Barcelos, uma Cidade de Artes e Ofícios 10.02.2019 15:00 por Filipa Teixeira
Foi considerada Cidade Criativa da UNESCO em 2017, a primeira em Portugal e na Península Ibérica a integrar esta rede. A SÁBADO foi ao Minho para conhecer as tradições que lhe valeram esta distinção. Quinta-feira de dezembro, manhã nublada e com orvalho no ar. "Hoje a feira não está com tanta gente como de costume", comenta Anabela, a nossa guia turística nesta visita a Barcelos. Quem diria?, penso eu, sem disfarçar o espanto. O movimento de pessoas que desagua no Campo da República - mais conhecido por Campo da Feira -, com os carros estacionados por toda a cidade, de sacos debaixo do braço, num autêntico frenesim, parecem contrariar tais palavras, mas logo vem a explicação. "Olhe como há espaços livres", diz Anabela, apontando as clarei-ras que denunciam a ausência dos comerciantes: "Em dias de ameaça de chuva, muitos preferem ficar em casa." Essa ausência em nada desvirtua o carisma que faz da feira de Barcelos uma das mais afamadas do Norte de Portugal. Surgida no século XV, no antigo Largo do Poio (hoje chamado Largo do Apoio), a feira é ainda um
modo de vida para muitas famílias que, antes do dia raiar, já estão a montar a sua banca.
Organizada por secções, artesanato ao centro, produtos hortícolas e frutícolas a norte, vestuário, calçado, têxteis e mobiliário a sul, cestaria e cerâmica a este e oeste, a feira envaidece-se com o seu caráter ancestral, que se sente entre o cacarejar dos galos, os cheiros frescos dos produtos da época e os pregões dos feirantes. "Leve, leve um quilinho! É bom para saladas de fruta, só custa pagar", apregoava Maria Emília, de tamarillos alaranjados na mão, enquanto contava que a família já lá anda há 15 anos: "Primeiro foi a minha irmã, agora faço eu a feira." No artesanato, os testemunhos e as abordagens são em tudo idênticos. Às voltas com um pequeno coreto de barro, com banda filarmónica caracterizada a preceito, Conceição Salgueiro mostra com orgulho os seus figurados tradicionais: "Aprendi a trabalhar o barro e a pintar com os meus pais, desde pequenina." A história repete-se, de boca em boca. "Por isso é que Barcelos foi considerada Cidade Criativa pela UNESCO", sustenta Anabela: "O facto de as tradições continuarem vivas, de geração em geração, é um dos grandes valores da região."
"Tenho
mesmo
amor
ao
barro"
São mais de uma dúzia, os artesãos certificados e que integram a rota do figurado de Barcelos. Quase todos trabalham em oficinas caseiras, na própria garagem ou piso térreo, e quase todos repetem, com sinceridade que não se ensaia, a mesma frase: "Tenho mesmo amor ao barro, nasci e cresci no meio dele." Guiados pela sinalética que se vai espalhando pelas 61 freguesias do concelho, fomos visitar três artesãos. Júlia Côta, a primeira, é nome respeitado nesta prática e reconhece ao seu avô Domingos Côta (ainda que com alguma controvérsia) a autoria do primeiro figurado do galo de Barcelos. "Tinha um apito na base, como quase todos os figurados da altura, e era usado essencialmente nas brincadeiras da garotagem. Ainda me lembro", conta a artesã de 83 anos e modos energéticos. "Quando éramos pequeninos - continua -, eu e os meus irmãos virávamos um mocho [banco tosco] ao contrário e púnhamo-nos em cima dele a pintar os galos do meu avô." Chegavam a ter um metro e meio de altura. "E sabe o que é que usávamos como pincéis?" Após um momento de suspense, atira: "A ponta do rabo de um gato!" Nesse tempo, certamente nem Júlia nem o avô ou Rosa Ramalho, a artesã descoberta por artistas do Porto cuja criatividade e imaginário foram comparados a Dalí ou Picasso, sonhariam que a sua arte seria cobiçada por todo o lado, da feira de Barcelos às mais refinadas lojas de artesanato lisboetas e às leiloeiras que fazem escalar os preços das obras. "Do que gosto mais é das minhas bonecas gordas", refere Júlia, sentada à sua mesinha a dar-lhes "pintinhas nos olhos" e colorido nos vestidos. "Tão
feias, tão feias... e vendem tão bem!", brinca, mostrando bonecas desenhadas pela bisneta, de 10 anos: "Olhe que eu digo a verdade, foram feitas por ela." Numa montra, estão as obras da filha Prazeres. "Ela tem um pintar mais perfeito que o meu", afirma. O legado Côta continua em boas mãos. A poucos quilómetros, na freguesia de Galegos de Santa Maria, foi João Ferreira que nos recebeu, com o seu exército de galos de Barcelos em miniatura, pousados na borda de uma mesa comprida, à espera dos últimos retoques. "Estão todos a cantar", declara, justificando o traço característico da sua mão, que se nota na goela aberta e no frenético de cores garridas e recortes ondulares dos galitos.
O figurado surgiu na vida deste artesão de 60 anos para o salvar de um problema: "Trabalhei 21 anos na fábrica de cerâmica, falida em 2003." Quando a angústia então o tomou, virou-se para as suas figuras esguias e compridas, para os seus galos e a arte que, desde 2004, lhe tem valido elogios e sustento. "Despego-me de tudo", afiança, sobre se lhe dá pena vender algumas figuras: "Penso sempre que vou fazer outras, ainda mais bonitas." A mulher, Luísa Melo, "também faz algumas peças", diz: "Quando trabalhamos juntos, nem olhamos um para o outro. Se ela vê que estou a olhar para ela, foge!" Sem fugir um do outro, Eduardo e Jesus Pias formam outro casal de artesãos, que trabalha na garagem de casa, em frente a um sossegado jardim com um abacateiro ao centro. Conforme nos contam, ele gosta do "detalhe e do realismo nos traços faciais", ela é "mais brincalhona" e põe figuras religiosas ou camponeses de traje tradicional, de olhinhos redondos
voltados aos céus e com uma expressão de "oh!" pasmado na boca. Baraça, Sapateiro, Mistério, Ramalho, Barbeiro, Macedo, Morgado são outros dos honrosos apelidos ligados à história do figurado de Barcelos. O agradecimento a estes artesãos está espalhado pela cidade, com 19 figuras gigantes a homenagear a arte de cada um, e no Museu da Olaria de Barcelos, que além de realizar exposições temporárias sobre cada família tem um interessante espólio de olaria, retratando hábitos antigos de uma região moldada pelo barro.