Anastasia gritou em vão

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FACULDADE CÁSPER LÍBERO Helena Bulhões Carvalho da Fonseca Dutt-Ross

gritou em vão

Orientador: Prof. Dr. Welington Andrade

São Paulo, SP 2013


Helena Bulhões Carvalho da Fonseca Dutt-Ross

gritou em vão

Monografia apresentada junto ao curso de Comunicação Social com habilitação em jornalismo da Faculdade Cásper Líbero como requisito parcial à obtenção do título de bacharel

Orientador: Prof. Dr. Welington Andrade

São Paulo, SP 2013


Helena Bulhões Carvalho da Fonseca Dutt-Ross

gritou em vão Monografia apresentada junto ao curso de Comunicação Social com habilitação em jornalismo da Faculdade Cásper Líbero como requisito parcial à obtenção do título de bacharel

Orientador: Prof. Dr. Welington Andrade

COMISSÃO EXAMINADORA __________________________________ Prof. José Augusto Dias Jr. Faculdade Cásper Líbero __________________________________ Prof. João Baptista Natali Faculdade Cásper Líbero __________________________________ Prof. Bruno Barreto Gomide Universidade de São Paulo São Paulo, __/__/____


AGRADECIMENTOS

Primeiramente, ao meu orientador, Welington Andrade, que aceitou meu pedido de orientação tão cedo e que suportou com infinita paciência as minhas infinitas perguntas. Enfim, que apostou em mim. Cabe agradecer também ao qualificador do projeto, José Augusto Dias, pelas indicações de bibliografia e observações que foram tão cuidadosas e valiosas. Agradeço também a Laura de Mello e Souza, Lilia Schwarcz e Helen Rappaport, pelas entrevistas tão gentilmente concedidas e por todas as dicas. E agora, em nenhuma ordem em particular: aos meus pais Clara Carvalho e Brian Penido Ross (pelo apoio de sempre), Lucas Bulhões (que leu tantas versões e deu tantas opiniões), Marília de Azevedo Corrêa e Nuria Pratginestós (pelo apoio, pela hospitalidade e, bom, por tudo) e a turma da Coordenadoria de Cultural Geral, que acompanhou o projeto desde seus primeiros dias de vida: André Silva, Elzie Barbosa, Fernanda Coppedê, Gabriela Colicigno, Guilherme Aleixo, Patrícia Homsi e Roberto Fideli. E ao professor Adalton Diniz pela paciência que teve com todos nós. Agradeço ainda: Christian e Ana Cristina Dunker (donos de todo e qualquer livro sobre psicologia que figure nestas páginas), Inês Corrêa (que defendeu seu mestrado no mesmo ano em que defendi meu TCC, e que por isso pôde me dar tantas dicas) e aos professores Cláudio Arantes e Luís Mauro Sá Martino. Os franceses têm uma expressão de que gosto muito: l’esprit de l’escalier. Significa, literalmente, “o espírito da escada”. É a representação de todas os comentários os respostas inteligentes que a gente só pensa em dizer depois que já é tarde demais – depois que já está na escada, indo embora. Tenho certeza de que estou esquecendo de agradecer a pelo menos uma pessoa, e que só vou me lembrar depois que o trabalho já estiver pronto e impresso. Então, a essa pessoa, e a todas as outras que fizeram parte disso: obrigada, obrigada, obrigada.


Ao meu pai, que adorava me contar histórias, E à minha mãe, que foi quem primeiro me contou esta.


RESUMO Anastásia Romanov é uma das relativamente poucas personagens históricas que foi pinçada do mundo dos fatos e incorporada ao da ficção. Esta pesquisa tem por objetivo analisar o fenômeno cultural que se tornou Anastásia Romanov, cuja tão esperada "ressureição" (o nome Anastásia significa literalmente "aquela que se ergue novamente") inspirou diversas obras de ficção, inclusive um filme ganhador do Oscar (Anastásia, de 1956) e um desenho animado (Anastásia, de 1997). Buscaremos a forma e os motivos por que a mais jovem das Grã-Duquesas russas foi selecionada para se tornar imortal, um autêntico ícone pop - comparável a Cleópatra, César, Maria Antonieta e D. Sebastião, em Portugal. Enfim, o trabalho irá investigar por que, e de que maneira, uma personagem histórica foi aos poucos perdendo seus contornos reais e adentrando o universo ficcional, tornando-se uma personagem narrativa nos moldes dos contos tradicionais. Deste modo, o trabalho tratará dos métodos da investigação histórica em contrataste com os recursos da fantasia e da imaginação - e como estas duas coisas trabalham juntas para fazer história e História. Palavras chave: história cultural, ficção, Anastásia Romanov ABSTRACT Anastasia Romanov is one of the relatively few historical characters that was brought from the world of facts and incorporated to the world of fiction. This research’s objective is analyzing the cultural phenomenon that became of both her and her awaited "resurrection" (the name Anastasia means literally "that who will rise again"), inspiring many works of fiction, including and Academy-Award winning movie (Anastasia, 1956) and cartoon (Anastasia, 1997). We will search for the ways and the reason why the youngest of the Russian Grand-Duchesses was the one selected to become immortal, an authentic pop icon - comparable to Cleopatra, Cesar, Marie Antoinette and D. Sebastian, in Portugal. The bottom line of this research is an investigation as to why and how a historical character slowly loses her real contours and enters a world of fiction, becoming a narrative character in the patters of traditional storytelling. Thus, we will work with the methods of historical investigation as a counterpoint of the resources of fantasy and imagination - and with how these two things work together to make for story and History. Keywords: cultural history, fiction, Anastasia Romanov


I stuck around St. Petersburg When I saw it was a time for a change Killed the tsar and his ministers Anastasia screamed in vain Pleased to meet you Hope you guess my name

(Eu fiquei por São Petersburgo Quando vi que era hora de mudança Matei o czar e seus ministros Anastásia gritou em vão Prazer em conhecê-lo Espero que adivinhe meu nome)

Rolling Stones, Sympathy for the Devil, 1968


SUMÁRIO

NOTAS ........................................................................................................................ 9 1 DE IPATIEV A IPATIEV ......................................................................................... 10 1.1 IMPÉRIO .......................................................................................................... 10 1.2 GUERRA E REVOLUÇÃO ............................................................................... 18 1.3 EXECUÇÃO ..................................................................................................... 22 1.4 A IMPOSTORA ................................................................................................ 25 1.5 FICÇÃO............................................................................................................ 36 1.6 OS OSSOS ...................................................................................................... 37 1.7 FRANZISKA ..................................................................................................... 39 2 O MITO POLÍTICO-HEROICO ............................................................................... 42 3 HELENA, A BELA E BABA YAGA ....................................................................... 58 3.1 CONCLUSÃO .................................................................................................. 77 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 81 ANEXOS ................................................................................................................... 84 ANEXO A – Entrevista com Laura de Mello e Souza ............................................ 84 ANEXO B – Entrevista com Lilia Schwarcz ........................................................... 92 ANEXO C – Entrevista com Helen Rappaport....................................................... 95


NOTAS

A respeito da escolha de uso de títulos, nomes e datas neste trabalho. O título formal de Nicolau II era Imperador, embora ele mesmo usasse a forma eslava czar. Sua esposa, Alexandra, era Imperatriz, mas também usava a forma eslava czaritsa. Talvez alguns leitores estejam familiarizados com a forma traduzida czarina, mas o termo não existe em língua russa. Seu filho, Alexei, tinha o título de czarevitch, e as irmãs dele eram grã-duquesas (velikaya knyazhna, em russo. Uma tradução mais exata seria grã-princesa) e não propriamente princesas. Em termos de significação, entretanto, os termos podem ser vistos como equivalentes: o objetivo era meramente lhes conferir um nível mais elevado do que das demais princesas europeias. Os russos têm sempre três nomes: o de batismo, o patronímico e o sobrenome. O patronímico é, como o nome indica, sempre derivado do nome de batismo paterno. Na forma masculina, ele é a junção do nome do pai com o sufixo –vitch (filho de). Alexei se chamava Alexei Nikolaevitch: filho de Nicolau. Nicolau, por sua vez, era Nicolau Alexandrovitch: filho de Alexandre. Na forma feminina, o patronímico tem o sufixo –evna ou –ovna (filha de). Anastásia é, portanto, Anastásia Nikolaevna. Os nomes dos membros das famílias reais, quando possível, foram traduzidos para formas mais familiares. Então, temos Nicolau em vez de Nikolai, Miguel em em vez de Mikhail e o kaiser Guilherme em vez do kaiser Wilhelm. Nomes de plebeus, entretanto, foram mantidos: Sergei Prokofiev não é chamado de Sérgio e Franziska Schanzkowska são é chamada de Francisca. Na Rússia pré-Revolucionária, utilizava-se o calendário juliano, atrasado treze dias em relação ao gregoriano (que utilizamos hoje). Aqui, as datas utilizadas estão de acordo com o calendário gregoriano.

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DE IPATIEV A IPATIEV

1.1 Império Moscou, 18 de junho de 1901. Era madrugada quando começaram os tiros de canhão que anunciavam o nascimento de mais um filho do czar Nicolau II. Sua esposa, a czaritsa Alexandra, estava grávida pela quarta vez após ter dado à luz três meninas: Olga, Tatiana e Maria. As leis de sucessão ao trono russo, entretanto, eram diferentes das da maior parte das monarquias. Os historiadores Greg King e Penny Wilson explicam em seu A Ressureição dos Romanov: O czar Paulo, que odiava sua mãe, Catarina a Grande, ditou que mulheres só poderiam herdar o trono russo depois de todos os outros membros da dinastia Romanov. Se Nicolau e Alexandra não tivessem um filho, a coroa passaria para o irmão dele, o Grão-Duque Miguel Alexandrovitch, e depois para seus tios e os filhos deles, para tios-avôs e primos em segundo grau; só a morte destes quarenta e poucos herdeiros homens permitiria a sucessão do novo bebê ou suas irmãs. (Tradução nossa)1

Havia muita expectativa, então, em torno desta criança. Se trezentos tiros de canhão fossem disparados, a Rússia saberia que seu novo herdeiro tinha nascido. Soaram cento e um. A czaritsa tinha dado à luz mais uma menina. A Grã-Duquesa Xênia Alexandrovna, irmã mais nova do czar, escreveu em seu diário: “Alix se sente esplêndida – mas meu Deus! Que desapontamento... Uma quarta menina” (excerto do diário de Xênia, citado em ROUNDING, V.). O próprio Nicolau, que tinha celebrado em seu diário o nascimento das outras três filhas, teve de deixar 1

Emperor Paul, who hated his mother, Catherine the Great, dictated that females could inherit the Russian throne only after all male members of the Romanov dinasty, If Nicholas and Alexandra had no son, the crown would pass to his brother, Grand Duke Michael Alexandrovitch, then to his uncles and to their sons, to great-uncles and to second cousins, only the deaths of all these forty or so male relatives would allow for the succession of the new infant or her sisters. (KING, e WILSON, 2011, p. 16)

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o palácio e dar uma longa volta no jardim antes de conseguir encarar sua esposa e o novo bebê pela primeira vez. Em seu diário, registrou apenas “um sentimento de calma”. O tom difere bastante daquele com que descreveu a chegada de sua primeira filha, Olga: “Um dia inesquecível para mim (...). Às nove, exatamente, ouvimos o vagido de um bebê e respiramos aliviados. Uma filha enviada por Deus. Em preces, nós lhe demos o nome de Olga” (excerto do diário de Nicolau, citado em RADZINSKI, E.). Esta quarta menina foi a última Grã-Duquesa da Rússia imperial, Anastásia, nascida no primeiro ano do novo século. Era uma época conturbada e decisiva – para o mundo e particularmente para a Rússia. Em meio às crescentes tensões revolucionárias, o país entraria na Guerra Russo-Japonesa em 1904 pelo controle da Manchúria – o que se provaria um enorme erro militar que quase aniquilou as forças armadas russas e levou o país à fome. Em 1905 houve o incidente do “Domingo Sangrento”, quando os trabalhadores iniciaram uma marcha para entregar uma petição ao czar no Palácio de Inverno e foram massacrados pelas tropas que acharam que a turba não era pacífica: os mortos somaram 92. Ainda em 1905 haveria a primeira tentativa de revolução comunista, o famoso “Ensaio Geral”. Estas tensões levaram o czar a criar a Duma, uma espécie de órgão conselheiro com poderes legislativos. A autocracia continuava, mas ao menos agora havia um mínimo de participação popular no governo. A eficácia deste órgão, entretanto, permanecia duvidosa, uma vez que o primeiro-ministro era apontado pelo próprio czar. Porém, se social e politicamente a Rússia era caótica, ao menos culturalmente ela passou por um período de efervescência, como descreve Robert Massie em Nicolau e Alexandra: Em 1898, Constantine Stanislavski inaugurou o famoso Teatro de Arte de Moscou, e a estreia de sua segunda direção, A Gaivota de Chekov, escrita em 1896, determinou seu sucesso. Em seguida, a publicação de Tio Vânia (1899) e O Jardim das Cerejeiras (1904) confirmaram a inauguração de um novo conceito de 11


representação naturalista e uma nova era na história do teatro. Em 1902, Stanislavski dirigiu Os Pequenos Burgueses, um realismo sombrio de Máximo Gorki. (...) Em 1904, os poemas do famoso discípulo de Solov’ev, Alexander Blok, começaram a aparecer (...) [Alexander] Serov, influenciado pelos impressionistas franceses, pintou retratos evocativos de muitos de seus contemporâneos russos incluindo, em 1900, o czar. Em 1896, Vassily Kandinsky, um advogado de Moscou, desistiu de sua carreira e deixou a Rússia para começar a pintar em Munique. Em 1907, Marc Chagall chegou a São Petersburgo

para

estudar

com

seu

famoso

contemporâneo, [o cenógrafo] Lev Bakst (...) No Balé Imperial, Marius Petipa estava no meio de um reinado de meio século como coreógrafo... Foi Petipa que pôs no palco a parada cintilante de dançarinos russos que incluiu Mathilde Kschessinska, Tamara Karsavina, Anna Pavlova e Vaslav Nijinsky. Nikholai Rimsky-Korsakov era o condutor da Sinfônica de São Petersburgo... [e] instruía um jovem Igor Stravinsky. Depois, em 1914, outro dos pupilos de Rimsky-Korsakov, Sergei Prokofiev, se formaria no conservatório. Entre os violinistas e pianistas treinados na Rússia imperial estavam Sergei Rachmaninov, Vladimir Horowitz, Efrem Zimbalist, Mischa Elman e Jascha Heifetz. (Tradução nossa)2

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In 1898, Constantine Stanislavsky first opened the doors to the famous Moscow Art Theatre, and it’s second play, Chekov’s The Sea Gull, written in 1896, determined it’s success. Thereafter, the appearance of Uncle Vanya (1899), and The Cherry Orchard (1904) confirmed the arrival of a new concept of naturalistic acting and a new era in the history of theatre. In 1902, Stanislavsky directed The Lower Depths, a grimly realistic play by Maxim Gorky. (…) In 1904, the poems of Solov’ev’s famous disciple Alexander Blok began to appear. [Alexander] Serov, influenced by the French Impressionists, painted evocative portraits of many contemporary Russians, including, in 1900, the Tsar. In 1896, Vassily Kandinsky, a lawyer in Moscow, gave up his career and left Russia to begin painting in Munich. In 1907, Marc Chagall arrived in St. Petersburg to study with the famous contemporary painter Lev Bakst (…) At the Imperial Ballet, Marius Petipa was in the midst of a half-century reign as choreographer… It was Petipa who thrust onto stage the glittering parade of Russian dancers, which included Mathilde Kschessinska, Tamara Karsavina, Anna Pavlova and Vaslav Nijinsky.

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Este boom cultural, juntamente com a situação sócio-política quase feudal da Rússia no começo do século, são as bases do que viria a ser a Revolução. Segundo Steinberg e Khrüstalev, em seu A Queda dos Romanov: “As políticas trabalhistas do governo, que combinavam medidas paternalistas para aliviar a situação dos pobres com medidas firmes para manter a ordem e o controle tendiam, por sua parte, a encorajar os trabalhadores a considerar o Estado e, portanto, a política, como fator decisivo para mudança econômica e social.” (p. 48) Assim, a “florescente imprensa e literatura popular”, juntamente com aumento na alfabetização começaram a difundir ideias sobre igualdade de direitos e mutabilidade das ordens políticas. Além disso, “mais sutil, mas não menos subversivo, o próprio ato de ler e tornar-se alguém mais ‘culto’ conferia a muitos homens do povo um senso de autoestima que tornava mais difícil de suportar as humilhações e dificuldades de vida comuns à classe baixa”. Os camponeses e operários se tornavam mais intelectualizados sem se tornarem mais ricos: eis o princípio da Revolução de Março. Mas 1904, finalmente, trouxe uma boa notícia para a política russa, que contribuiu, ainda que temporariamente, para o aumento da popularidade da monarquia: o nascimento do herdeiro do trono, Alexei Nikolaevitch Romanov. Nicolau escreveu em seu diário “Um dia glorioso para nunca ser esquecido, quando a misericórdia do Senhor nos visitou tão claramente. Alix deu à luz um filho à uma da tarde. Chamamos a criança de Alexei.” Soaram os trezentos tiros de canhão, o bebê foi batizado perante toda a nobreza europeia. O tom do diário só muda seis semanas depois do nascimento: “Alix e eu estamos muito preocupados. Uma hemorragia começou nesta manhã, sem causa nenhuma, no umbigo do nosso pequeno Alexei.” No dia seguinte: “Nesta manhã novamente havia um pouco de sangue na bandagem mas o sangramento parou ao meio dia.” (excerto do diário citado em MASSIE, R.). Conforme a criança crescia e tentava sentar, rolar ou ficar de pé, as pancadas apareciam com muita facilidade,

Nikholai Romsky-Korsakov was the conductor of the St. Petersburg Symphony… [and] he was instructing a youthful Igor Stravinsky. (…) Later, in 1914, another of Rimsky-Korsakov’s pupils, Sergei Prokofiev, was to graduate from the conservatory. Among the violinists and pianists trained in Imperial Russia were Sergei Rachmaninov, Vladimir Horowitx, Efrem Zimbalist, Mischa Elman and Jascha Heifetz. (MASSIE, 1967, p. 68-70)

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deixando marcas azuis na sua pele. O sangue do garoto coagulava com extrema dificuldade. Era hemofilia. A hemofilia foi chamada de “doença de reis” por sua disseminação entre as casas reais europeias na segunda metade do século XIX. Trata-se de uma doença genética recessiva associada ao cromossomo X, o que significa que pode ser transmitida por mulheres que não necessariamente apresentam os sintomas. A rainha Vitória da Inglaterra é a primeira portadora do gene que se pode localizar: seu filho Leopoldo era hemofílico e ao menos duas de suas cinco filhas carregavam o gene. Como as casas reais comumente se casavam entre si, a doença logo se espalhou. Até a descoberta de um tratamento eficaz com plasma, na década de 1960, a expectativa de vida de um hemofílico era de 11 anos. Alexei viveu até os 13, mas nos últimos dois anos não conseguia andar: diversas pancadas nos joelhos ao longo de sua vida tinham preenchido as juntas de sangue seco. Uma vez, no inverno de 1910, o czarevitch, ao espirrar, teve uma hemorragia nasal que quase o matou, pois não havia como pôr bandagens na área. O herdeiro de um sexto das terras emersas do mundo podia morrer de um simples resfriado. A hemofilia, mesmo hoje, não tem cura; até cinquenta anos atrás, também não tinha nenhum tratamento eficaz. Nada além de morfina podia ser administrado no garoto – mesmo assim, em doses baixas, para evitar o vício. Para o historiador Robert Massie, a hemofilia de Alexei foi um dos fatores mais importantes para a Revolução Russa: foi por causa dela que Rasputin foi inicialmente trazido ao palácio. E, como disse o próprio Kerensky “Sem Rasputin, não haveria Lênin”. Massie adiciona: “Se isso é verdade, se não houvesse hemofilia, não haveria Rasputin”. Grigori Efimovitch Rasputin era um mujique siberiano semianalfabeto que chegou a São Petersburgo em 1903, quando foi apresentado às princesas montenegrinas: Milista e Anastásia, filhas do rei Nicolau I de Montenegro. As duas princesas eram famosas por seu interesse em misticismo e o levaram à czaritsa. Até hoje, a eficácia deste monge sobre o garoto permanece envolta em mistério. Os relatos são muitos, nas mais diversas vozes. Anna Vyrubova, a amiga mais próxima da czaritsa, descreveu posteriormente em sua autobiografia, Memórias da Corte Russa, um incidente em 1910: 14


A criança parecia estar em boas condições, mas algumas horas

depois...

seu

nariz

começou

a

sangrar.

Normalmente, esta é uma manifestação inofensiva, mas em alguém que sofre do mal incurável de Alexei era uma coisa muito séria. Os médicos tentaram todos os remédios conhecidos, mas a hemorragia ficou pior até ameaçar morte por exaustão e perda de sangue. (...) Os médicos mantiveram seus medicamentos, exaurindo todos os meios conhecidos pela ciência para parar o sangramento incessante. Desesperada, a Imperatriz chamou Rasputin. Ele entrou no quarto, fez o sinal da cruz sobre a cama e, olhando atentamente para a criança quase moribunda, sussurrou... “Não se alarme. Nada vai acontecer.” Depois ele saiu do quarto. Isso foi tudo. A criança dormiu, e no dia seguinte estava tão bem que o Imperador partiu (...) O dr. Derevenko e o prof. Feodorov me disseram depois que não podiam nem arriscar uma explicação para a cura. (Tradução nossa)3

A teoria mais aceita sobre estes “milagres” seria que o monge, cujos olhos penetrantes e voz profunda foram descritos por tantos, hipnotizava o garoto. Estudos conduzidos pelo dr. Oscar Lucas no Hospital Jefferson, na Filadélfia, entre 1961 e 1964, indicam que a hipnose pode ser muito eficaz para controlar hemorragia em hemofílicos. Em circunstâncias normais, extrair dentes de hemofílicos é uma operação complicada, que exige uma grande quantidade de sangue e plasma para transfusão. No entanto, o dr. Lucas extraiu mais de 150 dentes de pacientes hemofílicos hipnotizados sem uma única transfusão.

3

The child seemed to be in good condition, but a few hours after leaving the palace he was taken with a nosebleed. This is ordinarily a harmless enough manifestation, but in one suffering from Alexei's incurable malady it was a very serious thing. The doctors tried every known remedy, but the hemorrhage became steadily worse until death by exhaustion and loss of blood was threatened. (…) The physicians kept up their ministrations, exhausting every means known to science to stop the incessant bleeding. In despair the Empress sent for Rasputin. He came into the room, made the sign of the cross over the bed and, looking intently at the almost moribund child, said quietly to the kneeling parents: "Don't be alarmed, Nothing will happen." Then he walked out of the room and out of the palace. That was all. The child fell asleep, and the next day was so well that the Emperor left (...) Dr. Derevenko and Professor Fedoroff told me afterwards that they did, not even attempt to explain the cure. (VYRUBOVA, 1920)

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Mas se, por um lado, os feitos “milagrosos” de Rasputin entraram para a história, o mesmo aconteceu com a vida devassa que ele levava em particular – foi justamente o que lhe rendeu o apelido de “demônio santo”. O mujique assumiu, para a Rússia, um papel social tão importante que havia uma Comissão Extraordinária da polícia encarregada de vigiar seus passos e, posteriormente, durante o Governo Provisório, interrogar todos que tiveram contato com ele. São dos registros reunidos por esta comissão que vem os numerosos relatos de que teria ido a algum banho público com prostitutas: “Ele foi para Nevsky, contratou a prostituta Petrova e foi a um banho público com ela”, “Ele visitou os banhos públicos de Konyushenny com uma prostituta contratada perto da Ponte Politsesky”, “Com as prostitutas Botvinina e Kozlova ele foi para a casa dos Golovin. Saiu às duas e meia, e novamente contratou uma prostituta e foi para os banhos”. Também são vários os registros de que saiu à noite e ficou bêbado ou acossou mulheres na rua com “sugestões vis” (Parte do arquivo Rasputin, citado em RADZINSKI, 2000, p. 159). Uma das babás das Grã-Duquesas, Maria Ivanona Vishnyakova, disse ter sido estuprada por Rasputin, em 1910, durante uma das visitar do mujique ao palácio, mas a czaritsa se recusou a acreditar nela e o caso nunca foi investigado Um episódio em particular, relatado pelo oficial Dzhunkovsky, ficou famoso. É o “incidente do restaurante Yar”: Em 26 março por volta das 11 horas da noite, G. Rasputin... chegou ao restaurante [Yar] com Anisia Ivanova Reshetnikova, viúva de um cidadão respeitável, Nikolai Nikititch Soedov, um contribuinte de jornais de Moscou e Petrogrado, e uma jovem não identificada. Todos já estavam bêbados. (...) Evidentemente, o grupo também conseguiu vinho lá, já que um Rasputin ainda mais bêbado... falou francamente com as cantoras dessa maneira: “Essa capa me foi dada pela ‘velha senhora’ [a Imperatriz], ela mesma a costurou .(...) Oh, o que ela diria se me visse agora?” O comportamento subsequente de Rasputin assumiu características infelizes de um tipo de patologia sexual. Ele evidentemente expôs seu órgão sexual e nessa condição continuou a conversa com as 16


cantoras, presentando algumas delas com notas escritas à mão a respeito de ‘amor altruísta’. (Tradução nossa)4

Livros sobre Rasputin, o ‘monge louco’, já venderam milhões de cópias. Foi ele e sua aparentemente inexplicável relação com a família real (já que a hemofilia de Alexei era segredo de Estado) quem mais contribuiu para, aos olhos da maior parte dos russos, arruinar a imagem na monarquia. Na época, não faltaram boatos de que Rasputin teria seduzido tanto a czaritsa quanto suas quatro filhas. Mas, na verdade, em comparação com as demais famílias reais europeias, os Romanov eram pessoas relativamente simples. Os diários de Alexandra mostram como a Imperatriz era extremamente dedicada à família: durante o primeiro ano de vida de cada um dos filhos, ela mantinha o berço dentro de seu próprio quarto, que dividia com Nicolau (o que era incomum entre a nobreza da época, famosa por seus casamentos arranjados). Ela também os amamentava, banhava e cuidava deles, em vez de delegar estas tarefas a babás e amas de leite. Quando cresceram, as meninas dividiam os quartos – Olga e Tatiana em um, Maria e Anastásia em outro – e faziam as próprias camas elas mesmas, toda manhã. Olga, a mais velha, era também a mais estudiosa, religiosa e sensível das garotas. Tatiana, a segunda, era a mais austera das irmãs, e ganhou o apelido de “a governanta”. Segundo Pierre Gilliard, era bastante talentosa no piano, embora não gostasse de estudar. Maria, a terceira, era amorosa e extremamente simples em seus gostos, sonhava em casar e ter uma família grande. Anastásia, por outro lado, divergia inteiramente das irmãs. Sua tia, a Grã-Duquesa Olga Alexandrovna, a apelidou de “shvibzik” – diabrete, em russo – e Anastásia aparentemente fez de tudo para fazer jus à designação. Desaparecia no jardim por várias horas, divertindo-se em ver os sentinelas procurando

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On 26 March around 11:00 p.m., G. Rasputin… arrived at the restaurant [Yar] with Anisia Ivanova Reshetnikova, the widow of a respected citizen, Nikolai Nikititch Soedov, a contributor do Moscow and Petrograd newspapers, and an unidentified young woman. The whole parte was already tipsy. (…) Evidently, the group had been abke to drink wine there, too, since an even drunker Rasputin… began to speak frankly with the girl singers in this manner: ‘This cloak was given to me by the ‘old woman [the Empress], she swewd it. (…) Oh, what would ‘she herself’ say if she saw me now?’. Rasputin’s subsequent behavior assumed the disgraceful character of a kind of sexual psychopathology. He evidently exposed his sexual organ and in that condition continued his conversation with the girl singers, presenting a few of them with hand-written notes on the order of ‘love unselfishly’. (Testemunho de Dzhunkovsky, citado em RADZINSKI, 2000, p. 296)

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por ela; subia muito alto nas árvores e se recusava a descer até que o pai em pessoa viesse tirá-la; fazia caretas para os guardas sérios do portão. Pierre Gilliard, tutor de francês das meninas, relembra a jovem Anastásia em uma passagem de Treze Anos na Corte Russa: Anastásia Nikolaevna (…) era muito desordeira e quase uma palhaça. Ela tinha um senso de humor muito afiado, e suas alfinetadas frequentemente atingiam os pontos fracos das pessoas. Era uma enfant terrible [criança terrível, em francês], embora este defeito tendesse a ser corrigido com a idade. Também era muito preguiçosa, embora fosse a preguiça de uma criança talentosa. Seu sotaque francês era excelente, e ela encenava cenas de comédia com um talento impressionante. Ela era tão vivaz, e sua alegria tão contagiante, que vários membros do castelo começaram a chamá-la de “Sunshine” [raio de sol, em inglês]. (Tradução nossa)5

As Grã-Duquesas e o czarevitch tinham aulas de história, aritmética, geografia, ciências, literatura, religião, dança, pintura e música, mas as meninas sabiam, assim como sua mãe, que o importante era saber idiomas. Afinal, como explicam King e Wilson em seu A Ressureição dos Romanov, “o que se esperava dela[s] além de que se casasse[m] com algum príncipe apropriado e tivesse[m] filhos?” Com o pai elas falavam russo; com a mãe, inglês, pois Alexandra jamais aprendeu a língua do marido com fluência. Além disso, recebiam aulas de francês e alemão. 1.2 Guerra e Revolução Enquanto os Romanov viviam esta rotina que mais parecia pequeno-burguesa do que propriamente monárquica, a Rússia passava por momentos conturbados. Mal se recuperara do massacre da Guerra Russo-Japonesa quando o Arquiduque Francisco Ferdinando, da Áustria, foi assassinado em Sarajevo. Exércitos de

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Anastasia… was very roguish and almost a wag. She had a strong sense of humour and the darts of her wit often found sensitive spots. She was rather an enfant terrible, although this fault tended to correct itself with age. She was extremely idle, though with the idleness of a gifted child. Her French accent was excellent, and she acted scenes from comedy with remarkable talent. She was so lively, and her gaiety so infectious, that several members of the suite had fallen into the way of calling her 'Sunshine’. (GILLIARD, 1921)

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mobilizaram, embaixadores apresentaram ultimatos. A Rússia veio em defesa de seus protegidos sérvios e, no dia 29 de junho de 1914, entrou oficialmente na guerra contra a Alemanha. Diante das notícias, tanto Alexandra quanto as Grã-Duquesas choraram: a czaritsa, afinal, nascera Alix de Hesse-Darmstad, um ducado do Império Alemão. Apesar de algumas ofensivas iniciais bem sucedidas, a Primeira Guerra Mundial foi um fardo extremamente pesado para a Rússia, principalmente devido ao seu escasso sistema ferroviário, que demandava muito tempo para levar novos soldados ao front. Enquanto isso, os transportes de bens, como alimento e carvão, ficavam cada vez mais difíceis para o resto do território, e revoltas populares começaram novamente a eclodir. Alexandra, Olga e Tatiana, já maiores de idade, treinaram como enfermeiras da Cruz Vermelha e trabalhavam diariamente em um hospital. Já Anastásia e Maria, que tinham respectivamente treze e quinze anos quando a guerra começou, se limitavam a servir de acompanhantes para os feridos do hospital, lendo para eles, conversando, escrevendo cartas ou jogando. Os historiadores King e Wilson também ressaltam que: “Anastásia mantinha seus bolsos cheios de doces: bombons redondos recheados de crème brûléé, que distribuía livremente aos pacientes mas também, rememorou um deles, ‘os comia ela mesma o tempo todo’” (KING, G e WILSON, P.) As perdas foram catastróficas. Morreram entre 900 mil e 2 milhões de russos na guerra, e 5 milhões foram feridos. Os débitos somaram mais de $8 bilhões de rublos e a inflação subiu verticalmente. E, no meio deste período conturbado, uma morte em especial atraiu a atenção: a de Rasputin, assassinado pelo príncipe Felix Yassupov. O príncipe posteriormente forneceu em sua autobiografia Esplendor Perdido uma versão bastante melodramática deste dia. Em 16 de dezembro de 1916, Yassupov e o Grão-Duque Dimitri Pavlovitch organizaram uma conspiração. Levaram o monge a uma festa fictícia na casa do príncipe e misturaram no seu vinho e no bolo “veneno o bastante para matar cinco homens”. O monge bebeu “sem alteração alguma”. O príncipe, então, atirou na vítima, que caiu. Quando Yassupov abaixou para ver se ainda respirava, Rasputin abriu os olhos e tentou estrangulá-lo: ele disparou, então, outros três tiros. Vendo que ainda estava vivo, os príncipes amarraram-no e o atiraram no Rio Neva semicongelado. Quando o corpo foi descoberto, dois dias 19


depois, a autópsia revelou que Grigori Rasputin tinha morrido não afogado, mas de frio. Esta versão é, no mínimo, bastante exagerada, mas foi a que entrou para a história. Radzinski desmistifica vários pontos em seu O Arquivo Rasputin: em primeiro lugar, o monge provavelmente não morreu envenenado porque não tomou veneno algum. Segundo sua filha Maria, o mujique não comia doces (de forma que não chegou a ingerir o bolo envenenado) e, no caso do vinho, o testemunho do GrãoDuque Nicolau Mikhailovitch, um dos nobres assassinos, explica: “O fato de que o cianureto não funcionou eu posso explicar facilmente... já usei esse recurso várias vezes para envenenar insetos. A solução estava fraca demais.” A explicação faz sentido: nenhum dos envolvidos na conspiração era assassino profissional, e “em sua ansiedade e pressa fizeram a solução fraca demais para diluir em vinho”. Por que, afinal, esta versão dramática da morte? É simples: “Felix inventou a história [do veneno] posteriormente para fazer parte de sua fábula sobre um demônio que pessoas comuns tinham destruído heroicamente”. O objetivo, claramente, é provar que estava lidando com um monstro – o que automaticamente coloca essa nobreza assassina em um papel de heroísmo. Pode até ser verdade que, se não houvesse Rasputin, não haveria Lênin, mas também é difícil imaginar a Revolução Russa sem a Primeira Guerra Mundial. A fome começou a se alastrar e a inflação, a subir. Segundo Massie, um ovo custava quatro vezes o preço de 1913; farinha, cinco. Outra das consequências da Guerra foi o forte sentimento anti-germânico que gerou nos russos: Beethoven e Brahms foram proibidos na Orquestra Sinfônica, lojas alemãs foram incendiadas e, claro, a czaritsa era intensamente odiada. Na época, somaram-se às acusações de que teria sido amante de Rasputin diversas outras: desde que era espiã dos alemães até de estar sabotando a guerra internamente. Em março de 1917, Petrogrado (ex-São Petersburgo) tinha chegado ao seu limite. A Revolução foi tão imprevisível que Lênin ainda estava em Zurique quando ela começou. No dia 8, uma revolta começou em uma das enormes filas para comprar pão que tinham se tornado constantes e os cidadãos invadiram padarias. A multidão só se tornava mais numerosa à medida que os dias passavam: no dia 9 mais estabelecimentos foram saqueados, no dia 10 a maior parte dos trabalhadores entrou 20


em greve. No dia 11, o Gabinete Imperial teve sua última reunião e a Duma assumiu a frente do governo. O primeiro ministro foi preso e Kerensky se tornou uma figura de liderança. As tropas citadinas já não lutavam contra a multidão, mas juntavam-se a ela. O czar foi retirado, às pressas, do front de batalha e embarcou em um trem rumo à capital, informado de que havia distúrbios nas ruas da cidade. Nicolau II abdicou no dia 15, ainda no trem. Neste seu último documento oficial como czar, Nicolau passou o trono ao seu irmão mais novo: Nestes dias decisivos para a Rússia, pensamos ser um dever da consciência facilitar a união e consolidação do povo com todas as forças nacionais (...) e, em acordo com a Duma Imperial, pensamos ser melhor abdicar do trono do Estado Russo, e deixar o poder supremo. Como não queremos ser separados de nosso querido filho, entregamos nossa herança ao nosso irmão, o Grão-Duque Miguel Alexandrovitch, e lhe damos nossa bênção para ascender ao trono (...) Que Deus abençoe a Rússia! Nicolau (Tradução nossa)6

A Duma e os antigos ministros se reuniram com Miguel, então com 39 anos e casado com uma plebeia. Kerensky lhe informou que, caso aceitasse o trono, “não poderia responder sua vida”. O que era provavelmente verdade, dada a onda antimonárquica que tomava Petrogrado. Miguel, também, abdicou, e assim terminou a dinastia de mais de 300 anos dos Romanov. Edvard Radzinski faz uma breve análise deste momento:

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In these decisive days in the life of Russia, We thought it Our duty of conscience to facilitate for Our people the closest union possible and a consolidation of all national forces (…) In agreement with the Imperial Duma We have thought it well to renounce the Throne of the Russian Empire and to lay down the supreme power. As We do not wish to part from Our beloved son, We transmit the succession to Our brother, the Grand Duke Michael Alexandrovich, and give Him Our blessing to mount the Throne of the Russian Empire. (…) May the Lord God help Russia! Nicholas (Citado em MASSIE, 1967, p. 415)

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O misticismo da história: o monastério de onde retiraram o primeiro Romanov para governar a Rússia foi o de Ipatiev; a casa onde o último governante Romanov, Nicolau II, perdeu a vida, era a Casa de Ipatiev, assim chamada por causa do proprietário do prédio, o engenheiro N. N. Ipatiev. Um Miguel foi o primeiro czar da dinastia Romanov; um Miguel foi também o último, em favor de quem Nicolau II tentou inutilmente abdicar. (RADZINSKI,1992, p. 19.)

1.3 Execução Após a Revolução, em março de 1917, Nicolau, Alexandra e as crianças foram aprisionados no palácio de Tsarskoe Selo – o que, no caso deles, significava “prisão domiciliar”. Todo o pessoal do castelo foi dispensado, sobrando apenas os que se dispuseram voluntariamente a ficar: entre eles o professor de francês Pierre Gilliard e o marinheiro Nagorny, encarregado de proteger e carregar Alexei, que já era incapaz de andar. Agora, a família era cercada de guardas “bastante rudes” e o antigo imperador de mais de 17 milhões de km² agora podia passear por não mais que alguns metros de jardim – mas fora isso, segundo Gilliard, “a rotina foi majoritariamente mantida”. Em 14 de agosto do mesmo ano, entretanto, os “cidadãos Romanov” foram exilados em Tobolsk, na Sibéria, dentro dos limites da abandonada Casa do Governador. Em abril de 1918, foram novamente removidos, desta vez para uma área ainda mais oriental da Sibéria: a Casa de Ipatiev em Ecaterimburgo. Lá, finalmente, tornaram-se prisioneiros de verdade. Do grupo original, sobravam apenas doze pessoas: Nicolau, Alexandra, seus cinco filhos, a dama de companhia Demidova, o médico Eugênio Botkin, o mordomo Trup, o cozinheiro Karitonov e o Nargony, o marinheiro. O jornalista Robert Wilton, correspondente do The Times na Rússia, foi o primeiro a publicar sobre este período. Sua reportagem, de 1920, ajudou a construir o mito de horror que se tornou a estadia em Ecaterimburgo: “Antes de suas mortes, os prisioneiros foram alvo de maus-tratos, chegando a torturas horríveis, mentais senão físicas”. A realidade era bem menos dramática, mas bastante tensa. Segundo King e 22


Wilson: “Duas gerações passariam antes que essas histórias de terror fossem reveladas como fabricações atrapalhadas e imprecisas, repetidas e recicladas por diversas vezes para aumentar a aura dos Romanov como mártires”. A família não tinha privacidade alguma. Os guardas entravam e saíam dos quartos na hora que queriam; toda a correspondência era lida e a família era obrigada a falar o tempo todo em russo para que não pudessem conspirar. Havia desenhos obscenos da czaritsa com Rasputin no banheiro. Nagorny foi preso após atritos com os guardas. Na madrugada do dia 16 para 17 de julho, quase exatamente um mês após do aniversário de 17 anos da jovem Anastásia, as onze pessoas restantes no grupo dos prisioneiros foram acordadas às pressas pelos bolcheviques. Yurovski, líder da guarda, explicou que o Exército Branco se aproximava e que precisavam tirá-los dali. Os Romanov e seus quatro criados se vestiram e desceram até o porão. Havia duas cadeiras: Alexandra sentou-se em uma; Alexei, na outra, pois já não conseguia ficar de pé. Depois entrou a guarda. Yurovski declarou rapidamente: “seus parentes tentaram salvá-los. Eles falharam, e agora devo matá-los”. Nas palavras secas, de soldado, do próprio comandante Yurovski: Ele perguntou “O quê?” e voltou-se para Alexei. Naquele momento eu atirei e o matei instantaneamente. Ele não teve tempo de se virar para nós para conseguir uma resposta.

(…)

Começou

um

tiroteio

caótico,

desorganizado. (...) As balas começaram a ricochetar porque as paredes eram de tijolo. O tiroteio se intensificou quando começaram os gritos das vítimas. (...) Quando parou, as filhas, Alexandra Feodorovna e, aparentemente, Demidova e Alexei também, estavam vivos. Acho que caíram de medo, ou talvez intencionalmente. Então procedemos para finalizar a execução (Previamente, eu tinha sugerido que mirássemos no coração para evitar muito sangue). Alexei permaneceu sentado, paralisado. Eu o matei. Eles atiraram nas filhas, mas não as mataram. Então Yermakov partiu para usar o cabo da baioneta, mas

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isso também não funcionou. Finalmente elas morreram com tiros na cabeça. (Tradução nossa)7

Depois, os corpos foram embalados em lençóis e levados para uma caminhonete. Todo o procedimento, disse Yurovski, “levou vinte minutos”. Os corpos foram levados para uma mina a 20 quilômetros de distância de Ecaterimburgo e lá foram despidos, cortados em pedaços, desfigurados com ácido e queimados. Foi então que os executores compreenderam porque fora tão difícil matar as GrãDuquesas. “As meninas vestiam espartilhos feitos quase inteiramente de diamantes e [outras] pedras preciosas”, lembra Yurovski. As joias tinham sido costuradas lá nos meses de encarceramento para o caso de conseguirem fugir. Este “Relatório Yurovski”, hoje tão citado, só foi publicado nos anos 1990. Até então, a execução dos Romanov era envolta numa aura de mistério. O governo soviético declarou oficialmente que executara o czar, mas mentiu a respeito do destino de sua mulher e filho e, sobre as meninas, nem uma palavra. O anúncio oficial foi reproduzido em periódicos pelo mundo todo. Abaixo, uma notícia do New York Times, jornal mais importante da época, em 20 de julho de 1918: Recentemente,

Ecaterimburgo,

capital

dos

Urais

Vermelhos, foi seriamente ameaçada pela aproximação Tchecoslovaca e uma conspiração anti-revolucionária foi descoberta (...) À vista disso, o Presidente do Conselho Regional dos Urais decidiu executar o ex-czar, e a decisão foi posta em prática em 16 de julho. A mulher e filho de Nicolau Romanov foram enviados para um local seguro. (Tradução nossa)8

7

He asked "What?" and turned toward Alexei. At that moment I shot him and killed him outright. He did not get time to face us to get an answer. At that moment disorganized, not orderly firing began. (…) Bullets began to ricochet because the wall was brick. Moreover, the firing intensified when the victims shouts arose. (…)When the firing stopped, it turned out that the daughters, Alexandra Feodrovna and, it seems, Demidova and Alexei too, were alive. I think they had fallen from fear or maybe intentionally, and so they were alive. Then we proceeded to finish the shooting. (Previously I had suggested shooting at the heart to avoid a lot of blood). Alexei remained sitting petrified. I killed him. They shot the daughters but did not kill them. Then Yermakov resorted to a bayonet, but that did not work either. Finally they killed them by shooting them in the head. (Extrato do Relatório Yurovski) 8 Recently Yekaterinburg, the capital of the Red Urals, was seriously threatened by the approach of Czechoslovak hands and a counter-revolutionary conspiracy was discovered (…). In view of this fact, the President of the Ural Regional Council decided to shoot the ex-Czar, and the decision was carried out on July 16.

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O Exército Branco chegou a Ecaterimburgo oito dias após o massacre e, embora fosse óbvio que alguém morrera ali (havia, afinal, marcas de sangue e balas no porão), era impossível determinar o número exato de vítimas. Em janeiro de 1919, o investigador Nicolau Sokolov foi contratado para descobrir o que fora feito da família real. Ele localizou e catalogou centenas de pequenos vestígios: uma cruz de esmeralda que a czaritsa sempre usava, a fivela do cinto do czar, seis sets de espartilhos, os óculos do Dr. Botkin, partes de ossos com marcas de machado, balas parcialmente derretidas por ácido e mesmo um dedo decepado – “longo e manicurado como o da czaritsa”. Sokolov deduziu o que havia acontecido com a família e estabeleceu: não havia corpos. Nada tinha sobrevivido às balas, ao machado, ao ácido e ao fogo. Durante a maior parte do século XX, foi nisso que o mundo acreditou. 1.4 A impostora A confusão que se instalou após a morte da família, a ausência de corpos, as diversas versões ocasionalmente fornecidas pelo governo soviético – tudo contribuiu para que os impostores fossem quase inevitáveis. Foram dezenas, alguns burlescos, ridículos, outros um tanto trágicos. Em 1919, um vilarejo nos Urais deu abrigo às “duas filhas mais novas do czar” que viveram como freiras “em uma pobreza terrível, com medo todos os dias”. Elas foram enterradas como “Maria Nikolaevna” e “Anastásia Nikolaevna”. Uma mulher chamada Nadezha Vasilyeva apareceu na Sibéria, tentando entrar ilegalmente na China, em 1920. Ela foi presa e escreveu diversas cartas ao rei Jorge V da Inglaterra, que ela chamava de “Tio Jorge”, em nome de Anastásia. Ela morreu no asilo de Kazan em 1971. Na Itália, Marga Boodts disse ser a Grã-Duquesa Olga. Outro italiano, Alexis d’Anjou, disse ser filho de Maria. Nos Estados Unidos, a “Anastásia” de Eugenia Smith atraiu alguma atenção da mídia, chegando mesmo a publicar uma “autobiografia”: Eu, Anastásia. Um polonês chamado Michael Goloniewski trabalhou na CIA alguns anos e alegou ser o czarevitch

The wife and the son of Nicholas Romanoff have been sent to a place of security. (The New York Times, 20/07/1918)

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Alexei – o que parecia extremamente improvável uma vez que que Goloniewski não era hemofílico. Ainda assim, estes dois foram capa da revista americana Life em 1963. Até mesmo o Brasil teve seus impostores. Em 1963, a revista O Cruzeiro noticiou que a princesa Anastásia tinha fugido para o Brasil e estava vivendo em Poços de Caldas, sustentada pela caridade de um advogado chamado Dr. Jair de Moura Pinto. A historiadora Laura de Mello e Souza, em entrevista concedida especialmente a esta pesquisa, relembra do caso como lhe foi contado pelo seu pai, o Professor Antonio Candido, que conheceu a suposta “Anastásia”: era uma mulher com olhos grandes (“redondos de coruja”) que andava sempre com um capote verde, fizesse inverno ou verão. A gola do capote, assim como o seu chapéu, eram de astracã, e ela tinha um cabelo comprido e pintado de vermelho. Nem todos os impostores foram assim tão pitorescos. Uma das requerentes, na verdade, conseguiu criar um dos mistérios mais duradouros do século XX. Ao longo dos anos, esta mulher foi chamada de muitos nomes: Fräulein Unbekannt, Sra. Alexander Tchaikowski, Anna Anderson, Franziska Schanzkowska, Anastásia Manahan. Para todos os efeitos, sua história começa no dia 17 de fevereiro de 1920, em Berlin, quando tentou cometer suicídio atirando-se no canal Landwehr. Ela foi levada naquela noite para... o Hospital Elizabeth, em Lützowstrasse (...). [Ela não tinha] nenhuma bolsa nem documentos, nenhuma identificação de nenhum tipo. As enfermeiras procuraram por iniciais, marcas de lavanderia, etiquetas, qualquer coisa que pudesse ajudar a polícia... Não havia nada a fazer. Por ora, a deixaram dormir. No dia seguinte, os médicos e a polícia a encontraram mais forte. (...) Não, ela declarou, ela não diria quem era, ou qual era sua família, de onde vinha, ou com o que trabalhava. (Tradução nossa)9

9

She was taken that night to... the Elizabeth Hospital, in Lützowstrasse (…). But [she had] no purse and no papers, no identification of any kind. The nurses looked for initials, laundry marks, labels, anything that could help the police… There was nothing to be done. For now they let her sleep. The next morning the doctors and the police found her stronger. (…) No, she declared, she would not tell her who she was, where she had come from, or what she did for a living. (KURTH, 1983, p. 04)

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Sua mudez a levou a ser internada no asilo Dalldorf, com “depressão”. Cartazes foram espalhados pela cidade, mas ninguém se manifestou para buscá-la. Era a Berlim pós-Guerra, e havia mais desaparecidos do que a polícia podia se dedicar a encontrar. Para começar, a mulher tinha um “sotaque completamente estrangeiro” e provavelmente sequer era alemã. Foi internada sob o nome de Fräulein Unbekannt – Senhorita Desconhecida. Ela ficou em Dalldorf por mais de dois anos. Existe alguma divergência sobre quando teria se “autoproclamado” Anastásia. Segundo King e Wilson: “Depois, nenhuma das quatro enfermeiras de Dalldorf conseguiu se lembrar exatamente quando Fräulein Unbekannt começou a dar pistas sobre sua suposta identidade ou o que fora dito.” Peter Kurth, no que provavelmente é o livro mais completo sobre o caso Anna Anderson, cita diversos trechos dos relatórios das enfermeiras nestes dois anos em que a paciente ficou internada: “Pela sua postura e maneira de falar temos que concluir que ela vem de um bom círculo social... Em todos os seus trejeitos ela dá a impressão de ser uma dama aristocrática”, relatou uma; “[A paciente] tem medo de ser reconhecida e enviada de volta para a Rússia Soviética” e “medo de ser tocada”. E por fim, que “enquanto dorme, ela fala russo com boa pronúncia, principalmente coisas irrelevantes”. Aparentemente, o nome Anastásia foi mencionado pela primeira vez quando a paciente viu a edição de outubro da revista Berliner Illustrirte Zeitung de 1921 – que tinha na capa uma das últimas fotos conhecidas de Maria, Tatiana e Anastásia e a manchete “Uma das filhas do czar ainda está viva?”. Dentro da revista, a matéria trazia uma descrição bastante imprecisa do encarceramento em Ecaterimburgo e “até hoje, não foi possível estabelecer definitivamente se, durante o massacre, uma das GrãDuquesas não foi apenas muito ferida, e continuou viva.” (Berliner Illustrirte Zeitung, citado em KING, G e WILSON, P.) Segundo Kurth, a enfermeira Bertha Waltz teve a ideia de levar a revista para a paciente, que, quando a viu, ficou “muito triste, pálida, e disse ‘eu conheço todas essas pessoas’.” “No dia seguinte ela ficou completamente prostrada e deprimida.” Outra enfermeira, Thea Malinovski, declarou em um artigo de jornal publicado em 1927 que a paciente, nesta época, trouxe a revista até ela, de noite, e teve uma reação curiosa: 27


Na capa estava uma fotografia da família imperial russa. Ela pôs a revista na minha frente e perguntou se alguma coisa não me chamava a atenção. (...) Eu fingi não ver nada em particular, e em seguida ela apontou para a jovem e perguntou se eu ainda não notava nada. Eu disse que não. Ela perguntou ‘Você não vê nenhuma semelhança entre nós duas?’ (...) Eu perguntei se era ela. Ela se virou, não querendo dizer mais nada. Eu disse que ela não devia ter ido tão longe se não queria me contar o resto. Foi aí, no outono de 1921, que ela declarou ser Sua Alteza Imperial a Grã-Duquesa Anastásia Nikolaevna. (Tradução nossa)10

A paciente pediu discrição das enfermeiras, e talvez o segredo jamais tivesse saído de Dalldorf se uma outra paciente, Marie Clara Peuthert, não tivesse ficado tão animada com a história. Ao deixar o asilo em janeiro do ano seguinte, Peuthert começou a contatar imigrantes russos para contar sua descoberta. Fräulein Unbekannt passou a receber visitantes que “tentavam fazer perguntas, encaravam, e a encheram de doces, flores e livros”. Dois desses visitantes foram o Barão e a Baronesa Von Kleist que, apesar de jamais terem conhecido Anastásia, estavam convencidos da identidade desta paciente e a convidaram para morar no seu enorme apartamento em Berlim: foi lá que ela contou a história de sua milagrosa fuga. “Histórias de sua fuga”, na verdade, seria uma expressão mais precisa, pois o conto de Fräulein Unbekannt foi alterado diversas vezes. Todas elas, entretanto, têm o começo em comum: após o tiroteio em Ecaterimburgo, um soldado chamado Alexander Tchaikowski tinha percebido que Anastásia não estava morta, apenas desmaiada, e conseguiu resgatá-la da casa. Os Tchaikowski (“sua mãe, Maria; sua irmã, Veronica; e seu irmão, Sérgio”) a levaram para a Romênia em uma carroça e

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On the cover was a photograph of the Russian imperial Family. She put the magazine down in front of me and asked if I was not struck by something in the picture. (…) I pretended that I couldn’t see anything in particular, whereupon she pointed to the young girl and asked if I still didn’t notice anything. I said no. She asked, “Then you don’t see any resemblance between the two of us?” (…)I asked her if it was she. She turned away, not wanting to let out any more. I told her that she shouldn’t have come this far unless she was prepared to tell me the rest. It was then, in the autumn of 1921, that Fräulain Unbekannt declared outright that she was Her Imperial Highness the Grand Duchess Anastasia Nikolaevna. (Depoimento de Thea Malinowski citado em KURTH, 1963, p. 12)

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cuidaram dela, e lá ela ficou ilegalmente até 1920. A história continha diversos detalhes vagos: aparentemente, durante as semanas de transporte que ela passou inconsciente quase o tempo inteiro, este Alexander a teria estuprado, e ela deu à luz um filho alguns meses depois. O Barão Von Kleist, um dos primeiros a ouvir esta história, afirmou que Fräulein Unbekannt teria dito que o bebê – que ela chamara de Alexei – teria nascido em 5 de dezembro. Isso causava um certo problema, pois a criança, mesmo prematura, teria que ter sido gerada antes do massacre em Ecaterimburgo para que a data procedesse. Posteriormente, a própria requerente negou esse dois detalhes, dizendo que “a criança foi batizada com o nome do pai, Alexander” e que ela “Não tinha ideia de quando tinha nascido”. De qualquer forma, o bebê fora levado a um orfanato com poucos dias de vida e ela nunca mais o viu. (KURTH, P.) Depois disso, ela e Alexander Tchaikowski teriam se casado em uma igreja católica e, no fim de 1919, ele morrera com um tiro em uma briga de rua. Foi aí que ela, agora sra. Tchaikowski, decidiu ir até Berlim, pedir ajuda de sua tia, a princesa Irene da Prússia. Cruzou a fronteira a pé, para evitar chamar a atenção. Mas, quando chegou ao palácio, concluiu, em desespero, que nunca seria reconhecida e atirou-se no canal. Não foi encontrado nenhum registro de nenhuma Tchaikowski entre os guardas de Ipatiev, nem nenhum registro de uma família com este nome vivendo em Bucareste – incluindo nenhum nascimento, nenhum casamento, nenhuma morte. Mas eram tempos de guerra, e imigrantes ilegais não eram incomuns. Segundo Massie: No fundo, “a fuga” era um dos capítulos menos verificáveis da lenda de Anastásia; tinha que ser aceita pela fé – como foi pelos seus apoiadores – ou rejeitada como muito improvável – como foi pelos seus opositores. No fim, deixou de ser um problema. Nenhum dos dois lados estava interessado em como ela escapara. Eles queriam saber quem ela era. (Tradução nossa)11

11

All in all, “the escape” was perhaps the least verifiable of the chapters of the Anastasia legend.; it had to be accepted on faith – as it was by her supports – or rejected as wildly improbable – as it was by her opponents. In the end, it was no longer an issue. Those on either side of the argument were not interested in how she got away from the cellar. They wanted to know who she was. (MASSIE, 1995, p. 165)

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As testemunhas mais importantes do caso seriam, é claro, os Romanov. A maior parte deles se recusou a vê-la, mas a irmã do czar Nicolau, a Grã-Duquesa Olga, não quis ignorar a requerente. Quando recebeu as notícias, ela escreveu para o antigo tutor das meninas, Pierre Gilliard: “Por favor, vá para Berlim ver a pobre moça. Imagine que ela seja a pequenina... Seria uma desgraça se ela estivesse vivendo sozinha em sua tristeza.” E Gilliard foi, juntamente com sua esposa Alexandra – ou Shura – que tinha sido babá das Grã-Duquesas. Estas visitas se tornariam algumas das partes mais famosas da lenda de Anastásia. Quando os Gilliard chegaram a Berlim, Fräulein Unbekannt estava com uma infecção tubercular grave que a fazia arder em febre a ponto de ter alucinações. A primeira coisa que Shura pediu ao médico foi para ver os pés da paciente. Anastásia tinha sofrido de uma má-formação chamada hallux valgus: joanete intrínseca. O lençol foi retirado. “Os pés parecem os da Grã-Duquesa. Com ela era a mesma coisa: o pé direito era pior do que o esquerdo”, declarou Shura. Na segunda visita, três meses depois, a paciente já estava melhor e podia conversar. Gilliard pediu que ela contasse tudo que lembrava do seu passado. Ela respondeu que “Não sei conversar. Você acha que se alguém tentasse te matar, como tentaram comigo, você lembraria de muita coisa de antes?” Gilliard partiu e chamou a Grã-Duquesa Olga. A jornalista alemã Harriet Rathlef-Keilmann, “sempre muito ansiosa para publicar evidência favorável à requerente” (KING, G e WILSON, P.), estava presente e deixou um relato detalhado deste encontro. A primeira coisa que a requerente perguntou a Olga foi “Como está a vovó? Como está o coração dela?” Vovó estava bem, foi o que Olga respondeu, e as duas começaram a conversar. Shura apareceu pouco depois e, segundo o relato de Rathlef-Keilmann: Ela não conseguia tirar os olhos [de Shura]. Então ela pegou uma garrafa de água de colônia e pôs um pouco sobre a mão de Shura. Ela pediu que molhasse sua testa... [Shura] riu com lágrimas nos olhos. Era assim que costumava fazer a Grã-Duquesa Anastásia Nikolaevna, que era louca por perfume. (Tradução nossa)12

12

She would not take her eyes off her. Then she grasped her bottle of eau de cologne and poured some of it into Shura’s hand. She asked her to moisten her forehead… [Shura] laughed with tears in her eyes.

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A Grã-Duquesa Olga, depois, teria dito para a jornalista que “nossa pequenina e Shura parecem muito felizes de terem se reencontrado.” O próprio Gilliard, RathlefKeilmann escreveu, teria dito “Meu Deus, que horror! O que aconteceu com a Grãduquesa Anastásia? Ela está destruída, completamente destruída!” No dia seguinte, entretanto, quando o trio voltou para visitar e Gilliard tentou fazer algumas perguntas sobre a Sibéria, a paciente se recusou a responder, alegando uma dor de cabeça. No dia seguinte, Olga e os Gilliard tiveram que partir. Por dois meses, foram trocadas cartas amistosas, incluindo quatro da própria Olga, que chegou a mandar uma echarpe de seda de presente. Depois, em janeiro de 1926, um artigo foi publicado no National Tidende, em Copenhague: Podemos declarar, com o apoio de fontes de autoridade, que não há marcas de identificação entre a Grã-Duquesa Anastásia, filha do czar Nicolau II, e a dama de Berlim conhecida como Tchaikowski, que diz ser a Grã-Duquesa (...). Para esta negação categórica, e para resolver a questão de uma vez por todas, podemos revelar que a Grã-Duquesa Olga foi para Berlim para ver Frau Tchaikowski, mas que nem ela nem ninguém que conheceu a filha mais nova do czar Nicolau foi capaz de identificar a menor semelhança entre a Grã-Duquesa Anastásia a pessoa que diz se chamar Frau Tchaikowski. (Tradução nossa)13

Então, afinal, o que aconteceu naquele hospital? Como aquela aceitação tão pronta se converteu nessa rejeição categórica? Para Peter Kurth, o primeiro biógrafo de Frau Tchaikowski, era óbvio que Olga e os Gilliard tinham sido persuadidos pelos outros Romanov – especialmente a Imperatriz-viúva, Marie – e pelo Grão-Duque de Hesse, irmão de Alexandra. Ele definiu a situação como “uma embaraçosa questão

That was just like Grand Duchess Anastasia Nikolaevna, who was mad about perfume. (citado em KURTH, 1983, p. 110) 13 We are able to state, with support from the most authoritative source, that there are no common identifying marks between Grand Duchess Anastasia, daughter of Tsar Nicholas II, and the lady in Berlin known under the name of Tschaikowsky, who claims to be the Grand Duchess (…). By way of a categorical denial, in order to settle the matter once and for all, we can disclose that Grand Duchess Olga went to Berlin to see Frau Tschaikowsky, but neither she, nor anyone else who knew Tsar Nicholas’ youngest daughter, was able to find the slightest resemblance between Grand Duchess Anastasia and the person who calls herself Frau Tschaikowsky. (citado em KURTH, 1983, p. 114)

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de família” – afinal tratava-se de aceitar como parente uma mulher doente, sem dentes da frente e aparentemente com falhas na memória. Robert Massie, escrevendo com uma distância histórica maior, defendeu que na verdade Olga “não tinha certeza” e cita uma carta que a Grã-Duquesa escreveu para o embaixador Zahle pouco depois de partir: “Não posso descrever como me apeguei a ela [à paciente] – quem quer que ela seja. Meu sentimento é que ela não é quem pensa ser – mas não dá para dizer que não é com certeza – pois ainda há muitos fatos estranhos e inexplicados.” Quem conseguiu explicar esta contradição da forma mais sólida, mais uma vez, foram King e Wilson: O mistério não é sem solução, e esta solução pode ser encontrada

não

respondendo

a

pergunta

“Frau

Tchaikowski era Anastásia?” mas sim “Olga Alexandrovna e os Gilliard chegaram a acreditar que era?” Como mais explicar (...) o desabafo emocional do antigo tutor, “Que horror! O que aconteceu com a Grã-Duquesa Anastásia? Ela está destruída, completamente destruída! Quero fazer tudo que puder para ajudar a Grã-Duquesa”. Isso é mais que sugestivo, é prova. Mas é verdade? Zahle [embaixador holandês em Berlim na época, também presente na visita] leu o manuscrito de Rathlef-Keilmann e disse que a versão dela ‘condiz com minhas memórias e anotações’. Mas ele se contradisse. Segundo o ministro, o que Gilliard disse foi ‘Ah, pobre Grã-Duquesa’, um comentário que pode ter se referido à posição difícil de Olga

Alexandrovna.

E

Rathlef-Keilmann

também

contribuiu para a confusão porque as palavras efusivas que ela atribuiu a Gilliard em seu livro... não constam nas primeiras declarações e cartas a respeito do caso. Na declaração de março de 1926, ela citou Gilliard dizendo ‘é terrível, é terrível. Quero fazer tudo que puder para ajudar a Grã-Duquesa’. Não há menção ao nome Anastásia aqui. Ele só foi adicionado no livro, em 1928.

32


(...) [Sobre as cartas de Olga] Embora a Grã-Duquesa possa ter agido de forma apressada ao despachar cartas e presentes, ela quase certamente o fez, como posteriormente insistiu, mais por compaixão do que por reconhecimento. De fato, em nenhuma das cartas ela se refere à requerente como ‘Anastásia’, nem indica que aceitou qualquer parentesco familiar com ela, nem assina como ‘Tia Olga’. Ao escrever para Frau Tchaikowski em russo, empregava o ‘você’ da maneira formal, se dirigindo a ela não como íntima mas como uma estranha. (Tradução nossa)14

Casos como estes seriam recorrentes ao longo de toda a história de Frau Tchaikowski, durante os 64 anos que viveu depois de ser resgatada do canal. Somente dois Romanov a reconheceram como Anastásia: um foi o Grão-Duque Andrei, primo de Nicolau II, que tinha convivido com a jovem Grã-Duquesa em alguns almoços familiares, e a outra foi a princesa Xênia da Rússia, que vira Anastásia pela última vez em 1913 – dez anos antes. Nenhum dos dois fora íntimo da família. Outra questão que jamais foi totalmente resolvida era a dos idiomas: Frau Tchaikowski não falava russo, embora aparentemente pudesse compreendê-lo. Se ela se recusava a falar – porque russo, para ela, se tornara uma língua de humilhação, como alegavam seu defensores – ou se era incapaz de fazê-lo – como alegavam seus

14

Yet the mystery is not without a solution, and that solution can be found not in answering the question Was the claimant Anastasia? but rather in the more complex Did Olga Alexandrovna and the Gilliards, as the evidence suggests, ever believe that she might be? How else, for example, to explain (…) the former tutor’s startling outburst on his visit “ How horrible! What has happened to Grand Duchess Anastasia? She is a wreck, a complete physical wreck! I want to do everything I can to assist the Grand Duchess”. This is more then suggesting; it is compelling. But is it true? Zahle read Rathlef-Keilmann’s manuscript and said that her vision ”agrees with my memories and notes”. And yet he contradicted himself. According to the minister, what Gilliard had in fact said was “Oh, the poor Grand Duchess”, a remark that may have meant to indicate Olga Alexandrovna’s difficult position. And the Rathlef-Keilmann added to the confusion because the effusive words the attributed to Gilliard in her book… [were] missing from her earliest statements and letters concerning the visit. In a March 1926 statement, she quoted Gilliard as saying “It’s terrible, so terrible. I want to do everything I can to help the Grand Duchess.” There was no mention of the name Anastasia here. That addition seemed to first appear in the pages of RathlefKeilmann’s 1928 book. [About Olga’s letters] While the Grand Duchess may have acted rashly in dispatching letters and gifts, she almost certainly did so, as she insisted, out of compassion rather then recognition. Indeed, in none of the letters did she address the claimant as “Anastasia”, indicate that she accepted any family relationship with her, nor sign herself as “Aunt Olga”. In writing to Frau Tschaikowsky in russian, she employed the forml form of “you”, addressing her not as an intimate but as a stranger. (KING e WILSON, 2011, p. 131-132)

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opositores – estava aberto a debate. Além disso, as famosas acusações de que Anna Anderson sabia de coisas que só a verdadeira Anastásia poderia saber também geram polêmica até hoje. Os casos são inúmeros: talvez o mais famoso deles seja de quando Gleb Botkin (filho do dr. Botkin, médico que morreu junto com os Romanov) foi visitá-la e ela perguntou se ele tinha trazido “Seus animais engraçados”. Tratava-se de uma referência a desenhos de animais que um pequeno Gleb enviava para a família durante o cativeiro na Sibéria, por intermédio de seu pai. A evidência parece forte, mas King e Wilson, mais uma vez, a colocam em xeque em seu A Ressureição dos Romanov: A história não é tão convincente quanto este relato sugere. Ao contrário do que Gleb escreveu em seu livro de 1938 sobre o caso, Frau Tchaikovski nunca perguntou sobre “seus

animais

engraçados”

ou

forneceu

qualquer

evidência de que estava ciente da sua existência. Foi, na verdade, Gleb quem levantou a questão, como ele mesmo confirmou em três ocasiões diversas: primeiro para Rathlef-Keilmann, depois em seu livro de 1931 sobre os Romanov, e finalmente em sua declaração sobre o caso da requerente. Só depois ele mudou sua história. Ele mencionou os desenhos, disse, “para quebrar o gelo” (...) Já foi sugerido que ela simplesmente adivinhou quais desenhos tinham sido feitos na Sibéria, já que ‘ao menos alguns’ tinham datas. (Tradução nossa)15

Em 1927, o caso deu uma nova reviravolta. O periódico alemão Berliner Nachtausgabe foi visitado por uma mulher chamada Doris Windenger, que tinha reconhecido nas reportagens sobre Anastásia uma mulher que costumava alugar um apartamento na pensão de sua mãe. Esta mulher – uma polonesa chamada Franziska

15

Yet the story was not quite as convincing as this account suggests. Contrary to what Gleb wrote in his 1938 book on the case, Frau Tschaikowsky never asked about his “funny animals” or offered any evidence that she was aware of their existence. It was, in fact, Gleb who first raised the issue, as he confirmed on three separate ocasions: first to Rathlef-Keilmann, then in his 1931 book on the Romanovs, and finally in his affidavit on the claimant’s case.; only later did he change his story. He had mentioned the drawings, he said, “to break the ice” (…) It has been suggested that she simply guessed which pictures had been done in Siberia, as “at least some” bore dates at the bottom. (KING e WILSON, 2011, p. 175)

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Schanzkowska – tinha desaparecido no começo de 1920. Em 1922, retornara, muito nervosa, e explicara que estava vivendo com alguns imigrantes russos “que aparentemente a tinham confundido com alguém”. Franziska tinha ficado três dias e, naquele meio tempo, as duas mulheres trocaram as roupas: Doris ainda tinha o vestido cor de rosa, o casaco de pele de camelo e a roupa de baixo com as iniciais AR bordadas. Para verificar a história, o jornal tinha contratado um detetive que levou estas roupas à casa do Barão e Baronesa Von Kleist, com quem Anna Anderson tinha morado em 1922. A Baronesa as reconheceu: “Eu mesma comprei essa pele de camelo. E essa é a roupa de baixo, eu mesma bordei as iniciais.” Doris foi levada para confrontar a requerente algumas semanas depois e o mesmo jornal noticiou que “a testemunha mal pôde desejar ‘Bom dia’ antes que Franziska Schanzkowska levantasse [do divã onde estivera deitada] e gritasse em uma voz carregada de sotaque ‘Tirem isso daqui!’. A súbita agitação, a ira em sua voz, o horror em seus olhos, não deixam dúvidas: ela reconheceu a testemunha Wingender” (citado em MASSIE, 1995, p. 180) O irmão de Franziska Schanzkowska, Felix, foi trazido da Polônia para identificar a requerente. Ao vê-la, disse “Essa é minha irmã Franziska”. Frau Tchaikowski foi até ele e conversaram, em particular, em voz baixa. Depois, quando entregaram a Felix uma declaração formal identificando a requerente como sua irmã, ele se recusou a assinar, dizendo “Não, ela não é minha irmã”. Na opinião de King e Wilson, o que aconteceu aqui foi claro: ele não quis atrapalhar a “carreira” da irmã como Anastásia. Apesar

de

todos

estes

indícios,

o

“caso

Schanzkowska”

foi

surpreendentemente pouco divulgado. Nesta época, Anderson morava no castelo de Seeon, como hóspede do duque e duquesa Leuchtenberg. Ao longo dos anos, ela se mudou bastante, fosse entre as casas de seus apoiadores mais ricos ou em outros lugares financiados por eles, como a Clínica Stillachhaus, nos Alpes Bávaros, uma casinha no vilarejo Unterlengenhardt e, por fim, a América, onde se casou com o milionário Jack Manahan. Foi na cidade de Charlottesville, na Virgínia, que ela morreu, em 1984. A causa 35


foi pneumonia. Em sua morte, lhe foi concedida a identidade que ela requisitara por 63 anos: o certificado registra seu nome como “Anastasia Nikolaevna Manahan”, seu pai como “Czar Nicolau”, mãe como “Alix de Hesse-Darmstad” e ocupação como “realeza”. Ela foi cremada e as cinzas, enterradas no castelo de Seeon, como ela pediu. No túmulo há uma cruz ortodoxa e a inscrição “Nosso coração é inquieto até que repouse no Senhor”. 1.5 Ficção O primeiro filme baseado na história da suposta ressureição de Anastásia saiu em 1928: um filme mudo americano chamado Clothes Make a Woman (As Roupas Fazem a Mulher). No mesmo ano, estreou a produção alemã Anastasia: Die Falsche Zarentochter (Anastásia: A Falsa Filha do Czar). Saíram mais dois filmes em 1930: Secrets of the French Police (Segredos da Polícia Francesa) e o alemão Kampf und Anastasia (Luta e Anastásia). Em 1954 estreou a peça Anastasia, levada para a Broadway por Sir Lawrence Olivier. A produção alemã Anastasia: Die Letze Zarentochter (Anastásia: A Última Filha do Czar) rendeu à atriz Lili Palmer o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Berlim em 1957. Em 1956, estreou o famoso Anastásia da Fox, uma produção de mais de U$3 milhões. É a história de uma pobre moça amnésica que é resgatada de uma tentativa de suicídio por um general russo. Este homem, o fictício príncipe Sergei Bounine, decide treiná-la para se passar pela Grã-Duquesa Anastásia e obter uma recompensa pelo resgate. Enquanto aprende mais sobre a vida da realeza, Anna começa a ter recordações do seu passado. Quando finalmente é confrontada com a avó da GrãDuquesa, a Imperatriz-Viúva Marie, Anna se lembra de uma tempestade no iate imperial, e avó e neta se abraçam em uma cena emocionante. A ficção, somada às diversas reportagens em jornais ao redor do mundo (principalmente as da pouco imparcial Rathlef-Keilmann), consolidou o mito. As provas começaram a deixar de importar para o público: fosse provado ou não, Anna Anderson tinha se tornado Anastásia. Mas, sem saber, Anna Anderson deixara para trás evidência de sua verdadeira identidade. Quase dez anos após sua morte, ela seria definitivamente desmascarada. 36


1.6 Os Ossos Em 1979, dois cientistas russos, Ryabov e Avdonin, visitaram o filho mais velho de Yakov Yurovski e conseguiram a primeira cópia do que hoje é o famoso ‘Relatório Yurovski’. Ele continha explicações detalhadas sobre onde estavam os ossos dos Romanov. A tumba foi encontrada mas, com medo das consequências desta descoberta, mantiveram segredo por mais de dez anos. Só em 1989 as informações vieram a público e, em 1991, Boris Yeltsin autorizou a exumação. Mas havia um problema: a tumba encontrada só continha nove esqueletos, quando deveria conter onze. Havia dois corpos faltando. O DNA confirmou que aqueles eram os quatro criados e cinco dos sete Romanov. Massie faz uma análise bastante completa dos processos de identificação em Os Romanov – O Capítulo Final. Duas equipes distintas trabalharam na identificação dos ossos, uma russa – conduzida pelo dr. Abramov – e uma americana – conduzida pelo dr. Maples. Os dois concordaram em uma coisa: não havia o corpo de nenhum garoto adolescente na tumba, e portanto Alexei não estava lá. Mas também faltava uma das meninas. O método de Abramov, por superimposição dos ossos a fotografias, identificou a filha que faltava como Maria; o de Maples, que analisou o desenvolvimento de dentes (principalmente os sisos) e da medula óssea, identificou a filha perdida como Anastásia. A notícia de que o corpo de Anastásia estava faltando “provocou desconforto entre as famílias reais”, nas palavras de Massie, pois, afinal, “e se uma injustiça moralmente terrível e politicamente embaraçosa tivesse sido cometida contra uma prima nobre indefesa?”. E então, localizou-se no hospital Martha Jefferson, onde Anna Anderson tinha morrido, uma parte de tecido de intestino que tinha sido armazenada quatro anos antes de sua morte, quando ela retirara um tumor no ovário. Era mais do que o suficiente para testar. Após uma longa batalha legal sobre quem tinha os direitos sobre o intestino, em 1994 o dr. Peter Gill realizou seus testes e apresentou seus resultados. O método usado foi o de DNA mitocondrial, passado integralmente por linhagem materna. Descendentes maternos diretos, sejam eles separados por uma geração ou por cem, apresentam o mesmo DNA mitocondrial. Assim, comparou-se a 37


amostra de Anna Anderson aos ossos das demais mulheres retiradas da tumba dos Romanov. Havia seis pares de base diferentes, o suficiente para o dr. Gill concluir que “o tecido que vem de Anna Anderson não pode ser associado com um parente materno da Imperatriz... Isso é definitivo.” Além disso, testou-se o tecido com material fornecido por um sobrinho-neto de Franziska Schanzkowska. O resultado foi “cem por cento de encaixe, uma identidade absoluta”. Para King e Wilson: Em um caso repleto de reviravoltas extraordinárias, esta foi a mais extraordinária de todas, esta repentina mudança genética, esta intrusão da ciência moderna no conto de fadas (...) O mundo soube das notícias, e descobriu que alguns poucos milímetros de tecido preservado tinham destruído a mais perene das lendas reais. (Tradução nossa)16

1.7 Franziska Franziska Schanzkowska era uma operária polonesa, nascida no vilarejo de Borowilhas. Ela pertencia a um povo chamado cassubiano, descendente dos eslavos bálticos, e talvez fosse cassubiano o “dialeto totalmente estrangeiro” que tantos descreveram no alemão de Anna Anderson. Após se formar no segundo grau, Franziska foi para Berlim trabalhar nas fábricas, de forma a poder mandar dinheiro para a família. Em 1916, ela desmaiou enquanto estava na linha de produção para polir granadas na fábrica AEG, causando um acidente bastante grave. Foi ele que matou um colega de trabalho, deu a Franziska as cicatrizes que posteriormente seriam atribuídas ao massacre de Ecaterimburgo e, finalmente, a fez perder o emprego. Berlim durante a guerra era um lugar muito difícil para uma camponesa pobre, sozinha e desempregada. Ela voltou a trabalhar algumas vezes, inclusive em uma fazenda com alguns imigrantes russos (onde ela aprendeu o pouco do idioma que era capaz de compreender, presumivelmente) mas nunca mais teve um emprego fixo. Entre o frio, a fome, a falta de perspectivas e sua personalidade já bastante bipolar, não é difícil entender porque Franziska Schanzkowska decidiu cometer suicídio

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In a case filled with extraordinary twists off ate, this was the most extraordinary of all, this genetic turn, thin intrusion of modern Science into the Edwardian fairy tale (...) The world learned the news, learned that a few millimeters of preserved tissue and loose strands of hair had destroyed the most enduring of royal legends. (KING e WILSON, 2011, p. 266)

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atirando-se do canal Landwehr. Quando foi levada para o asilo de Dalldorf, a decisão de não dar seu nome nem nenhuma outra informação foi calculada. King e Wilson argumentam: “Enquanto a sua identidade permanecesse um mistério, ela tinha certeza de que seria cuidada: não tinha que trabalhar por horas, não tinha que se preocupar em ficar em pé, no frio, por horas para obter comida, não tinha que se preocupar com as exigências da vida na tumultuosa Berlim pós-guerra”. As evidências sugerem que a história toda começou apenas como um pequeno esquema para ganhar atenção dentro do asilo, para que lhe fossem dispensados alguns poucos privilégios extras para a mulher que poderia ser Anastásia. Se não fosse Marie Clara Peuthart, talvez a história jamais tivesse saído de Dalldorf. Franziska Schanzkowska nunca fez nenhum esforço para que sua causa fosse publicada, nem para que parentes da verdadeira Anastásia viessem vê-la: o caso simplesmente espiralou para fora do seu controle e foi ganhando dimensões que ela não previu. O que não sabemos é se Franziska Schanzkowska, após passar mais de sessenta anos fingindo ser outra pessoa, por vezes não cruzou a linha da crença ela mesma. Quando perguntada sobre o massacre de Ecaterimburgo, Anna Anderson o descreveu como “Um acidente, um terrível acidente. Eu desmaiei, tudo ficou azul, e eu vi estrelas dançando e um grande zumbido nos ouvidos... meu vestido ficou ensanguentado. Tudo ficou cheio de sangue.” Esta descrição, especialmente a opção pela palavra “acidente”, parece, na opinião de King e Wilson “uma escolha estranha de palavras para descrever as execuções brutais”. Entretanto, seria uma representação precisa do que ela pode ter sentido no acidente da fábrica da AEG em 1916, quando derrubou uma granada. Talvez a escolha do nome Tchaikowski para seu fictício marido seja mais uma evidência desta confusão entre quem ela era e quem fingia ser – o nome é sonoramente muito parecido com o nome da família de Franziska, Schanzkowski (versão germanizada do polonês Czentskowski). Assim, esta “Anastásia” que ela se tornou era também uma “sra. Schanzkowski”. Mas, por outro lado, talvez fosse uma mera técnica mnemônica, um nome que ela não fosse esquecer. De uma forma ou de outra, sugere uma crescente aproximação entre fato e ficção na cabeça da requerente. 39


Mas como Schanzkowska, esta camponesa da Polônia, esta operária imigrante, conseguiu convencer tantas pessoas ao longo de tanto tempo de que era da realeza? Esta foi a questão central pesquisada por King e Wilson, que oferecem uma análise psicológica da requerente em seu A Ressureição dos Romanov. É verdade que Schanzkowska foi muito habilidosa, recusando-se a responder a qualquer pergunta quando o visitante parecia hostil e sendo vaga ou culpando sua “memória despedaçada” e sua “má saúde” quando era amistoso. Ela jamais tentou provar ao mundo que era Anastásia, apenas “se cercou de dúvidas o suficiente para que pudesse existir no éter da perpétua incerteza”. Em duas ocasiões, ela chegou mesmo a admitir ser uma farsa. Em 1927, quando Doris Windenger foi levada para confrontá-la no castelo de Seeon, Anderson provavelmente pensou que a farsa tinha acabado, pois se voltou para o duque e perguntou “Você pensou mesmo que estava abrigando a filha do seu czar?” (ao que o duque respondeu “Mesmo Franziska Schanzkowska pode ficar na minha casa. Eu nunca tive certeza se você era ou não a filha do czar. Apenas te tratei com a simpatia que qualquer um teria por um doente.”, segundo a mesma matéria do Berniner Nachtausgabe). Depois, em 1967, conversando com Alexei Miliukov, ela falou de “quem eu sou, e quem eu finjo ser”. Mas estas duas afirmações tão importantes passam quase despercebidas no caso Anna Anderson. A maior força de Schanzkowska, o que a tornou a mais famosa de todas as impostoras Romanov (a revista Times a colocou no Top 10 Impostores de todos os tempos), foi que a requerente soube usar os desejos do público a seu favor. Qualquer informação errada que ela fornecesse colocaria a caridade da qual ela vivia a perder – mas na ausência de informação o público tendia a ficar a seu favor. Em retrospectiva, é evidente que Franziska Schanzkowska e Anastásia Romanov não são a mesma pessoa, e uma comparação fotográfica muito simples deveria ter sido o suficiente para comprová-lo. As bases para o caso de Anderson, quando examinadas a fundo, são na verdade bastante fracas (King e Wilson descrevem o episódio longamente em seu A Ressureição dos Romanov). Então a questão é: por que tamanha notoriedade? O mito que se tornou o nome Anastásia Romanov pode ser atribuído à existência de sua impostora? Ou esta relação se dá no sentido contrário: o caso de Anna Anderson só 40


tamanha dimensão por suprir uma necessidade imaginária que já existia? Então a verdadeira pergunta não é “como Franziska Schanzkowska conseguiu convencer o mundo de que era Anastásia?” e sim “Por que o mundo quis se deixar convencer de que ela era?”. São essas forças, maiores e mais antigas que a própria Anastásia, que são o tema central aqui.

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Charges distribuída entre tropas russas em 1916, mostrando Rasputin e o casal real (Fotos: Getty Images)

Acima, à esquerda, capa da revista O Cruzeiro em 1963. À direita, capa da Berliner Illustrirte Zeitung em outubro de 1921, com Anastásia, Maria e Tatiana.

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Comparação fotográfica feita dos perfis de Anastásia Romanov e Franziska Schanzkowska por Pierre Gilliard em seu livro A Falsa Anastásia

À esquerda, as fotos tiradas quando a paciente foi internada em Dalldorf, 1920 (Fotos: Ian Lilburn Collection). À direita, foto de Anastásia em 1916 e sua última foto conhecida, em 1917. (Fotos: Arquivo de Estado Russo)

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O MITO POLÍTICO-HEROICO

O mundo não é apenas o que é. Ele é o que entendemos, não é? E no ato de entender alguma coisa, nós trazemos algo de nós, não é? Isso não torna a vida uma história? Yann Martel, A Vida de Pi

Por que Anastásia? Por que esta princesa russa pouco importante, que morreu antes de completar a maioridade e que nada de relevante fez em vida, hoje habita o mesmo reino que figuras lendárias, de contos de fada e mitos? Para compreendermos este fenômeno, precisaremos analisá-lo sob uma ótica dupla: a política e a mística. Comecemos pela primeira. Tanto regimes monárquicos quanto situações revolucionárias são terrenos extremamente férteis para a germinação de mitos. Para a socióloga Claire Gaspard, “qualquer historiador que vise estudar o fenômeno revolucionário terá, inicialmente, de eliminar os mitos que marcaram os fatos” (p. 800). O mesmo se aplica às monarquias, embora de forma diferente. Os heróis de Revolução (Guilherme Tell, Pancho Villa, Zapata, Garibaldi, Che Guevara, e ocasionalmente vilões – como Robespierre ou Napoleão) geralmente se sobressaem “pois a esperança de criar na Terra dias melhores está sempre viva; e o mito revolucionário é portador de esperança”. Já os heróis-reis são dotados de outras características, geralmente não de ruptura, mas de tradição. Ernst Kantorowicz argumenta extensamente em seu O Corpo Duplo do Rei a respeito do porquê monarquias são mais propensas à mitificação do que repúblicas. Os reis, ao contrário dos presidentes, não têm o respaldo do voto pala legitimar seu poder de mando. Era necessário que houvesse algum tipo de justificativa para o fato de um indivíduo ser rei e o outro, servo. No século XVII, na França, Boullain-Villiers 44


foi o responsável por difundir a ideologia do “sangue azul”, por exemplo. Ele provavelmente se referia ao fato de que a nobreza não precisava trabalhar e, portanto, não ficava exposta ao sol, o que significava que em seus pulsos era possível ver as pequenas veias azuis. Mas o termo teve um efeito colateral: ele tornava o direito de mandar quase fisiológico. A história é interessante, mas este não era o primeiro nem o principal argumento que justificava o poder de mando do rei: eles recorreram, primeiramente, ao teatro. A monarquia é o único sistema político em que a pompa e a circunstância não são decorrências do poder e sim suas causas: a encenação é parte fundamental do poder monárquico, como explica a antropóloga Lilia Schwarcz em sua tese de doutorado, As Barbas do Imperador: “É apenas na monarquia que a etiqueta alcança tal importância que realidade e representação confundem-se em um jogo intrincado”. Para ela, o argumento cênico é parte integral e essencial do poder monárquico. Ela não está sozinha: Peter Burke argumenta em seu A Fabricação do Rei, livro que destrincha a figura pública de Luís XIV: O palácio do Louvre imprimia respeito aos povos do mundo. Provavelmente referia-se aos povos da Europa, não apenas da França. Como, por sua vez, Luís XIV (ou, mais precisamente, um de seus secretários) explicou ao Delfim, os festivais agradam aos súditos e dão aos estrangeiros “uma impressão extremamente vantajosa de magnificência, poder, riqueza e grandeza”. (...) O teórico social Montesquieu, que cresceu no reinado de Luís XIV, fez um comentário parecido: “O fausto e o esplendor que cercam os reis são parte de seu poder”. (BURKE, p. 17)

Luís XIV é o maior exemplo do rei que se mostra, e seu modelo foi muito exportado. Pedro, o Grande, esteve na França em 1717 e, segundo Burke, ao voltar o czar criou “um jornal oficial segundo o modelo da Gazette, uma fábrica de tapetes nos moldes dos Gobelins” além de “uma academia de ciências nos moldes da Académie de Sciences”. Além disso, ao voltar, o czar Pedro ergueu o palácio de Peterhof, que “poderia ser visto como um novo Versailles, senão na aparência ao menos na função”. Por fim, “Os appartements [recepções caseiras para divertimentos, como bilhar, para as classes altas] de Luís também tinham seu equivalente russo nas 45


assembleias de São Petersburgo, embora o objetivo destas fosse bem diverso – ensinar as maneiras ocidentais à aristocracia russa”. Mostrar o rei é, parcialmente, legitimar seu poder. Desenvolveu-se na Europa uma sociedade que, entre outras coisas, ditava quem podia ou não olhar para o rei e em que circunstâncias. Um bom exemplo é o despertar real (ou a cerimônia da levée), na França: Einhard, um escrivão do século VIII, descreveu como o Carlos Magno resolvia pequenas disputas camponesas enquanto se vestia, logo após despertar. Este momento foi se formalizando ao longo do tempo: ele chegou ao ápice no tempo de Luís XIV, quando a corte inteira era formalmente convidada a aguardar na antecâmara do quarto do rei para saudá-lo quando acordasse. Nobert Elias descreve longamente este cerimonial em A Sociedade de Corte, e como ele era parte de um intrincado jogo de poder envolvendo quem podia entrar antes ou depois no quarto do rei. Na Inglaterra, até hoje, não se pode virar as costas para a rainha: é necessário deixar o recinto onde ela está andando de costas. Existe, portanto, uma etiqueta – e uma importância – em torno do ato de se ver o monarca. O antropólogo americano Clifford Geertz também corroborou com esta ideia ao afirmar que “Quando os reis percorrem as regiões interioranas, mostrando-se, comparecendo a festas, conferindo honrarias, trocando presentes ou desafiando rivais, eles as marcam, assim como o lobo ou o tigre que espalha o próprio odor em todo o território, [tornando-o] como que fisicamente parte deles”. Mas, se a sociedade de corte é uma sociedade de teatro (como argumentou Norbert Elias), levanta-se instantaneamente a pergunta óbvia: o que se está representando? É onde entra a teoria do Corpo Duplo do Rei, formulada por Kantorowicz: o monarca é dono de um corpo físico, mortal, humano – e também de um corpo político, essencialmente místico. Em seu ensaio A Culpa dos Reis: Mando e transgressão em Ricardo II, o crítico literário Antonio Candido sublinha o quão frequentes são as metáforas vegetais na peça Ricardo II, de Shakespeare. Elas ligam a seiva das árvores ao sangue do rei, que se torna encarnação do Estado que governa (“Por baixo do sistema simbólico de fluidos, por baixo da união mágica entre o rei e a terra, está efetivamente a realidade da posse desta terra, por meio da ação legitimadora da realeza”). 46


Da mesma maneira, em algumas das várias versões da famosa lenda do Rei Arthur, a conexão entre a saúde do monarca e a saúde de sua terra é explicitada. Na versão em verso de Chrétien de Troyes, A História do Graal, Arthur é seduzido por sua irmã, a fada Morgana, e os dois têm um filho ilegítimo – Mordred. Uma maldição cai sobre o rei por causa do incesto e ele fica muito doente. Junto com ele, morre a vida na terra da Bretanha e começa um período de fome e seca. É neste momento que começa a busca dos cavaleiros pelo Graal, para curar o rei e, com ele, a Inglaterra. No século XV, na França, iniciou-se uma tradição que depois foi exportada para a Inglaterra, Espanha, Dinamarca e Itália: diante da morte de um rei, um nobre (na França, tradicionalmente o duque de Urzès) era encarregado de declarar ao povo “O rei morreu. Viva o rei!”. Esta frase é significativa: ela denota que o corpo físico de um monarca morreu, mas não seu corpo político. Este foi imediatamente transferido a seu sucessor: o único momento em que o país não tem rei é neste pequeno ponto final que separa as duas frases. Morreu o pai, viva o filho. O monarca morre, mas a monarquia não morre jamais. Explica Kantorowicz que “era costume dizer que o imperador, cuja coroa “material e visível” consistia em um diadema, tinha sua coroa “invisível”, dada por Deus” (p. 245). É esta coroa invisível que é passada adiante por direito de nascença. Assim, podemos observar que o corpo político do rei é também intrinsecamente ligado eu seu corpo místico. Este “direito de nascença” que o liga a terra teria sido concedido por Deus. A relação entre a mitologia e a política, frequentemente resvalando em misticismo, foi construída com o tempo, lentamente associando símbolos divinos ao governante, e vice-versa. Ainda segundo Kantorowicz: As relações recíprocas inumeráveis entre Igreja e Estado, presentes principalmente durante a Idade Média, fizeram nascer híbridos nos dois campos. Os empréstimos mútuos e as trocas de insígnias, de símbolos políticos, de prerrogativas e de direitos de honra criam um ponto de contato entre os chefes espirituais e seculares da sociedade cristã. O Papa decorava sua fronte com uma tiara dourada, vestia o púrpura imperial, e se fazia preceder de uma procissão solene. O imperador portava uma mitra sobre a coroa, vestia os sapatos do pontífice e 47


outras vestes clericais, e recebia, como um bispo, um anel na coroação. (...) O sacerdoctium tinha uma aura imperial e o regnum, um aspecto religioso. (Tradução nossa)17

Em A Fabricação do Rei, Peter Burke também ressalta que “sua imagem pública [a de Luís XIV] não era simplesmente favorável: tinha uma qualidade sagrada”. O escritor inglês William Thackaray, com a ironia característica de A Feira das Vaidades, também observou que “A gente logo vê, essa majestade toda vem da peruca, dos sapatos de salto alto e do manto... É assim que os barbeiros e os sapateiros fabricam os deuses que adoramos”. A historiadora Laura de Mello e Souza, em entrevista para esta pesquisa, também atribuiu um caráter divino à monarquia russa “principalmente a partir de Alexandre I – que era um místico, se envolvia com várias facções religiosas e foi visto como o salvador da Europa, por libertá-la de Napoleão Bonaparte, que era o anticristo. [Alexandre I] Foi o homem da Santa Liga – a monarquia russa se impregnou também desse caráter divino”. Não deixa de ser verdade: a derrota de Napoleão elevou a Rússia à condição de autêntica superportência, transformando Alexandre I em um herói. Mas as origens do próprio czarismo já são por si só bastante místicas, como relata Miranda Carter em Os Três Imperadores: o status imperial viria do fato de serem “herdeiros” do império bizantino. O príncipe Ivan, o Grande, casou-se com a sobrinha do último imperador bizantino, acrescentou a águia de duas cabeças bizantina a suas insígnias, adotou o ritual de corte bizantino e começou a se chamar de czar. Com isso, ele mobilizava uma série de mitos messiânicos bastante úteis 17

Des relations reciproques innombrables entre Église et État, vivaces à tous les siècles de Moyen Âge, ont donné naissance à des hybrides dans les deux camps. Des emprunts mutuels et des échanges d’insignes, de symboles politiques, des prérogatives et des droits d’honneur avaient eu lieu en permanence entre les chefs spirituels et séculiers de la société chrétienne. Le pape decorait as tiare d’une couronne dorée, revêtait la poupre impériale, et se fasait preceder des bannières impériales quando il chevauchait à travers Rome em procession solennelle. L’empereur portait um mitre sous as couronne, revêtait les souliers pontificaux et autresvêtement cléricaux, et recevait, comme un évêque, l’anneau à com courronnement. Au début du Moyen âge, ces emprunt concernait principalement les personanalités régnantes, séculières et spirituelles, jusqu’à ce que, finalemente, le sacerdotium ait une allure impériale et le regnum un aspect religieux. (KANTOROWICZ, p. 145) 48


sobre

a missão mundial

da

Rússia:

reconquistar

Constantinopla (...) e “proteger” os povos eslavos dos Bálcãs frente ao império otomano. Essa dupla missão fez com que sua autoridade ficasse sob fiança da Igreja Ortodoxa russa. O czar transformou-se no grande defensor da ortodoxia; a Igreja, mais estreitamente vinculada ao Estado que em qualquer outro país da Europa, decretou que o czar era o representante de Deus na Terra e que devia ser obedecido a qualquer custo. (CARTER, 2009, p. 81)

Mas se por um lado, as monarquias são mais propensas à mitificação do que as Repúblicas, também não são todos os reis que entram para a história – parece haver uma densidade de imaginário maior em alguns dos que em outros. No vasto panteão de monarcas, apenas alguns se tornaram heróis – ou vilões – da cultura popular. Cleópatra, César, Luís XIV, D. Sebastião, Matias Corvino, Maria Antonieta, Elizabeth I, Pedro o Grande e, é claro, a jovem Anastásia são alguns deles. Peter Burke, em Variedades de História Cultural, levantou o mesmo questionamento: “Há uma pergunta óbvia para um historiador se fazer neste ponto. Por que os mitos se vinculam a alguns indivíduos (vivos ou mortos) e não a outros?”. Burke debruçou-se sobre a questão do que determinaria o sucesso de um indivíduo em sua mitificação – ou seja, o que tornaria uma personagem real mais ou menos “mitogênica” que outra. Para ele, o sucesso em se tornar mito pouco tem a ver com fatos reais – e sim com a percepção de algum(ns) aspecto(s) de determinado indivíduo em um estereótipo vigente de herói ou vilão. Ou seja, a mitificação seria um fenômeno histórico essencialmente de imaginário. Fenômenos históricos imaginários são mais recorrentes do que podemos achar a princípio. Parece uma contradição em termos – históricos e imaginários –, mas os exemplos são diversos. Maria Antonieta, muito provavelmente, nunca disse “O povo não tem pão? Então que coma brioches”. A biógrafa da rainha, Lady Antonia Fraser, defendeu na Feira do Livro de Edimburgo, em 2002, que na verdade a frase tinha sido dita ao menos cem anos antes, por Maria Teresa, esposa de Luís XIV. Fraser defendeu que “Foi uma declaração insensível e ignorante, e ela [Maria Antonieta] não era nenhum dos dois”. 49


Mas, para todos os efeitos práticos, já não importa se Maria Antonieta disse ou não a famosa citação – o que importa é que o povo francês acreditou que ela o tivesse feito, e o comportamento frívolo da rainha foi um dos principais motivos do ódio do povo contra a monarquia. Umberto Eco, em Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção, cita diversos exemplos onde o real e o ficcional se mesclam para fazer história e História. Um deles: durante a Guerra Falklands-Malvinas, o jornal O Clarín noticiou que um submarino inglês estaria em território argentino. Os ingleses declaram não ter nenhuma informação a respeito e o caso correu por dias, com diversos argentinos declarando mesmo terem visto o tal submarino (uma espécie de Monstro do Lago Ness latinoamericano) e a mídia especulando sobre diversas supostas “informações oficiais”. Por fim descobriu-se: o submarino de fato existia, mas jamais tinha deixado o solo inglês. Quem foi que inventou aquele submarino amarelo? [...] O que me interessa é como a história inteira se desenvolveu a partir de um vago mexerico com a colaboração de todos os envolvidos. Todo mundo contribuiu para a criação daquele submarino amarelo porque era uma personagem de ficção fascinante e sua história era narrativamente empolgante. Essa história – quer dizer, a história verdadeira de uma construção ficcional – tem muitas morais. [Ela] mostra que somos constantemente tentados a dar forma à vida através de esquemas narrativos. (ECO, U. 1994)

Também temos exemplos do contrário, em que a vida real é alterada a partir da ficção. Alguns exemplos são divertidos: 221B Baker Street recebe anualmente centenas de cartas endereçadas a Sherlock Holmes, e a estação de King’s Cross, em Londres, tem hoje um carrinho marcando o local onde estaria a fictícia plataforma 91/2 de Harry Potter. Outro exemplo marcante foi a imensa polêmica gerada pelo best seller O Código da Vinci, de Dan Brown, que passou a ser contestado como se fosse um livro de história, e não uma ficção policial, pois soube manipular habilmente algumas lacunas históricas. Mas Eco também discorre longamente sobre casos mais sérios, 50


como dos templários: tudo que sabemos de concreto sobre eles é que eram guerreiros cristãos ligados às Cruzadas, e que foram exterminados pelo rei Filipe IV da França. Mas eram realmente uma sociedade secreta, adoradora de um ídolo pagão, o Bafomé? E a Ordem Secreta Rosa-Cruz, supostamente ligada ao que se chamou de maçonaria templária? Nenhuma destas coisas, hoje lendas, tem algum tipo de sustentação histórica. Eco segue os rumores sobre os templários através dos séculos. Muito provavelmente, eles só foram exterminados sob uma acusação falsa ou exagerada por causa do poder que estavam adquirindo, mas uma enorme bola de neve ao longo do tempo os associou à maçonaria, depois ao judaísmo, a uma conspiração para tomar o mundo e, por fim, aos fictícios Protocolos dos Sábios do Sião. Uma cópia deste livro foi parar nas mãos de Adolf Hitler, e o resto da história é conhecido. Tudo isso se desenvolveu a partir de um vago mexerico do século XII – porque era narrativamente empolgante. Este caso é assustador, mas nos mostra como a ficção é capaz de moldar a vida. A Invenção das Tradições, organizado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger, fala de mais um caso curioso: a Escócia. A ideia deste país romântico habitado por homens vestindo kilts com “padrões dos antigos clãs” e tocando gaita de fole foi construído inteiramente no século XIX, como uma maneira de criar uma identidade nacional. Ninguém vive no presente imediato: temos memória pessoal e coletiva. História e memória são construídas e, por meio da linguagem, estruturamos passado e presente. Talvez seja um agravante que a linguagem seja o instrumento que usamos tanto para construir a História dos fatos quanto para elaborar histórias ficcionais – daí a necessidade de partículas que demonstrem claramente qual é qual, cujo exemplo mais evidente talvez seja o "era uma vez". Senão, como nos diz Eco: “Se os mundos ficcionais são tão confortáveis, por que não tentar ler o mundo real como se fosse uma obra de ficção?” A pesquisadora do jornalismo Patrícia Ceolin do Nascimento nos fornece uma visão deste conflito aplicado à prática jornalista, e expõe a dificuldade de se tentar fazer “ciência” através de métodos tradicionalmente “ficcionais”.

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Na prática jornalística, é a narração a forma redacional predominante, uma vez que o discurso jornalístico movese em torno dos fatos da atualidade. (...) Diariamente, abrimos jornais e revistas, acessamos sites de notícias para saber o que aconteceu, quais foram os fatos relevantes que a mídia nos apresenta como informações. São relatos, histórias, e, como tais, configuram-se pela forma narrativa. Ainda que o relato jornalístico procure se calcar em bases “científicas” e objetivas na busca pela informação, há que se considerar que a estruturação narrativa lhe é inerente, o que equivale dizer que seu potencial ficcional também o é. (...) Ao mesmo tempo que busca um modelo de veracidade semelhante ao da ciência, apresenta-se por meio da narrativa, formato caracteristicamente ficcional. Assim, o jornalista, que se apoia nos fatos e em seus desdobramentos... para exercer sua função informativa, ocupa, ao mesmo tempo, esse papel de “contador de histórias” da atualidade e lida, às vezes inadvertidamente, com personagens, conflitos e expectativas que escapam a qualquer tentativa de enquadramento do objetivo da realidade. (NASCIMENTO, 2009, p. 54)

Podemos, aqui, voltar à teoria de Peter Burke. O que determina o sucesso de um indivíduo em sua mitificação pouco tem a ver com feitos reais, e sim com o enquadramento dele dentro de certos estereótipos arquetípicos. Por exemplo, em As Barbas do Imperador, Lilia Schwarcz expõe alguns dos toques dramáticos que teve a vida de D. Pedro I: órfão de pai com um ano de idade e de mãe com 10, imperador coroado aos 14, exilado aos 64. “No seu caminho é difícil notar onde se inicia a fala mítica da memória, quando acaba o discurso político e ideológico; onde começa a história, onde fica a metáfora”. Ele não é o único: outra personagem brasileira que passou por um intenso processo de mitificação foi Tiradentes. O historiador José Murilo de Carvalho, em A Formação das Almas, acompanha o trajeto que este inconfidente percorreu até se tornar a figura praticamente sagrada que hoje é no imaginário popular. A República 52


recém-estabelecida no Brasil precisava de um herói. O seu caráter de mártir contribuiu para que agradasse aos mais diversos gostos, assim como sua profissão militar lhe garantiu uma aura de heroísmo. Para o autor, também contribuiu que não se tenha um retrato do heroi: “Cada artista tem lhe dado diferente feição. Já foi representado com a doçura de Jesus, com os traços dos heróis antigos, e até mesmo como caboclo”. Tiradentes foi lentamente se aproximando de uma simbologia religiosa: ele hoje é representado sempre com barba, coisa que um militar jamais poderia ter, o que o aproxima da imagem de Cristo. Para Carvalho: “Portinari o pintou na década de 1940, mantendo a aproximação com a simbologia religiosa. Seu Os despojos de Tiradentes no caminho novo das Minas mostra os pedaços do corpo pendendo de postes e mulheres ajoelhadas que lembram a cena do Calvário”. O “mártir” e o “guerreiro da liberdade” – ambos associados ao “herói” – poderiam ser dois destes arquétipos de enquadramento levantado por Burke: daí decorreria o sucesso de Tiradentes em sua mitificação. O “herói”, afinal, é um dos “tipos” de personagens levantados pelo formalista russo Vladimir Propp em Morfologia do Conto Maravilhoso. Propp destrinchou centenas de contos tradicionais em suas partes mais básicas, e identificou que quase todos os agentes destes contos podiam ser divididos em sete “tipos” de acordo com suas ações. Além do herói, temos o vilão (que luta contra o herói), o mandador (que faz o herói perceber o que lhe falta e iniciar a busca), o ajudante, o doador (quem dá ao herói o que ele procura), a princesa (com quem ele se casa) e o falso herói (que tenta roubar o crédito das ações do protagonista ou casar com a princesa). É fácil lembrar, de memória, centenas de exemplos de cada uma destes personagens. Eles são, como diria Carl Gustav Jung, arquetípicos. Jung tratava os arquétipos como órgãos psicológicos, análogos aos órgãos físicos no sentido de que ambos são estruturas morfológicas vindas da evolução. A afirmação é bastante ousada e, é claro, incomprovável - seu contemporâneo e colega Sigmund Freud o acusou de ser "pouco científico". Mas estes "tipos primordiais" de personagens são realmente de uma repetição muito recorrente embora apresentem, é claro, variações individuais: Perseu era inteligente, Hércules era forte, o Corvo (dos esquimós do Estreito de Bering) era malandro, Buda era pacífico. O que eles têm em comum é o 53


modo como enfrentam suas jornadas. E as monarquias, quando tentam se aproximar do aspecto do heroísmo, também invariavelmente se aproximam dos aspectos desta jornada. Para Peter Burke, o mito é “uma história com significado simbólico que envolve personagens em tamanho maior que o natural, sejam elas heróis ou vilões.” Já para Denis de Rougement, “um mito é... uma fabulação simbólica, simples e impressionante, que resume um número infinito de situações mais ou menos análogas”. No caso das monarquias, um dos aspectos recorrentes destas “situações mais ou menos análogas” é o de ressurreição. Os sebastianistas ainda hoje esperam que D. Sebastião, de Portugal, retorne para governar a terra. Os ingleses também aguardam o rei Arthur (o rei Felipe II, da Espanha, ao se casar com Mary Tudor, chegou a jurar que abdicaria da coroa caso Arthur retornasse), os alemães aguardam Frederico Barbarossa e, é claro, os cristãos esperam o retorno de Cristo. A associação não é ao acaso: um dos grandes pesquisadores a se debruçar sobre esta questão foi Joseph Campbell. Em O Herói de Mil Faces ele estudou detalhadamente o plano imanente das histórias heroicas de várias culturas, desmembrando-as. Isto é, todas as nossas histórias – e heróis – seriam semelhantes na medida em que nossos problemas intrinsecamente humanos são semelhantes. Segundo o próprio autor: Você tem o mesmo corpo, com os mesmos órgãos e energias que o homem de Cro-Magnon tinha, trinta mil anos atrás. Viver uma vida humana na cidade de Nova Iorque ou nas cavernas é passar pelos mesmos estágios da infância à maturidade sexual, pela transformação da dependência da infância em responsabilidade, própria do homem ou da mulher, o casamento, depois a decadência física, a perda gradual das capacidades e a morte. Você tem o mesmo corpo, as mesmas experiências corporais, e com isso reage às mesmas imagens. (CAMPBELL, 1988, p. 39)

Apesar de diferentes em seu campo aparente – o “sabor local” da cultura (“é como se a mesma peça fosse levada de um lugar a outro, e em cada lugar os atores 54


locais vestissem costumes locais”) –, a tese de que histórias ao redor do mundo teriam o mesmo entroncamento lógico encontra uma sólida base. Por exemplo, um dos primeiros conceitos apresentados por Campbell é o do “duplo nascimento” do herói. Ele tem “dois pais” (como Hércules tem Zeus e Anfitrião), “duas mães” (como Moisés tem Joquebede e a Filha do Faraó), algum mistério envolvendo seu nascimento (como Arjuna, que foi um presente do deus Indra já que seu pai fora amaldiçoado e era estéril), ou fica órfão ainda jovem, esta orfandade servindo como um “segundo nascimento”. Mas não é só o nascimento do herói que é espetacular: assim também deve ser sua morte, momento em que a vida como um todo ganha ares de destino manifesto. Da mesma maneira, um dos pontos mais tradicionais de histórias heroicas ao redor do mundo diz respeito à ressurreição. Na Grécia, Orfeu vai ao Hades para tentar salvar Eurídice e depois retorna ao mundo dos vivos; no Japão, Izanagi faz o mesmo trajeto para visitar sua esposa Izanami. No Egito, Osíris, depois de ser esquartejado por seu irmão Set, é brevemente restituído à vida por Ísis, que junta os pedaços do seu corpo. No México pré-Colombiano, Quetzalcoatl criou o “quinto sol” (a nossa Humanidade) a partir dos ossos que resgatou do submundo. O herói irlandês Finn MacCool foi engolido por um monstro celta chamado peist. Tanto Jonas quanto Pinocchio são engolidos por peixes gigantes. Também vale lembrar que Jesus Cristo morre crucificado e ressuscita depois de três dias. A revelação do Monte Sinai e a iluminação de Buda sob a árvore Bo não são muito diferentes – o mortal que tem contato com o outro lado da vida e retorna transformado pela experiência. Para citar um exemplo mais recente, o bruxo Harry Potter encontra o espírito de seu mentor Dumbledore no que é descrito como um “lugar intermediário” antes de retornar para derrotar seu inimigo, Voldemort. Para Campbell, esta repetição teria uma matriz psicológica: “A ideia de que a passagem dos umbrais mágicos é o trânsito para uma esfera de ressureição é simbolizado na imagem na imagem da barriga da baleia. (...) ‘Nenhuma criatura’, escreveu Amanda Coomaraswamy ‘pode atingir um nível superior de natureza sem deixar de existir’.” Partida, transformação e retorno: estes são os três estágios da Jornada do Heroi. Assim, faz sentido, em termos de imaginário popular, que um

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monarca “heroico” venha a retornar da morte: no repertório popular, esta história já foi contada mil vezes. Temos o exemplo do português D. Sebastião, monarca que postumamente criou em torno de si não apenas uma mitologia, mas uma autêntica religião. Sua morte em um momento “heroico” – desapareceu durante uma Cruzada contra os mouros – criou ao seu redor uma densidade de imaginário tão grande que ainda há quem espere que ele volte para governar Portugal, embora esteja desaparecido há quase quinhentos anos. Mas há um fato extra nesta mitificação. Ainda segundo Burke: Um governante cujo reino é seguido de desastres – da invasão estrangeira ao exorbitante aumento de impostos – é um candidato com boas chances de transformar-se em herói, pois as pessoas lembrarão o passado com nostalgia dos bons tempos do seu governo. (BURKE, 2000, p. 81)

Voltando ao exemplo português, a morte de D. Sebastião significou o início de um período conturbado para o Império de Portugal. O monarca morrera muito jovem, sem deixar filhos, e Portugal enfrentou uma crise de sucessão. Quem assumiu o trono foi um cardeal de 66 anos, tio em segundo grau de D. Sebastião: D. Henrique I. Este rei, entretanto, faleceu dois anos depois, e então Felipe II da Espanha reivindicou o trono de Portugal à força: teve início a chamada União Ibérica, ou seja, Portugal sob o domínio Espanhol. Até hoje, uma quadra popular portuguesa diz: Que o Cardeal-Rei Dom Henrique/ Fique no inferno muitos anos/ Por ter deixado em testamento/ Portugal aos castelhanos

Assim, não é de se espantar que a memória social se lembrasse de seu antigo rei, D. Sebastião, com nostalgia. Da mesma maneira, Matias Corvino da Hungria (de quem se dizia “Matias morreu, a justiça pereceu”) foi o último rei antes da invasão otomana, em 1526. E Cleópatra, também, foi a última rainha do Egito, cuja morte marcou não apenas o fim da dinastia Ptolomaica mas também o início do período egípcio sob o domínio de Roma. Desastres acompanham a morte ou o desaparecimento do herói: estes enquadramentos impressionam a imaginação.

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É impossível precisar um único motivo porque uma figura migra da História para a mitologia. Esta transição se dá invariavelmente por um conjunto de fatores e deve ser analisada caso a caso: símbolos não existem em um vazio cultural e a sua emissão e recepção – o contexto histórico em que existem – são parte integrante da morfologia tanto quanto os feitos reais do indivíduo. Assim, a partir deste panorama de mitologias políticas e fábulas monárquicas, devemos partir para o caso específico do projeto de pesquisa proposto: Sua Alteza Imperial, a Grã-Duquesa Anastásia Nikolaevna Romanov.

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HELENA, A BELA, E BABA YAGA

Os historiadores profissionais usam com frequência o termo “mito” para designar “uma história não verdadeira” (em contraste com as histórias que eles mesmos criam, tal como as veem). O que me importa aqui, contudo, não é o Luís “real” em contraposição ao mítico. Ao contrário, o que me interessa é precisamente a realidade do mito, isso é, seus efeitos sobre o mundo externo aos meios de comunicação. (BURKE, p. 18)

Quando foi publicado Nicolau e Alexandra, romance histórico de Robert K. Massie escrito a partir de apuração extensa e precisa, foi o periódico americano Saturday Review quem fez o comentário mais pertinente à narrativa: “um drama exagerado, tão bizarro, tão comovente, e principalmente, tão apocalíptico, que nenhum escritor teria se atrevido a inventá-lo”. A resenha, longe de desmerecer a qualidade do romance, nos revela muito sobre o material que temos a respeito dos Romanov. Massie baseia toda a sua narrativa em extensa pesquisa, incluindo os diários dos monarcas, autobiografias da família próxima, amigos da família, embaixadores da época e mesmo material fornecido pelos revolucionários, como Trotsky e Kerensky. É verdade que a forma narrativa contribui, pois passa longe de ser um frio relato histórico – mas, no fundo, é a própria história dos Romanov que é dotada de uma característica fantástica. Em entrevista especial para esta pesquisa, a historiadora americana Helen Rappaport atribuiu a fama da mais nova dos Romanov a “um acidente do destino”, Anna Anderson foi a requerente mais high profile e, para alguns, a mais plausível. Além disso, ela apareceu quando pessoas que conheciam os Romanov ainda estavam vivas e queriam acreditar em um milagre. Simples assim. Se um bom requerente tivesse aparecido para alguns dos outros 58


[Romanov mortos no massacre], ele teria atraído a mesma atenção, senão mais. Antes da criação da lenda de Anastásia ela era a menos importante das irmãs, por ser a mais nova. Olga era bem mais importante e, se uma requerente

convincente de

Olga

aparecido,

Anastásia poderia

ter

Romanov

tivesse

desaparecido

na

obscuridade. 18

Esta é uma opinião recorrente e, em certa medida, válida. Mas atribuir a fama de Anastásia inteiramente à sua impostora não parece crível. Como vimos no capítulo 1, todo o caso Anna Anderson era, no fundo, bastante frágil e sua maior força foi o silêncio da requerente, que soube usar a ausência de informações a seu favor. Em duas ocasiões, ela chegou a admitir sua farsa (ver final do capítulo 1), e, além disso, forneceu diversas informações incorretas quando perguntada sobre a vida da família imperial, só foi “reconhecida” por dois membros da família (que tinham convivido pouco com Anastásia) e, é claro, não falava russo. Não há maneira fácil de explicar como uma operária polonesa conseguiu não ser oficialmente desmascarada por mais de sessenta anos, mas é claro que os desejos do público têm mais força do que a própria farsante, neste caso. Ao contrário do que Helen Rappaport afirma, houve vários outros requerentes na época em que tios e primos de Anastásia estavam vivos, inclusive mais de uma “Olga” (a mais famosa foi uma italiana cujo nome verdadeiro era Magda Boodts, que surgiu no fim dos anos 20). Além disso, vale a pena lembrar que a própria Franziska Schanzkowska iniciou sua farsa, dentro do asilo de Dalldorf, depois de ter lido uma edição da Berliner Illustrirte Zeitung cuja matéria de capa perguntava “Uma das filhas do czar ainda está viva?” (ver ilustração da página 42). A matéria descrevia o cativeiro na Sibéria e a execução, ainda que de uma forma bastante romantizada e imprecisa, e terminava com a frase: “até hoje, não foi possível estabelecer definitivamente se,

I think it’s down to an accident of fate in that Anna Anderson was the most high profile and, to some, plausible claimant. Plus she made her claim when people were still alive who knew the Romanovs well and wanted to believe in a miracle. Simply that. If a good claimant had come forward for one of the others they would have attracted equal if not more interest. Prior to the creation of the Anastasia legend she was actually the least significant of the sisters, as the youngest. Olga was far more important and had there been a convincing Olga claimant Anastasia might as well have languished in obscurity. 59

18


durante o massacre, uma das Grã-Duquesas não foi apenas muito ferida, e continuou viva.” Segundo King e Wilson: Talvez tenha sido mero interesse que a levou a retirar a revista de biblioteca [do asilo] e guardá-la debaixo do colchão, mas o interesse logo se tornou obsessão quando ela leu aquele mistério tentador, aquela mágica saga de romance e revolução, amor e morte. Deve ter sido muito evocativo para uma mente buscando distração naquele outono de 1921. (Tradução nossa)19

Ou seja; o que levou a própria Franziska Schanzkowska a criar a farsa foi a força desta história. A Anastásia lendária a precede: Anna Anderson encaixou-se no mistério e o personificou, mas não o criou. Em linguagem corrente, usamos o termo verossimilhança para designar aquilo que parece verdade, aquilo que tem semelhança com a verdade. E, na história dos Romanov, tudo – desde o nascimento de quatro meninas antes do herdeiro homem até os corpetes de diamante que protegeram as princesas da primeira saraivada de balas – parece profundamente inverossímil, embora seja verdade. Assim, talvez não seja de se espantar que no futuro o caso da “ressureição” dos Romanov, embora fosse mentira, tivesse ganhado esta aura de verossimilhança. Seria, porém, ingenuidade crer que essa mitificação em torno da família fosse espontânea. Símbolos não existem em um vazio cultural. Em A Formação das Almas, José Murilo de Carvalho apresenta todo o esforço de mitificação da figura de Tiradentes – a busca da República por um herói, um símbolo que a fortalecesse. Segundo o historiador: “Herois são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos.” (p. 55)

19

Perhaps at first it was mere interest that drove her to take the magazine out of the library and keep it beneath her mattress, but interest soon turned to obsession as she read of this tantalizing mystery, this bewitching saga of romance and revolution. It must have been powerfully evocative to a mind seeking diversion that autumn of 1921. (KING e WILSON, 2011, p. 293)

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Carvalho se refere aqui à República brasileira, frágil por não ter sido um movimento popular. Houve literalmente um esforço no sentido de se definir um símbolo: é claro que primeiramente se pensou nos participantes do 15 de novembro, como Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant e mesmo Floriano Peixoto, mas, segundo Carvalho: “A pequena densidade histórica do 15 de novembro (uma passeata militar) não fornecia terreno adequado para a germinação de mitos”. Assim, estes esforços resultaram em muito pouco. O herói é, sim, instrumentalmente usado – mas ele também precisa ser dono de um apoio popular que, às vezes, surge de maneira espontânea. Da mesma maneira, no caso dos Romanov, seria ingênuo assumir que a figura de Anastásia não foi instrumentalizada. Mas não pelo seu próprio país – os soviéticos não tinham nenhum interesse que uma figura do velho regime virasse símbolo nacional. De fato, era de grande importância para os soviéticos criar seus próprios heróis, exaltando eventos como a revolta dos dezembristas e o motim do encouraçado Potemkin. A historiadora Helen Rappaport chegou a afirmar que o caso Anna Anderson foi “um presente para os bolcheviques” que ficaram “muito felizes pela comunidade de exilados políticos russos estar se matando enquanto se dividia em dois grupos, contra e a favor da reivindicação de Anderson”. O governo soviético, afinal, sabia perfeitamente que todos os Romanov tinham morrido e que a reivindicação era falsa. Não, Anastásia não interessava em absoluto à URSS, mas sim aos demais países. A transformação da Rússia em União Soviética representou uma nova ordem mundial, uma divisão do mundo em duas partes que culminaria na Guerra Fria. Nenhum míssil foi disparado nessa guerra: a URSS e os Estados Unidos, em vez de buscarem soldados e metralhadoras, batalharam no terreno do soft power. O conceito foi desenvolvido pelo professor de Harvard Joseph Nye: mais do que poderio militar, o soft power designa a capacidade de um país de cooptar, seduzir, criar um imaginário em torno de si. Filmes como Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, EUA, 1956) ajudaram a metade capitalista a construir a imagem dos comunistas como monstros. A superprodução Anastásia, da Fox, foi lançada no mesmo ano. Não seria igualmente possível que o mesmo tivesse sido feito com imagem de Anastásia? Reiterar sua 61


imagem como uma vítima jovem, bela e ingênua não coloca automaticamente os bolcheviques que a mataram (ou tentaram matar) em uma posição de vilania? Mas o mito político-heroico, por mais instrumentalizado que seja, tem suas origens em outro lugar. Segundo Nicole Ferrirer-Cavarivière, em seu artigo Figuras históricas e figuras míticas: O mito político-heroico é na verdade a expressão de uma pulsão proveniente das profundezas do psiquismo coletivo: antes que a personagem alcance o primeiro plano da história, ele já é de certo modo esperado. Há nas mentalidades, no psiquismo coletivo, um conjunto de velhos sonhos, de esperanças ou de ódios que só estão à espera de uma oportunidade de se cravarem em alguma realidade; e, quando surge um personagem investido de um certo poder e de uma certa função, eles cristalizam imediatamente todas essas esperanças, todos esses ódios, todos esses sonhos. (FERRIRER-CAVARIVIÈRE, 1988, p. 386)

Assim, que tipo de mentalidade favoreceu a germinação deste mito é um ponto central de análise. O messianismo observado em torno da princesa nasce, inicialmente, entre o círculo de imigrantes russos – principalmente a antiga monarquia e o exército branco. Tratava-se de grupo de pessoas, afinal, que tinham perdido tudo: suas famílias, suas posições, suas fortunas e seu país. Tudo que a volta de Anastásia parecia simbolizar. Uma fonte de caráter ficcional da época pode servir, senão como fonte histórica, ao menos como uma espécie de “termômetro” dos círculos de imigrantes russos: os contos de Vladimir Nabokov. O autor, cuja obra mais conhecida é Lolita, nasceu em São Petersburgo em 1899, e fugiu com a família para a Alemanha poucos anos depois da Revolução. Foi lá que ele publicou seus primeiros contos, a maior parte deles com personagens russos imigrantes. Em Fala-se russo, um antigo proprietário de terras abastado chamado Martin Martinitch vive em Berlim como dono de uma tabacaria. Seu filho, Petya, certo dia visitara uma livraria soviética, cuja presença mancha uma das ruas mais encantadoras de Berlim. Lá vendem não 62


apenas livros, mas também bugigangas variadas, feitas à mão. Petya escolheu um martelo enfeitado com papoulas e gravado com uma inscrição típica de um martelo bolchevique. O vendedor perguntou se ele queria mais alguma coisa. Petya disse “Quero, sim”, apontando um pequeno busto de gesso do senhor Ulyanov [nome verdadeiro de Lenin]. Pagou quinze marcos pelo busto e pelo martelo e, então, sem dizer uma palavra, bem ali no balcão, atacou aquele busto com aquele martelo, e com tamanha força que o senhor Ulyanov se desintegrou. (NABOKOV, 1923, p. 28)

Mas isso não é tudo. Mais para a frente, Martin Martinitch e seu filho recebem na tabacaria a visita de um membro do serviço secreto soviético, com quem Petya se envolve em uma briga após uma menção à “ralé Branca”. O homem desmaia após um soco e, sem saber o que fazer, Martin e Petya o aprisionam no banheiro no fundo da casa, fazendo-o refém. Como Martin depois explica ao narrador “Esse momento marcou o começo de uma nova vida para nós. Eu não era mais simplesmente Martin Martinitch, mas Martin Martinitch, o carcereiro chefe”. O próprio Nabokov, aliás, defendeu que a história era inteiramente verdadeira, ressaltando que “todos os traços e sinais característicos que possam apontar a real identidade de Martin foram, é claro, deliberadamente distorcidos”, como diz uma nota de rodapé. Em outro conto, Uma Beleza Russa, de 1934, Nabokov nos apresenta Olga, uma moça “nascida no ano de 1900, numa família de nobres rica e feliz.” Olga, como autor, também teve que deixar a Rússia: Um suprimento de lembranças... consistia em seu único dote quando deixou a Rússia na primavera de 1919. Tudo aconteceu absolutamente de acordo com o estilo do período. Sua mãe morreu de tifo, seu irmão foi executado diante do pelotão de fuzilamento. (NABOKOV, 1934, p. 470)

Poucos anos depois, temos um retrato bastante diferente de Olga, vivendo em Berlim: “Agora que o forro interno de sua bolsa estava em farrapos... Agora, que ela

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estava tão cansada... agora que já não havia mais a menos esperança de voltar à Russia, e o ódio se tornara tão habitual que quase deixara de ser um pecado.” Em Natasha, o imigrante Khrenov, pai da protagonista, desabafa a um amigo: “Vai ser assim. Mataram meus dois filhos e empurraram Natasha e eu para fora do nosso ninho natal. Agora, temos que morrer numa cidade estranha.” Já em Tiranos Destruídos, talvez o mais político dos contos de Nabokov, o autor fala de Lênin, Stalin e do czar. Não há nomes, mas não precisa haver. Em uma passagem particularmente significativa, o autor nos diz: Quando os deuses costumavam assumir forma terrena e, trajados de vestes tintas de violeta, discreta mas poderosamente

pisando

com

pés

musculosos em

sandálias ainda sem poeira, apareciam a camponeses ou pastores nas montanhas, sua divindade não era por isso diminuída no mais mínimo; ao contrário, o encanto da humanidade que os bafejava era a mais eloquente confirmação de sua essência celestial. Mas quando um homem limitado, grosseiro, pouco educado – à primeira vista um fanático de terceira classe e na realidade obstinado, brutal e melancolicamente vulgar, cheio de mórbida ambição – quando um tal homem põe um traje de deus, dá vontade de pedir desculpas aos deuses. (NABOKOV, data desconhecida, p.536)

Através de seus contos, Nabokov nos deixou, senão um retrato fiel, ao menos uma representação do clima que pairava entre os russos emigrados, de rancor e de melancolia. De acordo com Greg King e Penny Wilson, no já citado A Ressureição dos Romanov: Em 1922, quando começou a ser divulgado [o caso Anna Anderson] entre os círculos de imigrantes em Berlim, não havia nenhuma evidência que provasse que Anastásia tinha perecido no massacre de Ecaterimburgo. (...) Ela [Anna Anderson] encontrou um grupo de imigrantes russos incertos, ainda traumatizados pela Revolução, uma coleção fraturada de refugiados divididos por lealdades e crenças e regidos pela esperança. Assustados pela perda 64


do seu país, seus títulos e suas fortunas, muitos estavam suscetíveis a qualquer eco de seu passado perdido. A sua suposta identidade era sustentada por estes sonhos, onde uma possibilidade intrigante juntava forças com uma necessidade mais profunda, um desejo psicológico, para que aquela perda esmagadora tivesse algum sentido. (Tradução nossa)20

Como vimos no segundo capítulo, uma figura histórica (particularmente um governante) tem boas chances de se tornar um mito quando seu desaparecimento é sucedido por um desastre – no caso de D. Sebastião, a União Ibérica e, no de Anastásia, a Revolução Russa – pois, para retomar o Variedades de História Cultural, de Peter Burke, “as pessoas lembrarão o passado com nostalgia dos bons tempos”. A Primeira Guerra Mundial, afinal, foi um trauma imenso para a Europa, e particularmente para as monarquias. Quatro imperadores entraram na Guerra – o rei Jorge VI da Inglaterra, o kaiser Guilherme da Alemanha, o Imperador Francisco José da Áustria-Hungria e o czar Nicolau II da Rússia – e apenas um, o primeiro, saiu dela ainda no poder. A “ressureição” começou rapidamente a ganhar notoriedade através da ação de jornalistas – principalmente Rathlef-Keilmann, Gleb Botkin e Dominique Auclères – e da ficção. Logo, o público em geral também começou a ver aquela suposta Anastásia como “uma mulher contra quem se tinha cometido uma injustiça, uma figura trágica, a encarnação viva de um passado exótico e brilhante” (nas palavras de King e Wilson). Talvez a suprema expressão desta transformação em mito tenha se realizado somente em 1997, anos depois da morte de Franziska Schanzkowska: Anastásia se transformou em um desenho animado. Produzido pela Fox, mas com todo o formato dos filmes da Disney, esta nova versão da história é majoritariamente igual ao filme de 1956. A filha mais nova do czar consegue escapar da Revolução, mas em meio ao

20

In 1922, when word of her claim spread through émigré circles in Berlin, there wasn’t any real evidence proving that Anastasia had perished in Ekaterinburg. She [Anna Anderson] found a group of uncertain Russian émigrés still traumatized by the Revolution, a fractured collection of refugees divides by loyalties and belief and ruled by hope. Scarred by the loss of their country, their titles, and their fortunes, many were susceptible to any echo from their vanished past. Her claim played upon these dreams, where intriguing possibility joined force with a deeper need, a psychological desire, to make sense of overwhelming loss. (KING e WILSON, 2011, p. 332-333)

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tumulto bate a cabeça e esquece todo o seu passado. Dez anos depois, atendendo apenas pelo nome de Anya, ela se alia a dois vigaristas (Dimitri e Vladimir) que pretendem ensiná-la a fingir que é Anastásia, de forma a conseguir uma recompensa da imperatriz-viúva pelo resgate. O que nenhum dos três percebe é que a jovem Anya é de fato a grã-duquesa. Esta versão, entretanto, conta com alguns detalhes interessantes: Rasputin é representado como um morto-vivo que vendeu a alma para obter poder para destruir os Romanov; além disso, é claro, o filme termina com um beijo de Anya e Dimitri. Ou seja, a soberana passagem de uma figura histórica para o mito: Anastásia se tornou uma princesa encantada. Uma das primeiras músicas do filme, entretanto, A Rumor in St. Petersburg (Rumores em São Petersburgo), cantada por russos anônimos nas ruas, denuncia o seu caráter político, ainda que implicitamente: St. Petersburg is gloomy!/St. Petersburg is bleak!/My underwear got frozen standing here all week!/Since the Revolution our lives have been so gray/Thank goodness for the gossip that gets us through the day (Na versão brasileira: São Petersburgo é triste!/São Petersburgo é frio!/Eu fico enregelado aqui neste vazio!/Revolução danada, em vez de melhorar/Só trouxe desencanto, fez tudo piorar) (Letra de AHRENS, Lynn e música de FLAHERTY, Stephen. Tradução de Mário Menezes/Estúdio Double Sound)

É difícil negar o caráter político anticomunista que a mitificação em torno de Anastásia sempre teve. Mas também não é possível atribuir toda a questão a ele: como já nos disse José Murilo de Carvalho em A Formação das Almas. É certo que a preocupação com a construção do mito afeta e condiciona o debate historiográfico. Mas ela transcende tal debate, desenvolve-se dentro de um campo de raciocínio que extravasa os limites e os cânones da historiografia, pelo menos da historiografia praticada neste 66


caso. O domínio do mito é o imaginário que se manifesta na tradição escrita e oral, na produção artística, nos rituais. (CARVALHO, 1990, p. 58)

Como vimos, uma mitificação forçada não funciona: o herói precisa ser dono de, ao menos, algum apelo popular. Este apelo talvez possa ser melhor compreendido se nos debruçarmos sobre outra questão: por que Anastásia? Qual o apelo que esta personagem histórica teve que lhe permitiu simbolizar e personificar toda a Rússia imperial? Ainda falando do ponto de vista político, podemos levar em consideração a ideia de “mito fundador”, que Schielling define como uma narrativa tão significativa que transfere parte do seu padrão de significado para outras situações que venham a acontecer naquela parte civilizatória. A Bíblia, por exemplo, seria mito fundador de toda a literatura ocidental. No caso da Revolução Russa, o mito fundador é evidentemente a Revolução Francesa – o último grande movimento popular que destronou os reis. De acordo com a historiadora Laura de Mello e Souza, em entrevista para esta pesquisa: A Revolução Francesa é muito interessante porque ela apresenta todas as etapas que depois vão aparecer nas outras grandes revoluções, como a russa e a cubana. Elas têm aproximadamente os mesmos momentos. Começa com uma tentativa de transformação radical; aquilo não dá certo, mas a radicalização continua; parte para o terror e por fim ela estabiliza em um certo retrocesso. Esse momento em que desaparecem os reis é quando a violência começa a atingir o pico.

A Revolução Francesa apresenta ainda mais um fator que posteriormente seria “reconhecido”: o último rei francês foi Luís XVI, e sua família era constituída por sua mulher, Maria Antonieta, e seus três filhos: uma menina e dois meninos. O mais velho dos meninos, Luís José, morreu de tuberculose algumas semanas antes da Revolução, e o mais novo, Luís Carlos, morreu durante o cativeiro na Torre do Templo da mesma doença. Luís XVI e Maria Antonieta foram publicamente julgados e guilhotinados. Mas a única filha do casal, Maria Teresa, sobreviveu à Revolução e 67


escapou para a Áustria, onde se casou com seu primo Luís Antônio, Duque de Angôuleme. Mello e Souza enfatiza: “Eu acho que tem uma mitologia lá pra trás do fim da monarquia, e dos horrores que a acompanham, que pode estar ligada a essa lenda da princesinha que desaparece, que foge.” Ou seja, diversos padrões são identificáveis entre as Revoluções Russa e Francesa: os dois são os primeiros casos da história moderna onde o povo se levanta para destronar e sacrificar o rei – são revoluções de caráter popular, regicida e liberal, onde justiça social é feita mesmo que possa envolver meios cruéis. Tanto Luís XVI quanto Nicolau II entraram para a história como reis fracos, incapazes de perceber e enfrentar a situação social extremamente tensa em que se encontravam. Da mesma maneira, tanto Alexandra quando Maria Antonieta, as consortes dos monarcas da época, eram intensamente odiadas pela população. O povo francês chamava sua rainha de l’Autrichienne, um trocadilho que literalmente significa a austríaca mas que também soa como l’autre chienne: a outra cadela. Alexandra, por outro lado, era chamada de a alemã pelo povo russo, o que, nos tempos da Primeira Guerra Mundial, era uma ofensa por si só. Assim, é possível que, em meio a tantos padrões identificáveis, tenha se incentivado a sobreposição das figuras históricas Maria Teresa/Anastásia – se a primeira escapou, por que a segunda não poderia? O caso interessante e possivelmente verdadeiro em algum nível. Mas a evidência não é suficiente como uma explicação completa: o caso de Maria Teresa é relativamente pouco conhecido, e ela está longe de ser a grande protagonista da Revolução Francesa – este papel é ocupado por Maria Antonieta. Por outro lado, a densidade imaginária de Anastásia supera em muito a de sua mãe, Alexandra. Para compreendermos o caso Anastásia, temos que ganhar alguma distância deste ponto de vista puramente racional e histórico e analisá-lo por um campo mais imaginário: o da mitologia. Como vimos no segundo capítulo, segundo a teoria de Peter Burke, a “mitogenia” de um indivíduo se daria na percepção de enquadramento de aspectos da vida dele em algum estereótipo vigente, de herói, bandido, feiticeiro, etc. Antonio Callado, em seu Esqueleto na Lagoa Verde, no qual narra sua busca pela ossada do Coronel Fawcett, desaparecido em 1925 enquanto buscava um Eldorado no sertão 68


brasileiro, se faz um questionamento interessante: “Não são só os Fawcett que desaparecem. Eu mesmo, na minha família, tenho um desaparecimento de truz.” Trata-se do tio-avô do autor, Dario Rafael Callado, que saiu de casa uma noite em 1867 para tomar ar fresco e nunca mais foi visto. A diferença é que hoje, mesmo na sua cidade, Dario Rafael Callado está inteiramente esquecido, e apostamos que Fawcett (a menos que se prove sua morte), ainda será lembrado de muita gente no mundo inteiro daqui a cem anos. Por quê? Porque não há nada mais sólido que as lendas e P. H. Fawcett se identificou com uma das lendas matrizes da humanidade: a da Cidade Abandonada. (CALLADO, 1977, p. 108)

Trata-se da mesma mecânica. Esta associação se dá pelos mecanismos psicológicos de “aguçamento” ou “nivelamento” – os mesmos mecanismos que nos permitem aprender. O aguçamento é “estranheza”, a percepção de incoerência dentro de um padrão; o nivelamento, de harmonia. Segundo o Dicionário Técnico de Psicologia, estes dois conceitos, relacionados à assimilação, permitem “a incorporação de novos conteúdos e situações aos que já são conhecidos do indivíduo e no ajustamento deste à nova organização cognitiva”. É importante lembrar que a cova dos Romanov só foi encontrada em 1979, e a autorização para exumação dos corpos só foi concedida em 1991. São mais de 70 anos sem que a prova definitiva da execução dos Romanov – seus ossos – seja fornecida. Aqui também temos um caso análogo ao de D. Sebastião, cujo corpo nunca foi encontrado. A ausência de evidência, de prova concreta e definitiva, cria um vazio que precisa ser preenchido. Quando um historiador se depara com um destes vazios, utiliza um mecanismo de “imaginação histórica”: cerca este “buraco” com a maior quantidade possível de evidência e, onde ela não existir, cria uma teoria baseada em probabilidade e analogias. Ainda falando do sebastianismo: embora o corpo – que seria a maior evidência de sua morte – jamais tenha sido encontrado, os historiadores ainda marcam seu falecimento no dia 4 de agosto de 1578. Foi o dia em que os portugueses perderam a batalha de Azila e quase 60 mil homens do exército português pereceram. 69


A última vez em que o rei foi avistado, ele estava partindo para a batalha, e depois disso desapareceu. É verdade que não há corpo, mas toda a evidência sugere que foi aí que D. Sebastião pereceu: imaginação histórica. Entretanto, este é um mecanismo que um profissional usa. Ainda segundo Laura de Mello e Souza, em entrevista: “Quando você tem buracos você preenche com imaginação. O povo preenche com lendas, com o acervo que ele tem.” Para os historiadores, d. Sebastiao morreu em Azila – para o imaginário popular, ele se enquadrou no estereótipo do “rei herói”, como Arthur e Frederico Barbarossa, e ainda se espera o seu retorno. Sua morte, como no caso de Anastásia, é ponto de partida mais do que ponto de chegada. Como nos diz Ferrier-Caverivière: “impregnada de mistério, favorável ao indizível, ao inexplicável e ao sagrado, a morte cria assim um contexto em que o mito pode naturalmente se formar.” (p. 386) O caso dos Romanov é repleto destes enquadramentos em estereótipos. Tradicionalmente, histórias começam com o que Vladimir Propp, em Morfologia do Conto Maravilhoso, chamou de "situação inicial estática" – as personagens e suas condições são apresentadas antes que se inicie a ação. Frequentemente, esta situação inicial é a de um casal sem filhos: "Era uma vez um rei e uma rainha que eram muito desgostosos por não terem filhos, mais desgostosos do que se pode imaginar" (p. 89). Assim começa A Bela Adormecida de Perrault. "Era uma vez uma mulher que muito queria ter uma criancinha bem pequena e não sabia onde ir buscála. Por fim, ela visitou uma fada." (p. 45) Assim começa A Polegarzinha de Hans Christian Andersen. Os exemplos se multiplicam: O Porco Rei, Momotaro, a Princesa de Belle-Étoile, a história de Sara na Bíblia. Todos têm como parte da situação inicial um casal que queria ter filhos mas não pode por um ou outro motivo. O casal de fazendeiros que encontra o Super-Homem é um exemplo mais recente, assim como a rainha amazona que queria uma filha mas morava em uma terra sem homens, a quem magicamente é concedida a menininha que viria a se tornar a Mulher-Maravilha. Analogamente, Nicolau e Alexandra, na Rússia do fim do século XIX, queriam especificamente um menino para herdar o trono - e no entanto foram pais de quatro meninas antes de poder dar à Rússia seu herdeiro. Destes cinco filhos, a menos importante era a mais nova das meninas. Alexei, como o czarevitch, era hierarquicamente superior a todas as suas irmãs: entre elas, a hierarquia era 70


determinada pela idade. Era Olga, a mais velha, quem andava na frente nos cortejos, seguida por Tatiana, Maria e, por fim, Anastásia. Como vimos no primeiro capítulo, quando a caçula das meninas nasceu, sua tia, a Grã-Duquesa Xênia, chegou a escrever em seu diário: “Que desapontamento... uma quarta menina”, e o czar Nicolau deu um longo passeio pelo jardim antes de ir visitar o bebê. Chega a parecer irônico que tenha sido justamente esta menina, a menos importante da família, quem entrou para a história – mas por outro lado, talvez o ponto seja justamente este. Segundo um artigo do site Sur La Lune, dedicado a coletar e interpretar contos de fada do mundo inteiro, “o folclore tradicional se interessa primariamente por filhos únicos ou irmãos mais novos”. É fácil lembrar de diversos exemplos: em O Gato de Botas, o futuro “Maquês de Carabás” é o irmão mais novo; na versão tradicional de A Bela e a Fera, Bela é a mais nova das três. O Pequeno Polegar também é o mais novo de sete irmãos, assim como A Pequena Sereia é a mais nova de sete irmãs. Cerca de dois terços das Fábulas Italianas reunidas por Ítalo Calvino têm um filho mais novo como heroi: “Era uma vez um homem pobre/uma mulher pobre/um rei que tinha três filhos/filhas. O(a) mais novo(a) era o(a) mais bonito(a)/mais gentil/mais inteligente...” Existem algumas teorias sobre o porquê desta preferência. Presumivelmente, os filhos mais novos receberão a menor parte da herança dos pais. Assim, faz sentido que sejam eles os que precisem atingir fortuna através dos próprios feitos. Basta lembrar do já citado exemplo do Gato de Botas: o filho mais velho recebe como herança o moinho do pai; o do meio, seu burro; e para o mais novo restou apenas o gato. Segundo a pesquisadora Maria Tatar, presidente do Programa de Folclore e Mitologia em Harvard, em seu livro Contos de Fadas – edição ilustrada & comentada: ”na maior parte das trincas de irmãos do mesmo sexo nos contos de fadas, o mais novo, em posição de desvantagem, é superior aos dois mais velhos” (p. 68), o mais novo não é o herói apesar de sua posição de desvantagem, mas por causa dela. Em termos de moral: “são os modestos, os humildes, e muitas vezes os esbulhados que são elevados a uma condição nobre”. (p. 238) Em segundo lugar, a maior parte destas histórias diz respeito ao drama do crescimento – à transformação da situação inicial, na casa dos pais, em aventuras no mundo e, ocasionalmente, em casamento. Daí também viria a preferência pelo filho 71


mais novo. Segundo Mário e Diana Corso, em Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis: Acreditamos que a persistente escolha do filho caçula para encenar o drama da separação dos pais e do crescimento necessário deve-se ao fato de que se supõe que ele será o último a sair de casa, a casar. Antigamente, inclusive, existia a regra de que as filhas se casassem por ordem de nascimento, de tal forma que nenhuma pudesse casar antes que sua irmã mais velha. Da mesma forma como o primogênito paga o preço da inexperiência de seus pais, o caçula fica com o ônus da resistência destes de ver a família se dissipar. (CORSO e CORSO, 2006, p. 105)

Assim, talvez não seja ironia que a caçula, a menos importante dos Romanov, tenha sido aquela que entrou no imaginário popular, e sim mais uma percepção de enquadramento diante do fato de que os heróis populares geralmente são os mais novos. Outras destas coincidências: a beleza. Tradicionalmente, em mitologia e folclore, beleza estética é um reflexo de beleza ética. Associa-se o belo ao bom. Mesmo nas histórias em que as heroínas são forçadas à companhia de um marido gentil, mas monstruoso (Eros e Psiquê, A Bela e a Fera, A Princesa e o Sapo, Belinda e o Monstro, O Príncipe Urso, O Czarevitch Encantado. Existem diversos exemplos de narrativas semelhantes, variando o tipo de monstro em que o marido se transforma de acordo com a cultura: no Japão temos O Genro Macaco; na América do Norte, O Touro da Terra), ele invariavelmente se torna um belo homem ao final da narrativa. Há algumas exceções notáveis, como a bonita, mas terrível, madrasta da Branca de Neve – que neste caso sofre do mal contrário, sendo vítima de sua extrema vaidade. Mas estes casos são raros. De um modo geral, tanto na mitologia quanto nos contos de fadas, a beleza da alma se reflete na beleza do corpo. Os Romanov eram uma família real excepcionalmente bela. O bailarino George Balanchine, do Balé Imperial Russo, conta que foi levado ao camarote da família imperial depois de uma apresentação de A Filha do Faraó e, tentando posteriormente descrever suas impressões da imperatriz, disse “Linda, linda – como Grace Kelly”. (citado em MASSIE, 1967, p. 363) As quatro filhas são bastante diferentes entre si: 72


Tatiana e Maria parecem ter herdado os traços do pai e se tornaram belezas russas: têm os rostos redondos, os cabelos densos. Já Olga e Anastásia parecem ter saído mais à mãe e se tornaram belezas germânicas, esguias e de cabelos finos e acobreados. Uma aparência mais ao gosto dos padrões de beleza ocidentais do século

XX.

A

Baronesa

Buxhoeveden,

dama-de-companhia

da

czaritsa,

posteriormente descreveu que “Anastásia Nikolaevna, se tivesse crescido, talvez tivesse se tornado a mais bonita das irmãs. Ela tinha traços regulares e bem demarcados”. Já Pierre Gilliard considerava Olga a mais bela, apesar de destacar que Tatiana “era muito bonita, embora não tivesse o charme de Olga”. Já Gleb Botkin, filho do médico da família, escreveu que “Maria era sem dúvida a mais bonita das quatro – uma autêntica beleza russa”. Assim, é impossível fazer uma afirmação como “Anastásia era a mais bela das meninas”, pois evidentemente beleza é um fator muito subjetivo e mutável e as quatro meninas eram muito bonitas – aliás, um acontecimento bastante raro entre famílias reais. Mas certamente a beleza dos Romanov e, particularmente, de sua filha caçula, contribuiu em muito para o mito que os cerca, aumentando sua aura de mártires. Existe também a questão do nome: Anastásia vem do grego anastemi, significando “ressureição”. É derivado de aná, “novamente”, e histemi, “ficar de pé” ou “erguer-se”. Ou seja, o próprio nome Anastásia teria servido como uma espécie de prenúncio daquela que “se ergueria novamente” – aquela que são seria abatida pela revolução. Um determinismo nominativo, por assim dizer. Heroínas em contos de fada frequentemente têm nomes significativos: Cinderela, por exemplo, tem um nome que remete às cinzas em todas as línguas (comparar com o francês Cendrillon, o italiano Cenerentola, o alemão Aschenbrödel e o português Gata Borralheira); o nome da Branca de Neve remete à cor de sua pele e o de Rapunzel à planta pela qual sua mãe ficava desejosa durante a gravidez (em português, rapôncio). Os nomes de Polegarzinha e do Pequeno Polegar também dizem respeito aos seus tamanhos diminutos. Também contribui o fato de que, enquanto os nomes das outras irmãs são relativamente populares no resto do mundo (Olga, Tatiana e Maria), Anastásia é um nome quase que exclusivamente do leste europeu. Como ele soa muito mais estrangeiro aos ouvidos ocidentais, faz sentido que seja mais fácil de associá-lo ao que King e Wilson chamaram de “a encarnação viva de um passado exótico e brilhante”. 73


Mais um fator de enquadramento que não se pode ignorar nesta história: Grigori Rasputin. O “monge louco”, o “demônio santo”, acabou se tornando tão famoso quanto a família em si. Ele é, provavelmente, uma das figuras históricas mais complexas e difíceis de definir que já existiu. Um camponês siberiano semianalfabeto que se tornou um dos homens mais poderosos da Rússia no seu tempo. E sua vida de luxos, prostitutas e bebida se tornou tão famosa quanto seus supostos “poderes mágicos”, que lhe permitiam estancar os sangramentos de Alexei. À sua fama de bruxo acrescenta-se, também, uma lenda de que ele teria previsto a própria morte, deixando como testamento a seguinte profecia: Czar Russo! Eu tenho o pressentimento de que deixarei este mundo antes de primeiro de janeiro. Se eu for morto pelos meus [pelos plebeus], então você não tem o que temer. Mas se eu for morto pelos seus [pelos aristocratas], então nenhum membro da sua família sobreviverá mais de dois anos. (Tradução nossa)21

Este texto, atribuído a Rasputin, foi primeiramente citado pelo seu secretário e contador, Aron Simanovitch, em suas memórias. Depois, foi transcrito em numerosos livros a respeito do monge. Ele realmente foi assassinado por um príncipe no dia 16 de dezembro, e toda a família real foi fuzilada quase exatamente um ano e meio depois, na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918. A profecia é impressionante, mas é verdadeira? O próprio Radzinski a coloca em xeque em seu O Arquivo Rasputin: “Esta ‘profecia’, como tantas ‘profecias’ similares, foi publicada depois da execução da família real, e foi sem dúvida escrita pelo próprio Simanovitch”. Para começar, o mujique jamais chamaria Nicolau II de “czar russo” – ainda segundo Radzinski “Não apenas Rasputin não podia se dirigir ao czar desta maneira como nenhum russo podia.” Sendo a profecia verdadeira ou não, ela é seguida pelo relato famoso (e de veracidade igualmente duvidosa) contado pelo príncipe Felix Yassupov, seu assassino, sobre como Rasputin continuou vivo após “veneno o suficiente para matar um rinoceronte”, espancamento e tiros. Este mito já foi desconstruído (como vimos no 21

Russian Tsar! I have a presentiment that I shall leave this world before the first of january. If I am killed by my own, then you, Tsar, will have no one to fear. Remain on your throne and rule. But if the murder is carried out by your kinsmen, then not one [member] of your family will survive more than two years. (citado em RADZINSKI, p. 495)

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capítulo 1), mas de uma forma ou de outra foi o que entrou para a história. O semianalfabetismo de Rasputin não permitiu que ele deixasse sua própria história registrada: esta teve de ser contada por outros, geralmente ou seus apoiadores ou seus inimigos. Todos os relatos são parciais. É difícil distinguir onde termina a história e começa a difamação; onde fica a verdade, onde está a fé. Edvard Radzinski, ainda em O Arquivo Rasputin, angariou as descrições físicas do mujique feitas na época por diversas pessoas que o conheceram. É uma coletânea estranha e desconexa, que ilustra muito bem a dificuldade que temos atualmente em traçar um perfil preciso dele: Seu rosto, registrado em inúmeras fotografias, é descrito de forma muito similar pelos que o viram: a face enrugada, queimada de sol e talhada pelo clima, de um camponês russo de meia idade. Um rosto estreito com um nariz grande e irregular, lábios grossos e sensuais, e uma longa barba. Seu cabelo repartido ao meio e penteado sobre a testa (...). Seus olhos, também descritos de forma muito parecida por várias testemunhas, atraem mesmo em fotografias:

‘o

olhar

instantaneamente

caloroso

e

magnético de seus olhos claros onde não apenas a pupila, mas o olho inteiro, te encara’ (Zhukovskaya); ‘olhos profundos e difíceis de suportar’ (Dzhanumova); ‘o poder hipnótico

brilhando

em

seus

olhos

excepcionais’

(Khvostov). Mas assim que as testemunhas param de falar das fotografias começa o mistério. Curiosamente, ele é descrito de formas inteiramente diferentes. Me diverti transcrevendo as diversas descrições deixadas pelas pessoas: ‘alto’, ‘baixo’, ‘aprumado, embora de uma forma camponesa’, ‘imundo e descuidado’, ‘esguio’, ‘encorpado e com ombros largos’. O cantor Belling, que viu Rasputin muitas vezes, descreveu seus dentes podres e mau hálito. Mas a escritora Zhukovskaya, que o conheceu muito bem, nos diz que ‘seus dentes eram perfeitos e ele os tinha todos, e seu hálito era fresco; dentes brancos de mastigar, 75


fortes como os de uma fera.’ ‘Sua boca era muito grande, e no lugar de dentes via-se algo parecido com tocos enegrecidos,’ escreveu seu secretário, Simanovitch. Mas seu admirador Sazonov, que visitou Rasputin muitas vezes, viu ‘dentes brancos e fortes’. (Tradução nossa)22

Assim, em termos de história, o retrato que temos do “demônio santo” é extremamente difuso. Mas para o imaginário popular, isso é muito pouco relevante. Pouco importa que a verdadeira Cleópatra tivesse cachos dourados e um nariz grande: à menção do nome, a imagem de Elizabeth Taylor com seus densos cabelos pretos e delineador puxado de canto é quase inevitável. A poucas moedas restantes do Egito de 50 A.C., que ilustram o perfil da rainha, não conseguem competir com Shakespeare, Delacroix e a 20th Century Fox. Da mesma maneira, Rasputin ficou registrado como um vilão perfeito. Tanto é que precisou passar por pouquíssimas alterações para se tornar um autêntico antagonista de desenho animado: mantiveramse quase todos os seus traços físicos, como a barba e cabelos longos, os olhos grandes, os trajes de mujique. Ele cria com Anastásia um verdadeiro contraste: a bela a ingênua filha mais nova do czar, o bruxo lascivo e manipulador. São como Helena, a Bela, e Baba Yaga – a princesa e a vilã mais tradicionais dos contos eslavos. Helena, como Anastásia, era a filha mais nova de um czar, e como ela, era jovem, ingênua e bonita. Baba Yaga, como Rasputin, era uma bruxa que, através de seus favores mágicos, tentava obter benefícios. E, como ele, ela também era difícil de entender: às vezes ajuda, às vezes atrapalha; às vezes maternal e às vezes diabólica.

22

His face, left behind in numerous photographs, is described in much the same way by those who saw him: the wrinkled, sunburned, weather-beaten face of a middle-aged Russian peasant. A narrow face with a large, irregular nose, thick sensual lips, and a long beard. His hair is parted down the middle and combed across his forehead (…). His eyes, also described in much the same way by the various witnesses, attract even in the photographs: ‘The instantly blazing, magnetic gaze of his light-coloured eyes in which not merely the pupil but the whole eyes stares’ (Zhukovskaya) ‘Deep-set unendurable eyes’ (Dzhanumova); ‘The hypnotic power shining in his exceptional eyes’ (Khvostov). But no sooner do the witness depart from the photographs than the mystery begins. Amusingly, they describe him in entirely different ways. I enjoyed writing down the various descriptions left by people: ‘tall’, ‘short’, ‘neat in a peasant way’, ‘filthy and sloppy’, ‘slender’, ‘stocky with broad shoulders’. The singer Belling, who saw Rasputin many times, writes of his rotten teeth and foul breath. Yet the writer Zhukovskaya, who knew him extremely well, tells us that ‘his teeth were perfect and complete down to the very last one, and his breath was absolutely fresh; white teeth for chewing, as strong as a beasts.’ ‘His mouth was very large, and instead of teeth you saw something like blackened stumps in it,’ wrote his secretary, Simanovitch. But his admirer Sazonov, who visited Rasputin many times, saw ‘strong white teeth’. (RADZINSKI, 2010, p. 01)

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É com estes contornos e formas que estas figuras histórias dialogam: com personagens de contos eslavos. 3.1 Conclusão Como definir o fenômeno Anastásia Romanov? Ela era uma jovem desimportante quando desceu para o porão da casa de Ipatiev na madrugada de 16 de julho de 1918. E de lá ela emergiu como uma verdadeira heroína, dona de uma força impressionante. Não existe resposta simples para esta pergunta. E é justamente por não ter resposta simples que ela é tão interessante. Nesta história, fato parece ficção, e talvez por isso a ficção sobre ela pareça fato. Regimes monárquicos, como regimes revolucionários, têm muita facilidade para criar mitologias em torno de si, e aqui busquei mapear as raízes de um dos fenômenos de história cultural de maior circulação no século XX. Mas é uma história cultural, e, particularmente, a história de um fenômeno mental, então devemos lidar com ele sabendo que haverá deformação, lacunas, não-ditos e muito poucas respostas definitivas. Para a historiadora Nicole Ferrier-Cavirivière, “mesmo que se consiga reconstituir a verdade do real... não há em caso algum como apagar os vestígios da criação mítica. O herói que nasce desta última e o herói da história existem lado a lado, como duas realidades diferentes, quase estranhas uma à outra.” O discurso não pode ser no sentido de “um ou outro”, de um obscurantismo histórico. Ou seja, debruçar-se sobre um fenômeno imaginário não é dizer que os acontecimentos reais sobre os quais este fenômeno se construiu deixem de importar. Ei-los: Em 2007, seis quilômetros ao norte de Ecaterimburgo e não muito longe do local onde tinham sido encontrados os ossos do czar e da czaritsa, o arqueólogo amador Sergei Plotnikov descobriu dois esqueletos incompletos, danificados por ácido e fogo. Os esqueletos pareciam pertencer a um garoto com idade entre 10 e 13 anos e a uma moça com idade entre 18 e 23. O DNA confirmou: eram os dois Romanov que faltavam. Uma das mais perenes lendas da realeza finalmente resolvida. A verdadeira Anastásia foi acordada às pressas, junto com o resto de sua família, na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918 e levada para o porão da casa de Ipatiev. Lá ela foi fuzilada juntamente com seus pais, irmãos e alguns criados. Mas 77


foi a última a morrer: de acordo com o relato de Alexander Strekotin, do esquadrão de fuzilamento, conforme os corpos eram retirados para as caminhonetes, uma das meninas – a menor – repentinamente se sentou e começou a tossir sangue e gritar. Ela foi silenciada com golpes de cabo de baioneta: foi assim que morreu a verdadeira Anastásia. Depois, seu corpo foi despido, cortado em pedaços, desfigurado com ácido, queimado e, finalmente, enterrado em uma tumba rasa, na Sibéria, onde ficou por quase um século. A menina tinha acabado de completar dezessete anos. Mas o imaginário popular, personificado na figura de Anna Anderson, lhe deu outro destino. Através dela, o mundo viu uma Anastásia que sobrevivera a Ecaterimburgo, aparecendo em livros, filmes e revistas para um público fascinado. Embora os mecanismos e motivos sejam complexos, não é difícil entender por que esta narrativa foi preferida à outra. Esta é a força do mito: a esperança de que talvez a sina daquela princesinha encantadora tivesse sido um pouco mais leve. Mas não foi. A verdadeira Anastásia, a Anastásia genética, biológica, morreu no verão de 1918. Foi a Anastásia mítica, lendária, quem sobreviveu – mas uma não é mais importante do que a outra. É a primeira, aliás, que nada de importante fez em vida: a segunda, a que sobreviveu ao massacre, é a extraordinária. E ambas se fundem nas páginas da História. Em 1981, os Romanov foram canonizados pela Igreja Ortodoxa Russa e designados Portadores da Paixão. É possível comprar ícones religiosos com seus rostos como souvenires em vários lugares. Em julho de 2007, a Conferência de Turismo da Rússia propôs uma “Rota dos Romanov”, que inclui São Petersburgo, Kazan, Tobolsk e Ecaterimburgo. O projeto foi aprovado, e hoje é possível realizá-lo. Na mina onde os corpos estavam enterrados hoje há um monastério e sete igrejas – uma para cada Romanov – de madeira de pinheiro, construídas sem um único prego. O local também tem um campo de lírios brancos e recebe milhares de peregrinos todos os anos. A névoa de santidade que envolve a família apenas aumenta com o passar do tempo – assim com a aura de heroína de conto de fadas de sua filha mais nova e a reputação de vilão de Rasputin. Mas não é justamente esta névoa (não só de santidade, mas também de heroísmo, inocência, martírio, amor e morte) que os

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impede de cair no esquecimento? Nesta pesquisa, meu objetivo não foi tentar dissipála, como fazem os historiadores, nem adensá-la, como fazem os crentes. Esta pesquisa é sobre a névoa.

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Acima, Rasputin no filme Anastásia, da Fox, 1997. À direita, Grigori Rasputin, em 1905. (Foto: Arquivo do Estado Russo)

Da esquerda para a direita, Anastásia, Olga, Maria e Tatiana em uma sessão de fotos formal em 1916. (Foto: Arquivo de Estado Russo)

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ANEXO A TRECHOS SELECIONADOS – ENTREVISTA LAURA DE MELLO E SOUZA 16/01/2013

Você se lembra da “Anastásia de Poços de Caldas”? Quando eu era pequena saiu um número da revista o Cruzeiro (...) onde tinha umas fotografias de uma velha horrível e falava “A Princesa Anastásia!”. Aí eu fiquei interessada na história, perguntei pro meu pai quem era a princesa Anastásia... Ele disse que era uma princesa russa que teria escapado do massacre e que moraria em Poços de Caldas. Depois que você me escreveu eu liguei pra ele e disse “O que você lembra da princesa Anastásia de Poços de Caldas?” Ele falou o seguinte: que essa princesa era uma senhora com uma cara muito estranha – ele falou que parecia uma ‘abantesma’, uma assombração -, que tinha um olho redondo de coruja e andava sempre com um capote verde, fizesse inverno ou verão, e que a gola do capote era de astracã. E um chapéu de astracã também. E por baixo do chapéu saía um cabelo vermelho pintado. Meu pai tinha uma amiga, uma velhinha chamada dona Teresina Roque – uma mulher muito culta, ele até escreveu sobre essa velhinha –, viúva de um maestro italiano e anarquista. Ela tinha convivido com vários anarquistas italianos, socialistas e tudo. Hoje, na cidadezinha em que ela nasceu tem até uma praça com o nome dela. Essa dona Teresina disse uma vez pro meu pai: “Essa princesa russa é uma princesa muito culta. Ela é uma mulher de família muito importante e é uma mulher muito culta”. E na verdade, depois papai descobriu que na verdade ela se chamava princesa Fulana-deTal Dolgoruki. É uma família nobre muito importante de Rússia. E teve até uma princesa Dolgoruki chamada Catarina que foi amante do Czar Alexandre II, que libertou os servos na Rússia. E parece que é da descendência desse romance que nasceram as crianças que o czar nomeou príncipes Iurievski. Então parece que essa 84


princesa de Poços era uma princesa Dolgoruki. Eu não sei se ela chamava Anastásia Dolgoruki, talvez fosse. O que aconteceu nessa ocasião que eu vi essa reportagem foi o seguinte: um senhor que era advogado em Poços de Calda, o dr. Jair Pinto de Moura contou que tinha recolhido essa senhora na casa dele, porque ela era muito pobre, e que ele dava casa e comida pra ela. Era um homem bom. E que essa mulher, quando perguntavam pra ela se ela era a princesa Anastásia, ela abaixava a cabeça, ficava quieta e não respondia nada. O meu pai acha é que ela não era, evidentemente, e sabia que não era – mas fazia um ar misterioso para poder usufruir da casa, da comida e da caridade desse senhor. E esse senhor provavelmente também sabia que ela não era a princesa Anastásia, mas deu uma entrevista pro Cruzeiro porque achou que era uma coisa sensacional. (...) Acho que seria interessante você pensar nesse imaginário em torno dela, porque como ela teria desaparecido, ela teria ido pra lá, ela teria ido pra cá, tem toda uma lenda. (...) Eu acho que tem a ver com a questão da violência. Quando eu entrei pra faculdade, com 18 anos, eu e todo mundo achávamos que tinha sido certo executar a família real. Assim como eu achava que tinha sido certo executar Maria Antonieta e Luís XVI. Hoje em dia eu fico horrorizada só de pensar nisso. Porque naquela época a gente acreditava no triunfo do socialismo, que o mundo ia ser mais igual e tudo isso. Depois que a gente viu o que virou a União Soviética e a barbaridade que fizeram pra virar um país capitalista igual a todos os outros... E também a questão do pacifismo eu acho que pôs muito os pingos nos iis. Toda essa geração pacifista, anti-guerra. Hoje em dia a gente olha isso com horror. Talvez fosse interessante você pensar que existem determinados acontecimentos que funcionam como mitos fundadores. Talvez o mito fundador aí ainda seja a Revolução Francesa. Como os reis são destronados? Porque o rei, no mundo da monarquia, o mundo do Antigo Regime – o mundo antes da Revolução Francesa – tem um caráter divino. Em uns países mais, em outros países menos. No Japão tem: o imperador É Deus. Na monarquia da Inglaterra e da França existe um caráter divino muito acentuado. Na portuguesa não.

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Então, no século XVII, na monarquia francesa, surge toda uma teoria de que diz que o rei é rei por direito divino. E desde a idade Média na Inglaterra e na França que os reis tem – dizem – o dom de curar determinadas doenças. Se você tem doença de gânglios, tuberculose, coisas assim, eles chegam com a palma da mão – e te curam. É o dom taumatúrgico. Então os reis tem esse dom que pessoas normais não tem: são sacerdotes, santos. No caso dos russos eu conheço pouco, mas acho que principalmente a partir de Alexandre I – que era todo místico, se envolvia com várias facções religiosas e foi visto como o salvador da Europa, por libertá-la de Napoleão Bonaparte, que era o anticristo; foi o homem da Santa Liga - a monarquia russa se impregnou também desse caráter divino. Mas voltando pra trás. Os reis não podem ser tocados, não podem ser destronados, em determinadas monarquias eles tem esse caráter meio sagrado... E o primeiro grande acontecimento contra a monarquia na Europa foi quando, em 1640, começou uma revolução na Inglaterra e eles depuseram o rei. Veio Oliver Cromwell, o país se dividiu: os aristocratas contra o exército plebeu. E Carlos I acabou sendo executado. A família foi exilada na França, depois retornou com a monarquia restaurada: assumiu o filho dele, Carlos II, depois o irmão, Jaime II, e mais uma vez uma destronação. Aí vieram os parentes protestantes da Holanda. Agora, dessa 2ª vez não mataram ninguém. Foi o grande precedente que criou uma vulnerabilidade na monarquia europeia. Mas o que provocou maior trauma foi a Revolução Francesa. A Revolução Inglesa não teve o poder de se espalhar como a francesa. Porque não foi uma Revolução do povo, talvez. Foi das Elites. É. As elites, ao menos, foram vitoriosas. (...) Então você tem razão: a Revolução Francesa foi muito mais popular e muito mais violenta. Queimaram castelos, mataram um monte de gente, a guilhotina e tudo. Você conhece a história de Luis XVI: ele foi executado, o príncipe morreu na prisão, depois executaram Maria Antonieta... Mas a menininha, Madame Royale, sobreviveu. Eu não sei se seria interessante você ler alguma coisa sobre Madame Royale para pensar a Anastásia. Ela sobrevive, vai pra Áustria, se casa com um primo. Eu sei que se criou uma mitologia em torno do fim da monarquia que abalou todas as cabeças coroadas da Europa.

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Ela era filha da imperatriz da Áustria, a Maria Teresa, que tinha um monte de filhos. E uma dessas filhas, irmã mais velha da Maria Antonieta, era rainha de Nápoles – a Maria Carolina de Nápoles. Essa ficou doida também quando a irmã foi executada. Passou o resto da vida meio desequilibrada e se viciou em ópio. Ela era uma mulher muito inteligente, mais inteligente que a Maria Antonieta. Mas os historiadores dizem que o grande marco na vida dela foi a execução da irmã. Eles viviam morrendo de medo de perderem a cabeça. Portanto, eu acho que tem uma mitologia lá pra trás do fim da monarquia, e dos horrores que acompanham o fim da monarquia, que pode estar ligada a essa lenda da princesinha que desaparece, que foge. E uma princesa muito bonitinha. A família era linda, não era? Era uma família raramente bonita, principalmente entre as monarquias. A Revolução Francesa é muito interessante porque ela apresenta todas as etapas que depois vão aparecer nas outras grandes revoluções, como a russa e a cubana. Elas tem aproximadamente os mesmos momentos da Revolução Francesa. Começa uma tentativa de transformação radical; aquilo não dá certo, mas a radicalização continua; parte pro terror e por fim ela estabiliza num certo retrocesso. (...) Esse momento em que desaparecem os reis é quando a violência começa a atingir o pico. (...) Talvez fosse interessante pensar na construção desses imaginários políticos. Porque essa menina assumiu esse papel? Porque se criou essa mística em torno dela? Eu acho que criam-se mística em torno dessas monarquias absolutas em parte para justifica-las. Por que ela ficaram até aquele momento ali? Dizer que o rei é um homem diferente dos outros, que ele tem atributos que os outros homens não tem, que ele foi investido por poderes divinos. E depois, acho que o trauma provocado pelo fim da monarquia francesa. (...) Muitos nobres que tinham um espírito mais liberal, com a execução dos reis eles voltam pra trás. Eles dizem “não, assim não é possível”. A execução dos reis marcou o começo do terror revolucionário. Eu acho que valia a pena você perder um pouco de tempo com a Revolução Francesa, que sedimentou o imaginário do fim da monarquia como uma atrocidade. Essas princesas são vítimas. E acho que no caso dela o que pega é que ela era muito bonita, muito nova. 87


No caso de D. Sebastião tem outro componente – se associa o rei com a salvação nacional. Tanto que tem aquele dito: “O rei morreu, viva o rei.” Quando o rei morria, na França, chega o emissário – um porta voz da monarquia, um chanceler, ou uma grande membro da corte – chega para o pública na janela do castelo e diz “le roi est mort. Vive le roi!” então “Morreu Henrique IV, viva Luís VIII!”. O rei morrei – morreu o pai – viva o rei – viva o filho! A monarquia não morre nunca. O rei tem dois corpos: o rei tem um corpo físico e tem um corpo político. E o corpo político dele pode ou não ser divinizado. O corpo físico se vai quando termina a vida dele, mas o político não morre nunca, está sempre ressurgindo. Tem alguns lugares na Europa – aliás, no mundo, porque aqui nós temos Canudos – que acreditam no milenarismo. Que depois de tanto sofrimento verá um tempo de bonança. Virão agora mil anos de felicidade. O Antônio Conselheiro dizia que o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão e que agora iam vir mil anos de felicidade. Isso é bastante ligado à bíblia hebraica – afinal os judeus estão até hoje esperando o Messias. Em Portugal existe uma influência grande desse pensamento milenarista. Antes do D. Sebastião morrer havia um milenarismo – um messianismo muito presente em Portugal. Os historiadores atribuem à presença forte dos judeus na península ibérica. Quando Sebastião morreu, logo depois veio a união ibérica: a Espanha anexou Portugal ao império espanhol. Então D. Sebastião ia voltar para livrar Portugal do domínio espanhol. E D. Sebastião já estava com 120, com 150, com 200 anos e continuavam esperando. Até hoje tem regiões onde se fala de D. Sebastião. A espera do rei que vai voltar tem a ver com a espera do Messias. Entronca a ideia da monarquia com a ideia do salvador da humanidade. Essa ideia messiânica também teve um pouco com D. João IV, quando teve a restauração em 1640, D. João IV foi visto como o Messias que ia salvar Portugal. Tem uma mística que envolve as monarquias porque é uma forma de diferenciar o rei. Senão, porque que ela é rainha e eu não? No século XVII, na França, tem a ideia do sangue azul. É uma ideologia difundida por um homem chamado Boullain-Villiers, que fala que o sangue é diferente. Não que eles achem que vai cortar e vai sair tinta de caneta, mas é quase uma coisa racial: os reis são reis porque eles tem atributos físicos que são diferentes. São justificativas para confirmar e legitimar o poder político. Conforme a sociedade vai ficando mais complexa, com cidades e homem muito ricos que não tem nobreza, como é que vai justificar a ideia de que um deles é melhor que 88


os outros? É porque Deus quis assim, porque o sangue dele é melhor, porque ele foi escolhido, porque ele pode curar com as mãos. A gente tende a pensar as formas políticas do passado da mesma maneira que a gente vê hoje, mas elas eram completamente diferentes. Hoje a legitimação política passa pelo voto, passa por uma série de mecanismos que antes não existiam. Então, os mecanismos acionados para estas pessoas justificarem o poder que elas tinham? Eram mecanismos irracionais – do nosso ponto de vista – e frequentemente religiosos. A religião e a política eram muito misturadas. Essa coisa do rei se mostrar, do rei dançar, do rei ser colocado em palco, de todo mundo ir ver o rei levantar e dormir – é parte de um sistema político que parece irracional para nós mas que exibia uma racionalidade na época. [Norbert Elias] é um sociólogo que desvenda os motivos por trás dessa etiqueta, por trás daqueles palácios enormes, por trás daqueles jardins maravilhosos. Dos nobres saírem em parada, em barcos. É uma coisa que só a nobreza pode fazer – os outros que fizerem isso são ridículos. (...) Claro que a Rússia do século XIX não era tão rígida quanto a sociedade prérevolução francesa, mas quem rompe mesmo com isso é a Revolução Russa. Existe uma mística em torno dessa princesinha que é uma mística que diz respeito a um mundo organizado segundo uma outra lógica. Que a princesa é mais bonita, é mais nobre, é diferente das outras. Então ela não podia ser tratada da maneira como ela foi. O crime de regicídio é um crime pavoroso. Quando são os príncipes que matam uns aos outros é uma coisa: é diferente do povo se voltar e matar o rei. Isso é gravíssimo. As conspirações palacianas não, acontecem o tempo todo. A própria Catarina matou uns dois ou três. A monarquia russa nos séculos XVI e XVII, quando os Romanov assumem, incluem várias conspirações palacianas em que eles se matam entre si: tira um da linha de sucessão pra por o outro, etc. Mas o povo invadir o palácio e matar o rei? Aí é um sacrilégio. Na Espanha tem o caso de Felipe II, cujo filho estava conspirando. Dizem que ele mandou matam. Nada é provado, mas ao que parece ele mandou matar o próprio filho. Porque isso acontece? Porque a razão do estado monárquico está acima de 89


tudo. O mais importante é o Estado manter a integridade. Afinal, eles vem da ressaca do feudalismo, que passa séculos para conseguir se unificar. A realidade do feudalismo é uma porção de príncipes e marqueses e um rei que ocupa um pedacinho do reino. Isso aparece ainda bastante do Shakespeare. O rei é um entre os senhores feudais. E o esforço do fim do feudalismo é o rei subjugando os outros senhores que, às vezes, são até mais importantes que ele. Então eles toleram mal qualquer tentativa de complô de outros príncipes. Agora, a novidade é o povo tentar matar o rei, isso aparece na Revolução Francesa. E é terrível, porque é um sacrilégio: vai contra a figura sagrada do monarca. Eu tenho a impressão de que o que também auxilia numa mitificação são buracos. Quando se tem buracos, cada um pode preencher como puder. Nunca se achou o corpo de D. Sebastião. Claro. Tem razão. Quando você tem buracos você preenche com imaginação. O povo preenche com lendas, com o acervo que ele tem. Hoje em dia, o fascínio imaginário é parte do estudo do objeto do historiador. Pra História do século XIX só era possível tratar de coisas que tinham acontecido, coisas concretas: uma batalha, um fenômeno. No século XX, com influência da psicologia e da psicanálise, já é possível falarmos de fatos imaginários. Isso a princípio seria um assunto mais da antropologia: símbolos, signos, mitos. Mas a história hoje em dia também trata disso. Qual deve ser a postura do historiador ao estudar um fenômeno imaginário? Ele deve agir consciente de que está lidando com um fenômeno mental, então tem que pensar na deformação, nos silêncios, nas lacunas, nos não-ditos. Isso quem nos ensinou foi a psicanálise. Às vezes, numa sessão de terapia, você está falando uma coisa e não está falando outra e o mais importante é justamente o que você não está falando. O bom psicanalista tem que saber disso. Muitas vezes o bom historiador também. Você falou dos buracos. O historiador pode preenche-los de duas maneiras: cercando o buraco é um deles. Por exemplo, você não tem o documento que comprova a morte da Anastásia, mas tem uma série de outros que indicam que ela foi trucidada também. 90


Então você aciona os documentos à volta para poder tratar daquilo que não está documentado. A outra possibilidade é você usar a sua imaginação e o seu raciocínio. Trabalhar por analogias. O personagem brasileiro que passou por uma mitificação mais forte talvez seja Tiradentes... Porque ele é a grande vítima. A essa altura ele é quase um santo. O José Murilo de Carvalho tem um artigo em que ele explica porque o Tiradentes virou o herói da república. Tem uma associação do Tiradentes com Cristo na maneira que ele é representado. Naquela época não se usava barba. “Ah, mas a barba cresceu na prisão!” – Pode até ser, mas mesmo assim, teriam cortado antes de enforcar, a barba e o cabelo. Então tem toda uma associação dele com a imagem de cristo. Tem aquele quadro do Pedro Américo, o Cristo Esquartejado, que está lá no museu do Ipiranga. A república precisava de um herói. E escolheram Tiradentes. Podiam ter escolhido outro, mas ele se encaixou em alguns aspectos: ele era militar, e a república foi um golpe militar, proclamada por um general. Então o Tiradentes é patrono do exército. Além disso, ele é um herói da pátria, que teria lutado pela liberdade do Brasil. É muito nítido como se constrói o mito do Tiradentes. Talvez esse também seja o caso da Anastásia. A heroína que o mundo capitalista encontrou para dizer “Olha quem esses monstros tentaram matar! Essa menina linda, inocente, pura...”

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ANEXO B ENTREVISTA – LILIA SCHWARCZ 22/01/2013

No seu livro As Barbas do Imperador você discute muito essa contraposição entre o D. Pedro real e o imaginário. Como historiadora e antropóloga, esse fascínio do imaginário é parte do estudo do objeto? Essa discussão sobre história e memória é o que eu faço no final do livro. Eu me fio cada vez mais num autor chamado Didi-Huberman. Ele chama a atenção para essa ideia de como não dá pra você fazer essa separação entre real e imaginário, entre memória e história. Esses limites são muito complicados. O que eu digo do D. Pedro é que eu queria que fosse menos uma biografia e mais um estudo sobre construção de mito, de lendas, de imaginário, de memória sobre D. Pedro. É o que eu imagino que é o seu trabalho. Quando você parte pra esse recorte, a sua metodologia também precisa ser diferente. Não é que você trata o sujeito como se ele nunca tivesse existido, mas você tem um recorte de construção da memória. Muitas vezes, em algumas circunstâncias, o mito é real e o real é o imaginário. O meu trabalho é menos ficar provando pro meu leitor se ele esteve ou não esteve naquela cidade e mais ficar refletindo com elas porque que se acha que ele esteve lá e qual a relevância disso. Como se constrói essa figura do imperador mítico. O que você acha que tornaria alguns monarcas mais mitificáveis do que outros? Acho que todo o monarca é mitificável. Eu trabalhei com uma biografia que trata de monarquias, de como elas são associadas a lendas. Eu acho que quanto mais um monarca fica popular – popular no sentido de ganhar força no imaginário nacional – mais ele vira matéria de lenda. Quanto mais ele é estranho ou artificial a esse contexto, menos popularidade ele tem. Mas o que eu falo no meu trabalho – e isso vem do Kantorowicz – é que a monarquia é o único sistema que incorpora o mito dentro da sua constituição. Eles eram mais que meros mortais. Eu falo da monarquia ocidental, 92


monarquias como Cleópatra eu não tenho condições de analisar, ficaria leviano. Mas a monarquia ocidental se organiza dessa maneira. O rei é divino e é terreno. É por isso que é difícil separar as duas figuras. Ela se constrói dessa maneira. Sim, é claro que monarquias são muito mais mitificáveis que repúblicas. Mas ainda assim não são todos os reis que entram pra história. Porque algumas pessoas se destacam nesse discurso imaginário? É a pergunta anterior. Porque algumas monarquias tem raízes em sentido mais amplo e outras não. Você tem alguns monarcas que, seja pela força bélica, seja pela força da comoção, seja pela força das artes, seja pela força do contexto em que elas estão, elas criam uma comunidade de sentido – como diz o Anderson, você conhece o Benedict Anderson? O Kantorowicz, o Benedict Anderson – então aí você tem figuras que ganham densidade de imaginário. Não são todas que ganham. Tem monarcas fracos que não vão ter essa densidade. Por exemplo, a diferença entre um D. Sebastião e um D. José. D. Sebastião morre numa cruzada, num momento heroico, combatendo os mouros... então ele puxa pra um imaginário. Já D. José é um monarca que vem depois de D. João V, num momento de crise com a qual ele não consegue lidar... então não há peso, não há imaginário possível. Então não é dizer que alguns monarcas são elevados, mas alguns ganham essa densidade. Você também fala de uma construção posterior desse imaginário. Por exemplo, D. Pedro foi resgatado como herói na república. Não só na república. Já havia uma construção no tempo do império, de um monarca mecenas. E aí há material para ser retomado na república. Você fala que num momento de crise a república resgata a ideia do imperador... Ao contrário. É no momento que ela sai da crise. É com Getúlio Vargas. Só aí a república tem força para competir com a imagem do imperador e tenta vincular sua imagem à dela. Ainda que essa construção não seja propriamente real, você acha que ela acaba ganhando mais peso no discurso da história do que os fatos ocorridos? Eu acho que sim. É por isso que eu acho que história e antropologia devem dialogar nesses casos tão de perto. Essa questão é muito boa. O fato é que você tem várias 93


ideologias. Uma ideologia tão forte quanto a da ciência ou a da história - o ocidente é um povo que pensa pelo tempo, concorda? – uma ideologia muito forte é a do senso comum. Então, imaginário, mitologia. Ela, num momento em que falta, ficam muitas vezes mais forte que o evento. Concorda? As pessoas recorrem aos mitos quando faltam os fatos. É por isso que eu acho que essa verdade que você está procurando é tão bacana. Não se pode dizer ‘não houve historia’, isso é um discurso obscurantista. Mas nesse discurso entre história e memória, a memória têm a maior importância. É aí que está a dificuldade do seu trabalho: como você vai se envolver entre história e memória. Isso não quer dizer que um é mais importante que o outro. Mas se você buscar esse ângulo entre história e memória você vai ver que a produção mítica é tão importante quanto a produção histórica. O que significa o corpo duplo? O que significa essa ideia de que as pessoas acreditam que você tem um Homem mas também tem um Deus que não pode ser julgado por nós? E é impressionante como isso ainda paira no Brasil. Essa ideia de que o presidente é um pai, de que o presidente tem que ser diferente de nós... Eu sempre brincava que a campanha do Lula enquanto ele dizia “um brasileiro igual a você” não ia funcionar. Por que que ele vai me governar se ele é igualzinho a mim?

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ANEXO C ENTREVISTA – HELEN RAPPAPORT 22/09/2012

Anastasia died at a young age, so her story leaves quite a bit to speculation. How did you fill these gaps? I never speculate, I base all my arguments in my books on hard, concerted research and if the evidence does not stack up I don’t use it. The Anastasia story is a minefield in terms of hearsay, false stories and mythology. I am sticking to the clears facts of her life plus new information that I have come up with from primary sources – letters and diaries. I am deliberately avoiding reading anything written about her that is hagiographic or that plays into the Anastasia myth. In some moments, did you have doubts about whether you were dealing with a historical or literary character? No. I’ve always had a very clear division in my mind between the real Anastasia and the fantasy figure created by far too much ill informed hagiography and wishful thinking, now made worse by all those ghastly sugary fan sites on the web. What were the sources used on the historical part? Newspapers? Family diaries? Letters? All of those plus a lot of obscure, little known and unpublished memoirs by Romanov family members and the White Russian emigrés. I have drawn on archival sources previously not used for my new book. With what purpose, as a historian, do you turn your attention to this particular noble family? Because they interest me as a family group. They are totally untypical for a royal family of their time, in terms of their close bond, their loyalty to each other and the power of 95


their loving interaction in difficult times. I’m interested too in the dramatic contrast between Nicholas as a hopeless, weak tsar but as a wonderful, exemplary father. What kind of contact did you have with primary sources? I searched for as many as I could find and always use them in preference to anything else. Why was Anastasia, and not, say, one of her four sisters or her brother, the one selected by history to become immortal? Do you believe it was because of Anna Anderson, or is she just part of the mythology constructed around Anastasia? I think it’s down to an accident of fate in that Anna Anderson was the most high profile and, to some, plausible claimant. Plus she made her claim when people were still alive who knew the Romanovs well and wanted to believe in a miracle. Simply that. If a good claimant had come forward for one of the others they would have attracted equal if not more interest. Prior to the creation of the Anastasia legend she was actually the least significant of the sisters, as the youngest. Olga was far more important and had there been a convincing Olga claimant Anastasia might as well have languished in obscurity. Simple as that. I still get occasional emails from people claiming that Anastasia escaped – despite the DNA evidence. People love this kind of fantasy and happy ending but it gets in the way of the real story and the real personalities.

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