CAPÍTULO 1
Localização: 38º 44' 55'' Norte / 8º 58' 19'' Oeste. TMG: 13h:15min. Temperatura: 35º Celsius. Os poucos farrapos de nuvens que quebravam a monotonia azul do céu não eram suficientes para impedir que os raios do sol, viajando a 300.000 quilómetros por segundo, aterrassem a pique nas nossas cabeças. As ondas de calor que se elevavam a partir do chão faziam ondular a linha do horizonte como se fosse um mar revolto. A única coisa que ajudava a tornar tudo menos terrível, ainda que ligeiramente, era a brisa que corria ao longo do rio e empurrava o insuportável fedor para outras paragens.
CAPÍTULO 2
Estávamos no início Setembro e fazia agora três meses que Romão e Eva se tinham mudado para casa nova. Uma casa mesmo à beira do Tejo, de paredes brancas e barras ocres à volta das janelas. Os seus vizinhos eram as gaivotas que passavam o dia a dormitar na areia da praia, a algumas dezenas de metros das buganvílias do jardim. Volta que não volta, movidas pela curiosidade, aproximavam-se para ver o que se ia passando, descrevendo oitos no ar a uma distância ainda assim respeitável. Duas ou três vezes por semana iam à vila para reabastecer a despensa ou comprar jornais, ou simplesmente porque lhes apetecia uma vez que eram sempre uns passeios deliciosos. Em vez de seguirem logo pela rua que passava perto das traseiras da casa, costumavam descer até à praia e atravessar o pequeno areal, com a água a brincarlhes nos pés descalços. Pelo caminho Eva ia coleccionando pequenos búzios com os quais fazia desenhos na areia. Dizia que era para não se perderem no regresso a casa. No fim do areal a praia encontrava-se finalmente com a rua marginal e uns metros mais à frente começava o parque, com os seus relvados sempre bem aparados e os caminhos de terra vermelha orlados por canteiros de Amores-Perfeitos e Madressilvas. Romão e Eva gostavam de atravessar o parque, caminhando de mãos dadas ao longo do paredão da marginal, protegidos do Sol
pelos velhos plátanos e por fim subir o empedrado das ruas estreitas que iam, como em qualquer lugarejo, desembocar no largo da igreja. - Olá Lina, bom dia Maurício. Aos poucos começavam a conhecer as outras pessoas que ali habitavam, todos casais jovens que se cumprimentavam sempre de forma amigável. Romão e Eva compravam primeiro o jornal e o pão, para depois atravessarem a rua e perderem-se no mundo maravilhoso que era o mercado da vila. Ir às compras ao mercado era uma das coisas que maior prazer lhes dava. Aquele ocupava quase um quarteirão inteiro. Era ladeado a Nascente pelo largo da igreja, a Sul pelo edifício da Câmara Municipal e a Norte e Poente envolvido por uma suave curva da rua marginal, com o seu muro branco e as árvores centenárias melancolicamente debruçadas sobre o rio. A entrada do mercado, com as enormes grades de ferro trabalhado, emolduradas por uma dupla arcada em tijolo vermelho, deixava circular à vontade o ar que depois de refrescar o interior do edifício, saía calmamente pelos janelões do tecto. As grossas paredes em tijolo maciço, caiadas de branco até meia altura, suportavam os poderosos pilares de aço que se uniam no alto para formar a complicada estrutura da nave central. Sobre esta, o telhado de duas águas que ostentava em cada vértice um vitral em forma de roseta. De cada lado da nave central, duas outras mais baixas completavam aquilo a que Romão e Eva carinhosamente chamavam o Templo da Comida. A acústica no interior pendia bastante para o reverberante, principalmente na zona dos vendedores de peixe, numa das naves laterais, que era a que apresentava a maior área de pedra a descoberto.
Era aqui que se amanhava o pescado, sobre um tampo de calcário polido pelo uso e inclinado de forma a ajudar a tripa a escorrer para o chão. Depois, com as escovas de dentes de aço, arrancavam-se as escamas ao peixe. E era o som de milhares daquelas a ricochetear nas paredes que tornava o barulho na lota ensurdecedor. Era quase impossível alguém conseguir entender o que ali se dizia, correndose muitas das vezes o risco de entrar no mercado com a intenção de comprar um rabo de garoupa para cozer e acabar-se com dois quilos de carapaus para assar, dentro do saco. À parte isso, ninguém saía dali sem qualquer coisa para o almoço. Logo a seguir à lota, no centro do enorme pavilhão e de frente para a entrada, ficavam as bancas dos vegetais e logo por detrás destas as da fruta. Era aqui que Eva gostava de passar a maior parte do tempo dedicado às compras. As cores atraíam-na, a diversidade de formas e texturas deixavam-na maravilhada e a profusão de aromas adocicados rapidamente faziam esquecer a confusão que reinava junto das bancas de peixe. Enquanto Romão seguia para junto das verduras e vegetais, Eva fica por ali, ora tomando na mão o peso de uma manga, ora depenicando uma uva de um grande cacho. No entanto, eram as maçãs que mais prendiam a sua atenção. Cones enormes de maçãs empilhadas, coloridas e lustrosas como se alguém, uma após outra, as tivesse acabado de polir. As maçãs eram a sua fruta favorita. Sempre foram. Royal Gala, Red Delicious, Golden Delicious, Granny Smith, Reineta Parda, Starking e tantas outras. Conhecia-as a todas pelos nomes e conseguia distingui-las de olhos fechados, não só pelo sabor como pelo aroma e textura diferentes.
Romão era diferente. Nunca comprava maçãs. Dizia que não lhe apelavam minimamente ao palato e como tal não as comia, rematando qualquer conversa sobre o assunto com o facto de ter gengivas sensíveis e que aquelas lhas fariam de certeza doer. No entanto havia algo naquela obsessão da mulher que o fascinava. E muitas vezes dava por si como que pregado ao chão no meio da grande nave do mercado, a olhar de longe as grandes pilhas de maçãs, enquanto Eva, banhada pelo cone de luz projectado pelas rosetas de vitral lá no alto, as ia escolhendo e pondo, uma a uma, gentilmente, dentro da cesta. No fim regressavam a casa, lá mais pela tardinha, ainda com o Sol a puxá-los para um banho na água refrescante do Tejo. E assim se passaram aqueles meses de verão, entre limpezas, arrumações, idas à Vila e longas tardes na esplanada da praia, como numas férias eternas em que a doçura de cada minuto se multiplica infinitamente.
CAPÍTULO 3
Aquela vida de amor-e-um-T3-na-praia teria progredido no seu ritmo idílico se Deus não se tivesse plantado lá em casa a viver com eles e por lá se mantivesse havia já para mais de um mês. Não que o tivessem convidado, não. Simplesmente aconteceu que o velho se espatifara todo ao escorregar do parapeito da janela do primeiro andar da casa de Romão e Eva, aterrando de cabeça e com bastante estardalhaço num canteiro de Aloé Vera. E por mais medicinal que esta possa ser, quando aplicada em doses certas, trinta ou quarenta espinhos enterrados no crânio conseguem provocar numa pessoa um efeito que está muito para além da medicina alternativa. Quando os dois chegaram junto de Deus, a única parte do seu corpo que parecia ter alguma vida era a boca, abrindo e fechando-se descontroladamente, para deixar escapar golfadas de um líquido verde claro, acompanhadas por uma série de grunhidos e palavras sem sentido. - Só há uma coisa a fazer, disse Eva que era uma mulher pouco dada a divagações e que gostava de exibir o seu sentido prático. É levá-lo para a casa e chamar o médico. Agarra-lhe na cabeça que eu agarro nos pés. - Agarro na cabeça uma porra! Já viste a quantidade de espinhos que ali estão? O melhor é arrastá-lo pelos pés. À medida que avançavam pelo caminho de gravilha, cada um
puxando por um pé, um tapete de relva fresca ia nascendo, sempre com dois ou três passos de avanço, fazendo uma cama macia por onde o corpo de Deus deslizava com facilidade. Uma ou outra vez Romão e Eva olharam para trás, para a sua carga, tentando perceber o estado em que Deus se encontrava, mas a única coisa que viram foi um velho com o corpo cravado de espinhos, o olhar vago e um sorriso parvo estampado na cara. A dose maciça de Aloé Vera iria demorar o seu tempo até deixar de fazer efeito.
CAPÍTULO 4
Mas tudo aquilo se passou muito antes do início desta história. Por isso é melhor recuarmos no tempo até aquela tarde de praia, Romão e Eva de tronco nu a deixarem o calor do sol beijarlhes a pele e as canções de Berlioz na voz doce de Anne Sophie von Utter a acompanhar a brisa do fim do dia, em que um gigantesco cardume de melómanos se aproximou da areia. Para enorme satisfação das gaivotas que em grande número ali acorreram - habituadas que estavam a uma dieta à base de tainha miúda - este cardume era de tal maneira descomunal que os melómanos que seguiam na frente nunca descobriram que a sua retaguarda estava a ser comida, não fazendo por isso menção de ir dali para outro lugar. Da esplanada perto da água, onde Romão e Eva se encontravam, parecia que todo o peixe do mar tinha dado à costa ao mesmo tempo. Ainda por cima esta invulgar abundância de melómanos atraíra para a praia aves que, de outra forma, nunca teriam poisado naquelas areias: os corvos marinhos e os flamingos que vivem na reserva dois ou três quilómetros a norte e as garças que partilham com outras espécies de menor porte as salinas e os campos lavrados, um pouco mais a sul em direcção à foz do rio. Já a contagem de baixas no cardume de melómanos ia alta, quando as gaivotas, corvos marinhos e demais aves, decididas a digerir primeiro o que já haviam ingerido, resolveram fazer uma breve pausa
antes de atacarem a segunda parte da refeição. O cardume - bem menor agora que no início mas ainda assim bastante impressionante - aproveitou a deixa para recuperar algumas energias ao longo da margem, enquanto a voz de Anne Sophie von Utter continuava a deslizar pela areia morna da praia. Aos poucos, aproveitando a calmaria que por ali se instalara, a conversa na esplanada retomou o fio à meada e as bebidas frescas voltaram a correr gargantas abaixo. Foi então que Romão e Eva repararam no casal de gansos selvagens. Ambos transpareciam calma e segurança, protegidos por aquela aura de serenidade que se vai adquirindo ao longo de uma vida passada em comum. Com as suas longas asas abertas de par em par, as penas da cor do chumbo, embalados pelas melodias de Berlioz, aproveitavam para se refrescar na brisa que corre constantemente pelo vale do Tejo. Por pudor ou desconfiança, o casal teimava em manter-se um pouco afastado das outras aves e estas fingiam não ligar importância nenhuma à sua presença na praia. A certa altura as gaivotas fizeramlhes sinal, um sinal que só os pássaros entendem, e convidaram os gansos a partilhar com elas o cardume de melómanos. Embora de papo meio cheio - depois de um pequeno almoço de salmonetes com enguias - os gansos selvagens que eram animais bem educados e de fino trato, não quiseram ferir a susceptibilidade das gaivotas aceitando por isso o seu convite. E assim lá mergulharam no grande cardume de melómanos, sob um coro de protestos por parte destes, que mesmo assim não tiveram outro remédio senão tapar os ouvidos e deixaremse ir desta para melhor.
No fim os gansos agradeceram a refeição roçando as penas da cabeça pelos poderosos bicos das suas anfitriãs, presenteando-as e a todos as outras aves presentes na praia, com uma dança: nem mais nem menos que a velha dança dos gansos selvagens. Assim, com todos os pássaros sentados ao longo da orla da praia e os melómanos sobreviventes acotovelados numa crista de onda, os dois gansos iniciaram o seu bailado: primeiro com subtis movimentos dos longos pescoços, acompanhando a cadência dos contra-baixos; depois, com a entrada dos violoncelos e o crescendo da voz de Anne Sophie, as asas a abanarem freneticamente, a coreografia tornou-se de tal forma violenta que os pequenos restos de melómanos semi-comidos, que polvilhavam a areia da praia, foram projectados pelo ar em todas as direcções, misturando-se com os raios do sol. Quando os dois gansos selvagens levantaram voo, deixando os flamingos, as garças, as gaivotas e todo o resto da passarada num delírio apoteótico, a ventania foi tal que o Tejo não conteve um arrepio, atirando para terra dezenas de melómanos. Os poucos que ficaram dentro de água, do agora minúsculo cardume, deixaram-se ficar por ali. Assim como assim, todos eles gostavam de Berlioz. Do outro lado do rio, indiferente a tudo, Lisboa entretinha-se a chapinhar na água enquanto esperava que o pôr-do-sol a viesse recortar contra um céu laranja.
CAPÍTULO 5
Na praia caíra o mais completo silêncio. O rio parara de correr. A brisa que instantes antes refrescava o vale do Tejo sustinha agora a respiração e até Anne Sophie von Utter achara por bem pôr-se em pausa, deixando um Si bemol a pairar entre dois pizzicatos, na expectativa do que pudesse vir ainda a acontecer. Até Deus que, com vontade de trocar dois dedos de conversa tinha chegado uma meia hora antes e estava habituado a todo tipo de experiências sobrenaturais e acontecimentos de proporções Bíblicas, achou por bem adoptar uma postura defensiva. De pernas encolhidas e os pés pousados no tampo da cadeira, enrolou os braços à volta dos joelhos, olhando o infinito como se não fosse nada com ele. Mas lá no fundo algo lhe dizia que não era bem assim. - Merda!, pensou. Escapou-me qualquer coisa. O que é que aconteceu desta vez, meu Deus? Este último pensamento deixou-o ainda mais preocupado. “Meu Deus”? Deus era ele e não era suposto alguém no perfeito juízo invocar o seu próprio nome. Julgava ter há muito perdido esse estranho hábito. A verdade é que, no passado, as coisas não tinham corrido da melhor maneira. Muitos dos seus planos tinham saído gorados e um enorme sentimento de frustração apoderara-se dele durante bastante tempo. Dava muitas
vezes consigo a vaguear pelo universo falando com os seus botões. Durante estas divagações o nome de Deus, o seu nome, surgia de vez em quando, coisa que ele se esforçava por reprimir. Fazia destas regulares conversas a solo a sua demanda em busca do Graal que encerraria as soluções para todos os seus problemas. E um dos seus maiores problemas era, sem sombra de dúvida, aquele impostor do Romão, um pulha da pior espécie. Deus conhecera Romão num Sábado depois de uma louca semana de trabalho que mesmo vivendo toda a eternidade, como era sem dúvida o seu caso, nunca iria conseguir esquecer. Naquela altura vivia-se a época do Alfa e do Ómega, do Verbo, do início de tudo e de todos, do início dos tempos em que tudo era preciso fazer e nada parecia manter-se acabado. Nos primeiros dias as coisas até correram bem a Deus. Criar o Céu e a Terra, os mares, os continentes e todas as plantas que neles passaram a existir, como por exemplo os brócolos e o alho francês, não tinha sido afinal tão difícil como há primeira vista lhe parecera. O pior veio quando chegou a altura de iluminar a sua criação. Não se avizinhava pêra fácil, aquela tarefa de separar os dias das noites. Aliás, o próprio conceito de noite e dia não existia. Mas o que tinha de ser feito, tinha de ser feito. E colocando-se de um salto na Posição do Criador - braço estendido para a frente, com o polegar levantado e olhos semi-serrados - Deus encheu bem o peito de ar e gritou a plenos pulmões: - Que se faça luz!, ordenou Deus com tanta força e tão alto que o seu grito chegou até aos confins do recém criado universo, fez
ricochete na última estrela e voltou ao ponto de origem tão rapidamente que apanhou Deus meio desprevenido ainda a tentar recuperar o fôlego, atirando-o por terra. Mas a luz não se fez. - Faça-se luz, já disse! E nada. Seria um curto-circuito nas estrelas? pensou ele, cofiando a longa mas bem penteada barba. Se fosse esse o caso teria que chamar um técnico da manutenção. O que lhe levantava outro problema: ainda não tinha criado o Homem, logo também não tinha criado a subespécie “Técnico”. Logo era impossível chamar um e muito menos de manutenção. - Meu Deus, pensou. Que trapalhada. Fora esta a primeira vez que invocara o seu próprio nome e isso deixara-o algo confuso. E ainda por cima toda aquela situação só tinha vindo aumentar ainda mais a sua enxaqueca. Decidiu deitarse um pouco. De qualquer forma, não havia nada que ele pudesse resolver agora. Teria forçosamente que esperar até ao sexto dia, para criar o homem e depois fazer dele um técnico. Irritavam-no os falhanços. Principalmente os seus. Com estes pensamentos a latejarem na cabeça, adormeceu profundamente. Finalmente chegou o Sábado e como de costume ao fim-desemana Deus dormiu até tarde. À parte aquele contratempo da falta de luz, o resto do serviço, pelo menos até ao ponto em que as coisas se encontravam, tinha decorrido sem mais sobressaltos. Os números apontavam para que daqui em diante tudo viesse a correr pelo melhor. Esta ideia deixou-o feliz. Além disso, a enxaqueca que o atormentara durante quase toda a semana tinha desaparecido e no seu lugar surgira
uma enorme vontade de criar. Tudo parecia, finalmente, estar no bom caminho. Pelo sim pelo não bateu três vezes na madeira da cabeceira da cama, não fosse o diabo tecê-las. Já passavam alguns minutos do meio-dia quando se levantou e por isso fê-lo de um salto, dando rapidamente início às suas abluções matinais. - É hoje que vou criar o homem!, disse olhando confiante para a sua imagem no espelho da casa de banho. E dito isto saiu para a rua satisfeito. Lá fora, o céu limpo deixava ver o universo até ao infinito. Até que nem era nada mau não existirem dias nem noites, pensou Deus. Era muito agradável passar a hora de almoço a olhar para as estrelas, enquanto comia a sua sanduíche de alface com camarão e molho Tailandês. Concentrado a chupar as pontas dos dedos na tentativa de eliminar restos de molho, o olhar de Deus foi desviado por um subtil movimento no horizonte. Pondo as duas mãos em pala sobre os olhos - acto irreflectido, pois que não havendo sol nada daquilo se justificava - viu uma silhueta que se aproximava rapidamente. Focando a vista, percebeu do que se tratava: era um homem, estava nu e vinha a correr. - Olá, disse o homem quando chegou ao pé de Deus, estendendo-lhe uma mão e tapando o baixo ventre com a outra. Chamo-me Romão e sou um audiófilo. - Perdão?, interrogou Deus de sobrolho franzido. - Sou o Romão. Ouvi dizer que estava à minha espera. Como tem passado? - Cá vou indo, respondeu Deus mirando com desconfiança a sua obra de alto a baixo. Só lhe faltava mais esta. Se a criação do
universo não tinha começado da melhor maneira, a do Homem não parecia estar a ser muito diferente. - Confesso-lhe que estava à espera de outra pessoa, disse ele. É que tenho ali um problema técnico que precisa de ser resolvido. Mas pronto. Pelos vistos é você a única pessoa que me pode desenrascar. - Se é um problema técnico, o melhor é chamar um. Com certeza que existem técnicos por aí... - Não existem não, atalhou Deus. Você é mesmo o único. Pode acreditar em mim que sei do que estou a falar. Venha daí. E agarrando o outro pelo braço, lá se pôs a caminho, imerso nos seus problemas. Romão tentava com esforço acompanhar a passada larga de Deus, tarefa que não lhe era nada facilitada pelo simples facto de levar os dois braços colados ao corpo, numa inútil tentativa de esconder a sua nudez. Olhou para o homem que seguia à sua frente e por mais que tentasse não lhe conseguia adivinhar a idade. Não devia ser muito velho, pensou, pelo menos a julgar pela ligeireza com que se deslocava. Por outro lado falava sozinho o tempo todo, gesticulando furiosamente. Isto pôs Romão a magicar se, na sua ingenuidade de audiófilo - sempre pronto a dar uma opinião para ajudar fosse quem fosse - não teria vindo parar às mãos de um louco, ou de um assassino. Ou pior, de um assassino louco que depois de o drogar lhe subtrairia uma parte qualquer do corpo para fazer com ela sabia Deus o quê. Tolhido por esta possibilidade, protegeu o melhor que pode o baixo ventre e firmando bem os pés no chão, numa atitude de desafio, disse com voz firme: - Daqui é que não levas nada, ó velho maluco! Interrompido nos seus pensamentos pelo grito de Romão,
Deus virou-se para trás pronto a desancar o outro. Primeiro furioso mas depois, quando o seu olhar pousou nas mãos crispadas daquele a tentar proteger a sua masculinidade, chegou a sentir pena do pobre homem. Com uma piscadela de olho disse-lhe, sorrindo: - Não te preocupes. O que eu quero de ti não é o que tens aí à frente. E deixando para trás um Romão ruborizado, algo aliviado mas no entanto curioso quanto às possibilidades que aquela afirmação levantara, Deus deu meia volta retomando tanto a viagem como a conversa com os seus botões no ponto onde as deixara. Caminhando agora com uma mão à frente e outra atrás, Romão tentava a todo o custo perceber as intenções de Deus. A meio do dia, após ter explorado todas as hipóteses de possíveis desfechos para aquela aventura, chegou à conclusão que nenhum mal dali lhe viria, acabando até por dar consigo a nutrir alguma simpatia pelo velho. Ainda por cima tinha um certo ar abastado, um ar de alguém que podia facilmente, caso fosse essa a sua vontade, possuir este mundo e o outro, não o demonstrando apenas por simples humildade. Eram assim as pessoas verdadeiramente ricas. O tipo de pessoas, esperava ele, pouco dadas a vilanias. Ía Romão bastante mais calmo, entretido a tecer conjecturas em relação às enigmáticas palavras de Deus, quando chegaram finalmente ao fim da viagem. Sem saber como, tinha-se tornado num técnico diplomado, altamente experimentado e por isso demorou apenas alguns minutos a descobrir onde estava o tal problema com a luz. Agora era só esperar até segunda-feira, que ele traria a sua caixa de ferramentas e consertava tudo em menos de nada.
- Segunda-feira!? Disse Deus arregalando muito os olhos. Nem pense em deixar-me sem luz durante o fim-de-semana. Desde quarta que estou à espera que você chegue e isto tem que ficar pronto hoje, sem falta. - O Senhor vai-me desculpar, disse Romão empertigado, mas já reparou que horas são? Já passa da uma e ao Sábado só se trabalha até à uma. - Quem disse? - Digo eu, Romão de meu nome, técnico, sindicalizado e tudo! Ah, e para mais audiófilo. Este primeiro encontro estava a irritar Deus cá de uma maneira! Não conseguia perceber onde se tinha enganado desta vez. Era suposto ter criado um tipo normal, simples, sem tiques nem convicções. Um tipo que desse pelo nome de Adão - Adão gaita, não Romão! - e que se atracasse a Eva, perdido de paixão, no primeiro minuto em que a visse. Era isso que estava programado. Pff... Audiófilo! Que raio de porra seria aquela?, interrogou-se Deus que estava prestes a perder a calma e a mandar rapidamente aquele tipo para o sítio de onde tinha vindo. Que mal teria ele feito a... Interrompeu rapidamente este pensamento. Mais um pouco e invocava o seu próprio nome outra vez. - Vamos lá a ver, ó Ad... Romão. Com certeza que podemos chegar a um acordo. Portanto, diga-me o que é que quer em troca. Qualquer coisa. Mas Romão tinha amuado. E de braços agora cruzados no peito, não arredava pé nem dali nem da sua decisão e muito menos desviava os olhos do horizonte.
- Olhe, já sei. Fazemos assim, de audiófilo para audiófilo, seja lá o que isso for, disse Deus matreiro. Arranjo-lhe uma namorada. Que tal? - Uma namorada? Gaguejou Romão surpreendido pelo inusitado da proposta. Você é dono de algum bar de alterne, ó quê? O que é que uma namorada tem a ver com tudo isto? E o que é que você tem a ver com os meus hobbies? Romão arfava e falava numa voz que já não conseguia controlar. Os seus olhos encheram-se de lágrimas e encolhendo-se sobre si próprio Romão começou a soluçar como uma criança. - Então, então. Vamos lá a ter calma, continuou Deus sem ligar muita importância. Não é caso para tanto. Ela é audiófila como você, tem uma colecção de discos até perder de vista e é gira, ainda por cima. Se me resolver o problema hoje, claro. Você safa-me desta alhada e ela é sua. Então? O que me diz? Aos poucos, meio convencido, Romão lá se conseguiu recompor e reconciliando-se com a vida resolveu terminar o queixume com uma fungadela que só vista. Como tinha estado todo o tempo a chorar deitado no chão de barriga para baixo, uma considerável porção de ervas secas, areia e alguns escaravelhos pequenos penetraram-lhe fundo no nariz, provocando uma interminável sessão de espirros. - Bolas!, que você deve estar mesmo aflito, balbuciou Romão vinte minutos depois, enquanto Deus acabava de lhe limpar o ranho e outros objectos do nariz. Mas pronto, já que você insiste, vamos lá ver então essa avaria. Eu vou num instante buscar algumas ferramentas e volto já, está bem? E com uma fungadela desatou a correr em direcção a casa.
{ Continua }