"Tudo vale a pena Se a alma não é pequena." Fernando Pessoa, do poema "Mar Português"

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Fernando Pessoa - o poeta de múltiplos eus "Tudo vale a pena Se a alma não é pequena."

Fernando Pessoa, do poema "Mar Português" Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço. - Fernando Pessoa, "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa". Lisboa: Ática, 1966. p. 93. "Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço com aquilo a que eu chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figuras, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que eram para mim visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de


música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar. (...) Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. (...)" - Fernando Pessoa, excerto de uma carta a Adolfo Casais Monteiro, 13 de Janeiro 1935. Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande,

ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. - Fernando Pessoa

Fernando Pessoa descreveu-se assim em 1935 “Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa. Idade e naturalidade: nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio no. 4 do largo de S. Carlos, em 13 de junho de 1888.


Filiação: filho ilegítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinho Nogueira. (...) Profissão: a designação mais própria será “tradutor”, a mais exata a de “correspondente estrangeiro em casas comerciais”. O ser poeta e escritor não constitui profissão mas vocação. (...) Educação: em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban [África do Sul] (...), foi ali educado.” Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. - Fernando Pessoa, do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 164.

Fernando Pessoa e os Heterônimos Heterônimos ao contrário dos pseudônimos - vários nomes para uma mesma personalidade - os heterônimos constituem várias pessoas que habitam um único poeta. Cada um deles tem a sua própria biografia, sua temática poética singular e seu estilo específico. É como se eus fragmentados e múltiplos explodissem dentro do artista, gerando poesias totalmente diversas. O próprio Fernando Pessoa explicou os seus heterônimos: "Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria. Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler." Alberto Caeiro foi venerado como mestre pelos outros heterônimos e até pelo seu criador, Fernando Pessoa. Nasceu em Lisboa em 16 de abril de 1889 mas passou a vida no campo como "guardador de rebanhos". O seu rebanho, esclareceu num poema, eram os seus pensamentos, e os seus pensamentos eram sensações. Pouco instruído, queria ver as coisas como elas são, sem filosofia. De estatura média, louro e de olhos azuis, parecia menos frágil do que era. Morreu tuberculoso em 1915, aos 26 anos. Ricardo Reis, num prefácio inacabado, escreveu: "A vida de Caeiro não pode narrar-se, pois que não há nela nada de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida". Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1890, em Tavira, Algarve, terra da família do pai de Pessoa.


Segundo conta o poeta, este heterônimo teve "uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o 'Opiário'. Agora está aqui em Lisboa em inatividade". Alto para a época (1,75, dois cm mais do que Fernando Pessoa), magro e "um pouco tendente a curvar-se", Campos era um "tipo vagamente de judeu português". Bissexual assumido e muito provocador, intrometia-se no namoro do seu criador com Ofélia Queirós. Ricardo Reis, nascido no Porto em 19 de setembro de 1887, estudou num colégio de Jesuítas, onde aprendeu latim e se formou em medicina. Estudou grego por conta própria. Em carta a um amigo, Pessoa informa que Reis "vive no Brasil desde 1919, pois expatriouse espontaneamente por ser monárquico, na sequência da derrota da rebelião monárquica do Porto contra o regime republicano". Numa outra carta define-o como um "Horácio grego que escreve em português". De fato Reis compunha odes clássicas em que mesclava o estilo do poeta latino Horácio ao do grego Anacreonte, e também assinou ensaios em defesa de um novo neopaganismo. Bernardo Soares, na definição de Fernando Pessoa, era um "semi-heterônimo". Comparando-se a ele, o autor afirma: "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade". Ajudante de guarda-livros em Lisboa, Soares escreve sobre o seu quotidiano anônimo e, principalmente, sobre a sua vida interior. Não sabemos onde ou quando nasceu, mas no seu “Livro do Desassossego” informa que perdeu mãe e pai na infância e que um tio o trouxe da província para Lisboa. Morava num quarto da Baixa, na mesma rua onde trabalhava, num armazém de fazendas. Personalidades literárias criadas por Fernando Pessoa Além dos heterônimos, Fernando Pessoa criou dezenas de personalidades literárias, como Charles Robert Anon (poeta e prosador de língua inglesa), Alexander Search (poeta, contista e ensaísta de língua inglesa), Joaquim Moura Costa (poeta satírico e militante republicano), Vicente Guedes (poeta, contista e jornalista), António Mora (filósofo, sociólogo e teórico do neopaganismo), Raphael Baldaya (astrólogo e filósofo) e Barão de Teive (prosador suicida). Fernando Pessoa sobre os heterônimos "Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meu sonho – um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pas – e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida. Isto parece simplesmente aquela imaginação infantil que se entretém com a atribuição de vida a bonecos ou bonecas. Era porém mais: eu não precisava de bonecas para conceber intensamente essas figuras. Claras e visíveis no meu sonho constante, realidades exatamente humanas para mim, qualquer boneco, por irreal, as estragaria. Eram gente. Além disto. esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi


entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executar. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha. Trata-se, contudo, simplesmente do temperamento dramático elevado ao máximo; escrevendo, em vez de dramas em atos e ação, dramas em almas. Tão simples é, na sua substância, este fenômeno aparentemente tão confuso. Não nego, porém – favoreço, até –, a explicação psiquiátrica, mas deve compreender-se que toda a atividade superior do espírito, porque é anormal, é igualmente suscetível de interpretação psiquiátrica. Não me custa admitir que eu seja louco, mas exijo que se compreenda que não sou louco diferentemente de Shakespeare, qualquer que seja o valor relativo dos produtos do lado são da nossa loucura. Médium, assim, de mim mesmo todavia subsista. Sou, porém, menos real que os outros, menos coeso [?], menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos. Sou também discípulo de Caeiro, e ainda me lembro do dia – 13 de Março de 1914 – quando, tendo "ouvido pela primeira vez" (isto é, tendo acabado de escrever, de um só hausto do espírito) grande número dos primeiros poemas do Guardador de Rebanhos, imediatamente escrevi, a fio, os seis poemas-intersecções que compõem a Chuva Oblíqua (Orpheu 2), manifesto e lógico resultado da influência de Caeiro sobre o temperamento de Fernando Pessoa." - Fernando Pessoa (1935), no livro "Fernando Pessoa - Obras em prosa", Editora Nova Aguilar, 1985. Fernando Pessoa ele-mesmo é, só por si, um grande poeta do simbolismo e do modernismo, pela temática da evanescência, indefinição e insatisfação das coisas e dos seres, e pela inovação praticada por entre diversas sendas de formulação do discurso poético. "Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade." - Fernando Pessoa, em carta a Armando Côrtes-Rodrigues, de 19 de Janeiro de 1915.


POEMAS DE FERNANDO PESSOA – ELE MESMO A tristeza juncou de pétalas de rosa A tristeza juncou de pétalas de rosa O chão do meu jardim E a a alma que em mim goza A dor que passa em mim Só ficou mais inquieta, ansiada e sequiosa Do que nunca teve fim. A Maldade juncou de apodrecidos frutos O chão do meu pomar Mas meu ser não vestiu nem rancores nem lutos Ao ver o desolar. Só ama mais ainda os seres impolutos Que não têm acabar. Meu jardim e pomar hoje apenas consistem Em memórias fatais, Mas a minha alma ao ver, nas tristezas que a assistem, Que os seres imortais Em parte alguma — céu ou terra em sonho existem Ainda os amou mais. espaço deixado em branco pelo autor - Fernando Pessoa, (escrito em 18.5.1910), In Poesia 1902-1917, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

A antiga canção


A antiga canção, Amor, renova agora. Na noite, olhos fechados, tua voz Dói-me no coração Por tudo quanto chora. Cantas ao pé de mim, e eu ‘stou a sós. Não, a voz não é tua Que se ergue e acorda em mim Murmúrios de saudade e de inconstância, O luar não vem da lua Mas do meu ser afim Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância. Não, não é teu o canto Que como um astro ao fundo Da noite imensa do meu coração Chama em vão, chama tanto... Quem sou não sei... e o mundo?... Renova, amor, a lembrada canção. Cantas mais que por ti, Tua voz é uma ponte Por onde passa, inúmero, um segredo Que nunca recebi — Murmúrio do horizonte, Água na noite, morte que vem cedo. Assim, cantas sem que existas. Ao fim do luar pressinto Melhores sonhos que estes da ilusão. - Fernando Pessoa, (escrito em 1.1.1920), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

A barca dos meus sentidos A barca dos meus sentidos Voga, com remos perdidos, Por este mar sem ruídos — Por este mar sem plagas Cujas doloridas vagas Ó tédio vão, tu afagas; À sombra da minha prece Minha alegria fenece E além o sol da alma desce. Crepúsculo interior Alma sem nexo e sem cor Sem ter vida nem amor... Voga sem remos nem velas, Por este mar sem procelas, Sob este céu sem estrelas,...


Voga com perdidos remos Por este mar onde temos que perdemos. Cinza de ociosa incerteza Que quer seja ou não seja E não usa ter tristeza; Que não tem força p’ra ter Tédio que seja viver E nem anseia morrer. espaço deixado em branco pelo autor - Fernando Pessoa, (escrito em 17.12.1912), In Poesia 1902-1917, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005.



A ceifeira Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez;


Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anônima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões p’ra cantar que a vida. Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente 'stá pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai! - Fernando Pessoa, (escrito em 12.1924), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

A criança que ri na rua A criança que ri na rua, A música que vem no acaso, A tela absurda, a estátua nua, A bondade que não tem prazo — Tudo isso excede este rigor Que o raciocínio dá a tudo, E tem qualquer cousa de amor, Ainda que o amor seja mudo - Fernando Pessoa, (escrito em 4.10.1934), In Poesia 1931-1935, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005.

A fuga Eu não aparecerei quando tu chamas, Pois estou já contigo ao teu chamar. Quando em ti penso, estás dentro de mim, E tudo é já teu próprio pensar. Tua presença de ausência se veste Em teu corpo, onde a alma escondida. É em minha mente que inteira estás E é em mim que tu és possuída.


Fora de ti, dado ao espaço e ao tempo Teu corpo, mero tu, de mim ausente, Partilha a mudança, o tempo e o lugar, Pertence a outra lei, de ti diferente. No meu sonho de ti nada te altera Em outra, que contigo se compara. Tua presença corpórea é só a parte De ti, que a ti de ti separa. Por isso chama, mas sem me esperares. Tua voz, ao meu sonho acrescentada, Juntará mais beleza ao meu pensar Teu corpo, vivo na mente habitada. A tua voz ouvida da distância Mais aproxima tua sonhada presença. Mais nítida e clara que parecia, Na minha fantasia fica imensa. Não chames mais. Tua voz duas vezes Repetida no espaço verdadeiro, Quase seria como a realidade. O segundo som, o eco do primeiro. Chama uma só vez. E que eu imagine No segundo apelo, de olhos cerrados, A visão do teu corpo a cintilar Na memória visível dos teus brados. O resto será teu prolongamento, Olhos fechados p’ra não sentir, No apelo premente de meu sonho. Fica longe, calada, mas sem vir, Pois virias perto de mais à vista E de meu pensamento irias para ti Vestindo em mim teu corpo sonhado (O sonho do teu corpo é infinito) Com teu limite, o visualizado. - Fernando Pessoa, In Poesia Inglesa II, Assírio e Alvim, [edição e tradução de Luisa Freire], 2000. A levíssima brisa A levíssima brisa Que sai da tarde morna Na minha alma imprecisa — Imprecisão entorna. Nada conduz a nada, Nada serve de ser No sossego da estrada Nada vejo viver.


Meu conhecer é triste O que é que tem razão? Nada, e o nada persiste Na estrada e no verão. - Fernando Pessoa, (escrito em 7.9.1927), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

A luz que vem das estrelas A luz que vem das estrelas, Diz — pertence-lhes a elas? O aroma que vem da flor, É seu? Dize, meu amor. Problemas vastos, meu bem, Cada cousa em si contém. Pensando claro se vê Que é pouco o que a mente lê Em cada cousa da vida, Pois que cada cousa, enfim, É o ponto de partida Da estrada que não tem fim. Perante este sonho eterno Falar em Deus, céu, inferno… Ah! dá nojo ver o mundo Pensar tão pouco profundo. - Fernando Pessoa, (escrito em 15.11.1908), In Poesia 1902-1917, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

A noite O silêncio é teu gêmeo no Infinito. Quem te conhece, sabe não buscar. Morte visível, vens dessedentar O vago mundo, o mundo estreito e aflito. Se os teus abismos constelados fito, Não sei quem sou ou qual o fim a dar A tanta dor, a tanta ânsia par Do sonho, e a tanto incerto em que medito. Que vislumbre escondido de melhores Dias ou horas no teu campo cabe? Véu nupcial do fim de fins e dores. Nem sei a angústia que vens consolar-me. Deixa que eu durma, deixa que eu acabe E que a luz nunca venha despertar-me! - Fernando Pessoa, (escrito em 14.9.1919), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.


A noite é calma, o ar é grave A noite é calma, o ar é grave, Na sombra cai um luar vago... Subtil, a sem-razão suave Da vida estagna como um lago Na sensação, e a alma esquece Ao fim dos parques da emoção, Ao som da brisa que estremece As águas dessa solidão. Nesta hora, como se entretecendo De uma meada em mãos com sono Que vão compondo e desfazendo Em afagos desse abandono, Com sensações de mão que as tece A mão que as tece adorno a alma E o gesto, com que teço, esquece, E o fundo da alma não tem calma. Outrora, ao pé dos balaústres Vizinhos a se ver o mar E a noite, sonhos vãos e ilustres Deram futuro ao meu sonhar. Hoje, amargo de só ficar-me Daqueles sonhos tê-los tido Vivo de inútil recordar-me Qual se fosse outro o eu vivido. Outrora fui quem hoje me amo, E não amava quem eu era. Sem voz, oculto, por mim chamo. Choveu na minha primavera. A noite, sem saber de mim, Com sua vaga brisa tece Meadas de destino e fim Em dedos em que a alma esquece. Conheço o fundo ao gozo e à dor Sem ter da dor e gozo havido Mais que a sombra sem vulto ou cor, E dos passos o coro e o ruído. Ó noite, ó luar, ó brisa incerta, Não me deis mais que eu nada ser. Só me fiquei a janela aberta Da vida, e a sinto sem saber. - Fernando Pessoa, (escrito em 18.7.1921), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005. A noite vai alta A noite vai alta. O céu é azul. Quem me falta? Ó vento do sul Inunda de calma


Meu corpo até à alma. Espera-me alguém, Ó vento furtivo? Não sei. Vulto esquivo, Fecho os olhos. Vem! - Fernando Pessoa, (escrito em 14.6.1916), In Poesia 1902-1917, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

A nossa magna língua portuguesa A nossa magna língua portuguesa De nobres sons é um tesouro. Secou o poente, murcha a luz represa. Já o horizonte não é oiro: é ouro. Negrou? Mas de altas sílabas os mastros Contra o céu vistos nossa voz afoite. O casto céu azul abre-se em astros, Já não é noute: é noite. - Fernando Pessoa, (escrito em 26.7.1930), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

A razão desta tristeza A razão desta tristeza Que me dói no pensamento Ë de grande singeleza. Eu conheci a beleza Não conheci o momento. Se estas palavras tão claras São fúteis de interpretar, Reparem que as coisas raras Também se chamam «preclaras» — Isto é, antes de aclarar. Creio no meu destino certo... Não «existo» eu não diria, Pois o Fado é muito esperto — Fica tudo a descoberto □ - Fernando Pessoa, (escrito em 26.7.1930), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Aquarela do Bem-estar Tudo era campo, menos a minha alma... Passam balouços no meu olhar... Crianças (branco) a balouçar Em curvas aquém da tarde calma... ‘Scondem-se os guizos... E é campo ainda Salvo onde há vidas ou mar (azul).


Um riso paira de calma e sul Teu gesto aquela que te sonho alinda... Aves (incerto)... Flores por vir... Bancos sob árvores ao longe outrora... Não passa nada salvo ouro na hora... Fecho os meus olhos e há em mim sorrir... Lápis-lazáli do teu encanto... Janela aberta (cortina ao vento) Para o ar livre vem meu pensamento... E eu dei às cousas meu régio manto... - Fernando Pessoa, (escrito em 10.5.1916), In Poesia 1902-1917, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Ah, a antiga canção Ah, a antiga canção, Amor, renova agora... Na noite, ao luar, na solidão, Mais do que durar o teu canto chora. Chora por mim, não sei que dor Alheia e minha, e que eu tenho e esqueço. Só por tu assim cantares te chamo amor, Nunca te vi; não te conheço. És só uma voz, casual, talvez Que apenas canta enquanto és nada. Voz nada já na viuvez De teu ser nulo, donde é alada. Palavras dubitadas: Efria. Não haverá em nós Uma dor que não conhecemos Que, quando estamos sós, Pára por sobre os remos. E a viagem da vida corre sobre o sono Do remador alheio... Ah, a antiga canção, e o abandono Que, de ouvi-la em mim leio. Cantas; não sei quem és, nem do canto Sei mais do que o meu coração. Quanto tu choras passa no quebranto Da noite, os luares da solidão E à janela da casa alta do monte Uma luz aparece (Isto é em minha alma, sombra e horizonte — E a vida esquece.) - Fernando Pessoa, (escrito em 10.7.1920), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.


Ah, como eu quereria Ah, como eu quereria Ser como aqueles em quem A inspiração é já poesia E a forma toda a alma tem!... Meu mestre Camilo Pessanha! Como sentias? Por que modo O que em ti é matéria estranha Era teu natural, teu todo? Ninguém sabe. E teus versos são Como o que passa no sonhar E nem é bem uma visão E nem é bem o despertar. - Fernando Pessoa, (escrito em 7.8.1934), In Poesia 1931-1935, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Ah, como o sono é a verdade, e a única Ah, como o sono é a verdade, e a única Hora suave é a de adormecer! Amor ideal, tens chagas sob a túnica. ‘Sperança, és a ilusão a apodrecer! Os deuses vão-se como forasteiros. Como uma feira acaba a tradição. Somos todos palhaços estrangeiros. A nossa vida é palco e confusão. Ah, dormir tudo! Pôr um sono à roda Do esforço inútil e da sorte incerta! Que a morte virtual da vida toda Seja, sono, a janela que, entreaberta, Só vaga sombra e som do mundo deixe Chegar à sonolência que se sente. E a alma se desfaça como um feixe Atado pelos dedos de um demente... - Fernando Pessoa, (escrito em 18.5.1923), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Ama, canta-me. Eu nada quero Ama, canta-me. Eu nada quero Do mundo ouvir. Sofro e, se penso, desespero. Eu quero dormir. Um sono em que a alma se esqueça, Vazio embalar Que o som do teu canto por fim desfaleça E eu durma sem sonhar.


Como malmequeres, para em minha sorte, Os meus sonhos desfolhei. Tenho medo da vida, tenho medo à morte. Nunca tive o que amei. Que a tua canção seja um nada, um afago, Como o som longe do mar. Eu quero dormir, Ama, as dores que trago Só assim podem acabar. Criança que vê os outros brincando Sem brinquedos, e sem companhia… Conta-me, ama, vá-me o sono levando Como uma melodia… Noturna esperança feneceu no outono, Sussurro, secaram as águas… Canta, e que o teu canto entre no meu sono Como um ai sem mágoas. - Fernando Pessoa, (escrito em 10.3.1918), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Amei-te e por te amar Amei-te e por te amar Só a ti eu não via... Eras o céu e o mar, Eras a noite e o dia... Só quando te perdi E que eu te conheci... Quando te tinha diante Do meu olhar submerso Não eras minha amante... Eras o Universo... Agora que te não tenho, És só do teu tamanho. Estavas-me longe na alma, Por isso eu não te via... Presença em mim tão calma, Que eu a não sentia. Só quando meu ser te perdeu Vi que não eras eu Não sei o que eras. Creio Que o meu modo de olhar, Meu sentir meu anseio Meu jeito de pensar. Eras minha alma, fora Do Lugar e da Hora. Hoje eu busco-te e choro Por te poder achar Nem sequer te memoro Como te tive a amar.


Nem foste um sonho meu. Porque te choro eu? Não sei.. Perdi-te, e és hoje Real no mundo real. Como a hora que foge, Foges e tudo é igual A si próprio e é tão triste O que vejo que existe. Em que espaço fictício, Em que tempo parado Foste o cilício Que quando em fé fechado Não sentia e hoje sinto Que acordo e não me minto.. E tuas mãos, contudo, Sinto nas minhas mãos, Nosso olhar fixo e mudo Quantos momentos vãos P'ra além de nós viveu Nem nosso, teu ou meu... Quantas vezes sentimos Alma nosso contacto Quantas vezes seguimos Pelo caminho abstrato Que vai entre alma e alma... Horas de inquieta calma! E hoje pergunto em mim Quem foi que amei, beijei Com quem perdi o fim Aos sonhos que sonhei... Procuro-te e nem vejo O meu próprio desejo... Que foi real em nós? Que houve em nós de sonho? De que Nós fomos de que voz O duplo eco risonho Que unidade tivemos? O que foi que perdemos? Nós não sonhámos. Eras Real e eu era real. Tuas mãos — tão sinceras... Meu gesto — tão leal... Tu e eu lado a lado... Isto... e isto acabado... Como houve em nós amor E deixou de o haver? Sei que hoje é vaga dor O que era então prazer... Mas não sei que passou


Por nós e acordou... Amámo-nos deveras? Amamo-nos ainda? Se penso vejo que eras A mesma que és... E finda Tudo o que foi o amor; Assim quase sem dor. Sem dor.. Um pasmo vago De ter havido amar. Quase que me embriago De mal poder pensar. O que mudou e onde? O que é que em nós se esconde? Talvez sintas como eu E não saibas senti-lo. Ser é ser nosso véu Amar é encobri-lo, Hoje que te deixei É que sei que te amei... Somos a nossa bruma... É para dentro que vemos... Caem-nos uma a uma As compreensões que temos E ficamos no frio Do Universo vazio... Que importa? Se o que foi Entre nós foi amor, Se por te amar me dói Já não te amar, e a dor Tem um íntimo sentido, Nada será perdido... E além de nós, no Agora Que não nos tem por véus Viveremos a Hora Virados para Deus E num mudo Compreenderemos tudo. - Fernando Pessoa, (escrito em 2.12.1913), In Poesia 1902-1917, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Antígona Como te amo? Não sei de quantos modos vários Eu te adoro mulher de olhos azuis e castos; Amo-te co’o fervor dos meus sentidos gastos; Amo-te co’o fervor dos meus preitos diários. É puro o meu amor, como os puros sacrários; É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos; É grande como os mar’s altíssonos e vastos


É suave como o odor de lírios solitários. Amor que rompe enfim os laços crus do ser; Um tão singelo amor, que aumenta na ventura; Um amor tão leal que aumenta no sofrer; Amor de tal feição que se na vida escura É tão grande e nas mais vis ânsias de viver, Muito maior será na paz da sepultura! - Fernando Pessoa, (escrito em 6.1902), In Poesia 1902-1917, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Ao certo não sei… Ao certo não sei… Não sei se é verdade Se é somente lei… Depois te direi… Ou talvez não diga… Que vale o dizer? - Fernando Pessoa, (escrito em 28.9.1934), In Poesia 1931-1935, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Aquele breve sorriso Aquele breve sorriso Que a tristeza entendeu, No ar já tão impreciso Que já nascendo morreu. De que veio esse sorriso? Porque é que ele foi meu? Não me lembra que lembrança Por acaso o alumiou, Ou se foi fé a ‘sperança Que nele me clareou. Fui um momento a criança Que morri e não voltou. Ah, fugídia doçura Do que nem se descobriu, Nuvem negra da amargura Que a lua cobre, e a cobriu. Fica lembrança e ternura Do que não se possuiu. Tiveste a vaga doçura Do que nesse mundo fugiu. Na memória ao menos dura, Sorriso porque sorriu. - Fernando Pessoa, (escrito em 28.11.1924), In Poesia 1918-1930, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005. Cada dia é tão só-um!


Cada dia é tão só-um! Dura tão pouco e arde tanto! Quanto mais de mim me espanto Mais o tédio □ Trabalha tudo. Aqui perto Batem chapas, há motores... E eu olho as casas, e as cores São para mim, neste incerto Modo de olhá-las, quasi entes Isolado de onde estão... Tudo toma uma expressão De a si-próprias inerentes. Tudo existe com mais força Que é dado existir as cousas. Encosto-me a mim e ociosas Correm-me as horas. Que torça Minhas doloridas mãos... Nada creio cousa ou vida Só a arte e □ - Fernando Pessoa, (escrito em 17.5.1913), In Poesia 19102-1917, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005. Eu olho com saudade esse futuro Eu olho com saudade esse futuro Em que serei mais novo que depois, E essa saudade, com que me sinto dois, Cerca-me como um mar ou como um muro. Não descreio, nem creio; mas ignoro: ‘Stou posto onde se cruzam as estradas, Multiplicando definidos nadas, E no meio do jogo amuo e choro. O presságio roeu os meus prenúncios. Velei a esfinge com serapilheiras. E os jardins dispostos em quincúncios Dão sobre esteiras de mar morto e vago, E um vapor de corda, sem bandeiras, Pára no tanque, que nos finge um lago. - Fernando Pessoa, (escrito em 28.5.1924), In Poesia 19102-1917, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Eu amo tudo o que foi Eu amo tudo o que foi, Tudo o que já não é, A dor que já me não dói, A antiga e errónea fé, O que só dor deixou, O que deixou alegria Só porque foi, e voou E hoje é já outro dia.


- Fernando Pessoa, (escrito em 1932), In Poesia 1931-1935, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2005.

Grandes mistérios habitam Grandes mistérios habitam O limiar do meu ser, O limiar onde hesitam Grandes pássaros que fitam Meu transpor tardo de os ver. São aves cheias de abismo, Como nos sonhos as há. Hesito se sondo e cismo, E à minha alma é cataclismo O limiar onde está. Então desperto do sonho E sou alegre da luz, Inda que em dia tristonho; Porque o limiar é medonho E todo o passo é uma cruz. - Fernando Pessoa, (escrito em 2.10.1933), In Poesia 1931-1935, Assírio e Alvim, [ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine], 2006.

POESIA INÉDITA Sossega, coração! Não desesperes! Talvez um dia, para além dos dias, Encontres o que queres porque o queres. Então, livre de falsas nostalgias, Atingirás a perfeição de seres. Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo! Pobre esperança a de existir somente! Como quem passa a mão pelo cabelo E em si mesmo se sente diferente, Como faz mal ao sonho o concebê-lo! Sossega, coração, contudo! Dorme! O sossego não quer razão nem causa. Quer só a noite plácida e enorme, A grande, universal, solente pausa Antes que tudo em tudo se transforme. - Fernando Pessoa, 2-8-1933. POEMAS DE ALBERTO CAEIRO [HETERÔNIMO DE FERNANDO PESSOA] Dizes-me Dizes-me: tu és mais alguma cousa Que uma pedra ou uma planta. Dizes-me: sentes, pensas e sabes Que pensas e sentes. Então as pedras escrevem versos? Então as plantas têm idéias sobre o mundo?


Sim: há diferença. Mas não é a diferença que encontras; Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas: Só me obriga a ser consciente. Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei. Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos. Ter consciência é mais que ter cor? Pode ser e pode não ser. Sei que é diferente apenas. Ninguém pode provar que é mais que só diferente. Sei que a pedra é a real, e que a planta existe. Sei isto porque elas existem. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram. Sei que sou real também. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram, Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta. Não sei mais nada. Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos. Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas. Mas é que as pedras não são poetas, são pedras; E as plantas são plantas só, e não pensadores. Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, Como que sou inferior. Mas não digo isso: digo da pedra, «é uma pedra», Digo da planta, «é uma planta», Digo de mim, «sou eu». E não digo mais nada. Que mais há a dizer? - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001. Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo Passa um momento uma figura de homem. Os seus passos vão com «ele» na mesma realidade, Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas: O «homem» vai andando com as suas ideias, falso e estrangeiro, E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar. Olho-o de longe sem opinião nenhuma. Que perfeito que é nele o que ele é — o seu corpo, A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças, Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora. Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta, Que mora nela.


Mas eu, com consciência e sensações e pensamentos, Serei como uma coisa? Que há a mais ou a menos em mim? Seria bom e feliz se eu fosse só o meu corpo — Mas sou também outra coisa, mais ou menos que só isso. Que coisa a mais ou a menos é que eu sou? O vento sopra sem saber. A planta vive sem saber. Eu também vivo sem saber, mas sei que vivo. Mas saberei que vivo, ou só saberei que o sei? Nasço, vivo, morro por um destino em que não mando, Sinto, penso, movo-me por uma força exterior a mim. Então quem sou eu? Sou, corpo e alma, o exterior de um interior qualquer? Ou a minha alma é a consciência que a força universal Tem do meu corpo ser diferente dos outros corpos? No meio de tudo onde estou eu? Morto o meu corpo, Desfeito o meu cérebro, Em consciência abstrata, impessoal, sem forma, Já não sente o eu que eu tenho, Já não pensa com o meu cérebro os pensamentos que eu sinto meus, Já não move pela minha vontade as minhas mãos que eu movo. Cessarei assim? Não sei. Se tiver de cessar assim, ter pena de assim cessar Não me tornará imortal. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Ah! querem uma luz melhor que a do Sol! Ah! querem uma luz melhor que a do Sol! Querem prados mais verdes do que estes! Querem flores mais belas do que estas que vejo! A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me. Mas, se acaso me descontentam, O que quero é um sol mais sol que o Sol, O que quero é prados mais prados que estes prados, O que quero é flores mais estas flores que estas flores Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira! Sim, choro às vezes o corpo perfeito que não existe. Mas o corpo perfeito é o corpo mais corpo que pode haver. E o resto são os sonhos dos homens, A miopia de quem vê pouco, E o desejo de estar sentado de quem não sabe estar de pé. Todo o cristianismo é um sonho de cadeiras. E como a alma é aquilo que não aparece, A alma mais perfeita é aquela que não aparece nunca — A alma que está feita com o corpo O absoluto corpo das cousas, A existência absolutamente real sem sombras nem erros,


A coincidência exata e inteira de uma cousa consigo mesma. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo, É o tipo perfeito do erro da filosofia. A guerra, como tudo humano, quer alterar. Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito E alterar depressa. Mas a guerra inflige a morte. E a morte é o desprezo do universo por nós. Tendo por conseqüência a morte, a guerra prova que é falsa. Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar. Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs. Tudo é orgulho e inconsciência. Tudo é querer mexer-se, fazer cousas, deixar rasto. Pára o coração e o comandante dos esquadrões Regressa aos bocados o universo exterior. A química direta da Natureza Não deixa lugar vago para o pensamento. A humanidade é uma revolta de escravos. A humanidade é um governo usurpado pelo povo. Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito. Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural! Paz a todas as cousas pré-humanas, mesmo no homem! Paz à essência inteiramente exterior do Universo! - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Falas de civilização, e de não dever ser Falas de civilização, e de não dever ser, Ou de não dever ser assim. Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos, Com as cousas humanas postas desta maneira. Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos. Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor. Escuto sem te ouvir. Para que te quereria eu ouvir? Ouvindo-te nada ficaria sabendo. Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo. Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres. Ai de ti e de todos que levam a vida A querer inventar a máquina de fazer felicidade! - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.


Falaram-me em homens, em humanidade Falaram-me em homens, em humanidade, Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si, Cada um separado do outro por um espaço sem homens. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes Para não pensar em cousa nenhuma, Para nem me sentir viver, Para só saber de mim nos olhos dos outros, refletido. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001. Mas para quê me comparar com uma flor, se eu sou eu Mas para quê me comparar com uma flor, se eu sou eu E a flor é a flor? Ah, não comparemos coisa nenhuma; olhemos. Deixemos analogias, metáforas, símiles. Comparar uma coisa com outra é esquecer essa coisa. Nenhuma coisa lembra outra se repararmos para ela. Cada coisa só lembra o que é E só é o que nada mais é. Separa-a de todas as outras o abismo de ser ela (E as outras não serem ela). Tudo é nada sem outra coisa que não é. O quê? Valho mais que uma flor Porque ela não sabe que tem cor e eu sei, Porque ela não sabe que tem perfume e eu sei, Porque ela não tem consciência de mim e eu tenho consciência dela? Mas o que tem uma coisa com a outra Para que seja superior ou inferior a ela? Sim, tenho consciência da planta e ela não a tem de mim. Mas se a forma da consciência é ter consciência, que há nisso? A planta, se falasse, podia dizer-me: e o teu perfume? Podia dizer-me: tu tens consciência porque ter consciência é uma qualidade humana E eu não tenho consciência porque sou flor, não sou homem. Tenho perfume e tu não tens, porque sou flor. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

I - Eu nunca guardei rebanhos Eu nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor,


Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. Só tenho pena de saber que eles são contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. Não tenho ambições nem desejos. Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho. E se desejo às vezes, Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora. Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me vêem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol,


E chuva, quando a chuva é precisa, E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural – Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], in O Guardador de Rebanhos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

XXXI - Se às vezes digo que as flores sorriem Se às vezes digo que as flores sorriem E se eu disser que os rios cantam, Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores E cantos no correr dos rios... É porque assim faço mais sentir aos homens falsos A existência verdadeiramente real das flores e dos rios. Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes À sua estupidez de sentidos... Não concordo comigo mas absolvo-me, Porque não me aceito a sério Porque só sou essa cousa odiosa, um intérprete da Natureza, Porque há homens que não percebem a sua linguagem, Por ela não ser linguagem nenhuma... - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], in O Guardador de Rebanhos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

XVIII - Quem me dera que eu fosse o pó da estrada Quem me dera que eu fosse o pó da estrada E que os pés dos pobres me estivessem pisando... Quem me dera que eu fosse os rios que correm E que as lavadeiras estivessem à minha beira... Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio E tivesse só o céu por cima e a água por baixo… Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro E que ele me batesse e me estimasse... Antes isso que ser o que atravessa a vida Olhando para trás de si e tendo pena… - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], in O Guardador de Rebanhos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.


XIV - Não me importo com as rimas. Raras vezes Não me importo com as rimas. Raras vezes Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. Penso e escrevo como as flores têm cor Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me Porque me falta a simplicidade divina De ser todo só o meu exterior. Olho e comovo-me, Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, E a minha poesia é natural como o levantar-se vento... - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], in O Guardador de Rebanhos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Não basta abrir a janela Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Para além da curva da estrada Para além da curva da estrada Talvez haja um poço, e talvez um castelo, E talvez apenas a continuação da estrada. Não sei nem pergunto. Enquanto vou na estrada antes da curva Só olho para a estrada antes da curva, Porque não posso ver senão a estrada antes da curva. De nada me serviria estar olhando para outro lado E para aquilo que não vejo. Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer. Se há alguém para além da curva da estrada, Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada. Essa é que é a estrada para eles. Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos. Por ora só sabemos que lá não estamos. Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva Há a estrada sem curva nenhuma. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.


Quando tornar a vir a Primavera Quando tornar a vir a Primavera Talvez já não me encontre no mundo. Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente Para poder supor que ela choraria, Vendo que perdera o seu único amigo. Mas a Primavera nem sequer é uma cousa: É uma maneira de dizer. Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes. Há novas flores, novas folhas verdes. Há outros dias suaves. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Quando vier a primavera Quando vier a primavera, Se eu já estiver morto, As flores florirão da mesma maneira E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada. A realidade não precisa de mim. Sinto uma alegria enorme Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma. Se soubesse que amanhã morria E a primavera era depois de amanhã, Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro contente, Porque tudo é real e tudo está certo. Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

O Guardador de Rebanhos XXXIV Acho tão natural que não se pense Que me ponho a rir às vezes, sozinho, Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa Que tem que ver com haver gente que pensa ... Que pensará o meu muro da minha sombra? Pergunto-me às vezes isto até dar por mim A perguntar-me cousas… E então desagrado-me, e incomodo-me Como se desse por mim com um pé dormente. . .


Que pensará isto de aquilo? Nada pensa nada. Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem? Se ela a tiver, que a tenha... Que me importa isso a mim? Se eu pensasse nessas cousas, Deixaria de ver as árvores e as plantas E deixava de ver a Terra, Para ver só os meus pensamentos ... Entristecia e ficava às escuras. E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Nunca sei como é que se pode achar um poente triste Nunca sei como é que se pode achar um poente triste. Só se é por um poente não ter uma madrugada. Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada? - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Não tenho pressa. Pressa de quê? Não tenho pressa. Pressa de quê? Não têm pressa o sol e a lua: estão certos. Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas, Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra. Não; não tenho pressa. Se estendo o braço, chego exatamente onde o meu braço chega Nem um centímetro mais longe. Toco só onde toco, não onde penso. Só me posso sentar onde estou. E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras, Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra cousa, E somos vadios do nosso corpo. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

III - Agora que sinto amor Agora que sinto amor Tenho interesse nos perfumes. Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro. Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova. Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia. São coisas que se sabem por fora. Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça. Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira. Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In O Pastor Amoroso - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.


V - O amor é uma companhia O amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos, Porque já não posso andar só. Um pensamento visível faz-me andar mais depressa E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. Todo eu sou qualquer força que me abandona. Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In O Pastor Amoroso - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

VII - Talvez quem vê bem não sirva para sentir Talvez quem vê bem não sirva para sentir E não agrade por estar muito antes das maneiras. É preciso ter modos para todas as cousas, E cada cousa tem o seu modo, e o amor também. Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir. Amei, e não fui amado, o que só vi no fim, Porque não se é amado como se nasce mas como acontece. Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes, E eu continuo como era dantes, sozinho no campo. Como se tivesse estado de cabeça baixa, Penso isto, e fico de cabeça alta E o dourado sol seca as lágrimas pequenas que não posso deixar de ter. Como o campo é grande e o amor pequeno! Olho, e esqueço, como o mundo enterra e as árvores se despem. Eu não sei falar porque estou a sentir. Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa, E a minha voz fala dela como se ela é que falasse. Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro, E a boca quando fala diz cousas que não há nas palavras. Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In O Pastor Amoroso - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

Vive, dizes, no presente Vive, dizes, no presente, Vive só no presente. Mas eu não quero o presente, quero a realidade; Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede. O que é o presente? É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.


É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem. Eu quero só a realidade, as cousas sem presente. Não quero incluir o tempo no meu esquema. Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas. Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. Eu nem por reais as devia tratar. Eu não as devia tratar por nada. Eu devia vê-las, apenas vê-las; Vê-las até não poder pensar nelas, Vê-las sem tempo, nem espaço, Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. É esta a ciência de ver, que não é nenhuma. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001. Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra cousa todos os dias são meus. Sou fácil de definir. Vi como um danado. Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma. Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei. Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver. Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras; Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais. Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. Fechei os olhos e dormi. Além disso, fui o único poeta da Natureza. - Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

POEMAS DE ALVARO DE CAMPOS [HETERÔNIMO DE FERNANDO PESSOA]

Canção abrupta O céu de todos os universos Cobre em meu ser todo o verão... Vai p’ra as profundas dos infernos E deixa em paz meu coração! Quê? Não me fica se te opões? Pois leva-o, guarda-o, bem ou mal Eu tenho muitos corações


E um privilégio intelectual Madona que vais comprar couves Não te esqueças de me esquecer O teu perfil dá-me trabalho Quero* Bem sei, o teu perfil persiste Amo-te e é triste não poder Deixar de amar-te sem estar triste... Se és mulher que em verdade existe Raios te parta! Vai morrer! * espaço deixado em branco pelo autor - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 1.12.1928), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

O melodioso sistema do Universo O melodioso sistema do Universo, O grande festival pagão de haver o sol e a lua E a titânica dança das estações E o ritmo plácido das eclípticas Mandando tudo estar calado. E atender apenas ao brilho exterior do Universo. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 27.1.1914), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida! A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida! Como o luar quando as nuvens abrem A grande liberdade cristã da minha infância que rezava Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim… A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente, A noção jurídica da alma dos outros como humana, A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo! Passos todos passinhos de criança… Sorriso da velha bondosa… Apertar da mão do amigo sério… Que vida que tem sido a minha! Quanto tempo de espera no apeadeiro! Quanto viver pintado em impresso da vida! Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade, Dêem-me no púcaro velho de ao pé do pote. Da casa do campo da minha velha infância… Eu bebia e ele chiava, Eu era fresco e ele era fresco, E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre. Que é do púcaro e da inocência? Que é de quem eu deveria ter sido? E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?


- Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 17.8.1930), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

A liberdade, sim, a liberdade! A liberdade, sim, a liberdade! A verdadeira liberdade! Pensar sem desejos nem convicções. Ser dono de si mesmo sem influência de romances! Existir sem Freud nem aeroplanos, Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço! A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais A música, sim, a música… Piano banal do outro andar… A música em todo o caso, a música… Aquilo que vem buscar o choro imanente De toda criatura humana, Aquilo que vem torturar a calma Com o desejo duma calma melhor… A música… Um piano lá em cima Com alguém que o toca mal Mas é música… Ah, quantas infâncias tive! Quantas boas mágoas! A música… Quantas mais boas mágoas! Sempre a música… O pobre piano tocado por quem não sabe tocar. Mas apesar de tudo é música. Ah, lá conseguiu uma música seguida — Uma melodia racional — Racional, meu Deus! Como se alguma coisa fosse racional! Que novas paisagens de um piano mal tocado? A música!... A música…! - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 19.7.1934), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras. Sentir tudo excessivamente, Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas E toda a realidade é um excesso, uma violência, Uma alucinação extraordinariamente nítida Que vivemos todos em comum com a fúria das almas, O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos. Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quanto mais personalidade eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,


Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, Estiver, sentir, viver, for, Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora. Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for, Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo, E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco. Cada alma é uma escada para Deus, Cada alma é um corredor-Universo para Deus, Cada alma é um rio correndo por margens de Externo Para Deus e em Deus com um sussurro soturno. Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito, Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo! Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande, As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra. Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso. Todo o Mundo com a sua forma visível do costume Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso, Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça. Sursum corda! Ó Terra, jardim suspenso, berço Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva! Mãe verde e florida todos os anos recente, Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal, Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adónis Num rito anterior a todas as significações, Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales! Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões, Grande voz acordando em cataratas e mares, Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança, Em cio de vegetação e florescência rompendo Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso A tua própria vontade transtornadora e eterna! Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados, Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones, Mãe caprichosa que faz vegetar e secar, Que perturba as próprias estações e confunde Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos! Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino! Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica íntima Volteia serpenteando, ficando como um anel Nevoento, de sensações reminiscidas e vagas, Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso. Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente Meu coração a ti aberto! Como uma espada trespassando meu ser erguido e extático, Interseciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos, Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,


Sou um monte confuso de forças cheias de infinito Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço, A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo, Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas, Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos. Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo. Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão, No vasto chão supremo que não está em cima nem em baixo Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais. Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima, Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo De chamas explosivas buscando Deus e queimando A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica, A minha inteligência limitadora e gelada. Sou uma grande máquina movida por grandes correias De que só vejo a parte que pega nos meus tambores, O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis, E nunca parece chegar ao tambor donde parte ... Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si, Cruzando-se em todas as direções com outros volantes, Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus. Dentro de mim estão presos e atados ao chão Todos os movimentos que compõem o universo, A fúria minuciosa e dos átomos, A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam, E a chuva com pedras atiradas de catapultas De enormes exércitos de anões escondidos no céu. Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma. Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode, Freme, treme, espuma, venta, viola, explode, Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge, Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida, Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes, Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos, Sobrevive-me em minha vida em todas as direções! - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Adiamento Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...


Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, E assim será possível; mas hoje não... Não, hoje nada; hoje não posso. A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, O sono da minha vida real, intercalado, O cansaço antecipado e infinito, Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico... Esta espécie de alma... Só depois de amanhã... Hoje quero preparar-me, Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... Ele é que é decisivo. Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... Tenho vontade de chorar, Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Só depois de amanhã... Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... Depois de amanhã serei outro, A minha vida triunfar-se-á, Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático Serão convocadas por um edital... Mas por um edital de amanhã... Hoje quero dormir, redigirei amanhã... Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo... Antes, não... Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. Só depois de amanhã... Tenho sono como o frio de um cão vadio. Tenho muito sono. Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã... O porvir... Sim, o porvir... - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 14.4.1928), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Ah, como outrora era outra a que eu não tinha! Ah, como outrora era outra a que eu não tinha! Como amei quando amei! Ah, como eu ria. Como com olhos de quem nunca via Tinha o trono onde ter uma rainha. Sob os pés seus a vida me espezinha Reclinas-te tão bem! A tarde esfria… Ó mar sem cais nem lodo ou maresia,


Que tens comigo, cuja alma é a minha? Sob uma umbrela de chá em baixo estamos E é súbita a lembrança opositória Da velha quinta e do espalmar dos ramos Sob os quais a merenda… Oh amor, oh glória! Fechem-me os olhos para toda a história! Como sapos saltamos e erramos… - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo, A banalidade devorante das caras de toda a gente! Ah, a angústia insuportável de gente! O cansaço inconvertível de ver e ouvir! (Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.) Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto, Estômago da alma alvorotado de eu ser... - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Ah, perante esta única realidade, que é o mistério Ah, perante esta única realidade, que é o mistério, Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade, Perante este horrível ser que é haver ser, Perante este abismo de existir um abismo, Este abismo de a existência de tudo ser um abismo, Ser um abismo por simplesmente ser, Por poder ser, Por haver ser! — Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem, Tudo o que os homens dizem, Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles, Se empequena! Não, não se empequena... se transforma em outra coisa — Numa só coisa tremenda e negra e impossível, Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino —Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino, Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres, Aquilo que subsiste através de todas as formas, De todas as vidas, abstratas ou concretas, Eternas ou contingentes, Verdadeiras ou falsas! Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora, Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo, Porque há qualquer coisa, por que há qualquer coisa, porque há qualquer coisa! Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,


E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim, Com a substância essencial do meu ser abstrato Que sufoco de incompreensível, Que me esmago de ultra-transcendente, E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser, Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir! Cárcere do Ser, não há libertação de ti? Cárcere de pensar, não há libertação de ti? Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus! Nós, irmãos gêmeos do Destino em ambos existirmos, Nós, irmãos gêmeos dos Deuses todos, de toda a espécie, Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra, Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite. Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte, Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males, Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos, Porque não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte? Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro? A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo, São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo mistério? E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada. Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe! Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais, Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência, Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência, Porque é preciso existir para se criar tudo, E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser, E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Ah, que extraordinário Ah, que extraordinário, Nos grandes momentos do sossego da tristeza, Como quando alguém morre, e estamos em casa dele e todos estão quietos, O rodar de um carro na rua, ou o canto de um galo nos quintais… Que longe da vida! É outro mundo. Viramo-nos para a janela, e o sol brilha lá fora — Vasto sossego plácido da natureza sem interrupções! - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 28.3.1932), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Ah! Ser indiferente! Ah! Ser indiferente! É do alto do poder da sua indiferença Que os chefes dos chefes dominam o mundo. Ser alheio até a si mesmo! É do alto do sentir desse alheamento Que os mestres dos santos dominam o mundo.


Ser esquecido de que se existe! É do alto do pensar desse esquecer Que os deuses dominam o mundo. (Não ouvi o que dizias… Ouvi só a música e nem essa ouvi… Tocavas e falavas ao mesmo tempo… Com quem? Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo…) - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 12.1.1935), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Ah um soneto... Meu coração é um almirante louco Que abandonou a profissão do mar E que a vai relembrando pouco a pouco Em casa a passear, a passear… No movimento (eu mesmo me desloco Nesta cadeira, só de o imaginar) O mar abandonado fica em foco Nos músculos cansados de parar. Há saudades nas pernas e nos braços. Há saudades no cérebro por fora. Há grandes raivas feitas de cansaços. Mas — esta é boa! — era do coração Que eu falava… e onde diabo estou eu agora Com almirante em vez de sensação?... - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 12.10.1931), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Apontamento A minha alma partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. Asneira? Impossível? Sei lá! Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. Não se zangam com ela. São tolerantes com ela. O que eu era um vaso vazio? Olham os cacos absurdamente conscientes,


Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes deles. Olham e sorriem. Sorriem tolerantes à criada involuntária. Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco. E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Começo a conhecer-me. Não existo. Começo a conhecer-me. Não existo. Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram, Ou metade desse intervalo, porque também há vida … Sou isso, enfim … Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor. Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo. É um universo barato. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Contudo, contudo Contudo, contudo Também houve gládios e flâmulas de cores Na Primavera do que sonhei de mim. Também a esperança Orvalhou os campos da minha visão involuntária, Também tive quem também me sorrisse. Hoje estou como se esse tivesse sido outro. Quem fui não me lembra senão como uma história apensa. Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo. Caí pela escada abaixo subitamente, E até o som de cair era a gargalhada da queda. Cada degrau era a testemunha importuna e dura Do ridículo que fiz de mim. Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse, Mas pobre também do que, sendo rico e nobre, Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo. Sou imparcial como a neve. Nunca preferi o pobre ao rico, Como, em mim, nunca preferi nada a nada. Vi sempre o mundo independentemente de mim. Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas, Mas isso era outro mundo. Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.


Acima de tudo o mundo externo! Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

De la musique Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas, A figura dela emerge, e eu deixo de pensar… Pouco a pouco da angústia de mim vou eu mesmo emergindo… As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago… …As duas figuras sonhadas, Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha, E uma suposição de outra coisa, E o resultado de existir… Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras Na clareira ao pé do lago? (… Mas se não existem?...) …Na clareira ao pé do lago…………… - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 17.9.1929), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002. Depus a máscara e vi-me ao espelho… Depus a máscara e vi-me ao espelho… Era a criança de há quantos anos. Não tinha mudado nada... É essa a vantagem de saber tirar a máscara. É-se sempre a criança, O passado que foi A criança. Depus a máscara, e tornei a pô-la. Assim é melhor, Assim sou a máscara. E volto à personalidade como a um términus de linha. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 11.8.1934), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Depois de quando deixei de pensar em depois Depois de quando deixei de pensar em depois Minha vida tornou-se mais calma — Isto é, menos vida. Passei a ser o meu acompanhamento em surdina. Olho, do alto da janela baixa,


As garotas que dançam a brincar na rua. O seu destino inevitável Dói-me. Vejo-lhe no vestido entreaberto nas costas, e dói-me. Grande cilindro, quem te manda cilindrar esta estrada Que está calçada de almas? (Mas a tua voz interrompe-me — Voz alta, lá de fora, do jardim, rapariga — E é como se eu deixasse Cair irresolutamente um livro no chão.) Não teremos meu amor, nesta dança da vida, Que fazemos por brincadeira natural, As mesma costas desabotoadas E o mesmo decote a mostrar-nos a pele por cima da camisa suja? - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002. Esta velha angústia Esta velha angústia, Esta angústia que trago há séculos em mim, Transbordou da vasilha, Em lágrimas, em grandes imaginações, Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror, Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum. Transbordou. Mal sei como conduzir-me na vida Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! Se ao menos endoidecesse deveras! Mas não: é este estar-entre, Este quase, Este poder ser que..., Isto. Um internado num manicômio é, ao menos, alguém, Eu sou um internado num manicômio sem manicômio. Estou doido a frio, Estou lúcido e louco, Estou alheio a tudo e igual a todos: Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura Porque não são sonhos. Estou assim... Pobre velha casa da minha infância perdida! Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! Que é do teu menino? Está maluco. Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano? Está maluco. Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! Por exemplo, por aquele manipanso Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.


Era feiíssimo, era grotesco, Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. Se eu pudesse crer num manipanso qualquer — Júpiter, Jeová, a Humanidade — Qualquer serviria, Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo? Estala, coração de vidro pintado! - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 16.6.1934), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

E o esplendor dos mapas, caminho abstrato para a imaginação concreta E o esplendor dos mapas, caminho abstrato para a imaginação concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam. Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime, Tudo o que diz o que não diz, E a alma sonha, diferente e distraída. Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!) - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 14.1.1933), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Estou cansado, é claro Estou cansado, é claro, Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. De que estou cansado, não sei: De nada me serviria sabê-lo, Pois o cansaço fica na mesma. A ferida dói como dói E não em função da causa que a produziu. Sim, estou cansado, E um pouco sorridente De o cansaço ser só isto — Uma vontade de sono no corpo, Um desejo de não pensar na alma, E por cima de tudo uma tranquilidade lúcida Do entendimento retrospectivo... E a luxúria única de não ter já esperanças? Sou inteligente; eis tudo. Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto, E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá, Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.


- Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 24.6.1935), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Eu, eu mesmo… Eu, eu mesmo… Eu, cheio de todos os cansaços Quantos o mundo pode dar… Eu… Afinal tudo, porque tudo é eu, E até as estrelas, ao que parece, Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças… Que crianças não sei… Eu… Imperfeito? Incógnito? Divino? Não sei. Eu… Tive um passado? Sem dúvida… Tenho um presente? Sem dúvida… Terei um futuro? Sem dúvida, Ainda que pare de aqui a pouco… Mas eu, eu… Eu sou eu, Eu fico eu, Eu… - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Grandes são os desertos, e tudo é deserto Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. Grandes são os desertos, minha alma! Grandes são os desertos. Não tirei bilhete para a vida, Errei a porta do sentimento, Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. Hoje não me resta, em vésperas de viagem, Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) Senão saber isto: Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,


Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) Acendo o cigarro para adiar a viagem, Para adiar todas as viagens. Para adiar o universo inteiro. Volta amanhã, realidade! Basta por hoje, gentes! Adia-te, presente absoluto! Mais vale não ser que ser assim. Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. Mas tenho que arrumar a mala, Tenho por força que arrumar a mala, A mala. Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas. A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. Olho para o lado, verifico que estou a dormir. Sei só que tenho que arrumar a mala, E que os desertos são grandes e tudo é deserto, E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. Ergo-me de repente todos os Césares. Vou definitivamente arrumar a mala. Arre, hei de arrumá-la e fechá-la; Hei-de vê-la levar de aqui, Hei-de existir independentemente dela. Grandes são os desertos e tudo é deserto, Salvo erro, naturalmente. Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! Mais vale arrumar a mala. Fim. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 4.9.1930), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Há tantos deuses! Há tantos deuses! São como os livros — não se pode ler tudo, nunca se sabe nada. Feliz quem conhece só um deus, e o guarda em segredo. Tenho todos os dias crenças diferentes — Às vezes no mesmo dia tenho crenças diferentes — E gostava de ser a criança que me atravessa agora


A visão da janela abaixo — Comendo um bolo barato (ela é pobre) sem causa aparente nem final, Animal inutilmente erguido acima dos outros vertebrados E cantando, entre os dentes, uma cantiga obscena de revista… Sim, há muitos deuses… Mas dava eu tudo ao deus que me levasse aquela criança de aqui pra fora.. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 9.3.1930), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão, Que me conheço atrozmente, que toda a literatura Que uso de mim para mim, para ter consciência de mim, Caiu, como o papel que embrulhou um rebuçado mau — Hoje tenho uma alma parecida com a morte dos nervos — Necrose da alma, Apodrecimento dos sentidos. Tudo quanto tenho feito, conheço-o claramente: é nada. Tudo quanto sonhei, podia tê-lo sonhado o moço de fretes. Tudo quanto amei, se hoje me lembro que o amei, morreu há muito. Ó Paraíso Perdido da minha infância burguesa, Meu Éden agasalhando o chá noturno, Minha colcha limpa de menino! O Destino acabou-me como a um manuscrito interrompido. Nem altos nem baixos — consciência de nem sequer a ter... Papelotes da velha solteira — toda a minha vida. Tenho uma náusea do estômago nos pulmões. Custa-me a respirar para sustentar a alma. Tenho uma quantidade de doenças tristes nas juntas da vontade. Minha grinalda de poeta — eras de flores de papel, A tua imortalidade presumida era o não teres vida. Minha coroa de louros de poeta — sonhada petrarquicamente, Sem capotinho mas com fama, Sem dados mas com Deus — Tabuleta [de] vinho falsificado na última taberna da esquina! - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 9.3.1930), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Magnificat Quando é que passará esta noite interna, o universo, E eu, a minha alma, terei o meu dia? Quando é que despertarei de estar acordado? Não sei. O sol brilha alto, Impossível de fitar. As estrelas pestanejam frio, Impossíveis de contar. O coração pulsa alheio, Impossível de escutar. Quando é que passará este drama sem teatro, Ou este teatro sem drama, E recolherei a casa? Onde? Como? Quando? Gato que me fitas com olhos de vida,


Quem tens lá no fundo? É esse! É esse! Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei; E então será dia. Sorri, dormindo, minha alma! Sorri, minha alma, será dia! - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 7.11.1933), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Mas eu, em cuja alma se refletem Mas eu, em cuja alma se refletem As forças todas do universo, Em cuja reflexão emotiva e sacudida Minuto a minuto, emoção a emoção, Coisas antagônicas e absurdas se sucedem — Eu o foco inútil de todas as realidades, Eu o fantasma nascido de todas as sensações, Eu o abstrato, eu o projetado no écran, Eu a mulher legítima e triste do Conjunto Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002. Mas eu não tenho problemas; tenho só mistérios Mas eu não tenho problemas; tenho só mistérios. Todos choram as minhas lágrimas, porque as minhas lágrimas são todos. Todos sofrem no meu coração, porque o meu coração é tudo. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Meu coração, mistério batido pelas lonas dos ventos... Meu coração, mistério batido pelas lonas dos ventos... Bandeira a estralejar desfraldadamente ao alto, Árvore misturada, curvada, sacudida pelo vendaval, Agitada como uma espuma verde pegada a si mesma, * Para sempre condenada à raiz de não se poder exprimir! Queria gritar alto com uma voz que dissesse! Queria levar ao menos a um outro coração a consciência do meu! Queria ser lá fora... Mas o que sou? O trapo que foi bandeira, As folhas varridas para o canto que foram ramos, As palavras socialmente desentendidas, até por quem as aprecia, Eu que quis fora a minha alma inteira, E ficou só o chapéu do mendigo debaixo do automóvel, O estragado estragado, E o riso dos rápidos soou para trás na estrada dos felizes... * espaço deixado em branco pelo autor - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 10.5.1929), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.


Não Não: devagar. Devagar, porque não sei Onde quero ir. Há entre mim e os meus passos Uma divergência instintiva. Há entre quem sou e estou Uma diferença de verbo Que corresponde à realidade. Devagar... Sim, devagar... Quero pensar no que quer dizer Este devagar... Talvez o mundo exterior tenha pressa demais. Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo. Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima... Talvez isso tudo... Mas o que me preocupa é esta palavra devagar... O que é que tem que ser devagar? Se calhar é o universo... A verdade manda Deus que se diga. Mas ouviu alguém isso a Deus? - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 30.12.1934), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Não, não é cansaço... Não, não é cansaço... É uma quantidade de desilusão Que se me entranha na espécie de pensar, E um domingo às avessas Do sentimento, Um feriado passado no abismo... Não, cansaço não é... É eu estar existindo E também o mundo, Com tudo aquilo que contém, Como tudo aquilo que nele se desdobra E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais. Não. Cansaço porquê? É uma sensação abstrata Da vida concreta — Qualquer coisa como um grito Por dar, Qualquer coisa como uma angústia Por sofrer, Ou por sofrer completamente, Ou por sofrer como... Sim, ou por sofrer como...


Isso mesmo, como... Como quê?... Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço. (Ai, cegos que cantam na rua, Que formidável realejo Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!) Porque oiço, vejo. Confesso: é cansaço!... - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Não ter deveres, nem horas certas, nem realidades... Não ter deveres, nem horas certas, nem realidades... Ser uma ave humana Que passe haleiónica sobre a intransigência do mundo — Ganhando o pão da sua noite com o suor da fronte dos outros — Faz-tudo triste No coliseu com lágrimas, E compère antigo, um pouco mais cheio que Vénus de Milo, Na insubsistência dos acasos. E um pouco de sol, ao menos, para os sonhos onde não vivo. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

O que há em mim é sobretudo cansaço O que há em mim é sobretudo cansaço — Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço. A subtileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto em alguém, Essas coisas todas — Essas e o que falta nelas eternamente —; Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço. Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada — Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser... E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido,


Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimo, íssimo, íssimo, Cansaço... - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 9.10.1934), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada, E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio, Então, sozinho de mim, passageiro parado De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti. Todo o passado, em que foste um momento eterno, É como este silêncio de tudo. Todo o perdido, em que foste o que mais perdi, É como estes ruídos, Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser É como o nada por ser neste silêncio nocturno. Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem, Quantos amei ou conheci, Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa, Ou um povo omitido pelo mundo, E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite Branco e negro de campas e árvores e de luar alheio E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Que noite serena! Que noite serena! Que lindo luar! Que linda barquinha Bailando no mar! Suave, todo o passado - o que foi aqui de Lisboa - me surge... O terceiro andar das tias, o sossego de outrora, Sossego de várias espécies, A infância sem futuro pensado, O ruído aparentemente contínuo da máquina de costura delas, E tudo bom e a horas, De um bem e de um a-horas próprio, hoje morto. Meu Deus, que fiz eu da vida? Que noite serena! Que lindo luar! Que linda barquinha Bailando no mar!


Quem é que cantava isso? Isso estava lá. Lembro-me mas esqueço. E dói, dói, dói,,, Por amor de Deus, parem com isso dentro da minha cabeça. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002. Que somos nós?... Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite, Cada um a vida das linhas das vigias iluminada E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada. Navios que se afastam ponteados de luz na treva, Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002. Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância. Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio. Falem pouco, devagar. Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento. O que quis? Tenho as mãos vazias, Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua. O que pensei? Tenho a boca seca, abstrata. O que vivi? Era tão bom dormir! - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 8.12.1931), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

São poucos os momentos de prazer na vida… São poucos os momentos de prazer na vida… É gozá-la… Sim, já o ouvi dizer muitas vezes Eu mesmo já o disse. (Repetir é viver.) É gozá-la, não é verdade? Gozemo-la, loura, falsa, gozemo-la, casuais e incógnitos, Tu, com gestos de distinção cinematográfica Com teus olhares para o lado a nada, Cumprindo a tua função de animal emaranhado; E no plano inclinado da consciência para a indiferença, Amemo-nos aqui. Tempo é só um dia. Tínhamos o [?romantismo?] dele! Por trás de mim vigio, involuntariamente. Sou qualquer nas palavras que te digo, e são suaves — e as que esperas. Do lado de cá dos meus Alpes, e que Alpes! somos do corpo. Nada quebra a passagem prometida de uma ligação futura, E vai tudo elegantemente, como em Paris, Londres, Berlim. «Percebe-se», dizes, «que o senhor viveu muito no estrangeiro.» E eu que sinto vaidade em ouvi-lo! Só tenho medo que me vás falar da tua vida…


Cabaret de Lisboa? Visto que o é, seja. Lembro-me subitamente, visualmente, do anúncio no jornal «Rendez-vous da sociedade elegante», Isto. Mas nada destas reflexões temerárias e futuras Interrompe aquela conversa involuntária em que te sou qualquer. Falo médias e imitações E cada vez, vejo e sinto, gostas mais de mim a valer que [] hoje; É nesta altura que, debruçando-me de repente sobre a mesa Te segredo o que exatamente convinha. Ris, toda olhar e em parte boca, efusiva e próxima, E eu gosto verdadeiramente de ti. Soa em nós o gesto sexual de nos irmos embora. Rodo a cabeça para o pagamento… Alegre, álacre, sentindo-te, falas… Sorrio. Por trás do sorriso, não sou eu. [] espaço deixado em branco pelo autor [? ?] leitura conjecturada - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 5.2.1932), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, Espécie de acessório ou sobresselente próprio, Arredores irregulares da minha emoção sincera, Sou eu aqui em mim, sou eu. Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim. E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente, Como de um sonho formado sobre realidades mistas, De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico, Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ia sentar em cima. E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, De haver melhor em mim do que eu. Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida. Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica, Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar, De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo — A impressão de pão com manteiga e brinquedos De um grande sossego sem Jardins de Proserpina, De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela, Num ver chover com som lá fora E não as lágrimas mortas de custar a engolir.


Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado, O emissário sem carta nem credenciais, O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro, A quem tinem as campainhas da cabeça Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima. Sou eu mesmo, a charada sincopada Que ninguém da roda decifra nos serões de província. Sou eu mesmo, que remédio!… - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 6.8.1931), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Tabacaria Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui até ao campo com grandes propósitos, Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!


Génio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim… Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas — Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo. Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco, Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa. (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,


Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —, Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) Vivi, estudei, amei, e até acreditei, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente. Fiz de mim o que não soube, E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história para provar que sou sublime. Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como a uma rota própria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto. Depois deito-me para trás na cadeira E continuo fumando. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu. - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 15.1.1928), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

Ver as coisas até ao fundo… Ver as coisas até ao fundo… E se as coisas não tiverem fundo? Ah, que bela a superfície! Talvez a superfície seja a essência E o mais que a superfície seja o mais que tudo E o mais que tudo não é nada. Ó face do mundo, só tu, de todas as faces, És a própria alma que refletes - Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002.

POEMAS DE RICARDO REIS [HETERÔNIMO DE FERNANDO PESSOA] A flor que és, não a que dás, eu quero


A flor que és, não a que dás, eu quero. Porque me negas o que te não peço. Tempo há para negares Depois de teres dado. Flor, sê-me flor! Se te colher avaro A mão da infausta esfinge, tu perene Sombra errarás absurda, Buscando o que não deste. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000. Aguardo, equânime, o que não conheço Aguardo, equânime, o que não conheço — Meu futuro e o de tudo. No fim tudo será silêncio, salvo Onde o mar banhar nada. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 13.12.1933), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Amo o que vejo porque deixarei Amo o que vejo porque deixarei Qualquer dia de o ver. Amo-o também porque é. No plácido intervalo em que me sinto, Do amar, mais que ser, Amo o haver tudo e a mim. Melhor me não dariam, se voltassem, Os primitivos deuses, Que também, nada sabem. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 11.10.1934), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Antes de nós nos mesmos arvoredos Antes de nós nos mesmos arvoredos Passou o vento, quando havia vento, E as folhas não falavam De outro modo do que hoje. Passamos e agitamo-nos debalde. Não fazemos mais ruído no que existe Do que as folhas das árvores Ou os passos do vento. Tentemos pois com abandono assíduo Entregar nosso esforço à Natureza E não querer mais vida Que a das árvores verdes. Inutilmente parecemos grandes. Salvo nós nada pelo mundo fora Nos saúda a grandeza Nem sem querer nos serve.


Se aqui, à beira-mar, o meu indício Na areia o mar com ondas três o apaga, Que fará na alta praia Em que o mar é o Tempo? - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 8.10.1914), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Aqui, neste misérrimo desterro Aqui, neste misérrimo desterro Onde nem desterrado estou, habito, Fiel, sem que queira, àquele antigo erro Pelo qual sou proscrito. O erro de querer ser igual a alguém Feliz em suma — quanto a sorte deu A cada coração o único bem De ele poder ser seu. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 6.3.1933), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000

Breve o dia, breve o ano, breve tudo Breve o dia, breve o ano, breve tudo. Não tarda nada sermos. Isto, pensado, me de a mente absorve Todos mais pensamentos. O mesmo breve ser da mágoa pesa-me, Que, inda que mágoa, é vida. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 27.9.1931), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo Cada coisa a seu tempo tem seu tempo. Não florescem no inverno os arvoredos, Nem pela primavera Têm branco frio os campos. À noite, que entra, não pertence, Lídia, O mesmo ardor que o dia nos pedia. Com mais sossego amemos A nossa incerta vida. À lareira, cansados não da obra Mas porque a hora é a hora dos cansaços, Não puxemos a voz Acima de um segredo, E casuais, interrompidas, sejam Nossas palavras de reminiscência (Não para mais nos serve A negra ida do Sol) —


Pouco a pouco o passado recordemos E as histórias contadas no passado Agora duas vezes Histórias, que nos falem Das flores que na nossa infância ida Com outra consciência nós colhíamos E sob uma outra espécie De olhar lançado ao mundo. E assim, Lídia, à lareira, como estando, Deuses lares, ali na eternidade, Como quem compõe roupas O outrora componhamos Nesse desassossego que o descanso Nos traz às vidas quando só pensamos Naquilo que já fomos, E há só noite lá fora. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 30.7.1914), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre Cada um cumpre o destino que lhe cumpre, E deseja o destino que deseja; Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre. Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispõe, e ali ficamos; Que a Sorte nos fez postos Onde houvemos de sê-lo. Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 29.7.1923), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Cantos, risos e flores alumiem Cantos, risos e flores alumiem Nosso mortal destino, Para o ermo ocultar fundo, noturno De nosso pensamento, Curvado, já em vida, sob a ideia Do plutônico gozo, Cônscio já da lívida esperança Do caos redivivo. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.


Deixa passar o vento Deixa passar o vento Sem lhe perguntar nada. Seu sentido é apenas Ser o vento que passa... Consegui que esta hora Sacrificasse ao Olimpo. E escrevi estes versos Pra que os deuses voltassem. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 12.9.1916), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Doce é o fruto à vista, e à boca amaro Doce é o fruto à vista, e à boca amaro, Breve é a vida ao tempo e longa à alma, A arte, com que todos, — Ora sem saber virando o copo vil, Ora, enchendo-o, cientes — nos ousamos, Chegada a noite, despir. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 20.2.1928), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Do que quero renego, se o querê-lo Do que quero renego, se o querê-lo Me pesa na vontade. Nada que haja Vale que lhe concedamos Uma atenção que doa. Meu balde exponho à chuva, por ter água. Minha vontade, assim, ao mundo exponho, Recebo o que me é dado, E o que falta não quero. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 22.9.1931), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Dois é o prazer: gozar e o gozá-lo Dois é o prazer: gozar e o gozá-lo. Ao néscio elege o parvo, o sábio ao outro. E o igual fado é diverso. Na taça que ergo, ondeio, e vejo, as bolhas Incluo no que sinto, e ao pegar Mais puro ‘stá na taça. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 21.2.1928), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Enquanto eu vir o sol doirar as folhas Enquanto eu vir o sol doirar as folhas


E sentir toda a brisa nos cabelos Não quererei mais nada. Que me pode o Destino conceder Melhor que o lapso gradual da vida Entre ignorâncias destas? Pomos a dúvida onde há rosas. Damos Metade do sentido ao entendimento E ignoramos, pensantes. Estranha a nós a natureza externa. Campos espalha, flores ergue, frutos Redonda, e a morte chega. Terei razão, se a alguém razão é dada, Quando me a morte conturbar a mente E já não veja mais Que à razão de saber porque vivemos Nós nem a achamos nem achar se deve, Impropícia e profunda. Sábio deveras o que não procura, Que encontra o abismo em todas coisas E a dúvida em si-mesmo. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 16.6.1927), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge. Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge. Mas finge sem fingires. Nada speres que em ti já não exista, Cada um consigo é tudo Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas, Sorte se a sorte é dada. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 6.4.1933), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Este, seu scasso campo ora lavrando Este, seu scasso campo ora lavrando, Ora solene, olhando-o com a vista De quem a um filho olha, goza incerto A não-pensada vida. Das fingidas fronteiras a mudança O arado lhe não tolhe, nem o empece Per que concílios se o destino rege Dos povos pacientes. Pouco mais no presente do futuro Que as ervas que arrancou, seguro vive A antiga vida que não torna, e fica, Filhos, diversa e sua. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Floresce em ti, ó magna terra, em cores Floresce em ti, ó magna terra, em cores


A vária primavera, e o verão vasto, E os campos são de alegres. Mas dorme em cada campo o outono dele E o inverno espreita a açucena que ignora6 E a morte é cada dia. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 9.10.1927), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Hora a hora não dura a face antiga Hora a hora não dura a face antiga Dos repetidos seres, e hora a hora, Pensando, envelhecemos. Tudo passa ignorado, e o que, sabido, Fica, sabe que ignora, porém nada Torna, ciente ou néscio. Pares, assim, do que não somos pares, Da hora extinta a chama reservemos No calor recordada. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 16.11.1923), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Lenta, descansa a onda que a maré deixa Lenta, descansa a onda que a maré deixa. Pesada cede. Tudo é sossegado. Só o que é de homem se ouve. Cresce a vinda da lua. Nesta hora, Lídia ou Neera Ou Cloe, Qualquer de vós me é estranha, que me inclino Para o segredo dito Pelo silêncio incerto. Tomo nas mãos, como caveira, ou chave De supérfluo sepulcro, o meu destino, E ignaro o aborreço Sem coração que o sinta. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 6.7.1927), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Manhã que raias sem olhar a mim Manhã que raias sem olhar a mim, Sol que luzes sem qu’rer saber de eu ver-te, É por mim que sois Reais e verdadeiros. Porque é na oposição ao que eu desejo Que sinto real a natureza e a vida. No que me nega sinto Que existe e eu sou pequeno. E nesta consciência torno a grande Como a onda, que as tormentas atiraram Ao alto ar, regressa Pesada a um mar mais fundo.


- Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 23.11.1918), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Mestre, são plácidas Mestre, são plácidas Todas as horas Que nós perdemos, Se no perdê-las, Qual numa jarra, Nós pomos flores. Não há tristezas Nem alegrias Na nossa vida. Assim saibamos, Sábios incautos, Não a viver, Mas decorrê-la, Tranqüilos, plácidos, Lendo as crianças Por nossas mestras, E os olhos cheios De Natureza ... À beira-rio, À beira-estrada, Conforme calha, Sempre no mesmo Leve descanso De estar vivendo. O Tempo passa, Não nos diz nada. Envelhecemos. Saibamos, quase Maliciosos, Sentir-nos ir. Não vale a pena Fazer um gesto. Não se resiste Ao deus atroz Que os próprios filhos Devora sempre. Colhamos flores. Molhemos leves As nossas mãos Nos rios calmos, Para aprendermos Calma também. Girassóis sempre Fitando o sol,


Da vida iremos Tranqüilos, tendo Nem o remorso De ter vivido. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 12.6.1914), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Nada fica de nada. Nada somos Nada fica de nada. Nada somos. Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos Da irrespirável treva que nos pese Da humilde terra imposta, Cadáveres adiados que procriam. Leis feitas, státuas altas, odes findas — Tudo tem cova sua. Se nós, carnes A que um íntimo sol dá sangue, temos Poente, porque não elas? Somos contos contando contos, nada. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 28.9.1932), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Não quero recordar nem conhecer-me Não quero recordar nem conhecer-me. Somos de mais se olhamos em quem somos. Ignorar que vivemos Cumpre bastante a vida. Tanto quanto vivemos, vive a hora Em que vivemos, igualmente morta Quando passa conosco, Que passamos com ela. Se sabê-lo não serve de sabê-lo (Pois sem poder que vale conhecermos?), Melhor vida é a vida Que dura sem medir-se. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 2.9.1923), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Não só vinho, mas nele o olvido, deito Não só vinho, mas nele o olvido, deito Na taça: serei ledo, porque a dita É ignara. Quem, lembrando Ou prevendo, sorrira? Dos brutos, não a vida, senão a alma, Consigamos, pensando; recolhidos No impalpável destino Que não spera nem lembra. Com mão mortal elevo à mortal boca Em frágil taça o passageiro vinho, Baços os olhos feitos


Para deixar de ver. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 13.6.1926), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Ninguém a outro ama, senão que ama Ninguém a outro ama, senão que ama O que de si há nele, ou é suposto. Nada te pese que não te amem. Sentem-te Quem és, e és estrangeiro. Cura de ser quem és, amam-te ou nunca. Firme contigo, sofrerás avaro De penas. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 10.7.1932), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

No ciclo eterno das mudáveis coisas No ciclo eterno das mudáveis coisas Novo inverno após novo outono volve À diferente terra Com a mesma maneira. Porém a mim nem me acha diferente Nem diferente deixa-me, fechado Na clausura maligna Da índole indecisa. Presa da pálida fatalidade De não mudar-me, me infiel renovo Aos propósitos mudos Morituros e infindos. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 24.11.1925), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.


No magno dia até os sons são claros No magno dia até os sons são claros. Pelo repouso do amplo campo tardam. Múrmura, a brisa cala. Quisera, como os sons, viver das coisas Mas não ser delas, conseqüência alada Em que o real vai longe. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

O mar jaz; gemem em segredo os ventos O mar jaz; gemem em segredo os ventos Em Eolo cativos; Só com as pontas do tridente as vastas Águas franze Neptuno; E a praia é alva e cheia de pequenos Brilhos sob o sol claro. Inutilmente parecemos grandes. Nada, no alheio mundo, Nossa vista grandeza reconhece Ou com razão nos serve. Se aqui de um manso mar meu fundo indício Três ondas o apagam, Que me fará o mar que na atra praia Ecoa de Saturno? - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000. Para ser grande, sê inteiro: nada Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a Lua toda Brilha, porque alta vive. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 14.2.1933), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000. Pequena vida consciente sempre De uma só vez recolhe As flores que puderes. Não dura mais que até à nocte o dia. Colhe de que lembrares. A vida é pouco e cerca-a A sombra e o sem-remédio. Não temos regras que compreendamos, Súbditos sem governo. Goza este dia como Se a vida fosse nele


Homens nem deuses fadam, nem destinam Senão quem ignoramos - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 22.10.1923), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Pois que nada que dure, ou que, durando Pois que nada que dure, ou que, durando, Valha, neste confuso mundo obramos, E o mesmo útil para nós perdemos Conosco, cedo, cedo. O prazer do momento anteponhamos À absurda cura do futuro, cuja Certeza única é o mal presente Com que o seu bem compramos. Amanhã não existe. Meu somente É o momento, eu só quem existe Neste instante, que pode o derradeiro Ser de quem finjo ser? - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 16.3.1933), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Prefiro rosas, meu amor, à pátria Prefiro rosas, meu amor, à pátria, E antes magnólias amo Que a glória e a virtude. Logo que a vida me não canse, deixo Que a vida por mim passe Logo que eu fique o mesmo. Que importa àquele a quem já nada importa Que um perca e outro vença, Se a aurora raia sempre, Se cada ano com a primavera As folhas aparecem E com o outono cessam? E o resto, as outras coisas que os humanos Acrescentam à vida, Que me aumentam na alma? Nada, salvo o desejo de indiferença E a confiança mole Na hora fugitiva. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 01.6.1916), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.


Quanta tristeza e amargura afoga Quanta tristeza e amargura afoga Em confusão a streita vida! Infortúnio mesquinho Nos oprime supremo! Feliz ou o bruto que nos verdes campos Pasce, para si mesmo anônimo, e entra Na morte como em casa; Ou o sábio que, perdido Na ciência, a fútil vida austera eleva Além da nossa, como o fumo que ergue Braços que se desfazem A um céu inexistente. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 14.6.1926), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000. Que mais que um ludo ou jogo é a extensa vida Que mais que um ludo ou jogo é a extensa vida, Em que nos distraímos de outra coisa — Que coisa, não sabemos —; Livres porque brincamos se jogamos, Presos porque tem regras cada jogo; Inconscientemente? Feliz o a quem surge a consciência Do jogo, mas não toda, e essa dele Em a saber perder. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 27.10.1932), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Quer pouco Quer pouco: terás tudo. Quer nada: serás livre. O mesmo amor que tenham Por nós, quer-nos, oprime-nos. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 1.1.1930), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo, E ao beber nem recorda Que já bebeu na vida, Para quem tudo é novo E imarcescível sempre. Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis, Ele sabe que a vida Passa por ele e tanto Corta à flor como a ele De Átropos a tesoura. Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto, Que o seu sabor orgíaco


Apague o gosto às horas, Como a uma voz chorando O passar das bacantes. E ele espera, contente quase e bebedor tranqüilo, E apenas desejando Num desejo mal tido Que a abominável onda O não molhe tão cedo. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 19.6.1914), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000. Se em verdade não sabes Se em verdade não sabes (nem sustentas Que sabes) que há na vida mais que a vida, Porque com tanto esforço e cura tanta, Te afastas de vivê-la? Porque, sem paraíso que apeteças, Amontoas riquezas, nem as gastas, É para teu cadáver que amontoas? Gozas menos que ganhas. Ah, se não tens que esperes, salvo a morte, Não cures mais que do preciso esforço Para passar incólume na vida De Sim, gozas. Mas mais rico és que ditoso Se só para o que perdes gozas, Menos te o esforço oneraria, Sem ele. Ah servidão irreprimível, nada Da vida humana subsiste, que sabe Que morre toda, e gasta-se nas obras Egoísta de um futuro que não é seu. Mas respondes-me: E os poemas que screves A quem os dá futuro? A obra obrigas E o homem só por semear semeia O que o Destino manda. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000. Só esta liberdade nos concedem Só esta liberdade nos concedem Os deuses: submetermo-nos Ao seu domínio por vontade nossa. Mais vale assim fazermos Porque só na ilusão da liberdade A liberdade existe. Nem outro jeito os deuses, sobre quem O eterno fado pesa, Usam para seu calmo e possuído Convencimento antigo


De que é divina e livre a sua vida. Nós, imitando os deuses, Tão pouco livres como eles no Olimpo, Como quem pela areia Ergue castelos para encher os olhos, Ergamos nossa vida E os deuses saberão agradecer-nos O sermos tão como eles. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 30.7.1914), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000. Vivem em nós inúmeros Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa. Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo. Existo todavia Indiferente a todos. Faço-os calar: eu falo. Os impulsos cruzados Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou. Ignoro-os. Nada ditam A quem me sei: eu escrevo. - Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], (escrito em 13.11.1935), In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000.

AFORISMOS DE BERNARDO SOARES [SEMI-HETERÔNIMO DE FERNANDO PESSOA] "A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de ação. Em melhores e mais diretas palavras, o sonhador é que é o homem de ação. Nunca pretendi ser senão um sonhador." - Bernardo Soares [Semi-heterônimo de Fernando Pessoa]. no Livro do Desassossego. (Org.) de Richard Zenith - Assírio E Alvim, 2008. "Há um cansaço da inteligência abstrata, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar da alma." - Bernardo Soares [Semi-heterônimo de Fernando Pessoa]. no Livro do Desassossego. (Org.) de Richard Zenith - Assírio E Alvim, 2008. "Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é desumano, porque o humano é imperfeito." - Bernardo Soares [Semi-heterônimo de Fernando Pessoa]. "A única atitude intelectual digna de uma criatura superior é a de uma calma e fria


compaixão por tudo quanto não é ele próprio. Não que essa atitude tenha o mínimo cunho de justa e verdadeira; mas é tão invejável que é preciso tê-la." - Bernardo Soares [Semi-heterônimo de Fernando Pessoa], no Livro do Desassossego. (Org.) de Richard Zenith - Assírio E Alvim, 2008. "Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero." - Bernardo Soares [Semi-heterônimo de Fernando Pessoa],no Livro do Desassossego. (Org.) de Richard Zenith - Assírio E Alvim, 2008

"Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é, arrumando palavras de uma certa maneira. Começou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Camões, um Camões muito maior do que o antigo, mas, sendo uma criatura conhecidamente discreta, que soia andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele próprio. Ainda bem. Afinal, um superCamões não vai além de ser um Camões maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoa, fenômeno nunca antes visto em Portugal." - José Saramago. Cadernos de Lanzarote. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 642644. CASA FERNANDO PESSOA "Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso." - Fernando Pessoa, in "Autobiografia sem Factos". Assírio e Alvim, Lisboa, 2006, p. 128. OBRAS DE FERNANDO PESSOA DISPONÍVEL ONLINE PARA BAIXAR Fernando Pessoa [Biblioteca Digital/Portal Domínio Público] - Link.

"Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta." - Fernando Pessoa, Livro do Desassossego - v.1, Página 52, Publicado por Ática, 1982.



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