i ; n u m c a rro l i n d o d e pombas i a o fi l h o . N ão so r ri n d o s e pa rt i ra m d a q u i , p orque fe it iço l i berti no t e n tar am , a n t es d i s s o, l a n ç a r n es t e c a s a l de namo r ad o s q ue h av i a m f e i t o v o t o s s u b l i ma d os d e não subi re m p ar a o cast o l e i t o s em qu e a c e n d i d o j á t iv e sse a j ei to su a to cha H imen eu . M a s f oi e m v ã o; pa rt iu se m real iz ar su a i nt e n çã o a a c o l ora d a a ma n t e d e M a v ort e . Seu p e t ul ant e fi l ho , d e t a l s o rt e f i c o u za n g a d o que queb r o u as se t as, ju ra s f a ze n d o c l a ra s e s ec ret a s de não l ança r n e n hu m d i sp a ro ma i s , poré m, c o mo os p e ralt as, com o s p ar d ai s g ast a r o t empo t o d o . C ERE S P e l o an d a r p e rc ebo qu e a a l t a J u n o

72


e stá a c h e g a r. (E nt r a J u n o. ) J U N O C o mo v a i i n d o mi n h a i rm ã? C omig o v inde ab e n ço a r e s t e c a s a l a mi go, porqu e se j am fe liz e s e e x al ç a d os n os f i l h os p or n a s c e r. C an ti g a J U N O H on ra s , f i l h os e ri qu ez a s , vi d a l o n ga s e m s u rpre s a s , ho r as f el i z e s s e m c o n t a Jun o ag o ra v os a pron t a . C ERE S C e l e i ro s empre re pl e t o , d e tud o , d o c h ã o a o t et o , vi d e s a o pe s o e n c u rv a d a s , p l ant as s e mpre c a rre g a d a s ; só v o s c h e g u e a p ri ma v e ra e stan d o a c ol h ei t a à es p e ra . F e l i ci d a d e s s e m c o n t a é o q u e C ere s v os a pron t a . F ER D I N A N D O Nu n c a v i espe t áculo t ão be lo. F asci n a n t e h a rmon i a ! Teme rá ri o n ã o se re i por de mais i m ag i n a n d o qu e s e t ra t e d e e s p í ri t o s? PR Ó S PER O E s p í ri t o s q u e e u conj ure i d e se us c o n f i n s l o n gí n q u o s , p or me i o de minha art e , p ar a d a re m c o rpo à s mi n h a s pre s en te s fant asias. F ER D I N A N D O Oh ! D e i x a i-me v iv e r se mpre aq ui me s mo ; u m p a i t ã o ra ro e s á bi o, e m paraíso tr ansforma es t e l u ga r.

73


(Juno e C e r e s fal am ba i x o e ma n d a m I ri s e x ec u t ar uma o r d e m .) PR Ó S PER O S i l ê n c i o, a mi go. J u n o e C ere s coch i cham g r av e m e n t e . A l g o a i n d a h á por f a ze r. S ilê ncio agor a; caso co nt r ári o, f i c a rá q u ebra d a t od a n o s s a mag ia. Í RI S N ái ad e s n i n f a s d a s c o rre n t e s l ed a s , d e coroas de j unco e e x p r e ssõ e s qu ed a s , s a í d e v o s s os l ei t o s e na g r am a vi nd e d a n ç a r; é J u n o qu e o proc l a ma. Ni nfas p u d i cas, n ad a v o s i mp e ç a d e e x a l t a r e s t e e nlace . B em d e p r e ssa. (E nt ra m a l g u ma s n i n f a s . ) S eg a d ore s tosta d o s p e l o so l , d e a gos t o l a s s o s , à re u n i ã o d e e scol comp ar e ce i al e g r e s, e c o m v o s s os c h a pé u s d e palha de cent e i o n o sso s fe stej o s a n i ma i , porqu e h o j e é d i a fe riado. Dand o m o str as d e a l e g ri a , v i n d e t o d o s t i ra r u ma das ni nfas q ue , d e p o uc o , d ei x a ra m s u a s l i n f a s , pa ra dançar na gram a. (E nt r am a l g u n s s e g a d ore s , c om v es t e s limpas, e se r e ú ne m às n i nf a s , em d a n ç a gra c i os a . Qu a s e no fim da d an ça, P r ó sp e r o e s t re me c e s u bi t a me n t e e f a l a , com o que to d o s d e sp ar e c e m d ev a g a r, n o me i o d e u m ruído cavo e co n fuso .) PR Ó S PER O ( à p a rt e . ) P or pou c o n ã o me e sque ce a tra ça i nfam e d o a n i ma l C a l i b ã e d e s eu s c ú mplice s, cont r a a m i nh a e x i s t ên c i a . E s t a mos q u a s e n o mi nut o da tram a co m b i n ada . ( a os es p í ri t o s . ) M u i t o be m; é o b astan te ; i d e - vos t od o s . F ER D I N A N D O C u ri o s o c o mo v o s s o pai se enco n tr a so b v i o l e n t a p a i x ã o !

74


MIRA N D A A n ã o s er h o j e, n u nca o v i e xt e rnar tão fo rt e c ó l e ra . PR Ó S PER O P a re c ei s , c a ro f ilho, um t ant o i nq ui e t o , c o mo qu em s en t e me d o . C riai ânimo, se nhor; no sso s f e s t e j o s t e rmi n a ra m. C omo v os pre v e ni, e ram e sp í r i to s t od o s es s e s a t o re s ; d i s s i pa r am-se no ar, sim, no ar i mpa l p á v e l . E t a l c o mo o g ros s e iro subst rat o de st a vi st a, a s t orre s q u e s e e l e v a m pa ra as nuv e ns, os palácios al t i vo s, a s i gre j a s ma j es t os a s , o próprio g lobo ime nso, co m tu d o o qu e c o n t é m, h ã o d e s u mir-se , como se de u co m e s s a v i s ã o t ên u e , s em d ei x a re m v e st íg io. So m o s f e i t o s d a ma t éri a d os s on h os ; nossa v ida p e q u e n i n a é c erc a d a pe l o s o n o . R e c o nhe ço, se nhor, q u e e st ou i rri t a d o. S u port a i - me , v o s pe ço; é da fraque z a. E nt ur va - s e- me o c ére bro j á v el h o . Não v os amofine is co m mi n h a d oe n ç a . C a s o v o s f o r d o ag rado, e nt rai na ce l a, p a ra a í re pou s a rd e s . E n qu a n t o isso, dare i alg umas vo l t as, p orqu e pos s a t orn a r- me c a l mo. F ER D I N A N D O

E

MIRA N D A Paz v os

d e se jamo s . ( S a e m. ) PR Ó S PER O R á p i d o c o mo o pe nsame nt o, ve m m e u A ri el . A g ra d e ç o - t e. (E nt r a A ri el . ) ARIEL S i g o s empre d e pe rt o t u as int e nçõe s. Q u e q u e re s ? PR Ó S PER O P rec i s a mo s , es p írit o, e st ar pront os p ar a q u e C a l i bã n ã o n o s s u rp re e n d a .

75


ARIEL É ce r to , me s t re . Qu a n d o t ro u x e C ere s, pens e i e m t e fal ar ; ma s t i v e me d o d e c a u s a r- t e de sg ost o. PR Ó S PER O D i ze - me on d e d ei x a s t e e s s e s lacaios? ARIEL C o m o d i s s e , s e n h or, t o d o s e s t a v a m v e rme lhos de be b i d a e tão v alen t e s , q u e o própri o a r a t a c a v am pel o o u si o d e l h e s s opra r n o ros t o, o c h ã o c a l c a v am por l hes b e i jar o s p é s, e s e mpre a t e n t os n a t ra ç a c ombinada. Nesse i n st an te to q u e i me u t a mb ori l , a o qu e e l e s, log o, como p o t r o s se l vag e n s , c o m a s ore l h a s em pé f i caram, ol hos e sp ant ad o s, e a s n a ri n a s a b e rt a s , c omo o che iro de músi ca a se n ti r. E n f ei t i ç a d os l h e s d e i x ei os o uv idos de tal fo r m a, q u e , c omo be z e rri n h os , o s mu g i d o s me se g ui am p o r e n t re os t oj o s d u ro s , o s es p i n h e iros e as m o r d e nt e s sar ç a s , qu e n a s p e rn a s mu i f rá ge is l hes e n tr avam . P o r f i m d ei x ei - os n o pa u l c o be rt o de i mun d í ci e s, at r ás d e v o s s a c e l a , o n d e a t é a o qu eixo se co nt o r ce m , p ar a d a l a ma s e l i v ra re m pe g a j os a . PR Ó S PER O M u i t o be m, c a ro pá s s a ro. Cons e r v a- t e i nv i sí v el por ma i s a l gu n s mo me n t os. Vai a casa e m e t r az e o q u e e n c on t ra res d e ba d u l a qu es; com i sso e n g e nd r ar e m o s a rma d i l h a p a ra e s s e s ma l f e i t ore s. ARIEL Vo u já! Vo u j á ! ( S a i . ) PR Ó S PER O É um demônio, um demônio de nascença, em cuja natureza jamais pôde atuar a educação. Foram perdidos todos os meus esforços; sim, perdido completamente, sempre, quanto hei feito a ele por amor à humanidade. Seu corpo com a idade fica

76


hediondo e cada vez mais ulcerado o espírito. Atormentálos vou até que rujam. (Volta Ariel, carregado de vestimentas brilhantes, etc.) Vamos, pendura tudo nessa corda. (Próspero e Ariel se tornam invisíveis. Entram Calibã, Estéfano e Trínculo, inteiramente molhados.) C ALI B Ã A g ora , p or f a v or, p i s a i de le v e , porque a to u p e i ra c eg a n ã o pe rc eba q u a n d o nos cae m os pé s. E st am os p e rt o . E S T É F A N O M o n s t ro , v o s s a f ada, que diz íe is se r um a f a d a s em ma l d a d e , proc ed eu simple sme nt e co no sco c o mo c o m ma ro t o s . T R Í N C U L O M on s t ro , e s t ou se nt indo o che iro d e ur i n a d e c a v a l o, o qu e me c a u s a g rande indig nação ao n ar i z. E S T É F A N O A o me u t a mb é m. Est ás ouv indo, m o nstro? S e me c a u s a res o me n o r a b orre cime nt o. . . To m a c u i d a d o ! T R Í N C U L O Nã o pa s s a rá s d e um monst ro pe rdido. C ALI B Ã C o n c e d ei - me , me u b om se nhor, um p o u c o ma i s d e v o s s o f a v or; s ed e pacie nt e , q u e o p rê mi o prome t i d o v a i d ei x a r- v os e sque cido de tan to s c on t ra t e mpos . P or i s s o f a l a i baixo; t udo se acha tão so s s eg a d o c o mo à mei a - n oi t e. T R Í N C U L O S i m, ma s pe rd emos as g arrafas no ato lei ro! E S T É F A N O O qu e n ã o c o n s t it ui para nós, m o nstro, a p e n a s u ma d e s gra ç a , ma s pe rda irre paráv e l.

77


T R Í N C U L O Qu e e u s i n t o ma i s d o qu e t o da e st a umi d ad e . I sso , m o n s t ro , a i n d a é t ra ba l h o d e v o ssa fada sem m al d ad e . E S T É F A N O H e i d e re c u pe ra r a mi n h a garrafa, ai nd a q u e m e ato l e a t é à s ore l h a s . C ALI B Ã A cal ma - t e , me u rei . E s t á s v en d o ist o? É a bo ca d a cave r na . E n t ra s em bu l h a e o bom crime come te d e ci d i d o , q u e d o n o t e f a rá d es t a b e l a i l h a e de mi m , C al i b ã, te u l a mb e - pé . E S T É F A N O D á - me a mã o; j á c o me ç o a t e r pens am e n to s san g u i n á ri o s . T R Í N C U L O Ó R e i E s t é f a n o! Ó p a r! Ó d i gno Estéf an o , v ê q u e b e l o g u a rd a - rou p a a qu i es t á p a r a t i! C ALI B Ã De i x a i s s o, t o l o; s ã o bu gi g a n g a s . T R Í N C U L O Oh , o h , mo n s t ro ! S a b e mos m uit o bem o q u e se jam p a c ot i l h a s . Ó R e i E s t é f a n o! E S T É F A N O Ti ra e s s e ma n t o , Trí n c u l o . Por est a m ão , q ue r o e s s e ma n t o pa ra mi m. T R Í N C U L O Tu a G ra ç a o t erá . C ALI B Ã N a h i d ro ps i a s e a f o g u e e s t e pa t e t a . Que e st ai s p e n sand o, pa ra a s s i m f i c a rd e s d i a n t e de sse s andrajo s? D e i x ai i ss o. P ri mei ro, a mo rt e d el e . Caso aco r d e , d e sd e o s p é s à c a be ç a v a i d ei x a r- n o s a pele tr i t ur ad a, d e n ó s t od o s f a z e n d o be l a p a p a. E S T É F A N O F i c a qu i et o , mon s t ro ! — S enhora l i nha , e st e g i b ão n ã o é o me u ? P re s en t e me n t e o g ibão j á passo u a l i nh a. A g ora gi bã o , v a i s p e rd er os c abe los e

78


to r nar-t e g i bã o c a re c a . T R Í N C U L O A el e ! A el e ! C om lice nça de Vo ssa G ra ç a , ma s s a b e mos ro u b a r em linha re t a. E S T É F A N O M u i t o obri g a d o pe la pilhé ria. F i ca com e s t a ro u p a . Nã o s e d i rá que o e spírit o não é rec o mpe n s a d o e n q u a n t o e u f o r re i de st e país. “ R o ub a mo s em l i n h a ret a ! ” M u l t o be m dit o, re alme nt e . To m a ma i s e s t a p e ç a , c o mo prê mi o da frase . T R Í N C U L O Ve m, mon s t ro ; passa um pouco d e vi sg o n o s d e d o s e s o me c o m o re st o da roupa. C ALI B Ã Nã o qu ero n a d a ; pe rde re mos t e mpo co m i ss o , e n o s t ra n s f o rma remos em macacos ou e m p at o s b ra v os , d e t es t a a c a n h a d a e para baixo. E S T É F A N O M o n s t ro , e s p i c h a os de dos. Aj uda a l e v ar i s t o pa ra on d e e s t á o me u b arril de v inho. C aso co nt r ári o , e x p u l s o- t e d o me u rei n o . Mimos, carre g a ist o. T R Í N C U L O E i s t o t a mbé m. E S T É F A N O S i m, e ma i s i s t o. (O u ve -s e ba ru l h o d e c a ç a d a . E n t ra m div e rsos e spírit os so b a forma d e c ã e s , q u e s e põe m a pe rse g uir Est é fano, Tr í n cu l o e C a l i bã . P rós p e ro e A ri e l os e spicaçam co m g r i t o s . ) PR Ó S PER O P eg a , M on t a n h a ! Pe g a! ARIEL P ra t e a d o! P or a q u i , P ra te ado! PR Ó S PER O A qu i , F ú ri a ! A qui, S ult ão! Pe g a! P e g a! ( C a l i b ã , E s t éf a n o e Trí n c u l o s a e m pe rse g uidos. ) Vai , i n c u mbe os meu s d u e n d e s d e t o rce -lhe s com se cas

79


conv ul sõ e s to d as as j u n t a s , d e c o m c ã i bra s os n e rv os repux ar- l h e s, co m b e l i s c õe s d e i x a n d o- os ma i s ma nchados do que o s g ato s se lv a g e n s e a s pa n t era s . ARIEL E scut a: es t ã o ru gi n d o. PR Ó S PER O Qu e s ej a m pe rs eg u i d os s e m pie dade . Meus i ni m i g o s, n e s t e i n s t a n t e , s e a c h a m d e t o d o ao meu d i sp o r. De nt r o d e pou c o t erá s o a r à v o n t a d e . Al gu ns m o m e n to s, a i n d a , me a c ompa n h a e c u mpre t udo que e u t e m and ar fa z e r. (Saem .)

80


A T O C e n a

V I

(Di ant e d a c el a d e P ró s p e ro. E nt r am P ró s p e ro, c o m s u a s v es t e s m ág icas, e Arie l) PR Ó S PER O C o n c re t i za m- s e , e nfim, me us planos to d o s; me u s f e i t i ç os n ã o f a l h a m; meus e spírit os me o b e d e c em e o t empo s eg u e e m l i n h a re t a com sua carg a. Q u e ho ra s s ã o? ARIEL S e i s h ora s , me u s e n h or; pre cisame nt e a hora e m q ue me d i s s es t e s d e v eri a m c e s s ar nossos t rabalhos. PR Ó S PER O S i m, d i s s e i s s o, quando fiz le v ant ar a te m pe s t a d e . M a s a g ora me i n f o rma, me u e spírit o, como e stá o re i e a s u a c o mi t i v a . ARIEL F ec h a d os t od o s el e s , t a l qual como t ínhe is d e t e r mi n a d o; j u s t a men t e c o mo os d e ixast e s, prisione iros to d o s n o bos q u e d e l i me i ra s qu e prot e g e , se nhor, vo ssa c a v e rn a . Ne n h u m d e l e s s e l i v r ará se m v osso asse nt i me n t o. O re i , o ma n o d el e e o v osso se acham co m p l et a me n t e f ora d o j u í z o; os d e mais os last imam, tr ansp a s s a d o s d e d o r e d es es p e ro, s a lie nt ando-se aque le q u e ch a ma s t e s d e “ O bom v el h o s enhor Gonz alo” . A s l ág ri ma s l h e c o rre m pe l os f i o s d a barba como g ot as d o i nv e rn o n o s c a n i ç o s . D e t a l mod o v ossos e n cant a men t os o s t ra b a l h a m, q u e, se os v ísse is ag ora, e r a ce rt e z a f i c a rd e s c omov i d o. PR Ó S PER O É a s s i m q u e pe nsas, e spírit o? ARIEL E u , s en h or, s e f os s e h u mano, de ce rt o ficaria.

81


PR Ó S PER O P oi s o me s mo c o mi g o v a i s e dar. Send o ar, ap e n as, c o mo é s , rev el a s t a n t o s en t i me nt o por s u as afl i çõ e s; e e u , q u e me i n c l u o e n t re os d e sua e sp é ci e , e as d o re s s i n t o, c o mo os p ra ze re s , t ão profu nd am e nt e tal c o mo qu a l qu er d el e s , n ã o podia most r ar- m e ag o r a m en o s a ba l a d o . M u i t o e mbora se us cri me s m e ti ve sse m t o c a d o t ã o d e pe rt o , e m me u auxílio chamo a no b r e r az ã o, pa ra s o f re a rmo s d e t o d o minha cól er a. É m ai s no b r e o pe rd ã o qu e a v i n ga n ç a . Estand o t o d o s ar r e pe n d i d o s , n ã o s e e s t e n d e o i mpulso do me u i n te n to ne m s e qu er a u m s i mp l e s f ra n zi r do sobre ce nh o . Vai , l i be rt a - os , meu A ri el . Vo u ro mpe r o encant am e n to , a r a z ã o re s t i t u i r- l h es e f a zê - l os v olt ar a ser o q u e e r am . ARIEL Vo u b u s c á - l os . ( S a i . ) PR Ó S PER O Vós , el f os d a s c o l i n a s e d o s c órre g os, das l ag o as t r anq üi l a s e d o s b os q u es ; e v ó s q u e rast o não dei x ai s n a ar e i a, q u a n d o c a ç a i s Net u n o n a s v a zant e s, ou d e l e vo s fu r t ai s, q u a n d o re t o rn a ; v ó s , a n õ e z i nhos bri ncal hõ e s, q u e círc u l os , à l u z d o l u a r, t ra ç a i s de e rv as amarg as, q ue as o v e l h a s rec u s a m; e v ó s o u t ros q ue criais por br i n q u e d o o s co gu mel os n ot u rn o s e v o s a l e g rais com o toque so l e ne d a m a n h ã ; c om c u j o a u x í l i o — m uit o embo r a se jai s m e st res f ra qu i n h o s — f i z a p a ga r- s e o sol ao me i o - d i a, cham e i o s v e n t os rev o l t a d o s , gu erra suscit e i atroad o r a e n tr e o m a r v e rd e e a a bóbod a a zu l a d a , o ri b o m b ant e tr o vã o prov i d e f og o, o t ro n c o a l t i v o do

82


car v al h o d e J o v e a b ri a o me i o, d e s eu próprio corisco m e v ale n d o; a b a l a d o d ei x ei os p romont órios de fort e s al i ce r c es , o s p i n h e i ros e c ed ro s a rranque i pe las raíz e s. . . A o m e u c o ma n d o , os t ú mu l os f a z i a m de spe rt ar os que ne l e s r epou s a v a m, e, a b ri n d o- s e, d eixav am-nos sair, tão fo rt e e ra mi n h a a rt e . M a s a bj u ro, ne st e mome nt o, d a m agi a n e g ra ; u ma v e z c o n j u ra d o mais um pouco d e m ú s i c a c e l e s t e — o qu e ora f a ç o — para que nos se nt i d os l h e s a t u e — t a l é o pod er do e ncant ame nt o aé r e o — qu ebra rei a v a ri n h a ; a mu i t as braças do solo a e n te r ra rei , e e m l u ga r f u n d o, j a mais t ocado por ne nh um a s o n d a , a f og a rei me u l i v ro. ( Música sole ne . Vo l t a A ri e l ; A l on s o o s eg u e c o m a d e mane s fre né t icos, aco m p a n h a d o por G on za l o ; S eba s t i ã o e Ant ônio, no m e s mo e s t a d o, a c ompa n h a d o por Adriano e Francisco. To d o s en t ra m n o c í rc u l o f e i t o por P r óspe ro e aí se co nse r v a m s ob a a ç ã o d o e n c a n t a me nt o. Próspe ro o s co n t e mpl a e f a l a . ) Qu e u ma c a n ç ão sole ne , o mais p o ssan t e c o n s ol a d or d a s men t e s p e rt urbadas, o cé re bro te cu r e , qu e n o c râ n i o t e f e rv e, a gora, inút il. Pára aí m e sm o, porqu e i mobi l i z a d o ora t e e ncont ras por me us e n cant a men t os . I mpe c á v el G on za l o , home m honrado: m e us o l h o s , c ompa s s i v os c om a a t i t ude dos t e us de ixam cai r g o t a s a mi g a s . O e n c a n t a me n t o se de sfaz aos p o uco s . A s s i m c o mo a ma n h ã , ro u b ando a noit e , dilui a e scu ri d ã o, d o me s mo mod o a d e s p e rt ar come çaml he o s s e n t i d o s e a ex p u l s a r o s v a p ore s ig norant e s que

83


a ni t e n te r az ão l he s re v es t i a . M e u s a l v a d or s i n c ero, bom Go n z al o , se r vi d or d ed i c a d o d e t eu a mo, h ei de pagar- t e e m casa o s be n ef í c i o s c om pa l a v ra s e obras. Por man e i r a cr ud e l í s s i ma , A l o n s o, proc ed es t e c o mig o e mi n ha fi l h a. F o st e n i s s o l e v a d o por t eu ma n o . Esse o mo ti vo , S e b asti ão , d e s o f re re s t a n t a s d ore s , e v ós aí, meu sang ue e m i nh a c a rn e, me u i rmã o, qu e à a mbição deste aco l hi d a, e x p u l s a n d o o re mors o e a n a t u rez a — razão d e se r e m m u i t o ma i s i n t e n s a s a s c o mpu n ç õ e s i nter n as — p l ane ja s t e s a s s a s s i n a r a qu i v os s o monarca. Embo r a se jas um d e s n a t u ra d o , re c ebe o me u p e rdão. — O en te n d i m e nt o já c ome ç a a c re s c e r e a ma ré próxima dent r o d e p o u co co bri rá a pra i a d a ra zã o , qu e a inda e st á chei a d e l am a. N e n h u m d el e s me v ê n em re c o n h e ce . Ari el , v ai at é à ce l a e d e l á t ra ze mi n h a es p a d a e o chapé u . (Sai A r i e l .) Troc o e s t a ro u p a e v o u f i c a r como em M i l ão e u e r a. E s p í ri t o , d epre s s a ! F a l t a p ou c o para fi car e s l i v r e . (Vo l t a A ri el c a n t a n d o , e a j u d a P róspe ro a ve st i r- se .) ARIEL C o m o a s a b e l h a s v ol i t o e m bu s c a d o me l bend i to . N um a co r o l a d o rmi t o , qu a n d o o bu f o s o lt a o gri to. M e u caval i n h o bon i t o — u m morc eg o — s e mpre i nci to a te r o v e r ão b e m f i t o . Vo u v i v er, v ou v i v er al egr e m e n te so b o s ra mo s d a s e l v a f l ore s c e n t e . PR Ó S PER O Oh , re c o n h e ç o o me u ge n t i l Arie l. Vou se n ti r tua fal ta . . . P ou c o i mport a . F i c a rá s l i v re . Assi m... A ssi m ... A s s i m. . . C o mo é s , s e m s ere s v ist o, v ai

84


ao b ar c o d o re i , on d e a c h a rá s os ma rinhe iros a dormir na e sco ti l h a . D es p e rt a d o s o c o ma n d a n t e e o cont rame st re , o b r i g a-os a v i r p a ra e s t e pon t o. I s s o , de pre ssa. ARIEL E n g u l o o a r n o c a mi n h o e aqui re t orno ant e s d e o p u l s o v o s b a t e r d u a s v ez e s . ( S a i. ) G O N Z AL O Tod a s a s d ore s , c onfusõe s, e spant os, to d o s os d e s es p e ros a qu i mo ra m. A l gum pode r ce le st e no s r e t i re d es t e pa í s t errí v el . PR Ó S PER O A qu i v e d es P róspe ro, se nhor re i, o an ti g o D u qu e d e M i l ã o. C o mo prov a de que um príncipe vi vo co n t i g o f a l a n es t e i n s t a n t e , a b raço-t e e t e dou as m ai s sin c e ra s boa s - v i n d a s e a t od o s de t e u sé qüit o. AL O N S O S e é s el e me s mo ou não, ou qualque r m ág i co f a n t a s ma , c o mo os o u t ros q ue at é há pouco de m i m z o mba ra m, c o mo d ec i d i r- me ? C omo de carne e sang ue t en s o pu l s o, e d es d e qu e t e v i sint o acalmarse - m e a i n qu i et a ç ã o d a me n t e , qu e a loucura, muit o o r e ce i o , em mi m n a s c e r f i z e ra . Tu d o isso — se isso t udo fo r v e r d a d e — t e m u ma h i s t ó ri a p or de mais e st ranha. R e si g n o o t eu d u c a d o e t e c o n j u ro a me pe rdoar as falt as. P o r é m c o mo pod e e s t a r v i v o P ró s p e ro e ne st a ilha? PR Ó S PER O P ri mei ra men t e , nobre amig o, de ixa q u e te a bra c e a v e l h i c e , poi s t u a h o nra não conhe ce m e d i d a n em l i mi t es . G O N Z AL O S e i s t o t u d o é re al ou imag inário, não p o d e re i j u rá - l o . PR Ó S PER O E m v ó s a t u a m a inda alg umas

85


suti l e z as d a i l h a, q u e n ã o v o s d e i x a m c rer n a re alidade . B em- vi nd o s so i s, ami g os . ( à p a rt e , a S e ba s t i ã o e Antô ni o .) S e o q u i s e s s e , me u p a r d e n o bre s , eu p ude ra agor a faz e r q ue co n t ra v ó s s e c o n d e n s a s s e a c ól e ra do re i , d e sm ascar an d o- v o s c omo d o i s v i s t ra i d ore s. Mas não q u e r o ne st e i n s t a n t e c o n t a r c oi s a n en h uma. S E B A S T I Ã O ( à pa rt e ) O d i a b o f a l a pe l a t ua boca. PR Ó S PER O Nã o; a v ós s e n h or pe rv ers o , a que não p o sso d ar o n o m e d e i rmã o s em qu e me s u j e, a falt a mai s he d i o n d a vo s pe rd ô o. . . P erd ô o t o d a s , ma s n e st e mome n to r e cl am o o me u d u c a d o qu e, por f orç a , t e re is de me e n tr e g ar. AL O N S O Se f o re s P rós p e ro, re a l men t e , e nt ão revel a- n o s al g u m as pa rt i c u l a ri d a d e s s obre o modo como, enfi m , t e sal vaste ; d i z e c o mo n o s en c on t ra s t e a q ui, nós que há t r ê s ho r as, a pe n a s , n a u f ra ga mo s n e s t a p raia, onde perd i — co m o é p u n g e n t e o a c ú l eo d a l e mbra n ç a ! — meu car o F e r d i n an d o . PR Ó S PER O S i n t o mu i t o, s en h or. AL O N S O É i r repa rá v el a p e rd a , e d i z- me a paci ênci a q u e e l a p rópri a n a d a c on s e g u e n es t e caso. PR Ó S PER O P e n s o, a o c o n t rá ri o , qu e n ã o procu r ast e s se u aux í l i o e f i c i en t e . E m pe rd a i d ênt ica, por s u a d o ce g r aça, c o n t e mpl a d o me v i c om s u a aj uda sobe r ana, fi cand o s a t i s f e i t o . AL O N S O P e rd a i d ê n t i c a ? PR Ó S PER O Tã o g ra n d e c o mo a v os s a , e t ão

86


r e ce nt e. E pa ra s u port á - l a n ã o d i s punha dos me ios d e co n s ol o qu e v o s res t a m, p oi s p e rdi minha filha. AL O N S O F i l h a ? O C é u s ! S e e m Nápole s os dois o r a e sti v e s s e m, c o mo re i e ra i n h a ! Para t ant o, de se j ara e n te r r a d o ora en c on t ra r- me n o l e i t o ce nag oso e m que m e u fi l h o re pou s a n e s t e i n s t a n t e . H á quant o t e mpo so fr e st e s es s a p e rd a i rre pa rá v el ? PR Ó S PER O Na ú l t i ma t empe st ade . Mas pe rce bo q u e e st e s s e n h ore s p or t a l mod o s e acham e st upe fact os an te o n o s s o e n c on t ro, qu e a ra z ã o pe rde m, não acr e d i t a n d o qu e os o l h o s u s a m n o s eu próprio ofício e q u e s u a f a i a é n a t u ra l a n él i t o . P o ré m, por mais que to d o s d es l o c a d o s h ou v é s s e i s s i d o d o s se nt idos, cre de co m o c ert o qu e e u s ou , d e f a t o, P ró spe ro que de Milão, há t e m p o, f u i ex p u l s o e qu e d es embarque i por modo e str anh o n a me s ma pra i a e m qu e ora naufrag ast e s, para se r d o n o d el a . M a s s o bre i s s o, por ora, é quant o bast a; é l ar g a h i s t óri a , p a ra c o n t a d a s e r d i a por dia, não r e l a ç ã o pa ra f a ze r- s e à mes a e muit o me nos ao p r i m e i ro e n c on t ro. S o i s b e m- v i n d o , se nhor. É ne st a ce i a q u e t en h o mi n h a c ort e; n el a p oucas pe ssoas me aco m p a n h a m, s e m qu e s ú d i t o n en h um t e nha aqui fora. E x am i n a i - a , por obs équ i o . U ma v ez que o me u ducado m e r e st i t u í s t e s , v ou rec o mpe n s a r- v os com um pre se nt e p r e ci o s o . P el o me n o s v ou f a z e r u m m ilag re que v os há d e t ã o c o n t e n t e d ei x a r c o mo e x u lt ant e fique i co m me u d u c a d o.

87


(Abr e - se a p o r t a d a c el a , d e i x a n d o v er F e rd i n a n do e Mi r an d a, q ue jo g a m x a d re z . ) MIRA N D A E s t a i s u s a n d o d e e s p e rt ez a , p ríncipe . F ER D I N A N D O Nã o, qu eri d a ; por n a d a ne st e mun d o p o d e r i a faz ê - l o. MIRA N D A S i m, p or u m p a r d e re i n o s p ode ríe is al tercar, e e u v o s ju ro qu e c h a ma ra a i s s o j o g o corre t o. AL O N S O Se t u d o i s t o f or ou t ra v e z u ma i lusão desta i l ha, d uas ve z e s p e rd i meu c a ro f i l h o . S E B A S T I Ã O Oh M i l a gre e s t u p e n d o! F ER D I N A N D O M u i t o e mbora a me a c e m se mpre , os m ar e s são p i e d o s o s . A ma l d i ç oe i - os s e m ra zã o para i sso . (A jo e l ha- s e e m f re n t e d e A l on s o. ) AL O N S O Q u e t e e n v ol v a m a s bê n ç ã o s i n c o nt áv e is de u m v e n tur o so p a i . A l ç a - t e e d i ze c o mo a q u i vie st e t e r. MIRA N D A Oh ! Qu e mi l a gre ! Qu e s o be rbas cri at ur as aq u i v i e r a m! C omo os h ome n s s ã o be l os! Adm i r áve l m u nd o n o v o qu e t em t a i s h a b i t a n t e s ! PR Ó S PER O P a ra t i i s s o é n o v o . AL O N S O Q u e m é a j ov em c o m qu em j o g a vas? Vossas m ai s an ti g as rel a ç õe s n ã o t erã o ma i s d e t rê s horas. A d e usa q u e n o s s e pa ro u , p or qu e ora d e nov o nos r e un i r a? F ER D I N A N D O É c ri a t u ra mort a l , s en h or; mas p e l a P r o v i d ê n c i a i mo rt a l me f oi d a d a . F i z a e scolha, quan d o o co nse n ti me n t o n ã o pod i a pe d i r d o me u bom pai , e st an d o ce r t o d e qu e pa i j á n ã o t i n h a . E l a é a filha

88


d o m u i f a mos o D u q u e d e M i l ã o, d e que t ant o j á ouv ira, m as q u e n u n c a c h eg a ra a c on t e mpl ar. Re ce bi de le um a se g u n d a v i d a , e ora u m s eg u n do pai me fe z de le e sta g e n t i l men i n a . AL O N S O S ou t od o d el a . M a s como me é e st ranho te r d e pe d i r p e rd ã o a o própri o f i l h o ! PR Ó S PER O P a ra i a í , s en h or; não nos dobre mos so b o pe s o d o f a rd o d a s l embra n ç a s do que j á se passou. G O N Z AL O D e rra mei l á gri ma s int e riore s; se não já m e t eri a ma n i f es t a d o. Ó d eu s e s ! Inclinai-v os por uns m o m e n t os , e s o bre e s t e s j ov en s f a ze i de sce r uma coroa b e nt a, p oi s f o s t e s v ós q u e a es t ra d a nos t raçast e s para aq ui no s re u n i rmos n e s t e i n s t a n t e . AL O N S O D i go a mém, bom G onz alo. G O N Z AL O A s s i m, M i l ã o f oi de Milão e xpulso, p o r q ue v i e s s e m s eu s d es c e n d e n t e s a se r re is de Nápole s? O h ! A le g ra i - v os s obre mod o e o f a t o g rav ai a o u r o em pe rd u rá v e i s l á pi d es . F o i achar C laribe l, nu m a v i a ge m a Tú n i s , o ma ri d o; F e rdinando, se u irmão, um a e s pos a , on d e e l e própri o s e d a v a por pe rdido; o Du q u e P ró s p e ro, o d u c a d o n u ma ilha t ão mode st a; e to d o s n ó s n os en c on t ra mo s , q u a n d o j á não é ramos d o n o s d e n ó s mes mo s . AL O N S O ( a F erd i n a n d o e M i ra nda) D ai-me as m ão s. Qu e a t ri s t e z a e os p e s a d u me s o coração ape rt e m d e q u e m v o t o s n ã o f i z e r d e a l eg ri a . G O N Z AL O S ej a . A mé m. ( Vol t a Arie l com o

89


Comand ant e e o C o n t ra mes t re qu e o s eg u em c o m sinais de es tup e fação .) O l h a i , s en h or! Ol h a i ! M a i s ge n te nossa. Deu ce r t o a m i n ha p rof e c i a : c a s o f orc a s h ou v e s s e e m terra, e st e su je i t o n ã o morre ri a n a á g u a . E ora , b lasfe mo, que ao m ar jo g avas a d i v i n a G ra ç a , a qu i em t erra esgo tar am - se - te as pra ga s ? Qu e n o v i d a d e s h á ? C O N T RAME S T RE A me l h o r d el a s é t e rmos enco nt r ad o são s e s a l v os o re i e os d e s eu s é qü i to. A seg un d a é q u e no s s o n a v i o , qu e h á t rês h ora s , some nt e , acr e d i t áv a mos p e rd i d o, e s t á f i rme e a r v orado, como q uand o i n i ci a mos a v i a g e m. ARIEL (à p ar t e , a P rós p e ro) F i z t u d o i s s o, mest r e , n e ste i nt e r v a l o . PR Ó S PER O ( à p a rt e , a A ri el ) Ó meu espí ri t o hab i l i d o so ! AL O N S O N at u ra i s e v en t os n ã o pod e s er t u do isso. A um fat o e str anh o , s eg u e ou t ro a i n d a ma i o r. D iz e i-nos como che g ast e at é a q u i . C O N T RAME S T RE C a s o e u t i v es s e c ert e z a pl en a d e q ue e st o u d e s p e rt o , t en t a ri a f a ze r c a bal re lat o. Mort o s d e so n o e stá v a mo s , emba i x o d a s es c ot i l h as todo s — n ão sab e m os c omo i s s o a c on t e c eu — quando, de sú b i t o , d e se nco n t ra d a c on f u s ã o s e e l e v a d e rug idos atroant e s e d e g ui n c h os , b a ru l h o d e c a d ei a s a rra st adas e outr as e sp é ci e s vá ri a s d e ru í d os , t od o s h orrí v eis, que nos d e sp e r t ar am . No me s mo i n s t a n t e l i v res n os a chamos e em t o d a g al h ar d i a p e rc ebe mos n os s o re a l , ga l a nt e e

90


b r av o ba rc o e n o s s o c o ma n d a n t e , e mbasbacado, que p u l av a d e a l eg re . D e re pe n t e — c om v ossa pe rmissão — co m o n u m s o n h o n o s s e pa ra mos e t r az idos fomos para aq ui , a t o rd o a d os . ARIEL ( à p a rt e , a P rós p e ro) F o i be m fe it o? PR Ó S PER O ( à pa rt e , a A ri el ) Ot imame nt e , m e u z e l os o e s p í ri t o ; e m bre v e s erá s liv re . AL O N S O E o ma i s e s t ra n h o l abirint o que os ho m e n s j á pi s a ra m u l t ra pa s s a t u d o i sso a nat ure z a no se u cu rs o n o rma l . S e rá p re c i s o bu s car a e xplicação nal g u m orá c u l o . PR Ó S PER O Nã o a f l i j a i s , me u sobe rano o e spírit o, p r o cur a n d o e x p l i c a r c o m t a n t o e mpe nho a e st ranhe z a d o caso . M a i s d e e s p a ç o — o qu e v a i se r e m bre v e — he i d e c on t a r- v os c om pa rt i c u l a ri d a d e s que v os hão de p ar e ce r a c e i t á v ei s , t u d o qu a n t o s e passou por aqui. N e sse en t re me n t e s , f i c a i a l e g re e pe nsai be m de t udo. (à p ar t e, a A ri el . ) A p rox i ma - t e, e s p í rit o; libe rt a C alibã e o s d e ma i s ; d es f a z e o e n c a n t o . ( S a i Arie l. ) Me u g racioso se nh o r c omo s e s en t e ? a i n d a e s t ã o f alt ando alg uns su je i t os es q u i s i t o s d e v o s s a c ompa n hia, de que não v os l e m b r a i s . ( Vol t a A ri e l e mpu rra n d o C alibã, Est é fano e Tr í n cu l o , c o m a s rou p a s rou b a d a s . ) E S T É F A N O C a d a u m c u i d e só dos out ros, se m se i mp ort a r c o n s i g o me s mo , porque t udo só de pe nde d a so r t e. C o ra ge m, mon s t ro - ra i o ! C orag e m! T R Í N C U L O S e o qu e e u t ra go na cabe ça fore m

91


espi õ e s d e v e r d ad e , t emos a qu i u ma a pa ri ç ã o a d miráv e l. C ALI B Ã O h S et ebos ! Qu e e s p í ri t o s n ot á v eis, em v e r d ad e ! Q uão b e l o e s t á meu a mo! Temo qu e me casti g u e . S E B A S T I Ã O A h ! A h ! Qu e c o i s a s o ra n os surge m , m e u se n ho r A n t ô n i o ? P o d ere mos c omprá-las com d i nh e i r o ? A N T Ô N I O D e c ert o pod ere mos ; u ma d e l a s é puro pei xe e , se m ne nh u ma d ú v i d a , v en d á v e l n o me rcado. PR Ó S PER O Ve d e a p e n a s , s e n h ore s , a s ro upag e ns destes ho m e ns. Di z ei - me a gora s e e l e s s ã o h o n est os. Esse t i p o d i sfo r m e qu e a l i v e d es , t e v e por mã e uma terrí ve l b r ux a, e d e pod er t ã o g ra n d e qu e a t é me smo na l u a t i nh a i nfl u ê n c i a , e prov o c a v a ma rés e ba ixa-maré s, real iz and o d a l u a o of í c i o , s em o pod er d el a . E s se s t rê s i ndi ví d uo s m e r o u b a ra m; e a q u el e me i o- d i a bo — pois é fi l ho b astar d o , já se v ê — t ra mo u c om e l e s a s s a s sinar-me . Doi s d e sse s m ar o tos s ã o v o s s os c on h e c i d os ; es t e bloco de escur i d ão é m i n ha propri e d a d e. C ALI B Ã Be l i s c a d o s ere i d e f i c a r mort o . AL O N S O A q u e l e a l i n ã o é a c a s o, E s t é f a n o, meu d e sp e nse i r o b ê ba d o? S E B A S T I Ã O E s t á b ê ba d o; ma s c o mo arran jo u vi nh o ? AL O N S O C am b a l ea n t e d e bê ba d o e s t á Trí n culo. Mas co m o t e r ão e l es a c h a d o e s s e a d mi rá v e l e l i x ir que o s d e i x o u t ão r emoç a d o s ? C omo v i es t e a c a ir

92


ne st a s a l mo u ra ? T R Í N C U L O D e t a l ma n e i ra eu me me t i na sal m o u ra d es d e a ú l t i ma v ez qu e v os v i, que t e nho r e ce i o d e qu e n u n c a ma i s me s a i a d os ossos. Ag ora posso d e safi a r a s p i c a d a s d os mo s q u i t os . S E B A S T I Ã O E t u a í , E s t éf ano! C o m o v a i s pa s s a n d o? E S T É F A N O Oh ! Nã o me t o que is! N ão so u E s t éf a n o, ma s pu ra c ã i bra . PR Ó S PER O Qu e ri a s s er re i da ilha, não, marot o? E S T É F A N O D a ri a u m rei be m doe nt io. AL O N S O ( a pon t a n d o pa ra C a l ibã) É a coisa m ai s e s t ra n h a qu e e u j á v i . PR Ó S PER O E t ã o d i s f orme nos cost ume s co m o n o f e i t i o e x t e ri or. I d e, ma ro t o , j á para minha ce la, aco m p a n h a d o d e v o s s os d oi s a mi g os. S e quise rde s se r p e rd o a d o, a rru ma i - a c o m be m z e lo. C ALI B Ã É o qu e f a rei ; e d e ora av ant e que ro m o st r ar- me ma i s ra zoá v e l e obt er g raça. Mas que asno r e fo r ça d o e u f u i , t o ma n d o por u m d e us e st e bê bado e i ncl i n a n d o- me d i a n t e d es t e i mbe c il! PR Ó S PER O Va i l o g o. F ora ! Ide re por e ssas q u i nq u i l h a ri a s n o l u ga r o n d e e s t a v a m . S E B A S T I Ã O D e on d e f ora m roubadas, é o m ai s c e rt o . (Sae m C a l i bã , E s t éf a n o e Trí n c u l o . ) PR Ó S PER O S e n h or, c on v i d o Vossa Alt e z a

93


e os v o sso s a e n tr ar em mi n h a p obre c el a , p a ra de scansar esta n o i t e , p r e te n d en d o pa rt e d el a empre g a r c om narrati vas d e t ão g ra n d e a t ra ç ã o qu e — n ã o o d u v ido — depr e ssa p assar á: a h i s t óri a t od a d e mi n h a v i d a e , assim, os ac i d e n te s p o r q u e pa s s ei a t é c h e g a r a e s t a i l h a. Logo p e l a m an hã h ei d e l e v a r- v o s a o v o s s o ba rc o e , log o após, a N áp o l e s, o n d e e s p e ro a s s i s t i r a o ma t ri mônio destes d o i s e nt e s q u e n o s s ã o t ã o c a ros . D a í me acolhe re i ao me u M i l ão , o n d e c a d a t erc ei ro pe n s a men t o s erá di cad o à m i n ha se p u l t u ra . AL O N S O Estou ansioso por ouvir a história de vossa vida, que há de estranhamente prender-nos a atenção. PR Ó S PER O C on t a rei t u d o , prome t en d o- v os mare s cal m o s, aur a s a u s p i c i o s a s e v el a s t ã o v el oz e s que al cançar e i s, d e n tr o d e pou c o t empo, v o s s a rea l esquadra. (à par te , a A r i e l .) M e u A ri el , d ei x o i s s o a t e u c uidado, e, ap ó s, sê l i v r e n o s el e me n t os . P a s s a be m, qu erido. — Por ob sé q ui o , se nh o re s , en t ra i l o g o. ( S a em. )

94


E p í l o g o (Di t o p or P ró s p e ro. ) M e u e n c a n t o t ermi n a d o , re d u z i - me ao próprio e st ado, q u e é be m pre c á ri o, e m v erd a d e. A g ora, v ossa v ont ade aq ui p o d e rá d e i x a r- me ou a Ná p ol e s e nv iar-me . M as é c ert o qu e a l c a n c ei me u d u c a d o, e j á pe rdoe i q u e m m o rou b a ra . P o r i s s o, n ã o qu eira v osso fe it iço q u e e u n e s t a i l h a p e rma n e ç a t ã o e s t é ril e re v e ssa, m as d o s en c a n t o s ma l s ã os l i v ra i - me com v ossas mãos. Vo sso h á l i t o d ev e i n f l a r mi n h a s v ei as pe lo mar; caso co n t rá ri o , me u p l a n o d e a gra d ar se rá v e sano, p o i s d e t o d o ora c a reç o d a a rt e n eg ra de alt o pre ço, q u e o s e s p í ri t o s f a z i a s u rgi r d e n o i t e ou de dia. R e sto u - me o t emor e s c u ro ; por i s s o, o auxílio p r o cur o d e v o s s a p re c e qu e a s s a l t a at é me smo a Graça m ai s alt a , a p a ga n d o f a c i l me n t e a s f alt as de t oda g e nt e . C o m o q u ere i s s e r pe rd o a d os d e t o d o s v ossos pe cados, p e r m i ti q u e s em v i o l ê n c i a me s o l t e v ossa indulg ê ncia.

95


fonte We i d e m ann papel J o r nal 4 8,8 g/ m2

Esta e d i ção é d e d i c a d a a o me u p a i H en ri q u e, que m e o b r i g o u a l e r e s t e t ex t o n a a d ol e s c ê n c i a . Obri g ad a, S hak e sp e a re. M u i t o obri g a d a , p a i .

hann ah ue su g i , 2 01 3






Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.