TIJOLO: Ensaios e possibilidades construtivas

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tijolo

ENSAIOS E POSSIBILIDADES CONSTRUTIVAS



TFG FAU USP

ALUNO HENRIQUE SALVA GEDDO

DEZEMBRO 2018

ORIENTADORA JOANA MELLO DE CARVALHO E SILVA


agradecimentos


À Joana Mello, pela paciência e preciosa orientação. À Roberto Pompéia e Zé Baravelli, pelas valiosas conversas e ensinamentos. Aos meus companheiros de trabalho, Paula, Isa, Cléo e Jhun, pela barra que seguraram em minha ausência. Aos meus pais, Wag e Sil, e ao meu irmão João, pelo apoio. Aos meus queridos amigos, Mats, Giu, Teco, Ivan, Meloni, Mattos, Vicente e Tom, moradores da casinha, e à Mari e à Gabi, pela inestimável ajuda. À Tais, por estar sempre ao meu lado.


00.

sumário

01. introdução

p.08

motivações

p.11

o tijolo

p.12

o tijolo no mundo

p.15

o tijolo no Brasil

p.20

regionalismos

p.22

tema e estrutura do trabalho

p.27

02. análise das obras

p.28

residência dos padres claretianos

p.30

sistema Beno

p.54

a técnica

p.58

painel cerâmico brasileiro

p.60

modernidade apropriada

p.65


os tijolos

p.71

técnica social e subsídio

p.76

relações com o grupo arquitetura nova

p.77

Eladio Dieste

p.86

a história da técnica segundo Dieste

p.92

bovedas tabicadas

p.95

reinventando o artesanal

p.98

a técnica

p.99

técnica [sub]desenvolvida

p.105

modernidade apropriada

p.110

03. considerações finais 04. glossário

p.114 p.124


01.

introdução


motivaçþes o tijolo o tijolo no mundo o tijolo no Brasil regionalismos tema estrutura do trabalho 9


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motivações Este trabalho existe devido à minha admiração às tão distintas construções de tijolo que a humanidade edificou, tanto as antigas quanto as novas. O tijolo de barro maciço ainda é um dos tipos de blocos de alvenaria facilmente encontrado em qualquer loja de construção, pequena ou grande, por todo o Brasil. Contudo, são cada vez mais raros os exemplos de construções que utilizam o tijolo pelas suas propriedades e singularidades. Hoje em dia, é cada vez mais comum o seu emprego como artigo de requinte em casas de alto padrão, muitas vezes como revestimento de paredes de bloco cerâmico ou de concreto, denotando caráter supostamente rústico à edificação. Sua resistência à compressão, combinada ao tamanho do bloco – um módulo pequeno, possível de carregar com uma mão – permitem a concepção de formas tanto belas quanto funcionais, como arcos, cúpulas e catenárias. Ainda, sua durabilidade permite a construção de paredes que dispensam reboco e pintura, permitindo a criação, também, em texturas de variação de aparelhamentos. O tijolo não se destaca somente por suas propriedades materiais. Construtores, mestres de obra e projetistas já demonstraram através de milênios suas possibilidades de criação, tanto nas modenaturas tradicionais de cada região, quanto na experimentação livre que este módulo de barro edificante permite. Dessa admiração ás tão diversas possibilidades que o tijolo permite em seu emprego que nasceu a ideia de fazer este trabalho. Procuro adquirir senso crítico ao uso do tijolo, para que um dia, com a devida experiência em construção, possa conceber projetos e técnicas utilizando o tão apaixonante tijolinho de barro.

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O tijolo


"Unidade de alvenaria feita de barro, moldada na forma de um prisma retangular enquanto maleável, e seca ao sol ou mediante o cozimento em uma fornalha".

– Francis D. K. Ching, “Dicionário visual de arquitetura”, 2010, pp. 268.


A maneira como é fabricado influencia a sua coloração, textura, forma, resistência, absorção de água, inércia térmica e longevidade. Os tijolos que são secos ao sol – adobes - não possuem qualidades estruturais comparáveis com os cozidos, pois a temperatura atingida nos fornos provoca diferentes reações químicas na mistura do barro. Para que este se vitrifique, deve ser aquecido a uma temperatura entre 900 e 1150°C, e este calor deve ser mantido por, no mínimo, durante 8 horas. Tijolos mal cozidos são demasiado macios e tendem a desfazer-se. Se aquecidos demais, tornam-se uma substancia semelhante ao vidro. A principal matéria prima do tijolo é a argila – 75% -, e deve conter também outros elementos em menor quantidade, como a areia. Atualmente, a argila é extraída através de escavação profunda, sendo misturada na proporção correta com outros elementos, inclusive com água. A moldagem deste barro pode ser feita a mão, unidade por unidade, em formas de madeira, ou então extrudada e cortada em linha de montagem robotizada. Antes da queima, o tijolo deve estar suficientemente seco, para evitar que rache durante a cozedura. Podem secar em galpões ventilados, no entanto, muitas olarias modernizadas utilizam uma câmara de secagem aquecida. A posição de cada tijolo dentro do forno, assim como sua composição, determina sua coloração final. Após a queima, o tijolo está pronto para o uso.

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o tijolo no mundo

Desde 8300 a.C., data das primeiras evidências de uso de tijolo cru – ou adobe -, ou 1250 a.C., quando já se utilizava o tijolo cozido, o modo de fabrico do tijolo se modificou, acelerando a velocidade de sua produção, assim como obtendo maiores índices de resistência. No entanto, sua essência se manteve a mesma – um pequeno paralelepípedo de barro cozido. Dentre todos os aspectos da fabricação de tijolos, a moldagem é a que menos se modificou. Foi na antiga Mesopotâmia (1450 a.C.) que se utilizaram, possivelmente pela primeira vez, os moldes de madeira com fundo aberto para formar tijolos - o mesmo método ainda é hoje utilizado em diversos países. Segundo James W. P. Campbell e Will Pryce, em História Universal do Tijolo, o primeiro grande salto no desenvolvimento da técnica de produção foi a bancada de moldagem, que parece ter aparecido na Idade Média (1453 d.C.) na Europa. Em seguida, houve a introdução das paletes de madeira que permitiam o transporte dos tijolos sem que eles se danificassem. Posteriormente implementaram o uso do carrinho de mão, para carregar os tijolos até a área de secagem. Entretanto, estes eram apenas aperfeiçoamentos de uma técnica que pouco tem se modificado ao longo dos anos. Nos países desenvolvidos, tijolos feitos à mão são utilizados raramente. Reproduzindo técnicas tradicionais, chegam a custar quatro ou cinco vezes o valor de seus equivalentes feitos através de produção robotizada. Nos países subdesenvolvidos, onde a mão-de-obra é barata, tijolos moldados manualmente continuam a ser populares e acessíveis. O descompasso entre os sistemas de produção destes países é da

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ordem de centenas de anos, visto que a maioria das técnicas utilizando máquinas para a moldagem advém da revolução industrial. Inventadas no século XIX, foram apenas aprimoradas ao longo dos séculos XX e XXI, com o avanço de tecnologias de automatização. O processo de produção que antes demorava semanas passou a demorar poucos dias, horas. Pode-se afirmar que o tijolo maciço de barro possui uma qualidade tanto universal quanto regional: constrói-se com tijolos em todo o mundo, contudo, em cada lugar à sua maneira, segundo o contexto socioeconômico e tradição construtiva do lugar, permitindo diferentes configurações de partidos arquitetônicos e expressões de identidade local. A terra argilosa necessária para se obter um bom tijolo pode ser encontrada ao redor de todo o globo. Devido à disponibilidade de matéria prima e às diversas possibilidades de fabrico, o tijolo pôde ser utilizado pelas mais diversas civilizações. Ainda hoje, fabricam-se tijolos em ‘medas’ – onde o próprio forno é feito dos tijolos que serão cozidos, como por exemplo na Índia -, enquanto, em outros países, como no Brasil, fabricam-se em geral através de pequenas indústrias manufatureiras, onde a argila é moldada à mão. Próximo às concentrações urbanas, fabrica-se em indústrias altamente mecanizadas, sobretudo nos países europeus. Ou seja, pode-se construir com tijolo, de forma muito semelhante, ao redor de todo o mundo, pois este pode ser fabricado tanto de forma coletiva em pequenas comunidades, utilizando-se tanto de técnicas mais antigas, quanto em escala, nas grandes olarias industriais. Os tijolos produzidos em fábricas possuem um tamanho padrão, variando no máximo em 10% de suas medidas. Com a moldagem manual é possível obter formas diferenciadas com maior facilidade, apenas trocando a forma de madeira. O desenvolvimento de fornos tem variado de modo semelhante: "Os fornos de corrente ascendente, onde os tijolos eram empilhados numa câmara separada acima da câmara onde o combustível queimava, eram usados nos templos romanos e provavelmente já tinham sido usados durante milhares de anos antes disso. A

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alternativa mais barata, a meda de tijolos temporária, foi utilizada com certeza durante a Idade Média. O Ocidente só alcançou a China, que já usava a tecnologia do forno de corrente descendente, no século XIX. Desde então, com o desenvolvimento dos fornos contínuos, houve progressos consideráveis em eficiência. As questões de poluição e de combustível ainda continuam a ser problemas e, sem dúvida, continuará a haver progresso nesses aspectos". (CAMPBELL & PRYCE, 2005: 301)

Ao redor do mundo observa-se a tentativa de eliminar o forno por completo. Na Alemanha, em 1880, experimentaram fabricar tijolos de silicato de cálcio, comprimindo uma mistura de areia úmida e cal que, em seguida, seria curada com vapor. Contudo, esta técnica não se popularizou e logo foi ultrapassada pelo bloco de concreto. Vale ressaltar que os recentes tijolos ecológicos, que não são cozidos e levam cimento portland na mistura, ainda não foram suficientemente experimentados. A maioria das técnicas atuais de assentar tijolos datam da história antiga. A origem da utilização de padrões de amarração pode ser encontrada na Mesopotâmia antiga. Contudo, a utilização de outros tipos de materiais é mais recente. Experimentos com o reforço de ferro em paredes de tijolo datam do século XIX, e com aço, do século XX. Tal advento permitiu que edifícios em tijolo pudessem ser cada vez mais altos, assim como as paredes se tornavam cada vez mais finas. Experimentos com novos usos de técnicas tradicionais também expandiram a possibilidade do uso do tijolo, como por exemplo Le Corbusier, que realizou investigações detalhadas com as abóbadas catalãs – ou volta catalana -, as quais empregou em alguns de seus projetos. Assim como as técnicas de assentamento, a maioria das ferramentas para facilitar a execução das paredes foram inventadas a muitos séculos. Por exemplo, os romanos usavam colheres de trolha, esquadros e fios de prumo. Apesar da criação do nível de bolha de ar no século XX, esquadro e prumo continuam a ser utilizados nas construções. "Porém, na medida que as ferramentas se têm mantido inalteradas,

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em muitas partes do mundo os métodos de formar os assentadores de tijolos têm mudado de maneira dramática. As aprendizagens e a associação a corporações profissionais desapareceram. O habilidoso assentador medieval teria treinado ao longo de um mínimo de sete anos. Atualmente, o ofício é muitas vezes aprendido em colégios em apenas dois ou três anos. Os empregadores raramente têm participação neste processo. Isto faz com que seja difícil para os assentadores de tijolos adquirirem o mesmo nível de habilitação que os seus antecessores e aumenta a responsabilidade do indivíduo em ser autodidata. Determinadas especialidades que não são procuradas com regularidade correm o risco de desaparecer por completo". (CAMPBELL & PRYCE, 2005: 301)

Assim como o conhecimento específico de construções elaboradas em tijolo maciço se esvaiu nos recentes anos, os desenhistas capazes de projetar afim de reproduzir e modificar essas técnicas antigas também diminuíram consideravelmente. Na contramão do avanço tecnológico como a automatização da produção, o emprego do tijolo hoje em dia para cada vez mais limitado, de forma geral. "Uma das mudanças mais importantes na indústria de construção nos últimos cinco mil anos diz respeito às mudanças no papel do desenhador. Arquitetos e engenheiros, considerados distintos dos mestres artesãos, raramente têm experiência de manusear materiais de construção, nem sequer a oportunidade de os experimentar durante a construção da obra. Os modernos métodos de contratação exigem cada vez mais que todas as decisões sejam feitas numa fase inicial para que as obras possam ser precisamente orçamentadas. Este método de definir contratos não era comum antes do século XVII. Durante a Renascença, o arquiteto frequentemente mudaria de opinião ao longo da construção e os trabalhadores eram normalmente pagos por dia de trabalho. Naturalmente, na ldade Média, o artesão mestre já teria muita familiaridade com os materiais que usava, embora tendesse a conjugá-los de maneiras já conhecidas e postas à prova. O arquiteto posterior tinha mais liberdade para experimentar, mas precisava de um conhecimento dos materiais adquirido através da educação ou em

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livros com todas as limitações que isso implica. Para complicar ainda mais as coisas, no século XX a variedade de materiais que poderia ser aceite na construção aumentou". (CAMPBELL & PRYCE, 2005: 303)

Contudo o tijolo persiste. Atravessando a história de muitas civilizações, ainda faz parte integrante das arquiteturas da contemporaneidade. Este objeto unitário, um prisma regular, moldado e cozido, cujas proporções e procedimentos de manufatura e composição estão definidos há milênios, mantém-se como um recurso com fortes apelos expressivos e funcionais, apesar do advento de uma multiplicidade de materiais e técnicas construtivas. Resta-nos analisar àqueles que atuam ativamente na reinterpretação de técnicas construtivas com o tijolo, contribuindo para este avanço tecnológico específico. Como podemos ver nas diferentes formas como a produção e emprego do tijolo se modificaram, o avanço tecnológico não se comporta como uma linha reta, sempre em progressão ao longo da história. Técnicas potencialmente vantajosas ou raras podem se perder, podando a chance de desenvolve-las afim de adaptá-las aos dias de hoje. "Ninguém quer ser formado por alguém que tenha uma formação que não é mais procurada, por isso técnicas podem ser facilmente perdidas dentro de uma geração. Por exemplo, as tecnologias de tijolo vidrado da Babilónia nunca foram usadas pelos gregos e foram efetivamente perdidas quando eles conquistaram a Pérsia, para apenas serem redescobertas na Idade Média e novamente no século XIX. [...] as histórias de tecnologias de fabricação não se conformam com simples teorias de evolução ou noções gerais de progresso. E mais complicado que isso. Se forem analisadas isoladamente aparentam mover-se em saltos ou impulsos súbitos, seguido por regressões, mas isso é devido às mudanças na sociedade de modo geral. Neste sentido a tecnologia não é uma força impulsionadora na sociedade, e sim um reflexo dela e das suas ideias preconcebidas e tendências. A História trata do passado, trata de tentar estabelecer o que aconteceu e arrisca-se a perguntar porque os acontecimentos sucederam de determinada maneira. Uma compreensão da história é essencialmente uma compreensão de como chegamos ao ponto onde nos encontramos hoje". (CAMPBELL & PRYCE, 2005: 303)

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o tijolo no Brasil

"Com melhor inércia térmica do que o concreto, materialidade mais quente (pela cor e textura), constância na tradição construtiva nacional, vantagens econômicas, tecnologia simples e amplamente disseminada, a pesquisa de uma arquitetura contemporânea empregando tijolo contava ainda com exemplos instigantes na América Latina, caso, por exemplo da [..] obra de cerâmica armada do engenheiro Uruguaio Eladio Dieste". (BASTOS e ZEIN, 2010, p.211-212)

Maria Alice Junqueira Bastos e Ruth Verde Zein, no livro Brasil: arquiteturas após 1950, relatam um momento singular na história da arquitetura moderna brasileira – década de 1980 - no qual alguns arquitetos buscam no tijolo uma alternativa à onipresença do concreto armado na arquitetura nacional. Muitas destas pesquisas e experiências construtivas foram feitas no sentido do material único, ou seja, o tijolo foi trabalhado como elemento principal da estrutura, inclusive, chegando à cobertura. O emprego do tijolo não foi preconizado simplesmente devido à saturação plástica das estruturas agigantadas de concreto armado, muito comuns entre os arquitetos paulistanos inclusive, mas sim por motivações mais pragmáticas e circunstanciadas: alternativas para a habitação popular; pesquisas entorno da identidade regional; flexibilidade para programas e lugares diferentes. Seguindo os exemplos citados no livro acima mencionado, obtém-se um panorama da postura daqueles que escolheram trabalhar com o 20


tijolo. O arquiteto Joan Villá, coordenador do Laboratório de Habitação da Unicamp, desenvolveu um sistema semelhante ao já utilizado por argentinos e uruguaios em construções de habitações populares, o sistema BENO, substituindo o tijolo maciço pelo tijolo baiano, a fim de torna-lo mais leve. Esta tecnologia, que consiste de painéis préfabricados de blocos cerâmicos, armados e fixados com argamassa, foi posteriormente elemento principal do projeto e construção da Moradia Estudantil da Unicamp, em 1992. Estes painéis leves, que podem ser utilizados em paredes, lajes, escadas e cobertura, têm como objetivo facilitar a construção, evitando o desperdício, e garantir maior apuro construtivo para a mão de obra não especializada. Entre outras experiências relatadas pelas autoras, destacam-se os projetos Grupo Escolar Vale Verde (Éolo Maia, 1983) e a Residência dos Padres Claretianos (Affonso Risi e José Mario Nogueira, 1982). Nos dois projetos o tijolo foi utilizado como elemento principal da estrutura, assimilando técnicas e formas tradicionais, como cúpulas e abobadas, às técnicas mais arrojadas de formas esbeltas e leves, como catenárias autoportantes. É notável a influência de arquitetos latino-americanos - os quais, em grande quantidade, empregam o tijolo integralmente em suas obras – nestas experiências brasileiras, a partir da década de 1980. O emprego do tijolo maciço de barro representava, para muitos arquitetos, a resistência da cultura construtiva local, frente à homogeneização das técnicas construtivas globalizadas.

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regionalismos

Frente ao paradoxo de preocupar-se com a identidade cultural de cada região, sobretudo, de suas técnicas construtivas formadoras do lugar, sem opor-se às novas tecnologias da construção, Kenneth Frampton propõe a prática da arquitetura denominada de Regionalismo Crítico. Segundo o autor, o contexto em que os arquitetos trabalham hoje seria de devastação das culturas formadoras da nossa civilização: "O fenômeno da universalização, apesar de ser um avanço para a humanidade, institui uma espécie de sutil destruição não só das culturas tradicionais [...], mas também do que denominarei provisoriamente de núcleos criadores das grandes civilizações e das grandes culturas, esse núcleo a partir do qual interpretamos a vida, e que chamarei de antemão de núcleo ético e mítico da humanidade. [...] Temos a impressão de que esta civilização mundial singular exerce simultaneamente uma espécie de erosão ou desgaste à custa dos recursos culturais que constituíram as grandes civilizações do passado. Desse modo, chegamos ao problema crucial com que se defrontam nações que estão emergindo do subdesenvolvimento. Será que para entrar na rota da modernização é necessário descartar o antigo passado cultural que constituiu a raison d'être (razão de ser) de uma nação?... Aqui se apresenta o paradoxo: por um lado, uma nação precisa enraizar-se no solo de seu passado, forjar um espírito nacional e propalar essa reivindicação espiritual e cultural em relação à personalidade colonialista. Mas visando participar da civilização moderna, torna-se necessário ao mesmo tempo integrar a racionalidade científica,

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técnica e política, algo que frequentemente exige o abandono puro e simples de todo um passado cultural. É um fato: nem todas as culturas são capazes de suportar e absorver o choque da civilização moderna. Este é o paradoxo: como tornar-se moderno e voltar às raízes; como reviver uma civilização antiga e adormecida e participar da civilização universal?" (FRAMPTON, em NESBITT, 2006, p.504-505).

Frente a este paradoxo, o autor elabora uma coletânea de arquitetos que atuam (ou atuavam) de forma regionalista-crítica desde quando o modernismo teve de ser absorvido por cada região à sua maneira, apontando as diferentes posturas destes, e assim, delimitando este conceito. Embora não seja o criador desta forma de atuação, procurou delimitar esta prática para que não se confundisse com a arquitetura que procurava recriar espaços como no passado. Segundo Frampton: "O termo regionalismo crítico não pretende denotar o vernacular como algo produzido espontaneamente pela ação conjunta do clima, da cultura, do mito e do artesanato, mas, ao contrário, identificar as “escolas” regionais recentes cujo objetivo é representar e atender, em um sentido crítico, as populações específicas em que se inserem. Um tal regionalismo depende, por definição, de uma associação entre a consciência política de uma sociedade e a profissão de arquiteto" (FRAMPTON, em NESBITT, 2006, p.505). 23


O regionalismo crítico seria, portanto, uma expressão dialética. Enquanto desconstrói as formas de projeto e edificação universalmente empregadas a partir de imagens e valores localmente cultivados, deturpa esses valores ao incorpora-los ás novas tecnologias construtivas. Não respeitar essa dialética poderia resultar numa iconografia consumista disfarçada de cultura (a casa de estilo rústico, por exemplo). Ainda a respeito da aparência das edificações, Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, em texto publicado na mesma coletânea de Nesbitt, precisam que a desfamiliarização nas obras regionalistas contribuem para sua potência auto reflexiva: "Talvez outra possibilidade seja a de encarar o tema da identidade não como ligado a um discurso coeso e denso, nem desejoso de alavancar propostas políticas retrógradas, mas apenas e simplesmente como o resultado do reconhecimento de que, apesar de tudo -tendo a globalização de um lado e os excessos do individualismo de outro -, algo imaterial e constante parece estar sempre a ponto de criar agregações regionais, nacionais, locais etc., permeando os fatos da cultura e do fazer humano (inclusive da arquitetura). Rever o tema da identidade nem tanto para nos distinguir de maneira taxativa de nossos vizinhos, mas sim o suficiente para justificar um recorte tal como o que foi proposto neste livro - se não por outro motivo, ao menos para delimitar sua abrangência. Esta seria a de reexaminar a arquitetura brasileira da segunda metade do século XX; inclusive porque, contra todas as expectativas, ela parece ter, ao menos em um certo grau, traços do que poderia ser um estatuto próprio. O conjunto dessa arquitetura revela-se como um patrimônio que convém reconhecer, que nos toca e concerne, do qual não podemos evitar de ser herdeiros; e seu estudo aqui talvez possa, mesmo que limitadamente, contribuir com algo para o conhecimento da arquitetura em geral". (TZONIS & LEFAIVRE, em NESBITT, 2006: 527)

No entanto, os autores valem-se de exemplos, quase sempre, de arquitetos em contexto dos países desenvolvidos. As diferentes posturas descritas pelo autor não se apresentam de forma objetiva o suficiente para que se arrisque delimitar sua aplicação em cidades como São Paulo,

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onde não há uma forma clara de expressão arquitetônica que represente a identidade cultural da região, pois a cidade foi sucessivamente reconstruída - e autoconstruída devido à vulnerabilidade social. As crises da pós-modernidade afetaram os debates de arquitetura em toda a América Latina a partir de meados de 1970. Longe de ser - ou buscar ser - homogenia, a postura dos arquitetos latinos demonstrou preocupação e responsabilidade frente à modernidade importada dos países desenvolvidos, que não possuem nem o clima, cultura, instabilidade político-econômica ou déficit habitacional equiparável aos países latino-americanos. Não foi coincidência que no mesmo ano em que Kenneth Frampton lançou seu primeiro tratado regionalista “Seis pontos por uma arquitetura da Resistência” (1983), o arquiteto chileno Cristián Fernández Cox escreveu o texto “Nossa Identidade Submergida” (1983), sobre o mesmo tema. O tema da crise de identidade estava presente em todo mundo, mesmo que de formas tão distintas. Apesar de Frampton não se atentar as questões latino-americanas em seus textos, pois em seus exemplos, o ambiente urbano era sempre precedido de uma antiga civilização porém presente fisicamente-, os arquitetos do continente americano se debruçaram sobre o tema e desenvolveram, em encontros e debates, a postura – ou posturas - regionalista crítica latina. Cox e Browne, ao longo da década de 1980, manifestaram suas propostas de maneira que se diferenciassem da postura proposta por Frampton segundo a aplicabilidade na América Latina. O debate não seria focado na ideia de resistência, nem tentar postular caminhos que privilegiassem um retorno às tradições construtivas das civilizações passadas, e sim buscando alavancar uma visão progressista da modernidade. A partir de 1985, os encontros do SAL (Seminários de Arquitetura Latino-americana) reuniram arquitetos e críticos em um esforço de encontrar uma base comum de uma possível identidade arquitetônica latino-americana, se existisse. A respeito desta identidade, Maria Alice Junqueira Bastos relata que a proposta obtida após o SAL IV no México pode ser resumida nos seguintes tópicos:

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Aquelas iniciativas que consideram a arquitetura dentro do

mais amplo ambiente cultural geral; não um conceito abstrato de Cultura, mas uma cultura latino-americana, tanto em sua unidade como em sua diversidade; •

Aquelas iniciativas que almejam um tipo de arquitetura que,

além de ser apropriada ao nosso ambiente, também seja moderna; porque, a despeito de algumas diferenças de ênfase, os membros do SAL concordavam em que não havia nenhum interesse em avalizar ou revalorizar tendências folclóricas ou indigenistas, que no passado recente só haviam levado a becos sem saída; •

A distinção entre Civilização e Cultura implicitamente reco-

nhecida como operacional; já que parecia necessário aceitar o conhecimento científico-tecnológico universal, desde que este fosse propriamente absorvido, digerido e criticado, e assim pudesse preencher as nossas necessidades, valores e realidades; •

Não tentar encontrar uma base formal ou material que eti-

quetasse uma determinada arquitetura como “latino-americana”; nem seria o caso estabelecer uma lista de prescrições a serem preenchidas por conta de se chegar a uma “identidade” – já que esta não era um fato definido e estabelecida a ser repetido, mas um caminho aberto, e parcialmente indeterminado, a ser trilhado (BASTOS, Maria Alice Junqueira e ZEIN, Ruth Verde, 2015: 243244).

Frente a pluralidade de culturas e contextos socioeconômicos da América Latina, estas indicações pouco limitadoras da prática da arquitetura vêm a calhar. A postura síntese deste debate pode ser interpretada como, nas palavras de Cox, uma “Modernidade Apropriada”, ou seja, uma ligeira inversão do conceito de Frampton, pois entende que os arquitetos de países latino-americanos podem absorver a arquitetura racionalista de forma apropriada para seu contexto, no mais amplo sentido da palavra, inclusive, em respeito às culturas locais na forma de construir e vivenciar construções. Logo, o emprego de construções com tijolo no Brasil não poderia ser diferente: em concordância com esta postura, é necessário avaliar as mais diferentes possibilidades de construção com tijolo para que se possa construir em respeito à cultura local, à realidade socioeconômica do lugar, às capacidades construtivas, ao clima e topografia local, e ainda, saber quando não se deve empregar este tipo de construção. 26


tema e estrutura do trabalho O sentido da pesquisa está direcionado para as possibilidades de construção com o tijolo. Interessa investigar onde, quando e como utiliza-lo; o custo e a produtividade de cada forma de construção; a sua permissividade à criatividade quanto um pequeno módulo portante; a estética da forma, produto da estrutura, e as texturas possíveis; em suma, uma avaliação do desenvolvimento de técnicas construtivas empregando o tijolo, sobretudo, na América Latina. Dedico-me aqui a pensar nas possibilidades e aplicabilidades que o tijolo de barro permite, para que se possa, qualitativamente, refletir sobre seu atual uso, e assim propor diferentes empregos deste. Procuro aprimorar a análise crítica de construtibilidade e replicabilidade, possibilidade criativa, produtividade da técnica, desempenho térmico e acústico, custo, postura responsável à cultural construtiva local e adaptações de técnicas antigas ou atuais. Para tanto, analisarei obras nas quais o tijolo é o elemento principal, ou seja, onde não seja apenas vedação entre pilares e viga de transição, e sim defina a forma da estrutura. Onde seja utilizado por suas qualidades de pequeno módulo, principalmente quando aparente, como por exemplo quando é aparelhado de forma a criar espaços de ventilação entre os módulos, ou quando se criam texturas de aparelhamento. Procurei selecionar construções diversas, de formas ora racionalistas, ora orgânicas ou experimentais. Na sequência, analisarei a Residência do Padres Claretianos, pela diversidade de técnicas empregadas; o sistema BENO, pela proposta de utilizar o tijolo em elementos pré-moldados, beneficiando a organização popular; e por fim, a obra de Eladio Dieste, pelo grande salto tecnológico que representou, introduzindo a técnica da cerâmica armada em cascos e superfícies, ampliando as possibilidades de construção com tijolos como nunca antes. 27


02.

análise das obras

1

RESIDÊNCIA DOS MISSIONÁRIOS CLARETIANOS


2

SISTEMA BENO

3 ELADIO DIESTE 29


A casa de barro residĂŞncia dos padres Claretianos


"Um ponto importante no projeto foi a escolha de que ele seria todo executado com tijolos. O tijolo seria um elemento praticamente onipresente na obra. Quando se fala em tijolo, falamos de um material que é ultra resistente à esforços de compressão, mas é um material que não se presta para estruturas que trabalhem a atração. Ou seja, é complicado cobrir grandes vãos com tijolos, por isso temos a necessidade de trabalhar com arcos. O arco é uma forma bem quista pelo tijolo, se ele pudesse ter vontades. O resultado é que a casa se desenhou a partir das mil e uma formas de se fazer estruturas em arcos, como as estruturas parabólicas nos quartos, as coberturas em cúpula em espaços de permanência, as abóbadas de berço nos espaços de serviço, no refeitório e na circulação, a parábola que cobre a capela, e contrafortes, pois é preciso contraventar a estrutura. Estes arcos do corredor, por exemplo, que definem os espaços de passagem, não são somente elementos ornamentais, mas sim contrafortes - fortes elementos estruturantes da casa inteira - que na verdade arrimam a capela, respondendo aos esforços horizontais".

– Afonso Risi, 2011




Arquitetos Affonso Risi e José Mario Nogueira Localização Batatais, Brasil Colaboração Renato Kaida Estrutura engs. Ugo Tedeschi e Haruo Hashimoto Obra eng. Luiz Alberto Fantacini Mestre de obra Benedito Brunherotti Luminotecnia arqs. Esther Stiller e Gilberto Franco Paisagismo eng. agron. Rodolfo Geiser Vitrais Affonso Risi Execução Conrado Sorgenicht Prêmios Prêmio Rino Levi - IAB-SP; e 2ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo Ano do projeto 1984



Conforme já relatado no capítulo “o tijolo no Brasil”, na década de 1980, quando a ideia de uma “arquitetura moderna brasileira” era caracterizada pela exploração plástica das estruturas de concreto, o tijolo foi explorado como uma alternativa construtiva por muitos arquitetos. Frente à onipresença das construções agigantadas de concreto, das quais a estrutura aparente era enfatizada – em sua maioria com grandes superfícies de vigas e empenas definindo os volumes monolíticos de plantas simples e objetivas –, projetos que se utilizavam unicamente dos tijolos como elemento único estrutural surgiram em diversos lugares do país. Foi sintomática desta mudança de paradigmas a concessão do Premio Rino Levi do IAB-SP, de 1983, à Residência dos Padres Claretianos de Batatais - uma construção em alvenaria portante de tijolos (JUNQUEIRA&ZEIN, 2015: 211). Neste Projeto, os arquitetos José Mário Nogueira e Affonso Risi pensaram na possibilidade de abrir novas perspectivas: "A casa davanos a sensação de que podíamos tê-la como um grande laboratório, no sentido de retrabalhar a ligação da execução com a questão projetual, ou seja, a casa que pensávamos em construir de fato", afirma Affonso Risi (2011). A casa, de acordo com Risi, seria, então, um meio possível para colocar em prática algumas possibilidades arquitetônicas. Assim, motivados pelo ímpeto de renovação, surgiu o interesse de se utilizar do tijolo, que vinha sendo colocado em segundo plano naquele período da arquitetura no Brasil. "Tínhamos grande interesse em explorar as possibilidades

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construtivas do tijolo, material milenar e antiquíssimo, com o qual se fez muita coisa no mundo" (2011), completa o arquiteto. Portanto, o tijolo significava, naquele momento, tanto a recuperação de uma prática esquecida, quanto caminho para uma forma inovadora de se construir. Esta inovação seria a reinterpretação de técnicas tradicionais, o que mostrou necessária a qualificação e intensa participação dos construtores. Encomendado pelos padres Claretianos, o projeto recuperou relações de espaços de encontro e espaços privados dos antigos conventos. A construção foi organizada ao redor de um jardim central, quadrado, que neste tipo de construção denomina-se claustro. Segundo o arquiteto Affonso Risi, este foi o ponto inicial da construção da Residência, como centro da casa. O jardim de 21m x 21m é rodeado por um corredor, coberto por uma laje plana de tijolos – técnica que esses dois profissionais resgataram em construções antigas - para onde se abrem os diversos espaços distribuídos segundo o uso, nas arestas deste quadrado. Apesar da evidente associação ao emprego de uma tipologia tradicional de mosteiro, no qual a planta se organiza ao redor de um claustro central, a tipologia e a tecnologia tradicionais estão a serviço de uma inovação do desenho, aparentemente, onde se buscou mais significação e vitalidade do que as superfícies retas e imponentes das estruturas em concreto, vide a importância dos detalhes de aparelhamento e amarrações das alvenarias de tijolo empregado neste projeto. Vale apontar que as

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texturas criadas são decorrentes do aparelhamento do tijolo, portanto, não são mera linguagem, pois também atendem à exigência de enrijecer as paredes estruturais que funcionam como contrafortes. Como já mencionado, a ideia inicial era de construir a residência utilizando somente tijolos - do chão ao teto. Apesar do projeto não prever o uso de concreto armado, isso não foi possível, posto que alguns elementos da casa tiveram de ser construídos de forma a sustentar algumas estruturas que atendiam ao desenvolvimento do programa, à funcionalidade de cada ambiente, como por exemplo, a parábola catenária defasada da capela central, que repousa numa viga de concreto revestida de tijolos. Todavia, o trabalho com tijolos exige conhecimento técnico específico e criatividade frente às soluções comuns, como por exemplo, o uso de painéis pré-moldados e lajotas cerâmicas em lajes preenchidas de concreto. Preencher grandes vãos torna-se, então, um desafio a parte, pois os tijolos não são resistentes à tração, somente à compressão. Dessa forma, os arquitetos lançaram mão de uma maneira de preencher os vãos da residência e utilizaram-se de uma técnica milenarmente conhecida, que é a construção de arcos, os quais são os elementoschave da Residência dos Missionários Claretianos, pois, a partir destes, foram feitas as abóbodas, as parábolas e as cúpulas. Tais elementos caracterizam cada espaço da residência por se diferenciarem pelo tipo de cobertura, numa solução que claramente se opõe, material, técnica e espacialmente, à concepção de vãos longos e altos preponderante no cenário paulista da arquitetura modernista. Os quartos, em número de doze estão organizados perpendicularmente configurado um dos vértices do claustro, sendo seis em cada lado. Estes são cconstruídos em abóbadas catenárias de tijolo, levantadas sem nenhuma fôrma ou cimbramento. Uma das vantagens de se construir abóbadas catenárias autoportantes é dispensar qualquer outro material que trabalhe à tração, na composição de vigas e tirantes, pois é um arco funicular, ou seja, de formato corresponde exatamente ao caminho dos esforços de compressão.

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—— PLANTA fonte: Archdaily.

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———— QUARTOS fonte: Archdaily.

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———— QUARTOS. fonte: Archdaily.

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Articulando estes dois volumes dos dormitórios estão as estruturas com as placas coletoras de energia solar e a torre de água, na forma de um cilindro, que se encontra no vértice do quadrado. Dela partem duas paredes perpendiculares às abóbadas, separando quartos (na parte externa) de banheiros (na parte interna, ao lado da porta de entrada do dormitório) que, como aquedutos, levam os encanamentos hidráulicos. Os quartos são relativamente pequenos, pois, segundo o arquiteto Risi, privilegiou-se as atividades diárias dos missionários dispostas nos outros dois lados do claustro. As áreas de serviço, a cozinha e o refeitório, que são cobertas por abóbadas semicirculares construídas à velha maneira romana, com cambotas de madeira deslocadas ao longo das paredes. A sequência destes espaços cobertos por abóbadas no sentido da aresta forma um retângulo, que termina em uma das quatro abóbadas semi-circulares que cobrem o refeitório. Organizadas como um “cata-vento”, estas abóbadas se encontram no centro, onde se apoiam no pilar monolítico de granito – vértice oposto à caixa d’água cilíndrica que divide os quartos. A respeito do único pilar aparente desta construção, o arquiteto Affonso Risi fez um relato explicando o que o motivou a utilizar essa solução de projeto: "Durante a construção, o pilar central, devido às suas dimensões, foi bastante questionado. Foram analisadas várias hipóteses, entre elas a de se retirar o pilar e substituir os arcos de tijolos por vigas de ferro. Retirar o pilar significava perder o sentido de se terem quatro abóbadas defasadas como cobertura, pois descaracterizava o movimento proposto, orientado segundo o ponto central. A solução encontrada foi um pilar maciço de granito, 30 x 30 cm de seção, com superfície trabalhada segundo a maneira de se fazerem os cortes na pedreira - sem polimento" - RISI, 2011.

Ainda sobre o refeitório, o arquiteto explica que os três depósitos, hoje adegas, adjacentes às três das quatro abóbadas, funcionam estruturalmente como contrafortes – que impedem que os esforços horizontais se realizem -, travando a estrutura do lado oposto ao apoio no pilar central.

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————————————— PILAR E CONSTRUÇÃO DO REFEITÓRIO. fonte: Archdaily.

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——————— ÓCULO E ENTRADA. fonte: Archdaily.

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Na entrada da Residência Claretiana, em mais uma aresta da planta quadrada, situam-se a biblioteca, que serve também de sala de reuniões, a sala de estar e o hall de entrada, com uma saleta particular de recepção. Estes espaços de estar e de encontro são cilindros de diâmetros variados cobertos por cúpulas de tijolo, construídas, também, sem o auxílio de fôrmas e com aberturas de iluminação zenital – o óculo. Por essa ala se tem acesso à capela, único volume a invadir o espaço do jardim central, com sua abóbada cerâmica contínua - chão, parede, teto - fechada nos dois lados por vitrais coloridos. Nesta abóbada catenária defasada, os tijolos que constituem o piso se elevam de modo continuado, sem quinas, a uma altura de mais de cinco metros, até pousarem em uma viga de concreto armado revestida de tijolo. Os acessos à capela são por duas entradas nas laterais, sempre abertas e sem portas. Tomando como exemplo a biblioteca, o maior dentre os cilindros de um lado da implantação quadrada – com 6,9 metros de diâmetro -, é coberta por uma cúpula, construída sem o auxílio de formas. Não seria possível cobrir este vão com uma laje plana utilizando apenas tijolo e argamassa. Inclusive, o próprio formato circular da planta de paredes estruturais de espessura de um tijolo, já é o prenúncio de uma cobertura em cúpula. Ao mesmo tempo, a parede cilíndrica, onde estão as prateleiras de livros, envolvem uma mesa central posicionada logo abaixo do óculo luminoso, onde ocorre a leitura. Possivelmente, o uso deste espaço seja de estudo ou leitura coletivos, agradavelmente envolto em uma parede de livros que não tem começo nem fim. Apesar de se enquadrar em um processo reativo à “arquitetura moderna paulistana”, este projeto estabelece uma singular afinidade de princípios a esta escola plástica, como explica Maria Alice Junqueira Bastos e Ruth Verde Zein: “A alvenaria portante de tijolos, deixada aparente, não fugia à cultuada verdade construtiva, enquanto seu uso também na cobertura permitia um volume definido por um só material”(2010: 217). Ainda, a expressão da estrutura é também enfatizada, pois a forma da edificação é nitidamente ditada pela forma resultante das soluções para vencer os vãos – utilizando-se de arcos e abóbadas -, aproximandose conceitualmente dos postulados modernistas da construção que se explica estruturalmente.

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Contudo, no mesmo “lugar” conceitual onde este projeto se aproxima da arquitetura “oficial” daquele momento de renovação identitária nacional, também é onde ele se distingue. Um olhar mais cauteloso e próximo da estrutura e do processo de construção revela que o uso exaustivo do tijolo produz construções onde a alvenaria determina com muito mais rigidez a aparência final da obra. Claro que toda a construção é produto de sua estrutura, no entanto, o concreto se apresenta ao projetista e construtor como pedra que toma a forma da fôrma, seja ela curva, trabalhando à compressão, seja ela reta, armada ou protendida, trabalhando à tração e flexão. O tijolo, usado como elemento único de uma estrutura, como já explanado anteriormente, trabalha somente à compressão. Logo, a maneira como a forma da edificação é consequência da solução estrutural, neste caso, pode ser mais pedagógica (um tijolo sempre estará apoiado em outro tijolo, da cobertura ao alicerce) e evidente (sobretudo quando o tijolo está aparente). Ainda, arrisco afirmar que estruturas que trabalham somente à compressão são mais inteligíveis, pois a transmissão dos esforços através do apoio chega a ser intuitiva. Em suma, a “verdade construtiva” das construções de concreto aparente da ‘escola modernista’ pode ser interpretada como uma construção na qual se buscou projetar de forma que a estrutura aparecesse imponente, ou que as construções tivessem soluções arrojadas na estrutura, surpreendendo, ou até mesmo confundindo o olhar do observador. Peculiarmente, projetos como este em análise, são desenhados e construídos em pleno respeito às particularidades do tijolo. Ou seja, a partir do momento em que se optou por este método construtivo – seja pela oportunidade de experimentação, ou pela memória coletiva acerca das construções de tijolo -, o formato da obra será consequência do material, e não o contrário. No entanto, aos olhos do projetista, a forma não submete a técnica construtiva, tampouco ocorre o oposto. Pareceme que houve o cuidado, na circunstância deste projeto, de elaborar os seus pressupostos e pautar-se neles rigorosamente, ou seja, a escolha da técnica construtiva ocorre concomitantemente ao desenho da forma e ao programa de usos, quando tratados em co-dependência. Logo, a escolha da técnica construtiva neste caso, foi, ao mesmo tempo, a escolha da forma. As duas em função do uso cotidiano e da referência histórica, como traço marcante, na apropriada adoção da ‘herança monástica’. 46


Apesar das limitações impostas pela propriedade do material, o acúmulo de conhecimento construtivo desta técnica permite soluções das mais variadas, utilizadas neste projeto de maneira quase enciclopédica. As coberturas em cúpula apoiadas em um tambor cilíndrico e abóbadas de berço são utilizadas em arquiteturas religiosas desde a Roma antiga (27 a.C., Panteão de Roma, Roma, Itália), assim como o óculo – abertura na coroa da cúpula -, os arcos de berço e os contrafortes. Como muitas destas construções religiosas antigas eram construídas em tijolos portantes, sugere-se que a escolha desta técnica construtiva não se deu apenas por motivos de experimentação e reação à arquitetura oficial da época, mas também como uma maneira de resgatar a história destas construções, em forma e implantação. Contudo, o arquiteto Affonso Risi demonstrou que as construções de tijolo também são espaço de inovação e criação: projetou catenárias (que são vedação vertical e horizontal) para os ambientes onde se pretendia uma planta retangular. O amplo uso de catenárias de tijolo é mais recente, pois esta forma, apesar de presente na natureza, é fruto de estudos em geometria e tecnologia construtiva – a forma catenária é a exata forma do caminho do esforço de compressão devido ao peso próprio do material. Ainda sobre o conhecimento construtivo, tanto milenar, transmitido de uma civilização para outra através dos séculos, quanto o regional, que expressa singularidades de cada cultura, têm maior vazão no canteiro de obras, se compararmos as construções de tijolo às construções convencionais de bloco ou de concreto armado. Além do extenso acúmulo de conhecimento construtivo ao redor do tijolo maciço de barro, do qual soluções estruturais, formas de construir, formatos, símbolos e adornos ultrapassam culturas e séculos, seu formato e tamanho permitem à criatividade tanto nos detalhes quanto na forma da estrutura, pois apoiando um a um é possível criar curvas e aparelhos dos mais complexos aos mais simples. O resultado é uma construção rica em detalhes e soluções que saltam os olhos por sua inventividade e singularidade. De certo, pode-se concluir que o diálogo estabelecido com a história das construções religiosas não limitou a criatividade nesta construção, basta observar as múltiplas

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formas de aparelhar o tijolo – deixando, ou não, vazios na parede – as formas curvas tanto antigas como novas utilizadas com propósitos diferentes em cada espaço, e as relações de canteiro narrados pelo próprio arquiteto. Conforme relatado no livro ‘A casa de barro: residência dos missionários Claretianos’, a participação do pessoal da obra na tomada de decisões de muitos elementos e operações da construção foi intensa: desenhos variados na amarração dos tijolos, aprimoramento e transformação de técnicas, elaboração criativa dos detalhes. O envolvimento dos mestres e operários com a obra foi de tamanha intensidade que, de acordo com seus idealizadores “era possível associar a elaboração poética de cada detalhe ao pedreiro que o construiu” (RISI, 2011), como uma assinatura grafada em tijolos. Pode-se observar as diferentes formas de aparelho na chaminé do forno construída ao estilo de Gaudi; nas paredes de ‘elementos vazados’ – tijolos dispostos como forqueta, na diagonal, de forma que se crie vazios na parede -, executada pelo mestre de obra; na cruz em rebaixo modulado de tijolos na capela. Ainda sobre o relato descrito no livro, ressalta-se o fato de que, devido a residência ser inteiramente construída em tijolos, proporcionou-se uma espécie de vinculo dos trabalhadores com a obra em si, o que, conforme descrito, já estava nos planos dos arquitetos. "Pensamos na construção da casa de modo que houvesse a participação criadora por meio dos trabalhadores e dos seus construtores", lembra Risi, que descreve o mestre de obras da Residência, Benedicto Brunherotti como um grande profissional. "Ele tinha uma equipe entusiasmada, que exercitava o trabalho de criação durante toda a construção. Muita coisa foi decidida no canteiro de obras"(RISI, 2011). Risi narra que, muito antes de começarem as obras, José Mário e ele ensaiavam aparelhos de tijolos com diferentes desenhos. No entanto, ao se depararem com os construtores, cada qual com sua sugestão de desenho no aparelho, optaram por não delimitar a amarração a priori. "Acabamos percebendo a tolice do nosso pensamento. Assim, mudamos de ideia e sugerimos que fosse feito do jeito deles. Para nós, o que importava era que a parede estivesse bem amarrada, e não mais o desenho que havíamos sugerido", recorda o arquiteto (RISI, 2011).

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Evidentemente, a mão-de-obra era qualificada, tanto para criar formas de amarração segundo o conhecimento de cada um, quanto para executar as cúpulas e abóbadas de berço sem fôrma. Até mesmo nas coberturas onde se utilizou fôrmas ou cambotas, nota-se o requinte com o qual foram construídas, principalmente nos detalhes de posição de cada tijolo, como por exemplo no encontro curvo da catenária da capela com o chão, visto pelo lado externo. O emprego de abóbadas cerâmicas de tijolo já havia sido preconizado com intenção política pelos arquitetos Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, dentro da defesa de um canteiro de obras menos discriminatório e alienante, na tentativa de atenuar a exploração da venda da força de trabalho desqualificada. Apesar da evidente influência destes arquitetos nesta obra, nota-se que as motivações para o uso do tijolo, inclusive em outras construções similares na década de 1980, foram de ordem cultural e plástica, como pesquisas em torno da identidade regional, da tipologia, das técnicas construtivas mais antigas, e nesse caso, da liberdade criativa no canteiro. Diferenciam-se também na qualificação da mão-de-obra empregada: enquanto os integrantes da arquitetura nova procuravam a “estética da economia”, expressão da arquitetura construída pela mão-deobra desqualificada - visto que esta é a realidade brasileira -, através da catenária construída com fôrma semelhante à cambota, Risi empregou mão-de-obra qualificada para construir uma obra repleta de detalhes meticulosos e simbolismo. Ainda sobre a catenária, quando experimentada por Ferro e Lefévre, justificaram seu uso por seu baixo custo - como trabalha estritamente à compressão, dispensa materiais usinados como o aço, que encarecem consideravelmente a obra -, podendo ser construída com materiais baratos, executando de uma só vez parede e cobertura nesta estrutura. Qualifica-se, assim, um espaço livre para criação e experimentação, tanto no plano do desenho quanto para o desenvolvimento ‘desalienante’ dos construtores. Este último ponto, talvez, seja o de maior tangência com a experiência de construção da ‘Casa de Barro’ dos padres Claretianos.

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—— CAPELA. fonte: Archdaily.

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———————— CASA PERY CAMPOS. Rodrigo Lefèvre e Nestor Goulart São Paulo, 1970 fonte: Vitruvius

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Sistema Beno LabHab Unicamp e CEVE Argentina


"Hipótese 2: O sistema construtivo é capaz de interferir na organização da comunidade envolvida, na concepção do projeto urbanístico e na arquitetura das edificações".

– Roberto Alfredo Pompéia. "Os laboratórios de Habitação no ensino da arquitetura", 2006.

“Desde meados dos anos 1970 até o início dos 1980 – portanto em plena vigência do regime militar, coincidindo, contudo com o que podemos chamar (com cuidados) de um certo ‘abrandamento’ no cerceamento às liberdades civis – há uma intensa articulação da população moradora nas favelas de São Paulo e dos municípios adjacentes, muito em decorrência de uma crescente tensão na relação com os poderes públicos, que não traziam outras alternativas que não a sumária erradicação desse tipo de assentamento ‘irregular’: tratava-se de um problema que não dizia respeito à administração pública, cabia àquela população arranjar-se por sua própria conta, sem comprometer áreas públicas ou criar conflitos em função da ocupação de áreas privadas. Caso a ocupação de áreas públicas ou privadas prevalecesse, caberia ao poder público apenas acionar a polícia – afinal, não se tratava de uma questão social, mas um caso de segurança pública e ameaça ao direito de propriedade”.

– LOPES & CERON, 2010




contexto

Na década de 1980, período de redemocratização, a produção habitacional para a classe de baixa renda registrou um novo início, após uma lenta evolução quantitativa ao longo das décadas passadas. A situação de quase metade da população enquadrava-se em déficit ou inadequação habitacional. A promessa de que a industrialização da construção civil sanaria este quadro caia por terra, visto que, em um país emergente de grande desigualdade social, a industrialização necessitava de um exército de reserva com o salário muito baixo. Essa população sistematicamente precarizada procurava trabalhar na indústria, inchando as cidades, porém sem acesso a esta, mesmo após duas décadas de numerosas produções do BNH. Com o fim da ditadura civil-militar (1964 a 1985), que perseguia organizações populares que sustentavam pautas como, por exemplo, direitos trabalhistas, acesso à terra e moradia, os trabalhadores puderam se organizar amplamente em partidos, sindicatos e movimentos sociais na luta por direitos. É neste contexto, com o surgimento de movimentos por moradia, que o nicho de profissionais da arquitetura e engenharia civil como assessoria técnica da população organizada se tornou passível. O debate acerca do inchamento urbano brasileiro que atingira seu ápice na década de 1980, somada à precarização do trabalho, revelou alternativas pioneiras que procuraram assimilar o contexto econômico, social e cultural da população. Novas propostas, como construção autogerida em mutirão, autoajuda ou ajuda-mutua, foram apresentadas como alternativas para a construção de habitação de interesse social.

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Dentre elas, uma tecnologia ensaiada no Laboratório de Habitação da FEBASP [1] , a partir de 1980. Devido à greve dos professores desta faculdade, a direção demite boa parte destes, desmontando o laboratório, que migraria com todos seus integrantes para a UNICAMP, criando em 1985 o Laboratório de Habitação, através do Núcleo de desenvolvimento de criatividade, dirigido pelo professor arquiteto Joan Villá. O órgão desenvolveu um novo sistema construtivo, especialmente dirigido aos movimentos de construção em mutirão ou ajuda-mutua, cujas características básicas são: economia de custos e esforços físicos; aproveitamento de mãode-obra não qualificada; obtenção de um produto de qualidade, tanto no conforto quanto na aparência. Sistemas de execução de pré-moldados de tijolo, com mão-de-obra não-qualificada, já eram práticas adotadas na Argentina e Uruguai, de onde Joan Villá obteve inspiração. O Centro Experimental de la Vivienda Económica (CEVE) de Córdoba, Argentina, existe desde 1967, com o propósito de contribuir para a construção de um habitat sustentável através do desenvolvimento de conhecimento construtivo e promoção de ações em favor de setores populares em nível local, regional e nacional. Por execução direta ou transferência desta tecnologia – painel de tijolo pré-fabricado -, eles construíram 583 casas em projetos localizados nas províncias de Buenos Aires, Catamarca, Córdoba, Corrientes, Chubut, Entre Rios, Rio Negro, Santa Fe, La Pampa, e Brasil e Uruguai. Para algumas dessas obras, adaptações técnicas foram feitas de acordo com as exigências e disponibilidade de material das diferentes realidades locais.

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[1]

Fundação Escola de Belas Artes de São Paulo

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a técnica

Segundo o CEVE, esta técnica denominada Sistema BENO é “um sistema construtivo que é conformado por placas de cerâmica armada pré-fabricadas que incluem a instalação elétrica, parede e estrutura de concreto armado. As placas são fabricadas na oficina e depois montadas no canteiro, para as quais não é necessária mão-de-obra especializada. As ligações entre as placas e as correntes que as solidificam levam a construção a uma peça estrutural única. É um sistema que, por suas características, favorece os processos sociais de capacitação em autogestão” [2]. Para melhor entender a dinâmica do processo de produção de moradias utilizando o sistema BENO, e a participação dos futuros moradores como mão-de-obra não-qualificada, reproduzirei parcialmente o relato da recente experiência conduzida pelo CEVE: caso da cidade de Río Cuarto, Córdoba, Argentina, em 2004. Relato de Aurelio Ferrero, Dante Pipa, Laura Basso, Elisa Iparraguirre.

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[2]

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http://www.ceve.org.ar/


sistema BENO

Este projeto habitacional integral foi promovido entre o Município de Río Cuarto e o Instituto Provincial de Habitação de Córdoba, no âmbito de um acordo de transferência de tecnologia assinado com pelo CEVE. No desenvolvimento do projeto, contou-se com a assessoria técnica construtiva e capacitação do CEVE, e assessoria em aspectos sociais do Serviço de Habitação e Ação Social (SEHAS). Para este projeto de 168 casas, foram projetadas 3 tipologias: um quarto (32m2), dois quartos (42m2) e três quartos (68 m2) de acordo com a composição e necessidades das famílias dos beneficiários. O objetivo do projeto era a transferência de uma série de famílias pertencentes ao “Bairro Chino” da cidade de Río Cuarto, e proporcionalos, através da autoconstrução e ajuda mútua, a execução de uma nova casa. Entendendo a questão da habitação como um problema complexo, isto é, não só espacialmente, mas também econômica, social, políticoinstitucional e culturalmente, a CEVE argumenta que ao lado da criação e transferência de tecnologias de construção e gestão apropriadas e apropriáveis, baseado em necessidades concretas da sociedade que as recebe, e orientadas para o desenvolvimento integral da população de baixa renda, é necessário que as tecnologias transferidas fortaleçam as estruturas Institucionais (formação de equipe técnica nos municípios, organizações comunitárias, esquemas organizacionais, etc.) e sistemas produtivos (micro e pequenos empreendedores, cooperativas de trabalho, associações de moradores, etc.) contribuindo para a geração de emprego nas regiões mais vulneráveis socialmente.

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Ao incorporar o conceito de integralidade em processos de produção de habitat – do qual técnicos, construtores e futuros moradores participam, conjuntamente, de todo o processo, como projeto, execução, gestão, etc. -, considera-se que para construir é preciso fortalecer a organização de grupos sociais. Portanto, a tecnologia eleita deve ser flexível e apropriável, permitindo a participação efetiva de população, e também favorecendo a incorporação de mão-de-obra não qualificada, utilizando-se de materiais tradicionais e acessíveis disponíveis no mercado. Esta flexibilidade também permite combinar duas diferentes lógicas de produção para realizar processos de “construção integral”. Em primeiro lugar, a lógica de produção industrializada - utilizando componentes estruturais como as vigas e pilares metálicos préfabricados - é combinada com a lógica de produção por autoconstrução, o que favorece a participação de grupos sociais e micro e pequenos empreiteiros, tanto no processo de produção e montagem das casas, como na gestão desses processos. Neste caso, foi utilizado o sistema BENO combinado ao sistema UMA – estrutura metálica. O sistema BENUMA (BENO + UMA), tecnicamente, consiste em uma estrutura de suporte antissísmica de vigas e colunas reticuladas que possuem cabeças de metal em suas extremidades, através das quais se unem com parafusos e porcas. A montagem da estrutura é seca, ou seja, não se utiliza argamassa de assentamento para fixa-la no local. Uma vez montada a estrutura metálica, procede-se à execução do embasamento onde serão apoiados os painéis cerâmicos. A paredes de vedação são feitas de placas cerâmicas reforçadas pré-fabricadas, que são executadas antes, em um galpão, para então monta-las no local conforme o projeto indica. Os fechamentos são materializados com placas de cerâmica reforçada duplas, que formam um "sanduíche" com isolamento térmico interno nas paredes do perímetro. As placas são projetadas e classificadas de acordo com sua localização nos recintos. Estes são ligados por aços de alta resistência. Uma vez que todas as placas são posicionadas, preenche-se com concreto as vigas superiores. O teto também é feito de placas de cerâmica reforçada, apoiadas em vigas de concreto pré-moldadas. Neles é feita a camada de concreto

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e, em seguida, a capa é concluída com qualquer material isolante no mercado. Outra vantagem deste sistema é que ele incorpora materiais do mercado, o que favorece melhorias e ampliações posteriores, pois são conhecidos e amplamente utilizados (tijolo maciço e argamassa). Este exemplo, relativamente atual, revela os mesmos princípios da forma como se executavam casas em mutirão e/ou autogestão na Argentina e Uruguai há décadas. Esta tecnologia é fruto do aprimoramento e construção coletivos, talvez por isso permaneça em uso e em transformação. Ainda, comprova a possibilidade do uso do tijolo maciço como componente de uma placa pré-fabricada, de forma distinta do seu uso comum, o qual é assentado de forma aprumada para que fique aparente requer prática e cuidado.

——————— PAINEL CERÂMICO. fonte: www.ceve.org.ar

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——————— PAINEL CERÂMICO. fonte: www.ceve.org.ar

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painel cerâmico brasileiro

"O arquiteto Joan Villà, coordenando a equipe do Laboratório de Habitação da Unicamp", desenvolveu um sistema de pré-fabricação cerâmica a partir da observação da realidade. Ou seja, a partir de materiais industrializados e já utilizados nas periferias das grandes cidades foi feita uma racionalização do processo, em que a unidade construtiva passou do tijolo cerâmico ou da vigota pré-fabricada para o painel, unidade ainda manuseável sem o auxílio de maquinário. Villà concebeu painéis leves (de parede, escada, cobertura e laje) com o objetivo de facilitar a construção, evitar o desperdício e garantir maior apuro construtivo para a mão de obra não especializada" - BASTOS e ZEIN, 2010: 213

Villá e os arquitetos e diversos técnicos do Laboratório da FEBASP, influenciados pela tecnologia uruguaia a qual a eles, em vídeo de super 8 foi apresentada, propõe o uso do sistema BENO adaptado para a realidade Brasileira, substituindo o tijolo maciço pelo de 8 furos: "A apresentação dos uruguaios teria empolgado significativamente os participantes do Simpósio. Dentre eles, Guilherme Pinto Coelho, engenheiro civil e pós-graduando na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, muitíssimo entusiasmado com o relato, que viaja ao Uruguai em dezembro de 1981 e lá registra, em um filme super-8, as visitas que realizaria às Cooperativas de Vivienda por Ajuda Mutua. O filme, bastante singelo em termos técnicos e filmográficos, traz um registro bastante nítido quanto à abordagem técnica – e tecnológica – que sustentava a

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atuação das cooperativas na produção das moradias para seus associados: logo no início, já aparecem os painéis de tijolos maciços, sendo produzidos sobre o solo nivelado ou dispostos em pilhas para estocagem. Fica evidente a baixa exigência de especialização para sua produção e é fácil deduzir a flexibilidade que o sistema permite no arranjo da mão-de-obra nos trabalhos de ajuda mútua. Aparecem, também, imagens da fábrica do Centro Cooperativo Uruguaio, o CCU, mostrando o transporte de peças fabricadas pelos cooperados e painéis de laje estocados – uma das principais soluções construtivas responsáveis pela economia de escala nas obras por ajuda mútua" - BARAVELI. 2006: 115, apud LOPES & CERON, 2010: 6

Haviam cinco tipos: o painel de parede, o de laje, o de telha, o de escada e o de arco. Todos eram executados no chão, armazenados, e posteriormente montados conforme indicação de projeto. Estes painéis eram dimensionados para que, quando prontos, pudessem ser carregados por duas pessoas para o local onde seriam fixados. Tinham, geralmente, dois tijolos de largura e 12 a 15 tijolos de comprimento. Os painéis eram montados em formas de madeira, no chão, posicionando primeiramente os tijolos, e depois preenchendo os vãos entre eles com argamassa. Quando arqueados, ou solicitados de grande esforço de flexão, poderiam ter barras de aço no sentido longitudinal do painel. Segundo Roberto Alfredo Pompéia, em sua tese Os laboratórios de Habitação no ensino da arquitetura, descreve a simplicidade da montagem dos painéis: "A planta de montagem dos painéis de paredes teria de ser muito simples, a fim de evitar o uso de cotas e medidas. A representação do local dos componentes se dava por meio de um papel quadriculado. Cada quadradinho era o equivalente a um módulo de 45 por 45 cm, o que permitia o posicionamento de cada painel de parede cuja medida bruta era de 45cm (43cm do painel mais 2cm de rejuntamento entre eles). Os painéis de laje acabavam por seguir o posicionamento das paredes. Os demais componentes, como os painéis de peitoril, escada e de oitão, teriam a indicação (tipo e dimensões) especificadas em plantas e cortes. Os painéis de laje especiais (para volumes salientes, caixa d'água, bancos,

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peitoris, etc.) e os painéis de telhado eram designados por meio de plantas específicas. Toda a dificuldade se concentrava nos detalhes: acabamentos, encaixes, juntas, pormenores referentes às instalações hidráulicas e elétricas. Quase todos os procedimentos de montagem eram muito simples; por isso rapidamente eram entendidos pelos construtores dos protótipos do Laboratório”. - POMPEIA, 2006: 67

Como alternativa à autoconstrução cara e sem suporte técnico, o sistema empregado, de construção por "ajuda mútua", poderia reunir as forças construtivas dos moradores, organizando-as num só conjunto habitacional. A organização das pessoas que construiriam suas próprias casas individualmente concentra os recursos humanos num só objeto, possibilitando a otimização do tempo através de métodos de prémoldagem, o desenvolvimento de uma tecnologia social própria para os recursos e costumes dos envolvidos, assim como aumenta o poder de compra do coletivo, por negociar grandes quantidades. Esta técnica, segundo documento assinado por Joan Villá, Yopanan Rebello e Mauro Bondi – quando propuseram a construção de um projeto piloto em 1985 -, resultaria do desenvolvimento de um sistema construtivo que permitiria, conforme o trecho comentado ponto a ponto por Pompéia: "1. sua adoção por uma mão-de-obra não especializada, Havia o claro desejo de formar uma mão-de-obra capaz de produzir, em usinas de componentes, peças pré-fabricadas em larga escala. 2. obter, nessas condições, um produto final melhor; Com a construção e o controle das próprias associações de moradores, a qualidade da obra seria muito melhor do que a produzida pelas empreiteiras, a exemplo das Cooperativas Habitacionais do Uruguai. 3. eliminar as perdas de material, frequentemente observadas pela imperícia da mão-de-obra face aos procedimentos adotados, reduzindo significativamente os custos finais; Ao contrário das obras públicas, a fiscalização e o interesse das associações no uso e economia de materiais, reduziria

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substancialmente os desperdícios. 4. limitar, ao máximo possível, o esforço físico requerido na construção por processos convencionais; O sistema de peças industrializadas reduziria os esforços tradicionais da construção civil, tanto na confecção dos componentes (com equipamentos próprios), como na montagem das construções (com equipamentos para erguer e posicionar cada componente). 5. introduzir um modo de produção que organize a mão-de-obra e o canteiro, de modo compatível com o trabalho coletivo em escala. Percebe-se que o intuito era o de conseguir montar grandes fábricas populares de componentes pré-fabricados. Assim seria possível reduzir significativamente os custos da produção habitacional e empregar a mão-de-obra das populações menos favorecidas. O melhor benefício seria a formação de mão-de-obra de técnicos que levariam a um salto qualitativo de suas comunidades".

Procurando desenvolver e aplicar tecnologias adequadas com os materiais já utilizados pelas pessoas, escolheram a cerâmica vermelha de 8 furos não só por suas qualidades tradicionais como material, mas, também, porque é com ela que se constrói a casa de alvenaria autoconstruída. A tecnologia apresentada neste projeto piloto demonstrou que era possível construir casas com a mão-de-obra não especializada. O sistema de painéis modulares confeccionados ‘industrialmente’ possibilitaria que as associações formassem cooperativas, assim como no Uruguai e na Argentina, que montariam fabriquetas de componentes como estes painéis, para serem usados na construção de suas próprias moradias. Segundo o relato de Pompéia, o sistema construtivo proposto na execução dos protótipos induzia à quebra da estrutura de produção de uma obra convencional: "[Os painéis de] alvenarias, executadas no chão, em gabaritos metálicos, reduziam substancialmente o equipamento como linha, prumo, nível, esquadro e andaimes - o que evitava o uso de

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estruturas adicionais e reduzia o perigo de acidentes; as tubulações e as instalações elétricas e hidráulicas eram passadas pelos furos dos tijolos - evitando a quebra de paredes e não prescindia de uma mão-de-obra especializada; a metade de cada painel podia ser rebocada no chão, dispensando chapisco, reboco era mais um item da obra que substituía o uso de um especialista; os painéis de telha permitiam a construção de coberturas com telhas de cerâmica sem o uso de madeira e de carpinteiro” - POMPÉIA, 2006: 71

Essa forma “fácil” de execução do painel possibilitava que qualquer pessoa conseguisse trabalhar na construção de casas. Além do pouco uso de instrumentos e maquinários tradicionais de obra, o sistema rompia com a hierarquia de poder estabelecida nos canteiros, a partir de uma inversão de valores própria do aprendizado em autogestão. Devido a racionalização do canteiro e os procedimentos construtivos serem pensados para que todos pudessem executá-los sem grandes dificuldades, desaparecia, praticamente, do canteiro de obras o papel de "servente”. ——————— PAINEL DE ESCADA. fonte: Archdaily

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———————— MONTAGEM DO PAINEL. fonte: Vitruvius

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modernidade apropriada

Conforme tratado no capítulo "Regionalismos", Fernando Cox explica que o conceito de modernidade "apropriada": "parece ser um instrumento útil, já que não pretende negar a modernidade, mas apenas ajustá-la à nossa situação peculiar. Apropriada, aqui, deve ser entendida sob um triplo significado: 1. Como 'próprio' de uma dada realidade, útil e ajustado a uma condição, ocasião ou lugar particular; 2. como 'conveniente', algo que merece ser tomado, assumido e legitimamente aclamado como seu por direito - depois de ser criticamente digerido; 3. como 'peculiar', respondendo a uma situação especifica, pertencendo distinta ou primariamente a nós, de uma maneira especial ou única - não pela busca de 'originalidade', mas para se evitar soluções prontas que não podem ser apropriadamente usadas dentro de um contexto específico diferente." - COX apud BASTOS e ZEIN, 2010: 245

A partir dessa definição, arrisco classificar estas experiências, tanto a vasta e duradoura prática Uruguaia e Argentina utilizando o sistema BENO, quanto a experiência do LabHab UNICAMP, na construção da Moradia Estudantil da UNICAMP, como exemplares para o entendimento da prática da apropriação da modernidade. Utilizando-se de materiais populares, segundo a região (tijolo maciço no caso argentino, e tijolo de 8 furos no caso brasileiro), desenvolveram uma tecnologia construtiva que assimila a vantagem prática da pré-moldagem, de forma crítica à alienação do trabalho que possivelmente ocorre em processos onde se divide a execução por etapas – fabricação e montagem.

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Estes sistemas admitem sua apropriação, tanto por pequenos empreiteiros e cooperativas, quanto pela autoconstrução que rege a expansão urbana, justamente por se valer da forma de construir da periferia, otimizada pela organização em pré-fabricação. Seguindo as definições de Cox para apropriação, nestes casos, foi integral: 1. Como ‘próprio’, pois os materiais eleitos são os de maior uso segundo a cultura construtiva de cada região; 2. Como ‘conveniente’, pois a organização em pré-fabricação, de forma que se amplie a participação na construção, é uma tecnologia moderna criticamente digerida; 3. Como ‘peculiar’, pois estes sistemas nasceram e cresceram não só como opção para diminuir o déficit habitacional, mas também para fortalecer as práticas de construção em autogestão e/ou mutirão dos movimentos sociais em luta por moradia em diversos países da América Latina. Inclusive, esta abrangência continental destes sistemas pode ser verificada em entrevista concedida por Joan Villá à Hugo Segawa, Denise yamashiro e Guilherme Mazza Dourado, publicado na Revista Projeto, 162, de 1993. Mesmo não se verificando a continuidade desta prática no Brasil tanto quanto no Uruguai e Argentina, os motivos explicitados por Joan Villá conotam a leitura de periferias que se constituem de maneira semelhante na América Latina, como um todo: "Eu situo esse trabalho em seu território específico para estabelecer essas inter-relações. Eu o identifico como um projeto na periferia, e também é preciso dizer que visão tenho de periferia. Ela não foge absolutamente do entendimento contemporâneo de local onde a cidade está sendo feita a cada dia. Vejo a periferia como o paradigma da cidade que está sendo construída e que eventualmente poderá vir a ser até a cidade do próximo século. As cidades contemporâneas sobretudo na América Latina - o que não exclui as outras, em todo o planeta -, estão se construindo na periferia. [...] quando se pensa numa periferia latino-americana, e de uma metrópole como São Paulo, essa realidade coloca concretamente formas de viabilizar, do ponto de vista técnico, algumas aspirações de espaço, de arquitetura. Porque se vive numa cidade de um país latino-americano, pobre, e os recursos alocados para todos esses problemas são muito escassos. Mesmo porque, no âmbito público, a questão da habitação ainda é vista numa

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perspectiva sanitarista. No fundo, é preciso trabalhar com pouquíssimos recursos, e a arquitetura é um desses artigos que só costumam se viabilizar com muito dinheiro. Então existe a escassez de recursos, a periferia para construir, a mão-de-obra constitui outro elemento; é preciso então aliar um desenho de arquitetura possível dentro de determinada tecnologia. Uma arquitetura que às vezes se pretende primeiro-mundista tenta reproduzir ou mimetizar soluções de Primeiro Mundo com recursos de Terceiro; nas cidades da América Latina - em função de toda uma dependência cultural etc. - há muitos exemplos disso. Acho que é preciso compatibilizar técnica e desenho porque eles de fato andam juntos; do contrário, configura-se um descompasso e frequentemente um desastre".

Neste trecho Villá explana com clareza seu entendimento do contexto social dos países Latino Americanos, aproximando-os pela vulnerabilidade das periferias, pelos parcos recursos aplicados em soluções para o déficit habitacional, e pelo desenvolvimento histórico de países colonizados tecnologicamente, como reprodutores de técnicas de primeiro mundo. Contudo, identifica a periferia autoconstruída como o principal lugar de criação de cidade, e coloca-se disposto a trabalhar nesse território, com as técnicas locais, compatibilizando-as com o desenho arquitetônico, assim como o projeto da produção. Utilizar o material com o que se costuma construir nas periferias não significa construir utilizando somente este material. Contudo, Villá explica o motivo da tentativa de elaboração de um tipo de construção utilizando-se de apenas um elemento principal: "Sempre existiu uma arquitetura homogênea do ponto de vista da construção e dos materiais. Homogênea é a construção em pedra, em adobe, homogêneas são as pirâmides, o gótico. Existe uma construção heterogênea, que é só deste século, que procura a máxima especialização dos materiais. Para isso recorre a uma série de articulações de modo que uma coisa só - a construção - seja desempenhada por diversos materiais, que cada problema seja respondido por um material específico a partir da constatação de que ele atende melhor a tal necessidade. Mas a arquitetura

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homogênea continua neste século. Ela não é coisa do passado: apenas há outra vertente. Existe uma arquitetura tradicionalíssima de natureza homogênea, onde o elenco de materiais é extraordinariamente reduzido. Só que essa redução não surgiu ao acaso, mas por acúmulo de conhecimentos da humanidade: procuram-se materiais que, como os antibióticos, tenham amplo espectro de ação. Privilegia-se a cerâmica por uma série de razões. Ela tem a virtude de ser pequena, ter uma boa qualidade térmica, não cisalhar, não romper, possuir grande capacidade de carga. Quando se chega a uma arquitetura construída homogeneamente é por depuração: eliminam-se muitas coisas e se atinge aquilo que ao longo do processo de construção de muitos séculos se considera o melhor".

Ao afirmar as vantagens da arquitetura homogênea, Villá também discorre sobre as qualidades do tijolo (neste caso, parece-me, que trata dos mais diversos tipos de tijolos cerâmicos), como por exemplo seu tamanho – relativamente pequeno – que amplia as possibilidades de uso, sua baixa inércia térmica, sua resistência, etc.. No entanto, existe este conflito que surge da própria qualidade de amplas possibilidades do uso do tijolo: quando empregado como componente de pré-moldados, poderia dar sequência à lógica da uniformização das soluções que, segundo o arquiteto, provém das soluções heterogêneas das quais utilizam-se componentes relativamente grandes, limitando a criação e diversificação de construções. "[O tijolo] é um material que permite agilidade na obra, é fácil o pedreiro pegá-lo na mão e assentá-lo. Digamos que o tijolo é o menor material com o qual se consegue construir. É uma questão intimamente ligada ao desenho. Na história da construção há uma trajetória no sentido de aumentar o tamanho dos componentes. Na reconstrução europeia posterior à Segunda Guerra Mundial, russos, checos, franceses, holandeses ensaiaram grandes componentes de concreto, em nível de pré-fabricação. Começou-se pelos grandes painéis de fachada e acabou-se por módulos espaciais completos lajes, pisos, paredes etc. Nos grandes conjuntos do pós-guerra há claramente uma postura mais heterogênea da construção e isso levou a uma série de

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fracassos. E levou a fracassos também no aspecto da qualidade visual, da qualidade do ambiente construído. Por que? Porque os grandes elementos da construção continham limites expressivos de desenho. Na medida em que os elementos foram aumentando, além de problemas de ordem construtiva surgiram os de ordem compositiva. O grande receio que havia era de que a construção industrializada bloqueasse a capacidade criativa dos arquitetos. Isso é uma ideia falsa. Não foi a construção industrializada que gerou certa monotonia, certa repetitividade nas funções, mas foram sobretudo os grandes elementos de construção".

Ao utilizar o tijolo como elemento de um módulo maior, Villá, aparentemente, estaria reproduzindo a lógica da construção com componentes que provocam essa monotonia construtiva. Contudo, apresenta satisfação com os resultados obtidos em suas experiências, recuperando novamente a flexibilidade do tijolo, pois este pode formar painéis diversos – até mesmo arcos -, alterando sua quantidade, alinhamento e orientação, tornando possível a diferenciação de tipologias das construções: Ao dimensionar nossos painéis, uma preocupação dessa ordem também estava presente, ou seja, obter componentes que permitam economia e ganhos de produtividade e ao mesmo tempo não inibam, até facilitem o processo de criação do espaço. Esse é um dos aspectos que acho mais bem-sucedidos no trabalho de Lelé (João Filgueiras Lima). Tanto no Hospital Sara Kubitschek, em Brasília que é de moldagem no canteiro e até obra convencional em concreto, quanto nas escolas que ele construiu em argamassa armada, vê-se que os elementos são sempre razoavelmente pequenos. Isso não ocorre por acaso.

Coroa, por fim, essa feliz parceira de um elemento pequeno utilizado como pré-fabricado citando Lelé, buscando semelhanças entre seus sistemas, no que diz respeito a criação de sistemas que, dentro de seus limites criados, permitem variadas soluções de desenho, assim como a participação da população, ancorados na ideia de módulo versátil.

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os tijolos

Apesar de muito parecidas – as experiências relatadas na Argentina e no Brasil -, diferenciam-se pelo elemento principal. Logo, a despeito do tema central deste trabalho, o tijolo maciço, gostaria de ressaltar a responsável escolha do tijolo de 8 furos como elemento principal dos painéis. Salvo tecnicamente, no que se refere ao peso, agilidade na construção e desempenho térmico e acústico, parece-me que a tijolo ‘baiano’ correspondeu de maneira mais eficaz ao intento de criar sistemas construtivos apropriados e apropriáveis, no caso descrito por Pompéia e Villá. Como não obtive relatos de tentativas de replicar o sistema BENO de construção, em larga escala, no Brasil, a comparação torna-se injusta e prejudicada. Contudo, é notório que o preço do tijolo de 8 furos é menor que o do tijolo maciço, por m². Talvez por isso seja o elemento principal da autoconstrução em toda a América Latina. Logo, percebese a relevância desta experiência, que alimenta o que podemos chamar de antítese deste trabalho, pois apresenta-nos situações onde o tijolo maciço revela-se em segundo plano no que se refere ao imaginário coletivo do que é a cultura construtiva brasileira hoje. Todavia, o tijolo maciço, na Argentina e Uruguai, continuam compondo a prática de construção em autoajuda, organizadas por cooperativas e movimentos populares por habitação, enquanto no Brasil, este mesmo segmento organizado, hoje em dia, constrói de maneira convencional. Sem dúvida, isto se deve também a fatores externos à própria técnica construtiva, como por exemplo as formas de financiamento, e o dinheiro gasto com aquisições de propriedades na construção de habitações de interesse social. 76


tecnologia social e subsídio A respeito dos motivos pelos quais esta prática não se desenvolve até hoje no Brasil, o artigo "As origens do sistema de pré-fabricação em cerâmica vermelha no Brasil", publicado em 2010, de João Marcos de Almeida Lopes e Luciana Cristina Ceron, traz reflexões acerca do esgotamento desta técnica, segundo o conceito de tecnologia social: “Há uma grande defasagem entre as primeiras referências ao painel de cerâmica armada – aqui identificado como Sistema BENO, o já bastante difundido processo de pré-fabricação de painéis com tijolos cerâmicos, originalmente desenvolvido desde o final dos anos 1960 a partir de pesquisas que acompanharam a criação do CEVE – e a real extensão do alcance de sua replicação enquanto modalidade de um produto tecnológico – aqui indicado nos termos de uma tecnologia social stricto sensu: um produto técnico que reúne em si o conhecimento acadêmico, aqueles próprios do ofício e outros que se acumularam à medida que o sistema agrega conhecimentos autóctones, desvendando articulações mais particulares ou mesmo limitações mais profundas.” (LOPES & CERON, 2010: 2)

Este produto técnico se deu, segundo os autores, através da transferência de conhecimento tecnológico não indexado como procedimento institucionalizado, ou seja, a margem do arcabouço normativo disponível. Não haveria, portanto, limites para a transformação desta tecnologia, na medida em que os personagens envolvidos na elaboração desta poderiam organicamente transformá-la.

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“A bem da verdade, não havia esta disposição por parte da universidade: alguns dos argumentos que apresentavam o sistema dos pré-fabricados em cerâmica vermelha como processo tecnológico ideal para a produção autogestionária da moradia fracassavam se contestados de modo minimamente rigoroso. Apesar do discurso oficial, as sugestões de alteração não eram muito bem recebidas, principalmente quando propunham alterações no sistema construtivo: uma das questões que acabou indispondo muita gente em relação ao trabalho no Laboratório foi justamente o fato de o sistema manter-se fechado – sem que isso fosse necessário”. (LOPES & CERON, 2010: 17)

Como exemplo do engessamento da técnica, citam o peso final de cada painel, que, ao contrário do discurso, chegava a pesar mais de 100kg. Carrega-lo em quatro pessoas, dividindo cerca de 25 kg para cada, estaria ainda dentro dos limites aceitáveis, se não fosse o fato de que cada casa demandava em torno de 400 a 500 painéis. Carregá-los todos e içá-los todos manualmente, sem nenhuma mecanização, era demasiado trabalhoso. Lopes e Ceron citam Roberto Pompéia, o qual lembra que um dos principais entraves para o acelerado desenvolvimento das obras da AMAI, no Grajaú, era justamente a morosidade dos processos de transporte e montagem. Quando estruturado o programa FUNAPSComunitário, já na gestão Erundina, entre 1989 e 1992, seria por iniciativa da Prefeitura a instalação de uma grua na obra, viabilizando finalmente sua conclusão. A partir da década de 1990, o sistema experimentou um gradativo esgotamento, muito em virtude de limitações intrínsecas, mas também pela dificuldade de apoio financeiro por parte do poder público, como neste exemplo de Pompéia citado acima. Na Argentina, o CEVE teve semelhante dificuldade frente ao desafio de reduzir custos. Antes composto por paredes duplas de placas de cerâmica armada com isolação térmica no meio, tetos combinados de placas cerâmicas e concreto, instalações de água quente e fria; modificou-se, atendendo ao imperativo da redução de custos, para a criação do projeto SEMILLA. Em lugar da construção completa de casas, passaram a executar um embrião, ou seja, uma casca configurando um ambiente amplo, tendo como única divisória interna o banheiro. As paredes, que são placas

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iguais que as do sistema BENO, passaram a ser executadas com apenas uma placa, tendo como espessura apenas 3,5 cm. “Na análise de Uboldi (UBOLDI. 2003: 163), para que realmente se apresente uma solução para o problema habitacional das classes pobres em nossos países, não basta somente trabalhar com a investigação, criando sistemas tecnológicos cada vez mais baratos e minimamente adequados. Uboldi acredita ser necessário fortalecer outros tipos de ações que impulsionem a geração de políticas de Estado minimamente orientadas por alguma sabedoria para atender este direito humano fundamental que é a habitação. Diz que, pelo contrário, a situação atual nos impõe um sistema de equações que não é passível de resolução pela tecnologia e, somente mudando substancialmente esse sistema de equações, ou seja, as políticas públicas, pode-se conseguir algum avanço. Ou seja, o caminho atual não nos conduz a nenhuma solução”. (LOPES & CERON, 2010: 19)

É evidente que toda tecnologia pensada para a construção de habitação de interesse social depende, de certa forma, do apoio do poder público, em geral na forma de subsídios. Contudo, a forma como a prática de construção com painéis cerâmicos foi erradicada no Brasil traz a luz outra ordem de dificuldades a serem enfrentadas, como a apropriação desta por àqueles que, em momentos de negociação – ou pressão – tem poder de reivindicar tal apoio do poder público: a população organizada. Enquanto tecnologia social, poderia ter se adaptado conforme as dificuldades enfrentadas pelos mutirantes, militantes dos movimentos de moradia, para que assim a eles a técnica pertencesse. “Desta forma, mesmo diante de uma boa quantidade de indefinições e da ausência de registros que nos auxiliem compreender todos os momentos do percurso descrito, o que se pretende aqui é ressaltar o quanto as contingências externas ou incongruências presentes no próprio sistema acabam prevalecendo, ampliando o abismo entre técnica e política, à medida que a permeabilidade de um sistema tecnológico restringe-se, ou a favor do atendimento de tais contingências, ou para se preservar de adaptações que descaracterizem os argumentos que o sustentam. Em ambos os

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casos e de qualquer modo, o que está em jogo é a identificação entre técnica e ação política: o produto tecnológico, quando aberto e permeável como e enquanto processo socialmente determinado, sensível e adaptável às configurações que este processo vai assumindo, será sempre o que Dagnino identifica como tecnologia social. Caso contrário, se submetido às injunções da forma mercadoria, resta-nos sempre a técnica confrontada à política”. (LOPES & CERON, 2010: 19)

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relações com o grupo Arquitetura Nova Já foi comentado neste trabalho como o grupo Arquitetura Nova havia influenciado, direta e indiretamente, os arquitetos que, na década de 1980, buscaram no uso do tijolo uma alternativa à onipresença do concreto armado na arquitetura nacional. O emprego do tijolo ou lajotas cerâmicas foi preconizado com intenção política pelos arquitetos que haviam escrito, em 1963, o artigo "Proposta Inicial para um Debate: Possibilidades de Atuação", “em que fizeram a defesa de uma poética da economia, uma estética moralista que resultaria do mínimo-útil, didático, construtivo - e a consequente eliminação de todo o supérfluo” (JUNQUEIRA&ZEIN, 2015: 217). Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro já associaram uma coerência entre a poética da economia e a realidade histórica nacional nesse texto. Em 1972, foi publicado pelo grêmio da FAU-USP o artigo "A Casa Popular", extraído do livro O Canteiro e o Desenho, de Sérgio Ferro, que, segundo Maria Alice Junqueira Bastos e Ruth Verde Zein, continha as propostas teóricas que se associam à produção do trio Ferro, Lefèvre e Império: “Esta proposta teórica, crítica ao modo de produção da arquitetura em que o uso de tecnologia avançada alija o operário de uma compreensão global da obra, gerando uma situação de alienação. Assim, o desenho do arquiteto deveria levar em conta as relações no canteiro de obras, de maneira a minorar a situação de exploração e alienação do operário diante de uma tecnologia que não domina e, portanto, em cuja fatura não pode opinar nem se manifestar”. Este princípio explicitado nesta citação assemelha-se muito à prática relatada neste capítulo, pois ambos assumem a mão de obra não

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qualificada, a partir do reconhecimento da influência do projeto como um todo na organização do canteiro. Aproximam-se ainda ao propor uma tecnologia simples, sem cálculos complexos, que permitia ao operário - ou mutirante, como por exemplo na prática do CEVE relatada anteriormente - dominar todo o processo construtivo. Ambos se valem de materiais comuns e amplamente utilizados – os tijolos -, porém, empregados de forma distinta da usual: o grupo Arquitetura Nova propunha o emprego de abóbadas catenárias de tijolos ou lajotas cerâmicas, uma estrutura econômica – por ser submetida somente a esforços de compressão, poupa-se em armações de aço - e, graças à esta forma aguda que também abriga o canteiro, sem gastos com impermeabilização; tanto o CEVE quanto o grupo do LabHab UNICAMP valem-se da pré-fabricação como forma de radicalizar o intento de facilitar a construção. Por esta semelhança, acredito que a ponderação de Ana Paula Koury a respeito das propostas do grupo Arquitetura Nova, valem para ambos: “[...] as ideias e propostas de Ferro, Império e Lefèvre, expressas no processo de criação coletiva, práticas artísticas e textos escritos, foram ao mesmo tempo críticas e respostas aos problemas nacionais. Em suas obras, realizaram operações que, do ponto de vista material, adequavam-se às restrições econômicas do subdesenvolvimento e à falta de recursos, mas, do ponto de vista cultural, representavam o desafio da constituição de novos valores que viabilizasse num projeto audacioso de transformação do presente”. (KOURY, 2003)

Em ambos os casos, a escolha de um elemento construtivo principal ser conhecido e amplamente utilizado não parece suficiente para que estas práticas sejam integralmente apropriadas. Possivelmente, e principalmente, por corromperem o arranjo de canteiro que facilita a exploração do trabalhador e a extração de mais-valia no canteiro de obras, que é a maior cultura construtiva brasileira, esbarram nos costumes da população mais pobre – esta que constrói as cidades.

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"Numa entrevista concedida a Marlene Acayaba, já nos anos de 1980, Sérgio Ferro procurou explicar que a intenção ética do grupo “nunca foi a recuperação ou apropriação de uma cultura tradicional-popular de construção, mas antes deixar que o saber do operário participasse do produto final, que seu envolvimento na obra de desse de maneira menos massacrante e alienada". (JUNQUEIRA&ZEIN, 2015: 217)

Nesta citação a respeito da declaração de Sérgio Ferro, percebe-se talvez a maior diferença entre as experiências relatadas neste capítulo e a prática do grupo dos três arquitetos: apesar de ambos aparentemente compartilharem deste mesmo princípio ético, parece-me que para Villá este era também um meio para atingir escala de atuação, enquanto para Ferro aparenta ser o objetivo. Dentre as obras construídas dos três arquitetos, Ferro, Império e Lefèvre, nesta época em que também constituíam a crítica ao canteiro convencional, todas são para famílias e/ou amigos de classe média, em bairros da zona oeste de São Paulo, ou casas de veraneio, na praia. Portanto, a exploração do trabalhador da construção civil se apresenta como objetivo primeiro a ser combatido, e talvez por isso, possa ter enfrentado maior resistência cultural, pois aposta na atuação crítica do arquiteto quanto promotor da construção civil, através da construção de abóbadas e abobadilhas de cerâmica. Como pretende corromper o canteiro convencional e alienante, a prática possivelmente não seria adotada pelo mercado. Contudo, parece-me que nem mesmo a população de baixa renda adotaria esta prática construtiva facilmente, pois isto implicaria em morar em uma casa de formato pouco usual, forma esta que também delimita o programa proposto em planta, e dificulta reformas de ampliação. Em suma, a proposta difere demasiadamente da experiência cotidiana do construir, justamente a qual os integrantes do LabHab UNICAMP procuraram assimilar. Por outro lado, as práticas narradas anteriormente neste capítulo parecem ter como objetivo fim a construção de casas de qualidade para a população de baixa renda. Para tanto, valem-se de técnicas apropriáveis para a organização em mutirão, ou seja, pensadas também para a população organizada em luta por moradia. Seria esta uma visão

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mais pragmática de atuação do arquiteto, que observou nos movimentos de moradia e nas organizações populares a possibilidade de construir de forma distinta do canteiro convencional, e estes seriam os replicadores da técnica. Logo, a questão cultural do construir deixa de ser um problema a ser enfrentado, pois os movimentos demonstraram-se empenhados o suficiente para participar da modificação de costumes elementares, sobretudo quando estes são opressores e exploratórios. Apesar das diferenças, percebo que as experiências não se conflitam, pois, mesmo que indiretamente, parecem ser produto, uma da outra. Vale ressaltar que a atuação do grupo Arquitetura Nova se deu nas décadas de 60 e 70, enquanto a construção da moradia estudantil da UNICAMP foi concluída em 1990, e foi, provavelmente, a semente da reflexão sobre o canteiro convencional no Brasil.

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———————————— MORADIA ESTUDANTIL UNICAMP. fonte: Archdaily

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Eladio Dieste os limites do tijolo


"Estamos diante de uma situação inusitada, vemos uma técnica simples porém com produto formal e tecnicamente ousados que aos poucos avança na contramão, isto é, não dos países desenvolvidos para a periferia, e sim, ao contrário. Por tudo isso, pensamos que seria mais correto dizer 'Eládio Dieste: o mestre das cascas cerâmicas'".

– Paulo Henrique Coelho, 1987




As obras e experiências abordadas até aqui valem-se do tijolo maciço para construir integralmente os edifícios, como elemento construtivo principal, ou seja, aproveitado quanto suas qualidades estruturais. Este tipo de uso do tijolo como alternativa estrutural, prática esta que se deu com maior intensidade no Brasil ao longo dos anos 80, teve forte influência de experiências Latino-americanas, como pudemos ver na apropriação e transformação do sistema BENO, concebido no Uruguai e Argentina. Neste esforço de entender peculiaridades da arquitetura brasileira dentro de um panorama latino-americano, Maria Alice Junqueira Bastos e Ruth Verde Zein relatam a ampliação da discussão entre arquitetos, engenheiros e teóricos latinos, principalmente ao longo dos anos 80, a partir da criação dos SAL, de periódicos como a revista Projeto, e da influência das interpretações de Marina Waisman, Crinstián Fernández Cox, entre outros, conforme já relatado no capítulo "O tijolo no Brasil". Projetos de arquitetos que trabalhavam quase exclusivamente com o tijolo maciço foram então divulgados e reconhecidos, como por exemplo a obra de Rogelio Salmona, na Colômbia, a partir da década de 1980. Utilizando o termo empregado por Joan Villá, a arquitetura homogênea na qual se utiliza somente o tijolo maciço para executar as paredes, coberturas, e até mesmo os pisos, teve forte influência do engenheiro uruguaio Eladio Dieste, o qual a partir do final dos anos 50 desenvolveu um trabalho pioneiro: a execução de estruturas tipo ‘casca’ com tijolos cerâmicos. Não somente o uso do tijolo de forma integral em suas obras foi fruto de apreciações ao redor da América Latina, mas também a forma como procurou criar uma tecnologia própria de um país subdesenvolvido, a partir do contexto sócio-cultural uruguaio. "A ideia de um desenvolvimento tecnológico adequado à realidade foi exemplarmente demonstrada na obra do engenheiro uruguaio Eladio Dieste, que desenvolveu a tecnologia da cerâmica armada. Uma tecnologia econômica, com reaproveitamento das fôrmas, voltada ao emprego racional do esforço humano e preocupada em evitar o desperdício de material. Suas soluções procuraram solucionar, por meio do desenho, a rigidez das estruturas, contando com um mínimo construtivo de armadura de ferro. A

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qualidade plástica de suas elegantes estruturas e a sofisticação de seus cálculos superaram os meios relativamente pobres, levando a uma arquitetura de alta qualidade". (BASTOS e ZEIN, 2010, p.207)

O que nos interessa nesse capitulo é investigar suas propostas a partir não só de seus projetos, mas também de textos e entrevistas nas quais o engenheiro procurou teorizar sobre a técnica que propôs. Assim, é possível colocar o discurso de Dieste a prova, assim como entender, nos pormenores, sua motivação.

———————— IGREJA CRISTO OBRERO Eladio Dieste Uruguai, 1958 fonte: Archdaily

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a história da técnica segundo Dieste Em um texto publicado na revista Projeto em 1981, "Estruturas de cerâmica armada", o engenheiro relata a evolução da técnica, assim como breve histórico das técnicas construtivas em geral, demonstrando o caminho a ser explorado em construções com tijolos, otimizadas segundo a forma da estrutura e a combinação com outros materiais – como aço e concreto. Nele, o engenheiro explica que: “a argila cozida, um dos mais antigos e nobres materiais de construção, foi tradicionalmente usada apenas em elementos construtivos que trabalhavam sob compressão simples ou sob flexão composta. A incapacidade deste material, para resistir a esforços de tração, pode obrigar, neste último caso, a aumentar as seções de maneira antieconômica para manter as tensões dentro de valores admissíveis. Por exemplo: a força direta de compressão é que possibilita que uma ponte em arco, de alvenaria sem armar, resista às flexões que provoca a carga útil prevista para a ponte. É o material desta obra que lhe dá capacidade para resistir aos quase sempre inevitáveis esforços de flexão, uma vez que a compressão prévia, devido à gravidade, ou seja, ao peso do material, permite que a peça de que se trata possa ser submetida a flexões que, de outro modo, não poderia resistir. Nestas elementares considerações se resumem as linhas conceituais em que se fundamentam todas as grandes construções de alvenaria de pedra e de tijolo do passado. Praticamente toda história da construção, até a revolução industrial, é o relato dos meios com que o engenho e a capacidade inventiva do homem fizeram frente à necessidade de trabalhar com materiais que não resistiam a esforços de tração, se

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excetuarmos os casos em que se usava a madeira, o único material de construção antigo que resistia a flexões simples, mas com o inconveniente de ter curta durabilidade”. - DIESTE, 1981: 27

Após a revolução industrial, o uso do aço – apto a trabalhar sob forte tração – intensificou-se, inclusive combinado com o concreto. Com este advento, as formas construtivas tornaram-se mais flexíveis, e estas estruturas de concreto armado provaram-se eficazes para vencer grandes vãos – o que até então era demasiado trabalhoso quando se utilizava o tijolo. Segundo Dieste, a incorporação de armação à alvenaria de tijolos, para que resista à tração, foi experimentada nos princípios do século XIX – anterior, portanto, ao concreto armado. Contudo, estes experimentos foram dispersos e logo esquecidos. Mesmo aqueles que insistiram nesta combinação de materiais até os recentes dias, segundo o engenheiro, não atrelaram a investigação técnica à criação de formas construtivas, as quais resultam naturalmente das virtudes do material empregado e das técnicas de trabalho que lhe são próprias. Viciadas nas formas usuais de construção com o concreto armado, as investigações da técnica da cerâmica armada, como por exemplo em universidades dos Estados Unidos, limitavam-se a testá-la quanto viga, laje e pilar. No entanto, na Itália, Espanha e Portugal, havia técnicas tradicionais que despertaram o interesse de Dieste, pois demonstravam o potencial construtivo da cerâmica quando esta era respeitada no desenho da forma da estrutura. No momento em que o texto foi publicado, estes três países teriam um quadro análogo em relação ao desenvolvimento de técnicas de cerâmica armada: "Um material de suma importância: tijolos comuns, com resistência da ordem de 1.000 kg/cm2 (aproximadamente 100 Mpa), superior à dos melhores concretos; grande domínio tecnológico da alvenaria armada e, junto a isto, formas estruturais e métodos construtivos que não usam o material que se tem disponível de modo natural. O Eng. Torroja afirma, em um artigo publicado na revista “Techniques et Architecture" (15 série nº 4), que é importante lembrar que o tijolo tem sido bastante depreciado pelos projetistas; que as abóbadas "tabicadas", de tradição mediterrânea, podem

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aumentar seus vãos e variar suas formas, graças à grande aderência do tijolo e da argamassa, ao emprego de cimento de pega rápida e de malhas de aço entre as fileiras de tijolo ou no emboço. Lembra ainda que a facilidade oferecida por este material, para adaptar formas de dupla curvatura variável, não foi alcançada até então pelo concreto, pelo menos numa forma econômica industrialmente". (DIESTE, 1981: 28)

—————————————— MUSEO DE LA TÉCNICA DE CATALUNYA Boveda tabicada, 1907 fonte: Wikipédia

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breve digressão: Bóvedas Tabicadas Abóbada Tabicada - ou volta catalana, como é chamada na Catalunha - é um tipo de abóbada que, normalmente, é construída sem fôrma ou cimbramento, com tijolos leves e argamassa de pega rápida. A forma mais comum de se construir seria dispondo os primeiros tijolos presos com argamassa na parede, fechando a cobertura das extremidades para o centro do cômodo, de modo que se forme uma abóbada autoportante. Formada por duas ou mais capas de tijolos finos, seus exemplos mais notáveis são encontrados em Portugal e Espanha, sendo que o exemplar documentado mais antigo deste tipo de abóbada está em Sevilla, construída no século XIII. O nome abóbada tabicada origina-se de um tabique (parede geralmente feita de tijolo leve e espessura fina). No caso, construída horizontalmente, com uma certa curvatura suficiente para evitar sua queda quando executada sem cimbramento. A respeito de algumas variações sobre esta técnica, também utilizada em países latino-americanos como o México, o arquiteto mexicano Alfonso Ramírez Ponce, em texto publicado em 2008, define: "Nossa classificação não é a tradicional, mas nos parece mais clara e simples. Se todos os tijolos comuns têm três superfícies – cabeça, canto e face, considerando da menor para a maior – a proposta é que os muros e as coberturas se denominem segundo a posição do tijolo. Nas abóbadas espanholas – catalãs e extremeñas – a parte visível é a face e se juntam de canto; no caso das “abóbadas” mexicanas é justamente o contrário – se juntam de face e a parte visível é o canto. As primeiras seriam abóbadas “tabicadas”, com

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tijolos de face e as segundas abóbadas “sobrecarregadas” com tijolos de canto. Na denominação atual, as abóbadas espanholas são chamadas de abóbadas com “tijolos de plano” e as nossas (mexicanas), com “tijolos em rosca".

Esta é uma técnica construtiva muito inteligente e singular, de invenção popular. Conforme explica Ponce, esta tradição construtiva, que se originou no Mediterrâneo europeu, foi apropriada pelos mexicanos, alterando a posição do tijolo: este é assentado de forma que a abobada tenha a espessura da largura de um tijolo – ou pode-se dizer que tem a largura de ‘meio tijolo’ -, enquanto na Europa a abóbada tabicada costuma ter a espessura correspondente à duas vezes a menor espessura do tijolo – normalmente mais fino que o normal, e empregado em duas capas. Contudo, nos dois casos, o tijolo empregado deve ser muito leve, muitas vezes vazado, para facilitar a execução sem cimbramento e diminuir o peso próprio da cobertura. Alfonso Ramírez Ponce reivindica o uso desta técnica de forma a preservar a cultura autônoma mexicana, ou seja, preocupa-se em manter o que seria, usando os termos de Kenneth Frampton, o núcleo criador (FRAMPTON, 2006, p. 504) desta civilização, em oposição à perspectiva do consumo de cultura globalizada que oprime a identidade nacional, conforme explicitado em citação de Batalla contida no mesmo artigo: “A natureza da sociedade capitalista, acentuada pela industrialização, implica num processo crescente de alienação e imposição cultural sobre o mundo subalterno, aonde se quer ver as pessoas convertidas em consumidores de cultura e não em criadores dela. As teses da propaganda consumista – tanto de bens materiais como de sentimentos e ideologia – buscam convencer o homem do mundo subalterno de que ele é cada vez menos capaz de pensar, fazer, querer ou sonhar por si mesmo, porque os outros é que sabem pensar, fazer, querer ou sonhar melhor do que ele. A afirmação da cultura própria é, por isso, um componente central, não apenas de qualquer projeto democrático, mas de toda ação que repouse na convicção de que os homens são o que são graças à sua capacidade criadora” (BATALLA, 1992: 56)

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Contudo, argumenta que esta técnica foi apropriada e continua a ser utilizada devido não só à tradição em si, mas por seu baixo custo quando comparada à laje de concreto armado. Segundo Ponce, “podemos dizer que na Cidade de México o custo atual das abóbadas por m2 está entre 50 e 60% do custo de uma laje comum de concreto armado em vãos pequenos. Em vãos de 5 metros ou mais a diferença de custo se amplia, pois é sabido que lajes de tais dimensões necessitam de elementos estruturais adicionais”.

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reinventando o artesanal Conforme já mencionado na citação de Torroja, Dieste já tinha conhecimento da técnica da abóbada tabicada, a qual julgava pouco aproveitada, mesmo nos países de origem desta técnica tradicional. No entanto, em texto publicado na revista Arquitetura e Urbanismo em 1987, admite que só tomou conhecimento da obra do engenheiro espanhol erradicado nos EUA, Rafael Guastavino, dois anos antes da publicação em questão - após anos de desenvolvimento e prática da técnica de cerâmica armada. Guastavino, a partir de 1880, projetou e participou da construção de obras empregando a técnica da volta catalana (ou abóbada tabicada), vencendo vãos de até 30 metros de diâmetro [2]. Dieste, contudo, demonstra os propósitos de sua busca pela tecnologia da cerâmica armada ao reconhecer que esta técnica tradicional mediterrânea, apesar de elevada a uma “grande perfeição” por Guastavino, não deixa de ser artesanal, portanto pouco viável para os dias atuais, por razões econômicas. Ao propor a técnica da cerâmica armada em cascas autoportantes, Dieste procura atingir velocidades de construção semelhantes àquelas obtidas com elementos de pré-fabricação [3] , contudo, utilizando poucos equipamentos e mão-de-obra. “A simplicidade do equipamento necessário e o fato de utilizarmos a menor e mais antiga das peças pré-fabricadas, nos levam a supor que os métodos aplicados são artesanais, dando a esta palavra um vago sentido de subdesenvolvimento e de ausência de tudo o que a ciência tem posto ao alcance da técnica, o que não é, como veremos, verdade”. (DIESTE, 1987; 82)

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a técnica

A partir do final dos anos 50, Eladio Dieste desenvolveu esta tecnologia pioneira de execução de estruturas tipo casca com tijolos e argamassa, ligeiramente armada. Dentre as diferentes formas com as quais mais trabalhou na execução de coberturas para grandes vãos, sobressaemse as abóbadas gausas e as abóbadas cilíndricas ou de berço, ambas de diretriz catenária. Assim, resultam somente em cargas verticais onde se apoia a cobertura - sobre as vigas, pilares ou paredes -, devido a sua propriedade funicular. Percebe-se que independentemente do formato escolhido, este sempre é produto de uma repetição de um módulo, sejam eles conectados estruturalmente ou não, de forma que se possa construí-los com apenas um jogo de fôrma de sustentação, reutilizando-o e assim, diminuindo o custo da obra. As abóbadas gausas – assim denominadas pelo próprio Dieste -, por exemplo, são abóbadas de dupla curvatura, decorrente da variação

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[1]

Cobertura da Cathedral of Saint J2hn the Divin, em Manhattan, EUA. Executada em 1909, esta cobertura que seria temporária permanece até hoje.

[2]

Esta comparação é feita pelo próprio engenheiro no texto já mencionado da revista Projeto, em 1981.

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——————— DUPLA CURVATURA CORTE E VISTA

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longitudinal da flecha catenária do módulo. Usando uma fôrma simples, compostas de uma parte básica de aço e dispositivos mecânicos que permitam um fácil deslocamento horizontal e vertical, pode-se fabricar estas lâminas de dupla curvatura, nas quais a ondulação longitudinal dá a necessária rigidez contra a flexão e à instabilidade elástica. A concepção e elaboração destas abóbadas cerâmicas de dupla curvatura, conforme o próprio engenheiro compartilhou inúmeras vezes em textos e artigos, contribui para o entendimento das funções, qualidades e princípios desta tecnologia excepcional. Segundo Dieste, a cerâmica armada é o material ideal para a execução destas abóbadas, excelentes para cobrir grandes vãos, com “requinte e economia”. Para que seja então econômica, é necessário diminuir sua seção transversal para torná-la mais leve. A fim de que se diminua a seção para o mínimo construtivo, determina-se a seção transversal com diretriz catenária, para que esta se submeta a esforços de compressão pura. Portanto, essa tensão inerente à estrutura – compressão pura -, deve-se somente à força da gravidade. Conclui-se, então, que a tensão presente em cada seção da casca, de sentido sempre coincidente à curvatura catenária da estrutura, é proporcional ao peso próprio do material empregado. A título de exemplo, Dieste cita que em uma abóbada de 100 metros de vão e 10 metros de flecha, a tensão inerente é de 2,7 Mpa, sendo que no mercado encontram-se tijolos cerâmicos que, em média, superam 25 Mpa em resistência, chegando até 50 Mpa. Percebe-se que as propriedades de leveza e resistência dos tijolos cerâmicos são exploradas ao limite, neste caso. Vale ressaltar que dependendo do formato da cobertura, utilizava-se o tijolo maciço – mais recorrente nas abóbadas catenárias de berço - ou o tijolo furado. Neste caso, muitas vezes utilizava-se uma peça cerâmica semelhante a uma lajota, chamada bovedilla no Uruguai, que apresenta dimensões de 25 x 25 x 15 e quatro furos. Tais vãos, de ordem industrial de grandeza, exigem que a casca resista a flexões acidentais, portanto são limitados pela flambagem da abóbada e sua capacidade de resistir aos esforços do vento. Tanto a flambagem quanto outras flexões acidentais podem ser resolvidas aumentando-se a rigidez da abóbada, contudo, sem aumentar o peso próprio da estrutura

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demasiadamente. Para tanto, poder-se-ia construir arcos rígidos por cima e por baixo da abóbada. Porém, esta solução foi descartada por dificultar a execução do molde, assim como por afetar o regime elástico da casca. Para resolver a falta de rigidez necessária para resistir à flexão, Dieste propõe a ondulação deste módulo, conforme já mencionado, variando a flecha da catenária no sentido longitudinal. Esta variação da amplitude do arco em diferentes seções transversais da abóbada faz com que a seção longitudinal se pareça com uma onda, que se repete quantas vezes for necessária. Para esta repetição, basta um molde de mesmo formato do módulo, que se movimentaria longitudinalmente entre duas paredes, ou outra estrutura resistente que absorva o peso da casca. Este molde é preenchido com peças de cerâmica dispostas o mais próximo possível umas das outras, rejuntadas com argamassa comum de areia e cimento – representando cerca de 2 a 5% da casca, enquanto os 98 a 95% da superfície é ocupado pelas peças cerâmicas. Contudo, a dupla curvatura acentuada também está sujeita a fissuras, pois as catenárias de diferentes flechas que provocam a curvatura trabalham com diferentes intensidades de tensões inerentes. O ponto onde a catenária possui a menor flecha é onde esta se deforma – ou se acomoda – com mais intensidade. Por isso, arma-se a casca com uma malha de aço a fim de criar uma unidade longitudinalmente. Considerando que 98% da abóbada possui sua rigidez final no momento em que se finaliza a execução do módulo (pois a argamassa necessita de cerca de 28 dias para atingir sua rigidez, enquanto o tijolo não se modifica), é possível executar a desforma poucas horas após o fim da execução da casca. Para uma abóbada gausa de 35m de vão, Dieste afirma que é possível retirar o molde a partir de 14 horas após o rejuntamento, o que possibilita um ritmo de trabalho mais veloz que de construções em concreto armado, chegando a execução de 500 m² por dia, com a utilização de 0,25 trabalhador/dia de oficial e 0,2 trabalhador/ dia de ajudante por metro quadrado de construção (DIESTE, 1987/88). A rápida desforma possibilita ainda a construção de uma cobertura

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comprida utilizando-se apenas um molde, fazendo com que o preço deste, que costuma ser unitariamente caro, dilua-se no custo total da obra – representando, segundo Dieste, apenas 4% do total gasto em suas construções. Finda a execução da casca é possível fechar o encontro dos módulos ondulados - onde a parte mais baixa da onda termina e a parte mais alta, de outro módulo, começa - com vidros, de forma que se viabilize a ventilação e iluminação zenital, como sheds industriais. Soma-se ao conforto térmico obtido o fato de que esta casca pronta, com 12cm de espessura (tijolo de 10cm + 2cm de capeamento de argamassa), possui capacidade de isolamento equivalente à 30cm de concreto, segundo o engenheiro. Outra vantagem alcançada com esta técnica construtiva é que se obtém um bom comportamento acústico, pois as ondas sonoras incidem na superfície da cobertura com diferentes ângulos, devido a ondulação, causando a consequente dispersão da energia sonora. Por fim, verificase que com uma resistência semelhante ao do concreto, as unidades cerâmicas possuem menor módulo de elasticidade, o que permite que a construção absorva melhor as possíveis deformações, suportando mudanças abruptas de temperatura. Aumenta-se, assim, a durabilidade da construção. Não somente de abóbadas gausas consiste a obra de Eladio Dieste. Conforme já mencionado no início do capítulo,o engenheiro também executou abóbadas catenárias de berço, coberturas onduladas, inclusive de diretriz catenária, contínuas – como por exemplo a Igreja de Atlântida no Uruguai -, paredes plissadas, torres de reservatório e diafragmas, todos de tijolo, muitas vezes armado. Não seria exagero afirmar que revolucionou o uso do tijolo, no mundo todo, demonstrando sua possibilidade de trabalhar como casca – o que já seria pouco usual, visto o vício atual de pensar cada vez mais na resistência das nervuras estruturais, e cada vez menos nas superfícies.

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———————— IGREJA CRISTO OBRERO Eladio Dieste Uruguai, 1958 fonte: Archdaily

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técnica [sub]desenvolvida

"O período no qual a obra de Dieste foi produzida, a segunda metade do século XX, foi um momento bastante particular da arquitetura na América Latina, quando ocorreu a difusão do Movimento Moderno, e consequentemente da tecnologia do concreto armado, e trabalhos de arquitetos Niemeyer, no Brasil, Villanueva, na Venezuela, Bonet, no Uruguai, entre outros, foram divulgados amplamente no cenário internacional. E aí está uma posição de Dieste, rara e talvez única; ele foi reconhecido também no cenário internacional por uma obra que, ao optar por técnicas e condições de construção locais, se diferenciava do Movimento Moderno uma vez que esse trabalhava com técnicas e conceitos desenvolvidos nos países centrais". (LINO, 2008)

Conforme relata Sulamita Fonseca Lino, Dieste apresentou, em seus textos, várias questões importantes, por seu caráter crítico, sobre a relação da construção com o oficio da arquitetura como: a importação de técnicas construtivas dos países centrais; o esquecimento, por parte dos construtores latinos, das tecnologias mais antigas; a supervalorização do projeto (e do desenho) de arquitetura em detrimento do processo de construção, entre outras. A partir desta crítica, ele propôs a construção em cerâmica armada como tecnologia coerente com a realidade de seu pais – subdesenvolvido, com tradição construtiva empregando o tijolo. Dieste reconhece a imposição tecnológica que a América Latina sofreu – e sofre – por parte dos países Europeus e Estados Unidos. Tanto no

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âmbito do ensino de arquitetura e engenharia quanto por parte do poder público, optou-se por importar as tecnologias destes países desenvolvidos, assim como na linguagem e na forma das construções, de forma intensificada a partir da revolução industrial. "Na história recente da arquitetura, esse argumento parece claro. O Movimento Moderno surgiu na Europa no início do século, quando a sociedade se preparava para a primeira grande guerra, a revolução industrial estava consolidada, e a ideia de se construir com materiais produzidos pela indústria ganhava força. Nesse contexto, o uso do concreto armado e do vidro pareceu bastante apropriado para a construção de grandes conjuntos habitacionais, por exemplo, tanto nas periferias dos países europeus, para abrigar o proletariado, quanto em países como a União Soviética, que precisavam construir habitação em larga escala para todos. Para refletir sobre essas ideias foram criados os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM, que tinham como objetivo discutir os princípios dessa arquitetura, entre outras questões, e chamar para esse debate arquitetos de várias partes do mundo. Mas, foi nos Estados Unidos, com a verticalização da ilha de Manhattan, em Nova York, nas primeiras décadas do século XX, que o Movimento Moderno alcançou uma escala jamais vista, e ganhou o título de Estilo Internacional. Nesse processo, os edifícios foram ficando cada vez mais altos e envidraçados, graças à estrutura trabalhada de maneira independente da vedação e demonstravam, simbolicamente, a imagem de modernidade alcançada pelo domínio da técnica construtiva". (LINO, 2008)

Segundo entrevista concedida em 1978 e publicada em 1985 na revista Projeto, assim como o fez em outras oportunidades, Eladio Dieste se posiciona criticamente à difusão de preceitos descontextualizados da Arquitetura Moderna nos trópicos. Primeiramente, ressalta a diferença climática dos países da América Latina aos países do hemisfério Norte, questionando o uso de uma arquitetura de fachadas inteiras de vidro com o sol constante, na maior parte do ano, e alta temperatura em parte do ano. Além disso, a imposição de uma maneira de construir que se originou do desenvolvimento industrial, levou a uma desconsideração, e

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até mesmo ao esquecimento das tradições construtivas locais. Ou seja, por mais que sejam eficientes em países frios e de indústria avançada tecnologicamente, muitas técnicas construtivas não condizem com a realidade latina, provocando uma adaptação forçosa da população, na medida em que o parâmetro de boa edificação representa a mimetização de uma linguagem que segue os preceitos da arquitetura moderna. Soma-se à preocupação com o desenvolvimento das formas locais de se construir, uma crítica à forma de se projetar: em seu método de trabalho, projeto, estrutura e construção são uma coisa só, e com o tempo, o desenho técnico de arquitetura, isolado nas diferentes etapas de concepção de projetos, se mostrava cada vez menos relevante. Neste ponto, Dieste demonstra crítica semelhante àquela cunhada pelos integrantes do grupo Arquitetura Nova, ou mais precisamente por Sérgio Ferro. A imposição do desenho arquitetônico à opção estrutural e ao canteiro de obras provocaria a fragmentação da produção da arquitetura. O trabalho do arquiteto seria apenas uma das etapas, alienada da forma de produção. O desenho arquitetônico para a produção seria substituído pelo desenho da produção, ou seja, a representação do objetivo final, desatrelado dos meios para que o trabalho no canteiro possa ser digno, otimizado e coerente com o produto final desejado. Em sua prática no canteiro de obra, Dieste elaborou uma obra que dificilmente poderia ser desenhada a priori, o desenho para produção. Ao elaborar esta tecnologia que repete módulos de cerâmica armada sobre um molde movediço, demonstrou que é possível pensar a arquitetura e a construção como indissociáveis e igualmente relevantes. Conforme a anterior explicação do processo construtivo das abóbadas de dupla curvatura, embasada nos textos do próprio engenheiro, esta técnica aprimorou-se ao longo do tempo de maneira empírica, procurando a agilidade e facilidade de sua execução. Contudo, as qualidades de conforto, utilidade e versatilidade de suas construções são mundialmente reconhecidas, assim como a singular aparência decorrente das curvas das cascas cerâmicas. O processo de concepção arquitetônica ancorada na forma de construção parece ser obvio, mas por incrível que pareça, não o é. O

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trabalho do arquiteto, como observou Sergio Ferro, "é uma das etapas do processo da produção da arquitetura e ele usa o desenho como meio nesse processo. Se considerarmos a maneira como a arquitetura é produzida temos, inicialmente, o projeto arquitetônico elaborado pelo arquiteto e representado pelo desenho; o cálculo estrutural, elaborado pelo engenheiro e o canteiro de obras, onde ocorre o confronto entre a construção e o desenho." (LINO, 2008)

Essa alienação do desenho, e consequentemente do projeto, possivelmente se dá pelo desconhecimento do arquiteto das etapas posteriores ao projeto, ou seja, como o cálculo estrutural e o processo de construção. Dieste, ao que parece, procurou trabalhar segundo o entendimento de que o projeto e a construção seriam um processo único, o que tornava potencialmente o canteiro de obras um lugar de experimentação. O resultado obtido segundo a exploração das qualidades do tijolo cerâmico, possivelmente, se deu devido a este entendimento, como se a escolha do material, da função e da forma da edificação, e do processo de construção ocorresse concomitantemente. Provavelmente não é mero acaso que a forma de construção empregada nas obras dos integrantes do grupo Arquitetura Nova seja a mesma elaborada por Dieste, com os mesmos materiais inclusive. Evidencia-se a preocupação na elaboração de uma técnica condizente à realidade da mão-de-obra de seu país de origem, na medida em que foi apropriada por Ferro, Lefévre e Império, com este mesmo fim. De forma muito similar nestas duas experiências, dentre as operações de produção, a tarefa que demandava maior experiência e capacidade técnica era a execução do molde móvel. Nas construções realizadas pelo uruguaio, a execução do molde, "em geral, era realizada por carpinteiros, serralheiros e soldadores. Estes dois últimos construíam a infraestrutura metálica do molde no local da obra, como as roldanas sobre trilhos, as colunas, as vigas e os cabos de sustentação. Os carpinteiros executavam a superestrutura de madeira composta pelas costelas, escoramento e forro superior de tábuas de madeira apoiadas sobre a

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infraestrutura metálica". (LINO, 2008)

A utilização de tijolos e lajotas cerâmicas de pequena dimensão, para melhor adaptação ao molde, no caso de abóbadas, e com resistência adequada às solicitações estruturais, parecem ser motivos similares nas duas experiências acima comparadas. A forma de produção, nos dois casos, deve ser condizente, ou melhor, produto da cultura construtiva e da realidade socioeconômica de cada região, de forma que se possa preservar os trabalhadores da construção civil. Para tanto, os tijolos cerâmicos, quando explorado em técnicas inovadoras, a partir das qualidades do próprio material, representam uma possibilidade de rápida apropriação por parte da mão-de-obra, assim como economia de recursos e fácil aquisição devido à disponibilidade no mercado. A proposta construtiva de coberturas de cerâmica armada tem, como atrativo básico, seu custo reduzido. O custo por metro quadrado da Igreja da Atlântida é de 30 dólares por metro quadrado (em 1959) [3] . O preço de construção em 2018 está entre 250 e 260 dólares por metro quadrado de estrutura e cobertura. Segundo Dieste, este preço é competitivo quando comparado aos sistemas de construção de galpões industriais. Em rápido levantamento [4] , o gasto com a construção de estrutura de galpões industriais utilizando pórticos pré-moldados de concreto, vedação em bloco de concreto e cobertura de estrutura metálica, estaria entre 200 a 350 dólares por metro quadrado. Como não obtive uma diferença conclusiva entre os custos destas diferentes técnicas construtivas, resta-nos aferir que o preço da cerâmica armada aparenta ser competitiva, dependendo da circunstância.

————————————

[3]

Dialogando com o mestre da cerâmica armada, Eladio Dieste, revista PROJETO, em 1985.

[4]

http://construcaomercado17.pini.com.br

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modernidade apropriada

"Um dos principais questionamentos das vanguardas latino-americanas, da primeira metade do século XX, foi pensar uma maneira possível para a construção de uma identidade própria diante de todo um histórico de influências internacionais. Essa possibilidade, contudo, não surgiu de uma rejeição das influências estrangeiras, predominantemente europeias; pelo contrário, assumiu ser necessário entender o que era internacional, para então reivindicar a construção do local. [...] A obra de Eladio Dieste pode se situar conceitualmente nesse contexto. Primeiramente, seu trabalho com o tijolo parte de um aprofundamento em uma técnica que inicialmente foi trazida para o Uruguai pelos colonizadores espanhóis, mas, a partir dessa referência, ele criou o próprio, levando em consideração as determinações do lugar, como o material, o sistema construtivo, a mão de obra, a economia etc. [...] Além disso, com o aprimoramento da técnica apropriada à realidade local, Dieste estava também chamando a atenção para um outro fator dominante em todo o processo da realidade latina, a importação acrítica de modelos internacionais. Nesse caso específico, ele estava lidando com a difusão da Arquitetura Moderna e seu uso hegemônico do concreto armado e do vidro". (LINO, 2008)

A postura crítica de Dieste para com a importação acrítica de modelos internacionais assemelha-se com o conceito, já mencionado nos capítulos passados, de Fernando Cox: a Modernidade Apropriada. Assim que Dieste foi reconhecido por transformar a forma de se construir

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e projetar com tijolos cerâmicos, ganhou visibilidade, sobretudo, no âmbito da discussão acerca da interferência da modernização forçosa na América Latina. Contudo, Dieste faz questão de se distanciar da arquitetura moderna no que se refere ao processo de concepção: "Convém notar ainda que estas técnicas foram pensadas num país economicamente subdesenvolvido e dependente como o Uruguai, pouco tendo a ver com as tendências da indústria da construção dos países desenvolvidos. A orientação difere, essencialmente, não pelo material empregado, mas pela concepção global do processo construtivo. Sem dúvida os números me convenceram que estas técnicas são válidas, no mundo desenvolvido, porque não se baseiam somente no uso moralmente inadmissível de mão-de-obra [não qualificada] e mal paga, senão ao contrário no uso racional do esforço humano e no não desperdício do material, o qual implica também esforço humano, e é justamente nos amplos programas da complexa sociedade do futuro, quando a humanidade sair efetivamente dessa espécie de infância em que se debate, que estas técnicas mostrarão suas vantagens econômicas". (DIESTE, 1987: 87)

Ao meu ver, Dieste diferencia-se do curso da forma como a arquitetura moderna foi assimilada na América Latina por essencialmente inverter a lógica do papel da industrialização na construção civil. Pode-se entender esta tecnologia como a modernização de práticas tradicionais locais, contudo, me parece que o ocorrido foi o inverso: Dieste demonstrou de que forma a racionalização na construção civil pode contribuir para o desenvolvimento das práticas construtivas regionais. Podemos aferir esta intenção neste trecho onde ele explica que a economia com mãode-obra, e a técnica adaptada para a não qualificação desta, parecem não fazer sentido em um país desenvolvido, apesar de nada impedir que a preservação da energia dos trabalhadores não possa ser uma prática a se popularizar: "Se formos calcular seu preço num país de elevado custo de mão-de-obra como os EUA, o custo por metro quadrado torna-se competitivo se comparado com soluções de qualidade equivalente. Acredito, isto sim, que não é fácil perceber as vantagens

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destas técnicas num país industrializado. Nada impede de realizá-las, a não ser certas predisposições e rotinas difíceis de se alterar. Por outro lado, no Nordeste brasileiro, quatro operários uruguaios construíram, com mão-de-obra local, estruturas muito complexas, inclusive fôrmas para as abóbadas de dupla curvatura de dimensões apreciáveis, no próprio canteiro. Logo, estas soluções "subdesenvolvidas" são muito adequadas para os países pobres, mas também podem ser válidas no mundo desenvolvido, sem que isto signifique que este seja para mim, tal como eu o vejo, um ideal a se imitar”. [...] Também não incorro no erro de supor que encontramos algum tipo de panaceia construtiva. Não existem panaceias (seria descabido pretender construir com cerâmica armada uma barragem ou uma grande ponte). Acredito que são soluções que têm interesse para determinados programas e quero responder assim a certas objeções não formuladas, mas que tenho sentido como um vago desnorteamento. O uso do tijolo e a simplicidade do equipamento necessário podem produzir o desvio que provoca a pobreza, não deixando ver que existem muitos caminhos para sair do subdesenvolvimento, e que dentre eles os mais eficazes são os que estão enraizados em nossa realidade técnica e econômica, sem esquecer que é subdesenvolvido tudo aquilo que trava a plenitude do homem e que existe muito subdesenvolvimento "desenvolvido". (DIESTE, 1987: 87)

Por fim, concluo que esta postura crítica, tanto para com a construção tradicional, que não atinge a escala adequada à realidade atual, quanto para com a modernidade acrítica, resultou não só na ampliação das possibilidades construtivas com o tijolo de barro, quanto inspirou as práticas anteriormente abordadas nos passados capítulos, assim como muitas outras ao redor da América Latina. A facilidade de construção com o tijolo maciço, por sua qualidade de pequeno módulo, assim como suas propriedades de resistência e isolamento térmico, incorporou-se, desde então, às possibilidades de inovações de processos construtivos dos mais diversos, incorporando o aço, alterando-se o formato da estrutura, elaborando-se módulos e explorando texturas.

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———————— CEASA PORTO ALEGRE Crlos fayet, Cláudio Araújo, e Carlos eduardo Comas. Projeto da estrutura de cobertura de Dieste, 1970 fonte: Archdaily

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03.

consideraçþes finais


"A história pode mostrar-nos que o tijolo tem um grande número de vantagens e possibilidades e como inúmeras gerações têm tentado explorá-las. Onde, ao fim e ao cabo, tudo isso deixa o futuro do tijolo? Em última análise, a história pode fornecer uma fonte preciosa de informação e de inspiração para desenhadores futuros, mas não pode ser usada para prever o futuro. Mesmo assim, tendo visto como o tijolo tem sido bem-sucedido ao longo de tantos milhares de anos, não nos parece pouco razoável sugerir que o tijolo continuará conosco durante algum tempo ainda".

– CAMPBELL & PRYCE, 2005: 303


Ao longo deste trabalho, experiências de construção que se utilizam do tijolo como elemento principal da obra foram analisadas a fim de promover a reflexão sobre as reais possibilidades de construção com o tijolo maciço nos dias de hoje. Estas foram abordadas segundo as potencialidades que representam tanto como reinterpretações do uso do tijolo quanto pelo uso de técnicas tradicionais de construção. Para tanto, levou-se em consideração as qualidades de cada experiência quanto à postura frente à apropriação de técnicas construtivas, à possibilidade de diversificação de soluções, e às diferentes propostas de organização de canteiro. A Residência dos Padres Claretianos configura verdadeira enciclopédia edificada de construção com tijolos. Quase toda a edificação utilizase do tijolo de maneira estrutural, o qual proporciona formas das mais variadas, valendo-se de técnicas tanto antigas e tradicionais quanto contemporâneas. Ao meu ver, aí reside o principal aprendizado obtido após análise desta obra: sua diversidade tectônica. O uso do tijolo como elemento estruturante parece ter possibilitado a criação projetual de espaços inusitados, tão diferentes entre si, assim como a criação construtiva dos trabalhadores do canteiro de obras, sobretudo, nas texturas obtidas com diferentes aparelhamentos. A obra demonstra-se a qualidade do tijolo como pequeno módulo construtivo - que além de resistente à forte compressão, é leve e possui boa inércia térmica. Por ser pequeno, pode configurar as formas e aparelhos apresentados neste projeto, executados de forma tão minuciosa e erudita. Contudo, essa alta qualificação da mão-de-obra – tão rara nos dias de hoje – restringe o potencial de uso do tijolo maciço. Portanto, a análise de experiências que buscaram introduzir estes elementos cerâmicos em canteiros, cuja mão-de-obra não é qualificada, demonstrou-se necessária. Os casos argentino, uruguaio e brasileiro foram recuperados por empregarem o sistema BENO em construções junto à população organizada, exemplificando a busca por tecnologias que assimilam a realidade da mão-de-obra local. Valendo-se dos tijolos por sua leveza, compuseram painéis pré-moldados para posterior montagem de paredes, lajes, coberturas e até escadas. Nestas experiências

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sobressaem as qualidades de elemento construtivo popular e acessível do tijolo maciço, no caso da Argentina e Uruguai, e do tijolo de 8 furos, no caso brasileiro. A substituição do tijolo maciço pelo tijolo de 8 furos no Brasil foi uma tentativa de tornar esta tecnologia mais acessível para a população local. Conforme relatado por Roberto Pompéia em entrevista [1] , não só o preço do metro quadrado seria mais baixo, mas o isolamento térmico e a leveza do tijolo furado contribuíram, também, para a escolha deste. Contudo, esta prática não teve continuidade no Brasil, tanto por problemas externos – como a falta de financiamento público compatível com a prática -, quanto por problemas intrínsecos à tecnologia, como por exemplo o peso do painel. A origem desta perspectiva de praticidade no emprego do tijolo pode ser encontrada na obra de Eladio Dieste. Em oposição à hegemonia dos grandes pórticos de concreto armado, Dieste propõe a radicalização da tecnologia, até então pouco experimentada, da cerâmica armada. Através de cascos de dupla curvatura, sempre de diretriz catenária, propôs um novo uso para o tijolo maciço, pioneiramente, afastando esta prática da execução artesanal. Preocupado em elaborar uma tecnologia eficiente segundo o contexto uruguaio, utilizou-se de formas movediças para execução de módulos de casca, a fim de adaptar o uso do tijolo para a mão-de-obra nãoqualificada. O tijolo demonstrou-se muito eficaz neste método de produção, principalmente por ser leve e resistente à compressão. Ainda, Dieste aferiu ótimos desempenhos térmicos e acústicos, em suas obras, qualidades próprias dos elementos cerâmicos. Segundo Dieste, esta solução de construção em cascas seria mais econômica que o uso de concreto armado para vencer grandes vãos. Tendo o tijolo como elemento fortemente enraizado na cultura construtiva uruguaia – por conta do clima e da herança de técnicas ——————————

[1]

Entrevista feita pelo autor em dezembro de 2018.

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advindas de imigrantes europeus -, o preço deste seria acessível, assim como seria possível encontra-lo em qualquer lugar do país. No entanto, para a execução das abóbadas gausas (de dupla curvatura), substituiu o tijolo maciço pela lajota cerâmica de 4 furos, pois esta seria mais leve e mais barata. Em abóbadas catenárias de berço continuou utilizando o tijolinho. Contudo, esta experiência originária da década de 1950, não é mais utilizada hoje em dia. Apesar da afirmação taxativa de Dieste de que o custo desta solução é mais baixo que estrutura semelhante em concreto armado, outros sistemas mais atuais aparentam obter maior competitividade no mercado. Conforme explanado no capítulo a respeito da obra de Dieste, o custo da cerâmica armada não deixa a desejar quando comparado ao sistema padrão de execução de galpões industriais de hoje em dia. Contudo, esta comparação não é conclusiva devido a abrangência de fatores que podem influenciar no custo geral de uma obra. O que se pôde aferir é que o sistema atual de construção de galpões pode ser mais barato, levando em consideração a qualidade dos materiais empregados. Apesar do custo da cobertura em cerâmica armada aparentar possível competitividade – dependendo da circunstância –, o sistema atual, em pórticos pré-fabricados de concreto e cobertura metálica, é prático e rápido, permitindo expansões e reformas com certa facilidade. Sobretudo, o conhecimento técnico para construir com pré-moldados de concreto e coberturas metálicas exige menos complexidades frente à investigação empírica de Dieste ao longo do tempo. Por fim, a complexidade estrutural de estruturas em casca exige especialização e experiência da mão de obra, visto que o comportamento tridimensional da estrutura foge da abstração em pórticos, tão utilizada para concepção de estruturas convencionais. De maneira geral, o conhecimento necessário para concepção de construções que se utilizam integralmente do tijolo maciço está se perdendo. Possivelmente por conta de suas aplicações na construção civil, na qual é superado em rendimento de trabalho e custo pelos blocos de concreto e cerâmico. Como pouco se constrói com tijolos maciços no Brasil, pouco se estuda suas possíveis aplicações.

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Conforme abordado em entrevista com José Baravelli, o tijolo maciço não é mais levado em conta na construção civil brasileira, salvo para acabamentos ou revestimento. Técnicas como pré-fabricação em concreto, execução em alvenaria estrutural e o tradicional sistema de pilar e viga de concreto, contribuíram para que, paulatinamente o tijolo maciço fosse abandonado por construtores e projetistas. Esta seria uma prova cabal de como a uniformização das técnicas construtivas consegue superar rapidamente uma tradição que marcou a construção de boa parte das cidades, como no caso de São Paulo. Num contexto de constante adensamento, principalmente nas grandes cidades, é possível que, cada vez com mais intensidade, o tijolo perca sua utilidade aos olhos dos construtores. Também, aos olhos dos moradores destas cidades, o tijolo pode perder seu significado histórico. A constante troca tecnológica de ordem global, assim como a depuração das técnicas já uniformizadas localmente, fazem-se aparentes, cada vez mais, na paisagem urbana. "Talvez outra possibilidade seja a de encarar o tema da identidade não como ligado a um discurso coeso e denso, nem desejoso de alavancar propostas políticas retrógradas, mas apenas e simplesmente como o resultado do reconhecimento de que, apesar de tudo - tendo a globalização de um lado e os excessos do individualismo de outro -, algo imaterial e constante parece estar sempre a ponto de criar agregações regionais, nacionais, locais etc., permeando os fatos da cultura e do fazer humano (inclusive da arquitetura). Rever o tema da identidade nem tanto para nos distinguir de maneira taxativa de nossos vizinhos, mas sim o suficiente para justificar um recorte [...] - se não por outro motivo, ao menos para delimitar sua abrangência. Esta seria a de reexaminar a arquitetura brasileira da segunda metade do século XX; inclusive porque, contra todas as expectativas, ela parece ter, ao menos em um certo grau, traços do que poderia ser um estatuto próprio. O conjunto dessa arquitetura revela-se como um patrimônio que convém reconhecer, que nos toca e concerne, do qual não podemos evitar de ser herdeiros; e seu estudo [...] talvez possa, mesmo que limitadamente, contribuir com algo para o conhecimento da arquitetura em geral" (JUNQUEIRA&ZEIN, 2015: 395). 119


Portanto, nesse contexto, o emprego do tijolo maciço como somente uma tentativa de resgatar uma imagem que represente a identidade regional parece perder o sentido. O real valor das construções analisadas neste trabalho, estão em suas singularidades na busca por conceber tecnologias que revelam usos e formas pouco exploradas até então. Qualidades estas que se revelam devido ao empenho investigativo de cada personagem envolvido, e cujo objeto poderia ser qualquer outro elemento construtivo. Contudo, nas análises obtidas ao longo deste trabalho, o tijolo se revelou singular em diversos aspectos, muitos já mencionados. Conforme já mencionado, sua qualidade como módulo pequeno e estruturante, possível de carregar com uma só mão, permite que se execute as mais diversas formas e aparelhos. Sua boa inércia térmica, irradiando pouco calor quando o clima está quente, e mantendo a temperatura quando está frio, a facilidade de sua produção e a dispensa de revestimento devido à grande durabilidade são também propriedades singulares deste elemento. Logo, aos olhos de quem custeia a obra, sobretudo visando o lucro sobre a venda de imóveis, o tijolo pode parecer uma péssima alternativa. Nesta lógica de construção rápida e em larga escala, à serviço do mercado imobiliário, os bloqueiros também, possivelmente, não optariam pelo tijolo maciço. Porém, estas obras abordadas demonstraram que esta possibilidade de construir com tijolo através da pré-moldagem, aumentando-se o rendimento por hora trabalhada, assim como dispondo-os sobre formas, conforme tecnologia apresentada por Dieste. Aos olhos do projetista, do usuário, e de trabalhadores da construção, em situação de execução através da pré-moldagem ou de criação no canteiro, o tijolo pode, ainda, parecer a melhor opção. Sobretudo, conforme Roberto Pompéia relatou-me em conversa, o custo com manutenção no acabamento, climatização interna (como ar condicionado), vigas e pilares de concreto armado, são muito inferiores em uma casa construída com paredes duplas de tijolo, sobretudo quando plissadas – aumentando a resistência das paredes na medida em que se criam dobras nestas. A investigação acerca do custo torna-se

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menos soberana sob esta ótica, pois segundo o contexto, o ganho em qualidade da habitação pode ganhar mais importância na escolha do material. Contudo, o custo da obra ainda é fator limitante, sobretudo, quando se tem pouco recurso. Portanto, aponto a relevância de, em trabalhos futuros sobre o tema, precisar em que situações a construção com tijolo é mais econômica, levando-se também em consideração o pósobra. Ainda, pode-se precisar os avanços tecnológicos que otimizam e barateiam a produção, visto que, como o tijolo perdeu relevância na construção civil, a indústria de grandes e pequenas olarias correspondem a dinâmica do material: muitas valem-se, a fim de publicidade, do fato de que seus tijolos são rústicos – portanto mais caro – por serem moldados à mão. A fabricação do tijolo, mesmo quando artesanal por falta de recursos, provam a facilidade com que se pode fabricar tijolos, necessitando de poucos equipamentos, uma boa mistura de terra argilosa, um forno que otimize a queima dos tijolos e espaço de secagem. Portanto, aponto também a importância de futura pesquisa sobre a possibilidade de fomentar pequenos empreendedores para a fabricação de tijolos baratos, de maneira organizada territorialmente, poderia baratear o custo unitário de cada tijolo por reduzir o preço com a logística de distribuição. Por fim, e não menos importante, aponto a importância do uso de elementos cerâmicos segundo o impacto ambiental, relativamente menor que elementos metálicos e com base de cimento. A fabricação de tijolos consome menos energia que a de concreto e que a de aço, numa proporção de 1:2,5:15, ou seja, a produção de concreto consome 2,5 vezes mais energia e a de aço, 15 vezes mais energia que a produção de tijolos. Também o seu principal componente é a argila, que é abundante na natureza, e sua extração não é contaminante. Apesar de algumas jazidas de argila atingirem escalas impressionantes, criando verdadeiras crateras no solo, ainda é menos impactante que o aço e o concreto. Ainda, os tijolos ecológicos, que possuem cimento na mistura e não necessitam de queima, aparentam qualidades semelhantes

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às do tijolo maciço comum, porém, com menor impacto ambiental. Nesse sentido, vale reforçar: "Atualmente, o bloco de concreto é a maior ameaça à indústria de tijolos em muitos países desenvolvidos. Entretanto, no mundo em vias de desenvolvimento onde o cimento de Portland continua a ser caro, os tijolos ainda predominam. O maior interesse em materiais de construção sustentáveis quiçá provocará um afastamento do cimento de Portland e um retorno aos tijolos cozidos e argamassa de cal em outros lugares". (CAMPBELL & PRYCE, 2005: 303)

Cabe aos arquitetos continuar pesquisado para além das formas de seus edifícios, a sua produção, considerando o processo completo, desde a extração dos materiais construtivos até a manutenção do prédio ao longo do uso. Este trabalho procura contribuir para essa reflexão abrindo um caminho para práticas profissionais e de pesquisa futuras.

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04.

glossário

Este anexo foi obtido através da junção dos glossários dos livros: CAMPBELL, James W. P. e PRYCE, Will. História Universal do Tijolo. Portugal: Caleidoscópio, 2005. CHING, Francis D. K.. Dicionário visual de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2012

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—————————————— DICIONÁRIO VISUAL DA ARQUITETURA

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—————————————— DICIONÁRIO VISUAL DA ARQUITETURA

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—————————————— DICIONÁRIO VISUAL DA ARQUITETURA

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—————————————— DICIONÁRIO VISUAL DA ARQUITETURA

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——————————— HISTÓRIA MUNDIAL DO TIJOLO

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bibliografia ABRAHÃO JUNIOR, Wagner; VICCARI, José Lucas; BOTTEON, Pe. Luiz Claudemor. A Casa de Barro - Residência Dos Missionários Claretianos. São Paulo: Ave-Maria, 2011. BARAVELLI, J. O cooperativismo uruguaio na habitação social de São Paulo: das cooperativas FUCVAM a Associação de Moradia 'Unidos de Vila Nova Cachoeirinha'. 2006. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). FAU-USP, São Paulo, 2006. BASTOS, Maria Alice Junqueira e ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo: Perspectiva, 2015. BATALLA, Guillermo Bonfil. Pensar la cultura. Alianza Editorial: 1992 CAMPBELL, James W. P. e PRYCE, Will. História Universal do Tijolo. Portugal: Caleidoscópio, 2005. CHING, Francis D. K.. Dicionário visual de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2012 COHEN, Jean-Louis. O futuro da arquitetura desde 1889. Uma história mundial. São Paulo: Cosacnaify, 2013. D’ALAMBERT, Clara Correia. O Tijolo nas Construções Paulistanas do Século XIX. 1993. 120 p. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.

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DIESTE, Eladio. Estruturas de cerâmica armada. In: Projeto, nº 26, São Paulo: 1981. ___. Dialogando com o mestre da cerâmica armada. In: Projeto, nº 81, São Paulo: 1985. ___. Com rigor e arte. In: Arquitetura e Urbanismo, nº 15, São Paulo: 1987. FRAMPTON, Kenneth. Perspectivas para um regionalismo crítico: 1983. In: NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006. KOURY, Ana Paula. Grupo Arquitetura Nova: Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro. São Paulo. Romano Guerra Editora: Editora da Universidade de São Paulo. FAPESP, 2003. LINO, Sulamita Fonseca. A obra de Eladio Dieste: flexibilidade e autonomia na produção arquitetônica. In: Vitruvius: 2008 LOPES, João Marcos de Almeida; CERON, Luciana Cristina. As origens do sistema de pré-fabricação em cerâmica vermelha no Brasil. São Paulo: 2010. POMPÉIA, Roberto Alfredo. Os laboratórios de Habitação no ensino da arquitetura. São Paulo: 2006. PONCE, Alfonso Ramírez. Arquitetura regional e sustentável. In: Vitruvius: 2008 SEGAWA, Hugo. Resíduo de Utopía. In: Projeto, nº 162, São Paulo: 1993. TZONIS, Alexander. Por que regionalismo crítico hoje?: 1990. In: NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006.

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