A Caridade e a Intrujice

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Mário Vale Lima Médico mvalelima@gmail.com

A caridade e a intrujice

Se alguém duvida que Jesus, por vezes, levou a equívocos, que ouça a multidão enganada por Lhe seguir o bem-intencionado preceito “Quem dá aos pobres empresta a Deus” (Provérbios, 19-17). Noutros tempos os pobres deveriam ser tão pobres que nem manha tinham para enganar a quem pediam. Na romaria de São Bartolomeu do Mar, em Esposende, até meados da passada década de 60, a estrada da praia ficava ladeada de mendigos cegos, paralíticos, aleijados e leprosos como nas iluminuras da Idade Média. Nessa época, nas ruas e praças das cidades, viam-se avisos “Proibida a Mendicidade”, e “Proibido andar descalço”. Mas, perante tanta pobreza, as autoridades toleravam aquelas criaturas andrajosas que percorriam as aldeias para pedir às casas abastadas, como o enigmático “Canelas”, de chapéu esburacado, alforge, chinelos e uma perna entrapada, anunciando-se a tocar violino e terminando com um padre-nosso “pela alminha de quem lá tem”. Aí a indigência era tão evidente que ninguém duvidava da real crueldade da miséria (que ainda hoje não foi erradicada). Também se contam histórias de ricos - daqueles em que “é mais certo um camelo entrar pelo buraco duma agulha que eles no reino dos céus” - que endrominam os pobres; leia-se Os mendigos e a nobreza de Sintra, de Ramalho Ortigão: “O acontecimento elegante de Agosto de 1871 foi uma tourada que a mocidade fidalga de Sintra organizou em favor dos mendigos daquela vila”. No final a comissão apresentou contas de tão dadivoso evento. Receitas alcançadas: 936$440; despesas efectuadas: 998$365. Saldo: Devem os mendigos de Sintra à nobreza da vila 61$925. A pedinchice suspeita – ao telefone, por correio, pelo jornal, na rua - é a que toca na sensibilidade dos corações generosos: “uma criancinha com um tumor a necessitar de ir tratar-se a Cuba”. Alguém soube se algum destes pequenos burlões (em tirocínio para escalões superiores) foi punido? Há alguns em que o humor com que


intrujam merece atenuantes: Roberto Bolaño cita um pedinte famoso dos anos 40 do séc. passado que, afirmando-se neto do grande escritor russo Liev Tolstói, na mais movimentada rua de Santiago do Chile, estendia a mão à caridade com este amargurado estribilho: «Vejam o estado em que me deixou a revolução russa! ». Ou - conta-o Ruben A. - um estudante pobre, de engenharia, em Coimbra, que tinha um exame em Lisboa e na ajuda de quem os colegas com boa mesada se cotizaram; passados tempos surpreenderam-no no Bairro Alto, jubiloso e de bom fato novo e charuto. Mas eu conheci um ainda melhor. Certo dia veio um pai pedir ajuda à minha devota avó Rosa. Pedia para “um enxoval completo” (assim denominavam, nesse tempo, o conjunto do fato preto, batina, sobrepeliz, calçado, roupas de cama e afins, requerido a um noviço) necessário para a entrada no seminário de “um filho com muita vocação de servir o Senhor” Nesses tempos, algumas famílias pobres para pouparem os filhos à vida escrava, encaminhavam- nos para o seminário cuja congregação prometia aos benfeitores indulgências em troca. Assim correram as águas, mas na oportunidade fez um manguito ao sacerdócio, ignorou a benfeitora, arranjou um modo de vida de onde, mais tarde, pôde morder a mão de quem lhe deu comida. Ainda aí anda, até chegar ao inferno, onde ficam para sempre enterrados de cabeça para baixo e solas dos pés em chamas, os falsários da simonia. P.S.: Desafia-me o Al-mansur, (esse sarraceno clandestino a quem receio já ter dado tabaco, pago o café e até apertado a mão, que quinzenalmente faz incursões ao reino da Vendilândia - ou lá onde fica), a pôr na conta das vigarices as promessas dos políticos. Como diria Garrett, “haja bons eleitores que eu respondo pelos políticos”. E cuide-se, criatura, que lhe chegam a roupa ao pêlo se o descobrem numa cangosta de reinos.







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