autobiografia imaginária

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AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA VALTER HUGO MÃE



AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA VALTER HUGO MÃE



ANO 2010 CA S A PISCINAS O PRINCE 10:58 SEGUNDA FEIRA, 3 DE JANEIRO DE 2011

11:22 QUARTA FEIRA, 9 DE NOVEMBRO DE 2011

13:32 Quarta feira, 23 de Janeiro de 2013

12:47 Quarta feira, 28 de Agosto de 2013


ANO 2010 10:58 SEGUNDA FEIRA, 3 DE JANEIRO DE 2011 Aos 39 anos viro definitivamente a esquina, lá se foi a rua da juventude, olá resto da vida, o reumatismo a piorar e a sensatez cada vez mais induzida. Que chato. Passou-me o rock’n’roll. Agora, ando sempre a ouvir piano e a pensar em pintores e coisas ainda mais delicadas. Já só vejo filmes esquisitos e já só falo de assuntos com a mania. Que chato. Pareço pai de alguém, pareço um padre. Eu sei que ler Rubem Fonseca me perverte. Há livros que, sendo magníficos, deviam ser proibidos por fazerem danos maiores do que o açúcar, por serem mais deforma-

dores do que a gravidez nas mulheres. Eu ando a ler Rubem Fonseca para ver se o novo ano chega de água no bico, a despentear-me a careca existencial, a obrigar-me a voltar atrás com a aposentação. Apetece-me ir para o Brasil, fugir deste frio, desta crise, deste Sócrates, quero fugir destas festas que sabem a embrulho chinês. O frio, sobretudo, é que me lixa. Apetece-me ir para o Brasil levar flores à Clarice Lispector porque ela deve estar triste por eu me ter deixado enfraquecer. Portei-me bem durante todo o ano de 2010.

Emagreci, estava demasiado gordo, controlei o medo de andar de aviões, amadureci os amores, escrevi poemas, não espiei de propósito uma vizinha que se descuida à janela e regressei vivo de uma viagem a Caracas. Vejo o tempo como água que evapora, fica ainda um pouco refrescando o ar mas já não a podemos beber, é só uma presença muito ténue. O tempo que passa é isso, uma presença algo ténue, e agora sinto-me, como invariavelmente me sinto sempre, à procura das identidades mínimas, a tabela do que quero, do que devo ser. A fazer chichi a meio da noite estou capaz de emigrar de mim mesmo, farto de me aturar. E portar-me bem, afinal, só me cansa.


Fui ver os Mão Morta ao renovado e maravilhoso Hard Club, e ouvir o E se depois ao vivo faz de mim um homem perigoso. Subitamente, eu sei que subitamente posso tornar-me noutra coisa, terrivelmente voltar atrás e sonhar com a galeria de anti-heróis que sempre me fascinaram e que pode fazer-me querer ser o anti-herói ao menos de mim mesmo. Se o sangue ainda correr, corre atrás dele. Gostava de pôr o sangue a correr atrás de mim e ser mais impiedoso, a desprezar os pianos e os filmes esquisitos e a pensar que estar vivo é algo mais animal. É exatamente a minha componente animal que anda toda a ceder. Isso

do chichi à noite e as dores nas costas e o frio demasiado, até o Sócrates é algo que me afeta pelo animal adentro, se é que me explico bem. Vamos envelhecendo e ganhando juízo e o corpo parece que emburrece. Que triste troca, o corpo por uma cabeça melhor ou mais convencida de ser melhor. Raios partam lá a lógica das coisas. Em 2011 vou fazer 40 anos. Toda a gente dirá que sou ainda um jovem, mas o meu drama é sentir que me faltam cumprir aventuras de todas as idades que tive. É como se ainda marcasse na agenda compromissos assumidos aos dez anos. Devia haver uma suspensão do tempo para voltarmos ao que fomos

e preenchermos os vazios, as lacunas, o que nos faltou e fica para sempre a fazer falta. Porque seria assim o modo de completarmos a vida, toda a vida. Eu ainda sinto o impasse de pedir uma miúda em namoro aos 15 anos. O impasse que me fez não pedir. Ao invés disso, segui na marginal calado a pensar que no dia seguinte teria mais coragem. Tinha de haver um mecanismo que me levasse a esse dia da vida e, servido de uma melhor auto-estima, me pusesse a namorar com a rapariga, a levá-la ao cinema, a mostrar-lhe o sexo, a zangar-me com ela e a acabar tudo para seguir em frente em harmonia e sem incompletudes.


Ficaram por cumprir muitas das tarefas suscitadas pelo ano de 2010. Sei que este tempo passa deixando pontas soltas por todos os lados e essa angústia crescendo de não ser capaz de dar conta de tanto recado. Entristece-me absolutamente a chegada desta fase de nova miséria. Assusta-me pensar que os homens bem-falantes que durante toda a vida vimos a contarem-nos histórias na televisão eram burros ou falsos. Assusta-me pensar que as pessoas, depois de tanto flower power e tanto telefilme de domingo, não sejam ainda consideradas o mais importante de tudo. Este foi o ano de retirada das máscaras e exposição

cabal do cinismo. Já não vemos os políticos importados a convencer-nos de que sabem tudo e que o futuro vai ser belo. Dizem-nos antes que não há culpados e que se não aceitarmos o que está posto isto fica pior. Lá vamos nós atrás dos mesmos senhores sem acreditar neles e encurralados direitinho. Gosto tão pouco de estar encurralado. Alguém dizia que estávamos todos a aspirar a um mundo novo, mas quem tem nas mãos as decisões para alguma mudança são os mesmos homens de sempre. Era tão importante que se varressem da nossa frente esses interessados de tantas gerações, sustentados até às raízes pelos esforços do coletivo.

Esta noite vou fazer chichi na televisão, a ver se elimino parte do problema e se mudo dos pesadelos para os sonhos. Vou pintar flores nas camisolas, que sendo algo mariquinhas também é muito estranho e sugere perigo, e vou passar a aquecer os dias com a intensificação de cada coisa. Para que não fique nada incompleto. Porque 2012 ainda me deixa menos apetite do que 2011, e 2010 está colado de maldade à sola do nosso sapato, como uma pastilha elástica nojenta. Dito isto, votos de bom ano novo a todos.


CA S A

11:22 QUARTA FEIRA, 9 DE NOVEMBRO DE 2011 De volta a casa, por um breve dia. Apetece-me passar o tempo todo abraçado ao Santo António da Júlia Côta, ao edredão branco pintalgado pelos marcadores de todas as cores, aos quadros da Isabel Lhano ou aos discos do Antony. Como não quero ser sentimental, imagino que as minhas coisas se sentem sozinhas. Se puser a tocar o Soft Black Stars, vou achar que a casa se levanta e vai embora, tão carente, tão sem mim. Há uma intensidade demasiada que se sente no regresso, algo que nos ilude acerca de uma casa ser quase gente, pensar, esperar por nós

tanto quanto a queremos, tanto quanto temos saudades dela, mesmo que não seja perfeita, mesmo que não seja mais do que o lugar onde remediamos o nosso tempo. Porque é o lugar onde somos sem máscaras e sem mediação. Não nos mediamos. Tudo está, de algum modo, preparado para nos corresponder. Como se tudo gostasse de nós. Acho que escolhemos as coisas de que gostamos como se fosse possível uma relação recíproca. Aquilo de que gosto põe-se como se gostasse de mim também.

Estar em casa é isso, rodearmo-nos de todas as coisas que nos amam e que, por isso, nos servem para a felicidade, nem que seja apenas por estarem ali. Não é estranho, assim, que acredite que o Santo António mereça o meu abraço, porque está ali, é lindo, gosto tanto dele que me convenço de que ele também gosta de mim. Tenho-lhe carinho. Mais ainda porque gosto da Júlia Côta e é como ter modo de também a abraçar e ter companhia, mais companhia, em casa. Na minha casa, não a perfeita mas a possível, até porque só do que é possível podemos fazer vida, o resto é sonho e vale apenas como tal. Consegui voltar e evitar um hotel, um apenas, mas o suficiente para me


milagre da arquitetura. deixar vir compor as costas no colchão que conheço, deitando a cabeça na almofada muito baixa que tem a medida exata que me deixa dormir como os anjos inventados pelos livros. Estou há dias com as costas reviradas, também por receber o inverno com esta chuva toda que me enerva. Eu sei que a chuva é importante e blá blá blá, mas havia de se arranjar modo de ir cair, como por uma torneira educada, nos sítios certos, e não na minha careca desprotegida e ansiosa apenas por beleza e sossego. Saem-me só duques, como dizia o meu pai a jogar a sueca. Passei dois dias no Fénix Garden de Lisboa, quarto 102, um

Abrimos a cortina e vemos apenas uma parede. Ando há milénios a dizer que gosto daquele hotel, mas sempre fiquei alojado nos quartos das traseiras, a ver, digamos, os quintais. Apenas uma vez me puseram num quarto da frente, com vista para todo o parque Eduardo VII, a parecer que voamos. Uma vez, que foi o suficiente para que soubesse o quanto é triste ficar no lado dos quintais. Mas nunca imaginei como pode ser ainda mais triste se ficarmos no 102, no fosso, a chuva a cair louca e nós encaixotados sem tréguas, sem fuga. Se eu não fosse um vidrinho de cheiro, tinha

ido à receção explicar que sou um careca com ansiedades de beleza e sossego, e que esperava ver nem que fossem os quintais, para me inspirar para a bondade da vida e mais aquela coisa toda da busca incessante de tópicos interessantes para histórias e poemas. Mas sou um vidrinho de cheiro. Chego e abanco onde os hotéis me acham bem. Mas, passado um certo limite, não volto mais. Digamos que ardo de frustração, fico em cinzas pequeninas e muito humilhadas e depois renasço noutro hotel qualquer. Devo ter cara de músico rock, com ar para


queimar os lençóis com charros ou desacertar na sanita quando faço chichi, porque sempre há tendência para me mandarem para os quartos mais desenrascados, coisa que me começa a enervar profundamente. E nunca fumei charros, anotem e não me azucrinem mais com esses preconceitos. Nunca usei drogas. Bem, na verdade tomei aspirinas, paracetamol e Cholagut, mais nada. Voltar a casa, com maior ou menor vista, sossega-me. Acho que é isso. Vivo como posso e, como posso, não me ofende e já não me defrauda. Não mudo de quarto, não mudo de paisagem, mas já sei o que me espera

e esperam-me as coisas que quero e isso respeita-me. Sinto um profundo respeito por onde vivo. Como sinto um respeito profundo pelos lugares de cada pessoa. Com os seus cacos e paninhos, com os seus quadros tortos e as suas televisões húmidas, com os tapetes da feira da Estela surrados pela água e limpos à vassourada. Como sinto respeito pelas casas elegantes de quem pode, pelo bom gosto e pelo cuidado, como sinto respeito pelo que cada um pode ter e tem por dignidade. Uma vizinha veio oferecer-me um copo alto de cerveja, muito alto como já não se fabricam.

Parece uma taça. Dizia ela que é para, quando houver festa, eu ter um copo maior, à altura do bonito que tenho feito e do orgulho que as pessoas daqui sentem por isso. Vou guardar o copo como um troféu desses afetivos. Um desses objetos que nenhum hotel tem e que, depois de uma temporada demorada por aí, me vai saber bem abraçar, para lhe matar as saudades e garantir que não se sente demasiadamente só. Como se abraçasse no copo todos os vizinhos. A minha casa inteira, o lugar da minha casa inteira.


PISCINAS 13:32 Quarta feira, 23 de Janeiro de 2013 Nado à sapo, não sei nadar de outro modo. Saio pouco do lugar, fico a espanar a água e não tiro os óculos. Quero dizer, como ainda não tenho uns de mergulho, graduados, uso os meus óculos de sempre, para distinguir entre o que é a água da piscina e o que são os azulejos azuis muito enganadores. Claro, ficam todos a olhar para o balofo que nada mal, mesmo à sapo, e que vai de óculos de leitura. Não gosto nada. Redobro a coragem para estas coisas, não vou desistir de fazer umas piscinas, porque tenho os ossos todos a precisar e porque

nadar espiritualiza-me a vidinha de uma ponta à outra. No entanto, mesmo que muita gente não leia os meus livros, passar a palavra é como fogo ateado. Ao fim de umas quantas idas à piscina, já há quem me cumprimente de senhor doutor a senhor Hugo ou senhor escritor. Medem os meus calções justinhos, ficam a fazer contas à minha barriga, ao quanto sou ou não peludo, às minhas pernas consistentes. Enfim. Essas coisas em que se repara e não se comen-

tam. Olham-me de cima abaixo, de perto a longe, da verdade à fantasia, para tirarem nabos do púcaro e ficarem regalados de cusca satisfação. Em agosto retiraram as cortinas dos chuveiros individuais nos balneários das piscinas de Vila do Conde. Não foi boa ideia. Acredito que aconteça por causa dos putos, que são aos montes e correm a fazer confusão por todo o lado e alguns devem fazer asneiras e sei lá que mais. A verdade é que não há modo de, em agosto, se tomar ali um duche com privacidade. Percebi-o muito imediatamente. Escutei, numa voz falsamente baixinha, um miúdo dizer: ó pai, eu vi a pila do escritor. Parei de ensaboar a cabeça e olhei na direção da passagem, ali


que estará muito justa a por onde os demais an-

consequência.

dam a entrar e a sair dos

Uns senhores disseram-

duches. Cinco segundos

-me que a nadar sou

depois, vejo a carantona de um barbudo qualquer a espreitar. Era o pai do miúdo. E o miúdo, meio orgulhoso pela notícia, também apareceu mais atrás, a tiritar. Que o miúdo se tenha espantado com ver um escritor nu, ainda posso entender, agora, que o pai tenha interesse em chegar ao café e discutir o assunto da minha nudez na piscina de agosto já é outra coisa. A partir daí, tomo duche de costas para quem passa. Já sei que não vai faltar quem diga ter visto o rabo do escritor.

Os miúdos nas piscinas não pensam. Ficam algaraviados. Atravessam-se à frente de qualquer cidadão, afundam-se à bruta em mergulhos de chapa, gritam histéricos, parecem matar e morrer. Há sempre alguém que explica que o lado onde são colocadas as linhas de boias são para natação contínua, e que a mais de metade da piscina livre é para brincadeiras, pinchos, assassinatos e suicídios. Pouco adianta. Em três minutos os miúdos já foram e já voltaram, porque fugir uns dos outros é urgente, e o mundo pode acabar nessa urgência

uma vergonha. Agradeci. Eram uns velhotes com a mania, devem ter sido desportistas em 1922. Numa disputa tolinha, começaram a fazer corridas para chegarem antes de mim. Depois de uma hora, comentaram que eu nadava de óculos porque ia lentinho e dava tempo para ler livros. Diziam isso e punham-se com aquelas coisas: só estamos a brincar, é uma brincadeira. E eu, meio afogado com muita água nas orelhas, que detesto, estava a achar que me iam dar os nervos.


malcriadões como eles. Normalmente, com uma conversa destas fico um Antes de irem embora, foram cumprimentar-me. Olhe, muito esforço e paciência. Você pode aprender, que até os bebés aprendem. Quando saí da água, a encolher a barriga e a caminhar rápido mas discreto para os balneários, uma senhora, que estava toda aeróbica aos saltos para aquecer, veio confessar-me que achava que a autarquia devia fazer uma piscina para pessoas assim: escritores e doutores, porque ela era doutora e, muitas vezes, sentia-se incomodada pelas pessoas sem cultura que por ali vão.

bicho. Mas estava a encolher muito a barriga, não tinha ar suficiente nos pulmões, e os meus calções são muito destapados, aquilo não me pareceu boa maneira de me enfurecer. Sorri amarelo e fui embora. Nos balneários, ao fim de meia hora, ainda lá estavam os dois velhotes marretas, vestidinhos de engomados e a rirem de coisas tolas. Achei-os mais normais. Disse-lhes que ali, em pé como as pessoas e não às ondas como os peixes, queria ver se tinham treta. E disse-lhes que uma senhora exigia piscinas para escritores e doutores, só para se livrar de

Ficámos a rir. Até desencolhi a barriga. Queria lá saber. Quando volto à piscina, penso nestas coisas. É costume nadar ainda pior para me rir. Tento não beber água. Já me explicaram que aquela conversa de o chichi se tornar uma mancha azul por causa do cloro é mentira. Toda a gente adulta sabe disso. E pensa-se que toda a gente adulta faz ali chichi e mais muita gente criança que, sem tempo e com as urgências, acaba por se descuidar. É tudo um circo e um certo perigo.


O PRINCE 12:47 Quarta feira, 28 de Agosto de 2013 Quando anunciaram que o Prince andava aí e que havia concerto surpresa em Lisboa não tive hipótese alguma. Não deu tempo para me organizar. A vida está exigente, tudo me custa e nada permite frescuras e veraneios. Fiquei furioso. Não vi, não estive lá, não gosto de ninguém que tenha conseguido bilhete e assistir. Detesto quatro mil e não sei quantas pessoas, uma a uma. O Prince estreava aqueles vídeos festivos, lascivos, cachopas giras em poses, e eu achava que ele tinha o estilo todo. Era mau num bom sentido. Devia ser feliz.

Eu achava muito que o Prince rejubilava por estar vivo. E adorava-o. Ficou-me para sempre o hábito de gostar muito dele. Também o hábito de o pensar como um mistério grande da contemporaneidade. Desses que não se desarmam, ficam para sempre a confundir-nos. Como eu teria uns dezasseis anos, ainda era capaz dos falsetes circenses para o imitar a cantar o Kiss, arriscando dar dois passos de dança na sala dos meus pais, sem ninguém ver. Não poderia dançar com

assistência. Era descoordenado e tão elegante quanto as avestruzes. Só era bonito nos sonhos e em alguns domínios do coração. Adiava-me nos assuntos todos. Acreditava que, se a vida valesse a pena, isso só se revelaria lá para depois dos trinta. Não me enganei muito. Ansiava, no entanto, por ter uma sensualidade qualquer, algo que servisse para ofuscar as borbulhas na cara, a barba mal distribuída, o bigode deprimente. O Prince, por seu lado, tinha a sensualidade toda. As pessoas olhavam para ele para saberem como era ter-se carisma e ser-se irresistível. Parecia uma visão da evolução superior da humanidade. No futuro, pensei, iríamos to-


dos ser assim. E iríamos todos namorar com a Jill Jones, e ela estaria sempre a cantar Tu vuole la mia bocca, com aqueles sapatos na mão, o vestido justo e curto como tanto gostávamos de ver. Nos anos 80, com o Michael Jackson para a malta mais bem comportada e a Madonna para curar rapazes e raparigas virgens, o Prince era tudo. Absolutamente genial e inesgotável, tornava-se consensual que o mundo precisava dele, nunca tinha visto nada igual. Eu, que gostava dos três, estava convencido de que When Doves Cry

seria a melhor canção de sempre e sentia-me muito mais maduro por achar tal coisa. Ouvir a Madonna, por exemplo, nunca me fez sentir maduro, apenas me criou urgências e tiques. Há uns anos veio no jornal que o Prince andava no Bairro Alto com a Ana Moura e eu odiei o Bairro Alto. Estava em Braga, nessa noite, e não havia modo nenhum de o vislumbrar num acaso. Eu gosto que o Prince ande com a Ana Moura, porque se tem de escolher um português para amizades é bom que escolha uma diva maravilhosa como ela. Se o Prince andasse atrás de outra pessoa em Por-

tugal eu cortava os pulsos de inveja. Depois, algum amigo meu o viu e mandou mensagem a avisar, numa alegria que me deprimiu. Há qualquer coisa de deprimente na existência das figuras que nos inspiram

demasiado.

Quando as oportunidades nos trazem uma ao pé não sabemos o que lhe fazer, dizer, e é uma tolice procurar retribuir o que quer que seja, porque a absoluta familiaridade que sentimos com ela não lhe permite ter a mais vaga impressão de familiaridade connosco. Quando as vemos estamos, na verdade, sozinhos.


Tenho estado a ouvir os últimos discos do Prince para me compensar do que me doem os cotovelos. Não há nosClaro que não é sobre o ver o Prince passear no Bairro Alto que me vem a angústia. É pior. A angústia existe por achar que estamos sempre aquém das pessoas e das situações, como se fôssemos um bom bocado incompetentes para a vida. Desperdiçamos tudo. Os anos 80 já foram e o Prince continua incrível e o mundo está diferente e só podemos viver errados em relação a tudo, porque não nos vejo a chegar perto de

talgia. O assunto Prince não é sobre o passado, é sobre perder futuro. Talvez possa existir nostalgia do futuro, essa sensação desagradável de rodar a nave para outro lado, um que se indefine perante coisas que já tínhamos aprendido e desaprendemos sem saber por que razão. Ouço os discos do Prince para me convencer de que há de haver modo de não nos perdermos completamente. Algures existirá um sentido, um propósito

que nos apazigue. Algo que nos explique cada bizarria do percurso. Prefiro as canções meladas. Dá-me para achar que são verdadeiras. Têm qualquer coisa de amor por toda a gente. Não sei. Isso de serem românticas e o romantismo estar em extinção e sobrar apenas como tópico para as artes. Um dia, vamos deixar a palavra amor exclusivamente para o vocabulário técnico das artes. Amar será uma relação baralhada com os artistas. O res-

termos todos sensua-

to vai ser sempre mais

lidade e namorarmos

embrutecido.

com a Jill Jones. Estamos no caminho errado. Numa cilada.


fonte Univers Condensed papel Offset 150 g/m2 e Color Plus 180 g/m2 Esta edição é uma compilação de textos publicados pelo JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias entre 2011 e 2013, em Portugal. hannah uesugi, 2013




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