Cuba libre

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Acabaram as férias de verão e finalmente regressámos a casa. Aaah, que saudades eu tinha das minhas colunas, do meu amplificador, dos meus cabos, dos meus discos. Que saudades de casa. Enfim... de parte dela, pelo menos. De qualquer forma, tirando a melancolia que me colheu o espírito nos primeiros dias, provocada pela separação com o meu sistema de Hi-Fi, foram quatro semanas de férias em glória, nas quais a lei da física favorita da família foi posta em prática: “Sob condições específicas, o peso dos corpos a multiplicar pela soma da sua inércia, provoca uma diminuição constante da energia dispendida” (QED). E para que as tais condições específicas fossem reunidas, resolvemos, este ano, preencher parte das férias com um circuito tipicamente Português: fomos a banhos para Cuba. Nós e mais uns quantos milhares de compatriotas. Havana é uma cidade muito bonita mas, tanto quanto eu saiba, não tem lojas de alta-fidelidade. Portanto poupei-me ao esforço de percorrer aquele centro histórico debaixo de um calor abrasador. Uma boa solução, sugerida


pela simpática empregada do bar da piscina, foi mandar a mulher e os filhos numa visita guiada e depois ver as fotos e o vídeo. Assim, pude passar os dias à beira da piscina do hotel, de charuto numa mão e copo na outra, a ler umas revistas de hi-fi que tinha comprado antes de partir. Ao quarto dia, lá fomos finalmente para a pacata praia de Varadero. Naquela água morna, banhou-se este ano a mais completa mostra do nosso folclore, das nossas gentes e das nossas das tradições: os recém-casados, os casados já há algum tempo, a excursão de finalistas, a excursão de estomatologistas, a típica família que faz férias juntamente com outra típica família, grandes grupos de mulheres em topless (a praia, em Varadero, é muito boa) e um homem, completamente anónimo, com grandes calções brancos repuxados até aos pelos do peito, boné de marinheiro e óculos RayBan. E claro, nós também. O grande bastião da Portugalidade ficava mesmo em frente ao enooorme hotel. E volta que não volta, uma lufada de ar quente vinda daqueles lados trazia-nos um bocadinho da Salsa que as colunas da piscina tocavam ininterruptamente, fazendo com que um ou outro dedo dos nossos


pés começasse a seguir o ritmo. A coisa era contagiante. Aliás Cuba é, toda ela, de um ritmo contagiante: desde as arcadas e colunas dos passeios de Havana, passando pelas cores berrantes dos carros americanos do meio-século, até ao doce espanhol falado pelos habitantes da ilha e, principalmente, à música que eles não se cansam de tocar, cantar e dançar. Por onde quer que andemos, somos levados pelos sons da Salsa, das Rumbas, das tradicionais, do “Son Cubano”, dos septetos, das baladas dos trios e de tantos outros ritmos que nem lhes guardei o nome. Ao fim e ao cabo, mais pandeireta menos corneta, pareceu-me tudo a mesma coisa. Mas aqui ficam alguns nomes, para efeito de registo. Em Cuba, a música não só está na ordem do dia, como é ela própria que cria essa ordem. Em qualquer lugar onde se esteja e quando menos se espera, aparecem duas guitarras e um par de congas. Automaticamente, o nosso coração começa a bater naquele ritmo e parece que os pés e mãos se desligam do cérebro. Logo, uns quantos crioulos se levantam e começam a dançar.


Três minutos depois, só nos apetece falar espanhol e deitar fora o bilhete de regresso a casa. Claro que nem toda a música Cubana consegue provocar este efeito. Principalmente quando, num acesso de plena devoção, corremos à loja mais próxima para comprar alguns discos. É assim um bocado como ir comprar melões: temos que apalpar uma dúzia para encontrar um decente. Em todas as minhas visitas às pequenas lojas de discos (e foram bastantes), havia sempre dois tipos de clientela, para além do pequeno nicho de mercado constituído pelos Espanhóis: de um lado o pacato casal de Franceses, que vinha à procura do “Buena Vista Social Club” ou do último CD de Rubén Gonzáles e que saía invariavelmente de mãos a abanar; do outro os Portugueses, sempre em grupos mais ou menos numerosos e ruidosos, no mínimo uma família completa. Ouviam de enfiada uma dúzia de discos de electro-salsa “Numero uno en Habana”. No fim, a escolha recaía sobre aquele que apresentava a capa mais colorida. Como os compreendo. É totalmente impossível encontrar aqui um disco audiófilo. Digo-vos eu, que passava o tempo a vasculhar nos escaparates. Se calhar tem tudo a ver com o embargo Americano que, para além de


outras coisas, priva os Cubanos amantes de Hi-Fi de ouvirem a sua música com um som de alto calibre. Agora que as capas são muito coloridas e atraentes, isso são. Ouvir música nas esplanadas e pátios de Cuba, sem microfones nem amplificadores, é das experiências mais ricas, envolventes e também frustrantes que qualquer pessoa - habituada a ouvir música em casa e que preze minimamente o seu sistema de alta-fidelidade - pode ter. Como é óptimo estramos ali sentados, enquanto percorremos mentalmente o nosso léxico do audiófilo: babamo-nos com os transitórios das precursões, a riqueza harmónica das guitarras, os timbres dos sopros, a projecção natural das vozes, o controlo dos graves do contra-baixo, a extensão de agudos, a localização precisa de todos os músicos no palco sonoro. Em duas palavras: estava fascinado! Era tudo tão bom, que até parecia que estava na minha sala-de-música, correctamente sentado, numa triangulação perfeita com as duas colunas. Claro que este nirvana só é atingido à custa de bastante esforço e persistência, mas o meu método revelou-se bastante eficaz. É assim: primeiro,


Trio Cubano no Hotel Santa Isabel (Panoramio)


meta conversa com os clientes de uma mesa e sente-se por uns minutos. Depois, para não levantar suspeitas, peça uma bebida e fale sobre o tempo. Faça um brinde a qualquer coisa e, enquanto todos os outros estão com o copo na boca, aproveite para estudar o palco sonoro. Tem falta de profundidade? Não faz mal. Despeça-se com elegância e vá fazer a mesma coisa noutra mesa - peça uma bebida, fale sobre o tempo, faça um brinde, etc. Quando finalmente encontrar o Sweet-Spot da esplanada, só tem que pôr toda a gente fora da mesa e gozar tranquilamente o resto da tarde. O difícil, é chegar ainda sóbrio a este privilegiado local de audição. Se esta era a parte “rica e envolvente”, a outra, a da frustração, atacou-me já em casa, quando comecei a ouvir o disco de Carlos Puebla “y sus Tradicionales”, acabadinho de tirar da mala de viagem. Credo, que som horrível! Nem parecia o mesmo sistema de Hi-Fi do qual me tinha despedido umas semanas atrás. Onde é que estavam o impacto dos graves, a extensão dos agudos e todas aquelas outras coisas que fazem um bom sistema? Limpei a lente do laser no leitor de CDs e verifiquei todas as ligações,


incluindo a polaridade nas tomadas de corrente (esta li numa das revistas que levei para Havana). Nada! Só podia ser do CD que, não sendo duma etiqueta audiófila, estava obviamente mal gravado. Tentei outro e nada. Tudo na mesma. Estava chocado. Disco Cubano após disco Cubano, uma triste realidade ganhava consistência na minha cabeça: Depois de passar tantos dias a consumir música “unpluged” e ao vivo, as minhas orelhas já não reconheciam as superiores qualidades de um sistema de som bem afinado. E caro, ainda por cima. A suspirar e com o ego destroçado, retirei o último disco da gaveta do leitor, desliguei tudo e pus-me a remoer esta tristeza, porém com uma certeza inabalável: para o ano, não iria gastar todo o meu subsídio numas estúpidas férias exóticas. Seria antes a altura ideal para fazer um upgrade no sistema. Depois, com o resto do dinheiro, iríamos passar uns diazitos ao Algarve.

Foto da capa: flickr.com/photos/ lyonora/1070190592



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