Street Photography magazine

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Street Photography



Sumário 4- O enigma Vivian Meyer

10- Saul Leiter: O retratista

18- Bresson: entre o antes e depois

REDAÇÃO Editora Helena Rocha helenarocha@streetphotography.com. br Repórteres Manuela Andrade manuelaandrade@streetphotography. com.br Juliano Tavares julianotavares@streetphotography. com.br Daniela Assis danielaassis@streetphotography.com. br Estágiário Luiz Afonso luizafonso@streetphotography.com.br ARTE Chefe de Arte Helena Rocha helenarocha@streetphotography.com. br Designer Mariano Benite marianobenite@streetphotography. com.br Produtor Gráfico Mário Dias máriodias@streetphotography.com.br PUBLICIDADE Diretor Comercial Felipe Nunes felipenunes@streetphotography.com. br Executiva de contas Camila Ávila camilaavila@streetphotography.com.br


Self-Portrait, 1955

O enigma Vivian Maier A trajet贸ria exc锚ntrica e misteriosa da bab谩 fot贸grafa das ruas de Chicago e Nova York


É

difícil saber o que leva alguém a optar por atravessar a vida sem deixar pista sobre quem realmente foi. No caso da americana Vivian Maier (1926-2009), que permaneceu trancada dentro de si mesma para poder percorrer uma trajetória das mais excêntricas, talvez não tenha sido opção, e sim a única forma de saber existir. Ela jamais imaginou que, depois de morrer como quis – anônima, desconhecida, indevassada –, fosse causar tanto desalento a seus biógrafos e provocar tamanha curiosidade nos admiradores de sua surpreendente obra fotográfica. Acaba de ser lançada nos Estados Unidos a terceira tentativa editorial de tirar a artista da sombra sob a qual ela se escondeu. “Vivian Maier: Self-Portraits”, coeditado por John Maloof e Elizabeth Avedon, vai ajudar a mostrar um pouco mais do fugidio personagem, através de 60 autorretratos inéditos – é neles que a fotógrafa deixa transparecer um pouco mais sua personalidade fracionada. Ninguém melhor do que John Maloof, aliás, para tentar explicar o enigma Vivian Maier, coisa à qual ele se dedica de forma obsessiva há quase sete anos. Compreende-se. Aos 27 anos, Maloof presidia a Associação de Preservação Histórica do setor NorthWest de Chicago e garimpava material iconográfico para a elaboração de um livro. Certo dia de 2007, na casa de leilões RPN, teve a atenção chamada para alguns negativos esparsos num caixote. Mostravam cenas urbanas dos anos 1960. Deu um lance de U$ 400 pelo lote todo (30 mil negativos, 1600 rolos de filmes não revelados), sem ideia do

Como as imagens compradas revelaram nada ter a ver com a parte de Chicago que interessava ao historiador, permaneceram na caixa na caixa por mais meio ano, intocadas. Maloof ainda não se tornara fotógrafo à época em que resolveu examinar o que tinha comprado. Mesmo assim, ficou fascinado com a originalidade daqueles retratos de sua cidade, de suas gentes, de suas vidas. Quis saber tudo sobre a autora daquelas imagens, de quem tinha apenas o nome. A primeira surpresa foi descobrir que Vivian Maier simplesmente não existia. Pelo menos para os tempos modernos: nenhuma referência no Google, nenhuma presença em qualquer rede social. Desde que o dramaturgo John Guare transformara a interconectividade global de “Seis Graus de Separação” em estrondoso sucesso de palco em 1990, a internet havia reduzido a pó essa distância havia muito tempo, e era estranho, em 2008, que não houvesse a mais remota pista sobre uma fotógrafa de um centro urbano desenvolvido como Chicago. O primeiro rasto foi a nota fúnebre publicada no Chicago Tribune de 23 de abril de 2009, que dizia muito por não dizer nada: “Vivian Maier, francesa de origem e moradora de Chicago nos últimos 50 anos, faleceu em paz na segunda-feira. Foi uma segunda mãe para John, Lane e Matthew. Sua mente aberta tocou a todos que a conheceram. Sempre pronta a dar sua opinião, um conselho, uma ajuda.”


Através dela, Maloof descobriu que John, Lane e Matthew eram irmãos e filhos de uma família onde Vivian Maier havia trabalhado por 17 anos – os Gensburg. A profissão que Vivian Dorothea Maier exercera a vida toda foi a de babá. Em Nova York, em Los Angeles e sobretudo em Chicago, por 40 anos. Mas foi a fotografia a sua razão de ser e de viver. Fotografou compulsivamente, apenas para si mesma. Jamais mostrou o trabalho para ninguém, e somente as crianças de quem cuidava a viam tirar fotos. Não se sabe como aprendeu a fotografar. Revelava os milhares de rolos de filmes no banheiro, transformado em câmara escura. Até hoje, o que se sabe sobre ela cabe em uma página: nascida em Nova York de pai austríaco e mãe francesa, ambos operários, que logo se separaram, ela passou a infância e juventude numa cidade do vale dos Alpes com a família materna. Ao retornar a Nova York, em 1951 – descontado um curto período como costureira numa infame sweatshop – começou a trabalhar como babá. No outono de sua vida, alguns dos adultos de quem cuidara na infância se tornaram seus cuidadores à distância. Ao se aposentar e ser transferida para uma casa de repouso, estocou seus pertences em vários guarda-móveis. Com o passar dos anos, porém, parou de pagar o aluguel dos espaços e deixou de responder às várias notificações recebidas. Foi assim que boa parte do material fotográfico, junto com câmeras velhas, chapéus, capotes e sapatos usados, além de um bric-a-brac impenetrável, foi parar nas mãos do leiloeiro RPN, que o dividiu em lotes.

Self Portrait, New York City, c. 1950s Ao arrematar o primeiro deles no escuro, o jovem historiador de Chicago não tinha ideia da reviravolta que estava dando na própria vida. De início, Maloof ficou desorientado com o volume de imagens. Cinco meses após ler o curto obituário de Vivian Maier no jornal, abriu um grupo de discussão no Flickr. Deu o título de “O que devo fazer com essa tralha toda?”, e descreveu o que tinha comprado no leilão. Também comunicava estar iniciando um site com algumas imagens da fotógrafa e perguntava: “Esse tipo de material tem qualidade suficiente para uma mostra? Ou um livro? É comum esse tipo de obra surgir assim, do nada? Qualquer dica será apreciada”. Recebeu mais de 700 respostas com sugestões, pistas, indicações. Recebeu, sobretudo, apreciações emocionadas sobre a qualidade das imagens postadas.


A partir daí, começou a ser tragado pela curiosidade e obsessão em descobrir tudo sobre Vivian Maier. Trocou sua atividade de historiador pelo estudo da fotografia, transformou o sótão da casa em câmara escura para aprender a revelar e ampliar filmes e tomou para si a missão de reconstruir a obra deixada pela babá. Na verdade, como admitiria mais tarde, estava irremediavelmente obcecado por aquela história. Passado um ano, a coleção Maier de Maloof já ultrapassou os 100 mil negativos, além dos mais de 3 mil prints, centenas de rolos não revelados, filmes de 8mm e fitas gravadas pela fotógrafa – resultado da compra de outros lotes do leilão. Apenas Jeffrey Goldstein, também colecionador, conseguira acumular outro naco respeitável da obra – 16 mil negativos, 1500 slides e mais de 30 curtas de 8mm. A arqueologia por traços de Maier levou Maloof a procurar todas as famílias onde ela trabalhara como babá, e foi graças a uma delas que obteve acesso aos pertences pessoais da fotógrafa, amontoados em outro depósito de

Chicago e prestes a serem jogados no lixo. Entre mais chapéus e sapatos velhos, mais rolos de filmes, milhares de dólares em cheques do governo não descontados, jornais, revistas e papeis, havia cartas. Estas, por sua vez, abriram novas pistas para preencher as lacunas mais básicas da biografia dessa mulher sem marido nem filhos, nenhuma amizade e círculo restrito de conhecidos. Mas que estabelecia contato fácil com desconhecidos quando os abordava com sua Rolleiflex pendurada no colo. E os desnudava num espaço de 1/60 de segundo. Vivian Maier traía a origem europeia na maneira de ser e falava francês com sotaque americano. Nos dois continentes estava sempre fora de sintonia. No fundo, é ela mesma quem nos dá as coordenadas mais claras e fascinantes a seu respeito, através dos inúmeros autorretratos que deixou. Dos que se conhecem até agora, ela emerge com frequência como sombra maior dela mesma. De forma insistente, também se retratou várias vezes em dupla personalidade espelhada ou fracionada, sempre com a Rolleiflex no peito. Jamais se fotografou rindo – no máximo, com um olhar levemente traquino.


August 16, 1956. Chicago, IL

Com frequência maior, ela se retrata num cara-a-cara direto, franco, sério, profundo. Um texto ficcional em primeira pessoa, criado para ilustrar um curta de 12 minutos em sua homenagem, não soa tão destoante de uma realidade que talvez não se conhecerá jamais: “Quem sou eu?”, indaga a Vivian Maier ficcional no filme. “Costumava tirar fotos minhas, autorretratos, porque queria saber se

conseguiria ver quem eu era. Pensei que pudesse ter uma ideia da mulher por trás da câmera. Mas quanto mais eu olhava para esses autorretratos, mais eles pareciam me encarar de volta. Depois de algum tempo, pensei: agora somos duas a nos fazer a mesma pergunta”. (Texto retidado: http://revistazum.com.br/colunistas/o-enigma-vivian-maier/)


Canada Self-Portrait, 1953


Harlem (1960)

Saul Leiter (1923-2013) o retratista do fluir da vida


E

de repente, naquele longínquo início de 1950, quando o cotidiano da vida americana parecia destinado a permanecer imortalizado nas imagens monocromáticas de Robert Frank, William Klein, Diane Arbus ou Weegee, Nova York se viu banhada em cores. Tudo obra da visão pioneira de Saul Leiter, filho de um erudito rabino nascido em Pittsburgh que fez do East Village em Manhattan sua pátria definitiva e fotografou Manhattan em amarelo, verde, vermelho e azul Kodachrome como ninguém. Leiter morreu no dia 26 do último novembro, aos 89 anos, 60 dos quais viveu ora esquecido pelo circuito das artes ora sendo redescoberto e cultuado como joia rara. Seu reconhecimento final pelas grandes instituições mundiais ocorreu somente a partir de 2006, quando já passara dos 80 anos... Em depoimento à Fundação Henri Cartier-Bresson de Paris, que tinha reservado um andar para sua obra em preto e branco e dedicara outro andar inteiro para os trabalhos em cor, ele explicou assim as vantagens de ter os passos ignorados: “Creio que foi o que me permitiu olhar à minha volta e reagir sem estar preparado de antemão. Pude ver o que os outros não viram.” Embora gravitasse em torno da chamada New York School of Photography, o celebrado grupo de fotógrafos da primeira metade do século passado que compartilhava experiências, temáticas e influências, Leiter parecia ter um filtro próprio e pessoal quando olhava para o mundo à sua volta. .

Leiter só foi manusear uma Rolleiflex pela primeira vez, e mesmo assim por mera curiosidade, quando começava a se firmar como uma das promessas do expressionismo abstrato americano. Estava com 23 anos, havia se instalado no East Village nova-iorquino e já conseguira ter um de seus quadros incluído numa grande mostra de arte abstrata do Instituto de Arte de Chicago. O fundo amargor que causara no pai ao trocar o estudo do talmude pela formação acadêmica em artes plásticas estava consolidado e nada mais parecia desviá-lo da escolha feita. “Dei as costas para tudo em que meu pai acreditava”, repetiria em tom confessional até o final da vida. Foi do casulo daquele jovem pintor que emergiu o fotógrafo Saul Leiter. Com a Rollei na mão e rolos de filme Kodachrome na câmera passou a retratar vinhetas do cotidiano num estilo em nada semelhante ao de fotógrafos mais conhecidos do grupo como Richard Avedon, Weegee, Helen Levitt ou Alexey Brodovitch, aém de Frank, Klein ou Arbus. As imagens do autodidata Leiter eram envolventes e luminosas, ternas. Mesmo quando vibrantes, emanavam quietude. Sua obra era contemplativa, preocupada com cor e geometria. “Ver é uma tarefa bastante negligenciada”, costumava dizer. Preferia não estatelar em demasia a sua intenção nem o seu foco. “Gosto quando não sabemos por que o fotógrafo fez determinada foto; e quando de repente, sem sequer saber a razão de estar olhando para determinada imagem, descobrimos algo nela, só então começamos a ver. Gosto dessa confusão”, ensinava


A Kodak havia lançado o primeiro filme colorido para câmeras de 35mm no ano de 1936, mas o seu uso permaneceu virtualmente confinado à publicidade ou à fotografia amadora por mais de uma década. O uso da cor na fotografia como forma de expressão artística era considerado um estorvo, senão um anátema, por todos os nomes de peso da New York School, exceto por uns poucos desbravadores como Ernst Haas e Helen Levitt. Do outro lado do Atlântico, Bresson decretara tratar-se de uma ferramenta superficial e suspeita. Saul Leiter, ao contrário, serviu-se do filme Kodachrome como de uma paleta de tintas e nele deixou registrado seu olhar de pintor e sua visão mansa da vida. Enquanto os contemporâneos buscavam captar em preto e branco a ansiedade urbana e o ritmo acelerado da Manhattan que emergia, Leiter ficava à espera de momentos de humanidade corriqueira, espreitava fragmentos universais do cotidiano. Sua obra não transmite urgência nem tensão. É resultado de um olhar flaneur, amoroso e intimista. Mais do que retratar alguém ou algo específico, suas imagens procuram evocar uma atmosfera, traduzir sensações. O desinteresse e a abissal inépcia de Leiter para a autopromoção eram conhecidos. Ainda assim, nada justifica o esquecimento a que foi relegado por curadores de museu ao longo das cinco décadas mais produtivas de sua carreira. Em 1953, chegou a ter algumas de suas fotos expostas no MoMA, na mostra intitulada “Always the Young Strangers”, organizada por Edward Steichen.

Quatro anos depois, outras 20 imagens integraram nova coletiva no mesmo museu. Mas depois disso, o deserto. Nada até 2006, quando foi publicada a monografia “Saul Leiter: Early Color”, seguida da primeira individual no Museu de Arte de Milwaukee. Durante meio século, portanto, sua obra sumira da vista pública. Só que ao longo deste longo interregno Leiter nunca parou de fotografar. Nem de pintar guaches, aquarelas e quadros. Ganhava a vida como fotógrafo de moda e também ali deixou uma marca de grande originalidade – seus enquadramentos e composições de modelos, roupas e acessórios servem de baliza para fotógrafos do gênero até hoje. Arrojado no estilo, Leiter sempre fugiu de extravagâncias no comportamento. Certa vez, recebeu carta branca da gri-


fe Comme des Garçons para fotografar uma nova coleção em qualquer locação de sua escolha. Qualquer exotismo, luxo ou distância lunar de Manhattan receberia aprovação da marca japonesa. Qual foi a escolha de Leiter? Ambientou o catálogo inteiro nas ruelas do East Village. Brigitte Woischnick, curadora de uma grande retrospectiva Leiter realizada no complexo de Deichtorhallen, em Hamburgo, cunhou o termo “passeador” para definir o olhar do fotógrafo por trás de sua câmera – ao mesmo tempo relaxado e de uma curiosidade contínua. Ele conseguia transformar qualquer cena do cotidiano, como a do operário emoldurado por tapumes coloridos (Mondrian Worker), em arte quase abstrata. Ou o inverso. Conseguia capturar ilusões passageiras com precisão científica. Cortinas, brumas, reflexos, chuva, a ponta de um guarda-chuva saindo da moldura, a mão de um passageiro de yellow cab – tudo lhe servia de linguagem. Como escreveu a crítica de arte Roberta Smith, Leiter fotografou percepções, não pessoas. Preferia que as figuras humanas de suas fotos fossem

descobertas atrás de cortinas, complementadas pela imaginação, como em Dark Pink Umbrella. Ao lado da companheira Soames Bantry, com quem viveu por 44 anos e cuja silhueta está em Walk With Soames, de 1958, Leiter foi quebrando regras e escancarando as fronteiras da fotografia sem fazer alarde. A ponto de enciclopédias americanas citarem até hoje os anos 1970 de William Eggleston e Stephen Shore como sendo os do desbravamento da fotografia a cor – quando Leiter já tinha revelado o mundo em Kodachrome duas décadas antes.

filmar.

Por sorte o documentarista britânico Tomas Leach ficou tão perplexo com a escassez de material visual e sonoro sobre Leiter que decidiu procurá-lo no East Village dois anos atrás e convencê-lo a se deixar

A abordagem deu certo e In No Great Hurry – 13 Lessons in Life with Saul Leiter tem sido saudado em vários festivais desde seu lançamento seis meses atrás. O grande mérito do filme é que são 75 minutos de puro Leiter, sem depoimentos de curadores, críticos ou historiadores de arte a explicar sua obra. Leach percebeu que a singeleza do homem Saul Leiter era tão rica


quanto a dimensão do pioneiro da cor, e deixou rolar a câmera com foco somente nele. Para Leiter, tudo bem. Ele já explicara sua filosofia de vida anteriormente: “Não vivo imerso em autoadmiração. Quando estou ouvindo uma peça de Vivaldi ou alguma música japonesa, ou se estou cozinhando macarrão às 3 da

madrugada e me dou conta de que falta o molho, a fama me é de pouca serventia.” (Texto retirado: http:// revistazum.com.br/colunistas/saul-leiter-1923-2013-o-retratista-do-fluir-davida/)


Taxi, New York, 1957




Entre o antes e o depois da fotografia, Henri Cartier-Bresson


U

ma retrospectiva entre Paris e Madrid põe um fotógrafo fundamental — a quem devemos boa parte da iconografia mais reconhecível do século XX — em contexto. E acaba de vez com a conversa do “instante decisivo”. “Il ballerino!”, disse em voz alta um italiano. E num ecrã um homem parecia bailar. Punha-se em bicos de pés. Esticava-se, contorcia-se, levantava ligeiramente um pé, outro, até encontrar uma zona de equilíbrio. Fazia movimentos repentinos (meio contorcionistas, meio apalhaçados), erguia o pescoço, espreitava, talvez no encalço de um enquadramento capaz de juntar na mesma linha “cabeça, olhar, e coração”. E, caso esse momento se lhe oferecesse, disparava. O palco deste “bailarino”, deste caçador — fato completo, alto, esguio —, é a rua em bulício, no meio de muitas pessoas, carros a passar, caixas de fruta empilhadas. E o nome é Henri Cartier-Bresson (1908-2004), o fotógrafo superlativo, o dono do olhar que nos deixou boa parte da iconografia fotográfica mais reconhecível (mais matricial e inovadora também) do século XX. Esta amostra da frenética coreografia que Cartier-Bresson punha em prática no seu trabalho foi retirada do documentário-entrevista L’Aventure Moderne (1962), de Roger Kahane, e é-nos mostrada já perto do fim da grande retrospectiva que o Centro Pompidou, em Paris, dedica ao fotógrafo francês (a primeira na Europa depois da sua morte). À frente do ecrã, juntam-se pequenos grupos, que, entre risos pela forma desconcertante como este homem se movimentava de Leica

actuação afinal cheio de hesitações, longe da imagem de “fotógrafo-matador” (implacável na caça) que se foi construindo à volta de Henri Cartier-Bresson, talvez o nome que mais se confunde com o da arte a que mais se dedicou: “Observar, observar, observar”. “É pelos olhos que compreendo”, disse um dia o fotógrafo que detestava ser fotografado (e de aparecer em público, de ser reconhecido). Até se chegar ao complexo (e divertido) jogo de pernas cartierbressoniano da exposição (que fica em Paris até 9 de Junho e depois se aproxima de nós: estará na Fundación Mapfre de Madrid de 28 de Junho até 8 de Setembro), é preciso passar por centenas de fotografias (a maior parte cópias de época), muitas das quais imediatamente reconhecíveis por quem tenha o mínimo de cultura visual (não necessariamente ligada à fotografia). Esta opção de manter um bom número de imagens-cliché não é só inevitável — é também consciente e serve para sublinhar uma selecção mais secreta (e politizada), verdadeiro contraforte na interpretação de uma obra que pode não ser assim tão conhecida como se pensa que é. Uma obra conceptualmente muito diversificada, também contrariamente ao que se pensava, e isto muito por culpa do autor, que sempre lutou por dar a máxima unidade formal ao seu trabalho, por si controlado meticulosamente (em reproduções, exposições e livros) ao longo da vida. Até à sua morte, Cartier-Bresson fez questão de supervisionar todas as mostras que incluíssem imagens suas, garantindo que as tiragens eram feitas apenas para essas ocasiões, em um ou dois formatos e utilizando papéis fo


gráficos com a mesma qualidade de grão, tonalidade e superfície. Sempre dedicou um cuidado extremo às exposições e, muitas vezes, foi enquanto as organizava que tomou decisões cruciais acerca do rumo do seu trabalho. Além do instante decisivo

A maneira como as imagens de Cartier-Bresson foram sendo circunscritas ao mundo muito particular do seu próprio criador é muito devedora da famosa noção de “instante decisivo”, que tem tanto de certeira como de redutora. O fotógrafo utilizou parte de um axioma de Jean-François Paul de Gondi (16131679), cardeal de Retz, segundo o qual “não há nada no mundo que não tenha o seu momento decisivo”. Estas duas últimas palavras acabaram por formar o título do prefácio que assinou no seu primeiro livro, Images à la Sauvette, publicado em 1952, naquele que é o seu primeiro (e mais profundo) texto sobre fotografia, a forma como concebe a sua prática, a sua ética e a sua metodologia. Ao defender que os fotógrafos deviam procurar captar o “instante decisivo”, Cartier-Bresson acabou por estampar um carimbo estilístico em cima das suas imagens que com o passar dos anos se foi tornando mais um empecilho do que uma marca distintiva ou um modelo a seguir. É um selo que acabou também por se transformar numa sanguessuga capaz de esvaziar as imagens de alguma dinâmica perceptiva relacionada, por exemplo, com imaginário acerca do que pode estar antes ou depois. Ou simplesmente de as esvaziar do acidental. Mas para além desta muralha, o mestre francês foi capaz de erguer outra, porventura ainda mais alta, quando, em 1979, decidiu criar a master collection, uma selecção de 385 fotografias que considerava as melhores do seu arquivo e que desti-

destinou a instituições internacionais com o objectivo de fornecer o derradeiro mosaico do seu trabalho. Foram impressos seis jogos de provas, quatro dos quais estão em museus de França, Japão, EUA e Reino Unido. Mas, passado algum tempo, foi o próprio a autorizar que a essa primeira escolha se acrescentassem mais fotografias ou que, quando mostradas em público, se fizessem outras escolhas. E por aqui já se percebe como as imagens fotográficas, por mais extraordinárias que sejam, convivem mal com demasiados espartilhos, nomeadamente com os que tentam impor leituras (preconceitos, chaves de leitura) antes de chegarem à percepção de cada um. Não é de estranhar que em todos os textos assinados no catálogo da exposição do Pompidou se refira a parangona do “instante decisivo”. Mas desta


vez não é para a elevar aos píncaros pela expressão que terá conseguido impor nas fotografias de Henri Cartier-Bresson, mas justamente para a relativizar e para tentar distanciar esta retrospectiva do anátema que o fotógrafo lançou sobre as imagens que foi registando ao longo de mais 70 anos. “A não ser que se quisesse refazer sempre a mesma exposição e o mesmo livro, torna-se evidente que, apesar de conter a maior parte dos seus maiores ícones, a master collection não permite apresentar uma obra em toda a sua diversidade criativa”, refere o texto de introdução do monumental catálogo organizado por Clément Chéroux, comissário da mostra e um dos maiores especialistas do trabalho de Henri Cartier-Bresson. Ali o “instante decisivo” é atribuído à necessidade que os exegetas têm de encontrar alguma coisa que simbolize a “unidade da obra” do fotógrafo, e que, numa expressão, resuma “o génio da composição”, a “capacidade de movimentação” ou sua “habilidade para estar no sítio certo“. nesta empreitada levada a cabo pela equipa do Pompidou e pela fundação com o nome do artista (foram precisos três anos para concluir a estrutura da exposição). Nas duas últimas retrospectivas, em 2003,

na Biblioteca Nacional de França, também em Paris, e em 2008, no Museu de Arte Modern. A tentativa de libertar as imagens de Cartier-Bresson da armadilha (e da expectativa) do “momento do tudo ou nada” é um dos desafios assumidos (MoMA), em Nova Iorque, o espectro desta chave estética (que muitos consideram mais uma regra de conduta moral e social perante a sua prática fotográfica) ainda esteve muito presente. Na primeira, em jeito de homenagem comissariada pelo editor Robert Delpire (criador da mítica colecção Photo Poche), a presença em vida de Cartier-Bresson (que inaugurou no mesmo ano a sua fundação) terá necessariamente condicionado as principais orientações, que privilegiaram as fotografias “clássicas”. Na segunda, da responsabilidade de Robert Galassi (antigo conservador-chefe de fotografia do MoMA), foram preferidos critérios temáticos e geográficos objectivamente mais voltados para os trabalhos que fossem “sinónimos do instante decisivo”. Agora, a partir de mais de meio milhar de fotografias, desenhos, pinturas, filmes, livros e outros documentos gráficos, a exposição de Paris (que tem sido um enorme sucesso de bilheteira, com tempos de espera para entrar que podem chegar às duas horas) recla


ma o ceptro do “inédito”, se é que tal classificação pode ser ambicionada para um fotógrafo como Cartier-Bresson, cujo trabalho tem sido mostrado à exaustão. O ponto de partida de Chéroux foi o coração da sua obra: as mais de 30 mil reproduções de época que estão à guarda da fundação. Para além destas, foram consultados e estudados provas de contacto, livros, escritos (notas, cartas…) e as poucas entrevistas de fundo que concedeu. Foram ainda ouvidos testemunhos de quem com ele privou. (Texto retirado: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/entre-o-antes-e-o-depois-da-fotografia-henri-cartierbresson-334439)




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