O que é um culto Reformado? — Daniel Hyde

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GRÁTIS PREFÁCIO INTRODUÇÃO E CAPÍTULO 1



O Que é O Culto Reformado? Traduzido do Inglês: What is Reformed Worship? © 2014, Editora os Puritanos/Clire Traduzido e Publicado no Brasil com a devida autorização do autor Daniel R. Hyde 2ª Edição em Português - Agosto de 2012 – 1.000 exemplares 1ª Edição Digital em Português - Março de 2014 É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem a autorização por escrito dos editores, exceto citações em resenhas. EDITADO EM PORTUGUÊS POR Manoel S. Canuto TRADUZIDO POR Josafá Vasconcelos REVISADO POR Márcio Santana Sobrinho CAPA E MIOLO Heraldo F. de Almeida

Hyde, Daniel R.. 2012 O que é o Culto Reformado?/Daniel R. Hyde Recife, PE: Editora Os Puritanos/Clire, 2012 80 p.: 14 x 21 cm Tradução do original em inglês What is Reformed Worship? ISBN: 978-85-62828-18-8 1. Culto Bíblico 2. Culto Pactual 3. Culto Evangélico 4. Culto Histórico 5. Culto Litúrgico 5. Culto Reverente

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Prefácio

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culto a Deus é uma assembleia solene e uma santa convocação. Vivemos toda a nossa vida perante o Senhor, mas em certos momentos entramos em sua presença de uma forma especial. Era assim no Antigo Testamento quando o povo pactual estava sempre perante o Senhor, mas tinha momentos especiais de encontro com o Deus da aliança. Isso se chamava de assembleia solene ou santa convocação. No Antigo Testamento o povo de Deus, o povo pactual, é chamado para cultuar. No Salmo 50 Deus chama seu povo e o reúne para “conversar” e para mostrar que tipo de culto seu povo deve prestar-lhe. Neste salmo Deus reclama do seu povo por fazer tudo externamente certo, mas não se achegar a ele com o coração correto. O povo estava tratando Deus como se tratava qualquer dos deuses pagãos e ainda esperava que ele respondesse dando-lhe bênçãos e aquilo que desejavam. Deus fica irado com este tratamento do seu povo. Veja como ele chama seu povo a estar em sua presença: Vem o nosso Deus e não guarda silêncio; perante ele arde um fogo devorador, ao seu redor esbraveja grande tormenta. Intima os céus lá em cima e a terra, para julgar o seu povo. Congregai os meus santos, os que comigo fizeram aliança por meio de sacrifícios. Os céus anunciam a sua justiça, porque é o próprio Deus que julga. Escuta, povo meu, e eu falarei; ó Israel, e eu testemunharei contra ti. Eu sou Deus, o teu Deus (Sl 50.4-7)


O que é o culto reformado?

Vemos aqui que o povo de Deus é santo e pactual e que Deus tem com este povo um encontro pactual quando o convoca e lhe diz qual o culto correto e como deseja ser adorado. Neste contexto ele se apresenta como um fogo consumidor. Estes elementos voltam a acontecer no Novo Testamento, quando o apóstolo explica em Hebreus 12.29 a razão pela qual devemos cultuar de uma forma que agrada a Deus: “porque o nosso Deus é fogo consumidor”. O povo da aliança, portanto, é chamado para cultuar a Deus com santa reverência e temor. Quem é este povo da aliança? Quem faz parte do povo do pacto? Deuteronômio 29.9-13 nos diz que Deus está firmando uma aliança com os líderes, os homens, mulheres, crianças, e até com os servos, pois no Antigo Testamento o servo para todos os efeitos era considerado como parte da família. No Novo Testamento Deus chama seu povo, sua congregação pactual ― hakahall. Em Hebreus 12 temos ecos do Salmo 50 e do que aconteceu no Monte Sinai em Êxodo. O Salmo 50 tem os mesmos elementos. Deus é um fogo consumidor (v. 3) e que vem julgar (v. 4) e falar com seu povo no âmbito pactual exigindo deles o culto que lhe é devido. Um culto santo, agradável e aceitável aos seus olhos. O apóstolo mostra, porém, que no Novo Testamento o caráter do culto solene se torna ainda mais profundo e tremendo. Desde o Antigo Testamento já era necessário obedecer e atender à santa convocação do Senhor. Quando Deus convocava seu povo diante do Monte Sinai que fumegava, relampejava, trovejava e via-se a presença dos anjos (At 7.53; Hb 2.2; Dt 33.2), quem ousaria dizer “não, não posso ir ao culto, pois tenho outros compromissos? Acho que papai e mamãe irão, mas eu tenho alguma coisa a comprar no shopping”. Que nada! Deus estava convocando seu povo e ai daquele que não obedecesse ao seu chamado! Se naquela época era impensável se desprezar a santa convocação, quanto mais hoje? Um estudo bíblico não é um culto solene. Uma noite de louvor não é uma santa convocação. Um culto solene, propriamente dito, é o momento quando Deus convoca o seu povo para estar na sua presença. É o equivalente neotestamentário ao momento quando no Velho Testamento o sumo sacerdote entrava além do véu no Dia

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Prefácio

da Expiação. Temos que entender que no culto neotestamentário da Igreja de Deus, no Templo do Espírito Santo, na Congregação do Senhor, o povo de Deus está reunido diante da verdadeira arca, no Santo dos Santos celestial. Deus vem falar com seu povo. É um encontro pactual entre o Deus do universo e o povo pelo qual seu Filho derramou seu sangue. Isto é um culto! E quando Deus convoca seu povo, ai daquele que não aparecer. Se no Velho Testamento você poderia morrer sob o testemunho de duas ou três testemunhas por quebrar a Lei de Moisés, quanto mais aqueles que não querem ouvir a voz de Deus hoje. Deus é um fogo consumidor ainda hoje no Novo Testamento. Ele não mudou! Recentemente estive conversando com um pastor que antes não conhecia as doutrinas da graça e agora é Reformado. Este conhecimento mais profundo dos ensinamentos das Sagradas Escrituras trouxe muitas mudanças na vida deste pastor e da igreja que pastoreia. O conceito de culto também mudou quando eles entenderam o culto solene como um encontro santíssimo e um diálogo pactual entre Deus e seu povo. Quando lhe indaguei sobre a mudança mais expressiva decorrente da reforma pela qual passaram, ele não hesitou em responder: “Pela primeira vez sentimos a santa presença de Deus em nossos cultos de uma forma nunca experimentada antes”. Na tentativa de reformar a Igreja brasileira nós reformados temos escrito e falado muito sobre o Princípio Regulador do Culto que afirma que na adoração só é permitido fazer aquilo que Deus diz, e isto é muito correto. É um princípio da Reforma que diz que quem define os termos de como ter comunhão com Deus no culto solene é o próprio Deus — Ele é o grande Rei que dita as normas e nós somos o rei vassalo que obedece. Imagine um rei vassalo que foi subjugado pelo Rei vitorioso e dele recebe a lista de suas atribuições e deveres, mas também a lista das promessas de proteção feitas por este grande Rei. Tente imaginar aquele pequeno rei-perdedor da batalha dizendo ao grande Rei-vencedor: “Isso deve ser assim, você deve ficar sentado aqui e eu vou subir ali, pois quero cantar alguns cânticos para você...”. Ele nunca ousaria fazer isso, ao contrário, chegaria com o rosto no pó e esperaria com temor e tremor aquilo que o Rei poderoso determinaria. Aplicar este princípio sem entendimento, porém, torna-se mero legalismo vazio que em

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nada edifica a Igreja. Antes de exigir este princípio e sua aplicação, o povo precisa saber o que é um culto e entender que no culto a Igreja está diante da presença do Santíssimo, um encontro entre Deus e seu povo, entre Jesus e sua noiva. Creio que este pequeno livro do Pr. Hyde nos mostrará o real sentido e importância do culto pactual. Nos mostrará a tradição e herança cúltica deixada por nossos pais reformados e seu valor para os nossos dias. Com santa reverência, temor e tremor, atenda a voz de Deus convocando-o a adorá-lo, mas experimentando o que o salmista diz: “Alegrei-me quando me disseram: Vamos à Casa do Senhor”; “Celebrai com júbilo ao Senhor, todas as terras. Servi ao Senhor com alegria, apresentai-vos diante dele com cântico. Sabei que o Senhor é Deus; foi ele quem nos fez e dele somos; somos o seu povo e rebanho do seu pastoreio” (Sl 122.1; 100.1-3). Quando entendemos que o culto bíblico é um solene encontro com o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, o Nosso Pai celestial, o Amado de nossas almas, que está assentado no trono do universo; aquele em cujo sangue obtemos perdão e, portanto, ousadia para entrarmos na sala do próprio Deus, unimos nossa reverência e temor à uma indizível alegria. Este é um ponto que devemos enfatizar. A alegria no culto será cultivada e expressa somente quando as pessoas estiverem profundamente convictas dos seus pecados e miséria. Nas palavras de Calvino citadas pelo Pr. Hyde: Exortamos os homens a que não adorem a Deus de modo frígido e descuidado, e enquanto apontamos o modo, não podemos perder de vista o fim, nem omitir qualquer coisa que diga respeito àquilo que apontamos. Proclamamos a glória de Deus em termos muito mais elevados do que estávamos acostumados a proclamar antes, e com todo vigor trabalhamos para tornar as perfeições nas quais a glória de Deus brilha mais e mais conhecidas. Exaltamos tão eloquentemente quanto podemos seus benefícios a nós, ao tempo em que conclamamos outros a reverenciar sua majestade, render a devida homenagem à sua grandeza, sentir a devida gratidão por sua misericórdia, e nos unirmos em seu louvor. Pr. Kenneth Wieske Recife, 02 de Março de 2012

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Sumário Prefácio......................................................................... 7 Introdução................................................................. 13 1. O culto reformado é bíblico.............................. 15 Uma congregação da Palavra............................................. 15 Um culto pela Palavra......................................................... 16 A suficiência das Escrituras............................................... 20 Os elementos de culto......................................................... 22 2. O culto reformado é pactual............................ 25 Uma categoria bíblica para o culto................................... 25 Culto pactual........................................................................ 27 Forma versus substância.................................................... 28 Cerimônia de renovação do pacto.................................... 32 3. O culto reformado é evangélico...................... 37 Os crentes também necessitam do evangelho................. 39 Evangelizar através da igreja.............................................. 39 Dois extremos ..................................................................... 46 4. O culto reformado é histórico......................... 47 Catolicidade......................................................................... 48 Exemplos do culto da igreja antiga................................... 49


5. O culto reformado é alegre.............................. 59 Falando biblicamente de reverência e alegria.................. 60 Objetividade e subjetividade no culto.............................. 61 Algumas formas de manifestar alegria............................. 63 6. O culto reformado é litúrgico......................... 69 Liturgia é algo enfadonho?................................................. 70 Qual o propósito de uma liturgia bíblica reformada?.... 71 O fluxo básico...................................................................... 72 7. O culto reformado é reverente........................ 81 Culto da Antiga Aliança versus Nova?............................. 81 Um encontro com Deus .................................................... 83 Uma ruptura com o mundo............................................... 85 Reverência na liturgia ........................................................ 88


Introdução

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or que o culto em uma igreja Reformada é tão diferente do culto da maioria das outras igrejas a que tenho ido?” Não posso dizer quantas vezes ouço visitantes fazerem essa pergunta. Tenho percebido que o que mais impressiona as pessoas a respeito de uma igreja Reformada não é a nossa doutrina, mas o nosso culto – que parece, a princípio, algo estranho e até mesmo frio para muitos. Devemos explicações aos inquiridores sérios não somente sobre o que fazemos no culto, mas quanto ao por quê. A Bíblia exige que nosso culto seja racional.1 Os filhos perguntavam para seus pais, quando celebravam a Páscoa, 3.500 anos atrás: “Que rito é este?” (Êx 12.26). Conquanto a adoração ao Deus Triuno seja profundamente transcendente e misteriosa, é necessário que seja compreensível. Isto foi o que o apóstolo Paulo ensinou em sua primeira carta aos Coríntios, quando disse que a pregação em línguas estranhas, comumente chamada de “línguas”, precisava ser interpretada para edificação daquela assembleia. Este estudo tem o propósito de apresentar as bases do culto Reformado, de tal forma que você esteja preparado para explicar por que nós, igrejas Reformadas, temos o culto que temos. Faremos isso examinando sete características do culto Reformado: ele é bíblico, pactual, evangélico, histórico, alegre, litúrgico, e reverente. 1 Para uma introdução extremamente breve aos princípios e práticas do culto Reformado escrita para não-cristãos ou recém-chegados na igreja Reformada, ver Daniel R. Hyde, What to Expect in Reformed Worship: A Visitor’s Guide (Eugene: Wipf & Stock, 2007).



1. O culto reformado é bíblico Uma congregação da Palavra

Como igrejas Reformadas, fazemos o que fazemos no culto por causa das Santas Escrituras. Obviamente, toda igreja que crê na Bíblia hoje, diz: “Nosso culto é bíblico!” Afinal de contas, quem quer um culto que não seja bíblico? Como cristãos reformados, somos diligentes em glorificar nosso Deus zeloso da forma como ele nos ordenou. Esta é a razão de dizermos que nosso culto é bíblico. Contudo, o que isso significa? Com o que este culto se parece? Primeiro, a Escritura descreve a Igreja como uma comunidade de fé. Porque o Espírito Santo cria e forma a fé pela Palavra (Rm 10.17), ouça como o apóstolo Paulo, em suas epístolas pastorais, fala da Igreja como sempre aprendendo e sempre ensinando o seguinte: palavras da fé (1Tm 4.6), sã doutrina (1 Tm 1.10; Tt 1.9; 2.1), ensino sadio (2Tm 4.3), sãs palavras (1Tm 6.3; 2Tm 1.13), a boa doutrina (1Tm 4.6), o bom depósito (2Tm 1.14) o mistério da fé (1Tm 3.9) e a palavra fiel (Tt 1.9). Com o fim de aprender essas “palavras de fé” e ter a palavra de Cristo habitando ricamente em nós (Cl 3.16), nos reunimos em uma comunidade, como Israel fez no deserto depois de sair do Egito. A história do livro do Êxodo mostra a igreja do Antigo Testamento reunindo-se ao pé do Monte Sinai em adoração. Nós, como povo da Nova Aliança de Deus, reunimo-nos em adoração e chegamos ao “monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial” (Hb 12.22). Por isso, a marca do Culto Reformado é sua saturação das Escrituras. Os cultos em Estrasburgo, Genebra, Heidelberg, e o Livro


O que é o culto reformado?

Comum de Orações na Inglaterra estão repletos de textos das Escrituras e alusões escriturísticas. Em tempos de analfabetismo bíblico, precisamos de um culto cheio das Escrituras, com uma linguagem escriturística em cada aspecto, das leituras responsivas e cânticos, às orações e leituras bíblicas propriamente ditas. Como alguém já disse: “Não teremos Jesus Cristo no centro do nosso culto se a Palavra dele não estiver no centro”.2 Robert Godfrey também pergunta: “Se não estamos interessados na Palavra de Deus, poderemos estar realmente interessados em Deus?”.3 Portanto, em nosso culto de adoração temos de ler, pregar, orar, cantar e ver, nos sacramentos, a Palavra. Alem do mais, necessitamos de base escriturística para o culto porque a Escritura nos ensina a estrita ligação da Palavra com o Espírito de Deus. A Bíblia desconhece a falsa dicotomia entre uma igreja que foca na Palavra e outra no Espírito, como se ambos fossem mutuamente excludentes. Ao invés disso, o que aprendemos da Escritura (Sl 33.6; Is 34.16; 59.21; 61.1; Jo 3.34, 6.63; Tg 1.18; 1Pe 1.23) é que onde a Palavra está, ali está o Espírito.

Um culto pela Palavra

Segundo, nosso culto é bíblico por causa daquilo que determina o que fazemos na adoração. O culto não é determinado pelo que “funciona” para atrairmos um vasto número de pessoas, ou o que é agradável, ou mesmo o que possamos ou não gostar. Antes, é a Bíblia que regula o nosso culto. Esta é a razão porque afirmamos que os presbíteros das igrejas são os supervisores do culto público, o qual “deve ser conduzido de acordo com os princípios ensinados na Palavra de Deus”.4 O Culto Reformado é bíblico porque cremos que Deus mesmo nos concedeu cada coisa que temos de fazer no culto público (os “elementos” de culto). Chamamos a isso de “Princípio Regulador do Culto”. Significa que Deus regula, em sua Palavra, como temos de adorá-lo. Deus é um Deus que zela pelo seu Nome, que deve 2 Mark Ashton with C. J. Davis, “Following in Cranmer’s Footsteps,” in Worship by the Book, org. D. A. Carson (Grand Rapids: Zondervan, 2002), p. 82. 3 Robert Godfrey, Pleasing God in Our Worship, Today’s Issues, org. James Montgomery Boice (Wheaton: Crossway Books, 1999), p. 32. 4 Chruch Order of the United Reformed Churches in North America (URCNA), Art. 38.

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ser reverenciado e santificado (Êx 20.7; 34.13-14; Dt 4.24; Mt 6.9 cf. Catecismo Maior de Westminster, Pergunta 110), e quando somos zelosos pela sua glória, adorando-o como ele merece e deseja, servimos “a Deus de modo aceitável, com reverência e santo temor” (Hb 12.28). Afinal de contas, Deus é Deus, o que significa que tem o direito de ser adorado como ele mesmo requer. O segundo mandamento Onde encontramos este princípio ensinado na Palavra de Deus? Há muitos lugares nas Escrituras, mas vamos focar em uns poucos exemplos. No primeiro mandamento, o único e verdadeiro Deus, que nos redimiu para sermos um povo adorador, um “reino de sacerdotes” (Êx 19.6; 1Pe 2.9), ordena que adoremos somente a ele: “Não terás outros deuses diante de mim”. No segundo mandamento, este Deus único e verdadeiro nos diz qual a maneira de adorá-lo, afirmando como não devemos fazê-lo: “Não farás para ti imagens de escultura” (cf. Dt 4.15-19). Positivamente, isto nos ensina que temos de adorar a Deus conforme sua Palavra. Vemos isso nas próprias palavras do segundo mandamento, onde se diz que a “benignidade” do Senhor é sobre aqueles que “me amam e guardam os meus mandamentos” (Êx 20.6). Intrinsecamente ligada à proibição de fazer imagens do Senhor está a linguagem que ordena fazer o que o Senhor diz em sua Palavra. Da mesma forma, o livro de Levítico expressa esse aspecto positivo quando menciona repetidamente que o culto é “segundo o rito” (e.g.: Lv 9.16 cf. Lv 10.1; Dt 12.29-32). Portanto, todo culto que não é “segundo a Escritura” é, como Paulo denomina, “culto de si mesmo” (Cl 2.23). No final do décimo mandamento, esse assunto é afirmado de forma inesquecível: “Se fizeres um altar de pedra, não o farás de pedras lavradas; pois se manejares a tua ferramenta, profaná-lo-ás” (Êx 20.25). Se um ancião israelita imaginasse que poderia melhorar o culto ordenado lavrando um altar mais bonito, deveria saber que uma marquinha adicionada pela mão do homem ao mandamento de Deus significaria completa contaminação. Quando os homens tentam melhorar o culto, eles o arruínam ao invés de melhorá-lo. Este mandamento é imposto sobre o povo de Deus com a injunção de que o Senhor é um Deus “zeloso”. Essa é a linguagem do

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casamento. O Senhor abandonou todos os outros pela sua noiva, Israel, e somente a ela ama e deseja. Então, chegado o culto, ele espera e deseja que Israel responda com o mesmo zelo. Caim e Abel Adoração a Deus “segundo o rito” é também a essência da história de Caim e Abel em Gênesis 4. Caim era um trabalhador do campo, “lavrador”, enquanto seu irmão Abel estava envolvido na vida pastoril, um “pastor de ovelhas” (Gn 4.2). Caim ofereceu a Deus uma oferta “do fruto da terra”; Abel ofereceu “das primícias do seu rebanho e de suas gorduras” (Gn 4.3-4). Deus aceitou a oferta de Abel, mas não aceitou a de Caim (Gn 4.4-5). Ambos ofereceram um ato de culto. Ambos pareceram “sinceros” – o que é, para muitos hoje, o único princípio que deve nortear o culto. Contudo, a razão porque Deus aceitou a oferta de Abel e não a de Caim foi que Abel ofereceu o que Deus ordenou, isto é, o melhor que ele tinha. O melhor, e tão somente o melhor, é apropriado para o culto. Caim, por sua vez, ofereceu o que pensou que funcionaria, ou, que julgou ser o melhor. Abel ofereceu “o primogênito” do seu rebanho e “sua gordura”. Estes são os termos usados mais tarde na lei quando Deus deu instruções sobre oferecer “o melhor das primícias da terra” (Êx 34.26), bem como os primogênitos dos animais (Êx 34.19; Lv 27.26). Contudo, devemos ter em mente que a simples realização do rito é sem sentido se a fé estiver ausente. Como Hebreus 11:4 nos ensina, foi pela fé que Abel ofereceu um sacrifício mais aceitável e foi através dela que Deus testificou ser ele justo. Pela fé, Abel entendeu que assim como o Senhor Deus poupou a Adão e Eva pelo sacrifício de um animal em seu lugar, cobrindo-os com sua pele (Gn 3.21), assim também ele somente poderia ser aceito através do sacrifico de outro que deveria tomar o seu lugar e fazer satisfação pelos seus pecados. Nadabe e Abiú Na bem conhecida, mas não menos temida história de Nadabe e Abiú em Levítico 10, nos lembramos de que eles “trouxeram fogo estranho perante a face do Senhor, o que lhes não ordenara” (v.. 1). Nos versos precedentes, lemos que Arão, pai de Nadabe e Abiú, ofereceu os primeiros sacrifícios da vida litúrgica de Israel. No caso de

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Arão, “veio fogo da parte do Senhor e consumiu o sacrifício...” (Lv 9.24), mas no caso de Nadabe e Abiu, “veio fogo da parte do Senhor e os consumiu” (Lv 10.2). Arão e seus filhos eram sacerdotes e ofereciam sacrifícios, contudo, a razão para as diferentes respostas foi que Arão ofereceu “como o Senhor ordenara... segundo o rito” (Lv 9.10, 16), enquanto Nadabe e Abiú “fogo estranho”, isto é, um culto não ordenado e, por isso mesmo, proibido. A história de Nadabe e Abiu é narrada no contexto referente ao culto ao Senhor de acordo com sua Palavra, não segundo o próprio desejo de alguém, mesmo que sincero. Oferecer culto não prescrito era profanar o Senhor e detratar a sua glória. Esta é a razão porque o Senhor, através de Moisés, disse a Arão, depois que Nadabe e Abiú foram consumidos: “Mostrarei a minha santidade naqueles que se acheguem a mim e serei glorificado diante de todo o povo” (Lv 10.3). Por causa da santidade e glória de Deus, Javé prescreveu não somente que Israel tinha que adorá-lo, mas também como deveriam fazê-lo. Assim, o tabernáculo deveria ser feito “de acordo com o modelo que te foi mostrado” (Hb 8.5 cf. Êx 25.9, 40; 26.30; 27.8; Nm 8.4; At 7.44) e os atos de culto, os sacrifícios, deveriam ser oferecidos “segundo o rito” (Lv 5.10; 9.16). O Novo Testamento “Mas isso é o que o Antigo Testamento ensina”, você pode estar pensando. Contudo, Jesus disse: “Ide e fazei discípulos de todas as nações, batizando-os... ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28.19-20). A solene exigência de que a Igreja ensine todas as coisas que Cristo tem ordenado não seria, ao mesmo tempo, uma solene proibição de ensinar qualquer coisa não ordenada? Se, no culto de Deus, observamos tudo que Cristo tem ordenado, não deveríamos também escrupulosamente evitar toda e qualquer coisa que ele não tenha ordenado? Jesus disse que os fariseus adoravam a Deus “em vão” (Mc 7.7). Por que, então, Deus rejeitou o culto deles? Porque, disse Jesus, “negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens” (Mc 7.7-8). Eles adoravam a Deus em vão porque, em vez de agirem como lhes era requerido, faziam conforme desejavam. Da mesma forma o apóstolo Paulo exorta os Colossenses: “Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextan-

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do humildade e culto dos anjos, baseando-se em visões, enfatuado, sem motivo algum, na sua mente carnal” (Cl 2.18). Este era o tipo de culto oferecido, não como Deus ordenou, mas como eles desejavam: “Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia não têm valor algum contra a sensualidade” (Cl 2.23). Sem dúvida Jesus foi rude quanto aos nossos padrões quando disse à mulher do poço, “Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos Judeus” (Jo 4.22). Contudo, ele apenas estava sendo verdadeiro. “Deus é espírito”, disse ele, e “importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4:24). O verdadeiro culto era impossível para os samaritanos porque eles adoravam a Deus como desejavam. Eles precisavam adorar a Deus como estava ordenado para que pudessem ser aceitos por ele. “Porque são estes que o Pai procura para seus adoradores”, disse Jesus. “Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (4.23). Quando persistimos em adorar o Pai como queremos, ao invés de fazê-lo de acordo com a vontade dele, não somos “verdadeiros adoradores”. Em Romanos 1.21-25, o apóstolo Paulo condena todo tipo de adoração inventada pelos homens. Ele também revela a fonte de todo culto falso. Os homens se tornaram “vãos em suas imaginações”, diz ele. Inventaram com sua vã imaginação quais seriam as “boas maneiras” de adorar. Adoram como desejam e não como Deus ordena. Mas quando fazem isso, realmente estão “adorando e servindo a criatura em lugar do Criador”, diz Paulo, e são, “por isso, indesculpáveis”. Eles estão sem desculpa, porque não há desculpa para se apartar da regra, que diz: “não podemos adorar a Deus de qualquer outra maneira não prescrita em sua Palavra”.

A suficiência das Escrituras

A terceira razão por que dizemos que o culto Reformado é bíblico é que, como Protestantes Reformados, cremos que somente as Escrituras são suficientes para nos ensinar a quem, o quê, quando, onde e o porquê do culto. Somente a Escritura é nosso guia infalível para ensino, de teologia e doutrina; e para a vida, experimental e prática. Uma vez que esta Palavra é suficiente para a nossa

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salvação e vida cristã, então, certamente é tudo o que precisamos para adorar a Deus como ele deseja e merece. A única forma que conhecemos para adorá-lo é através de sua própria revelação na Palavra, que é suficiente para ensinar-nos a respeito disso (2Tm 3.16-17). Uma vez que a distância entre nós e Deus é infinita, não temos como saber o que lhe agrada na adoração, a não ser através do que ele mesmo revelou. As confissões reformadas expressam esta doutrina da suficiência das Escrituras e sua aplicação no culto, dizendo: Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela (Confissão de Fé de Westminster, I.6). Só Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e dos mandamentos humanos que, em qualquer coisa, sejam contrários à sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou de culto, estejam fora dela (Confissão de Fé de Westminster, XX.2). ...o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo, e é tão limitado pela sua vontade revelada, que ele não deve ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens, ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras (Confissão de Fé de Westminster XXI.1). Cremos que esta Sagrada Escritura contém perfeitamente a vontade de Deus e suficientemente ensina tudo o que o homem deve crer para ser salvo. Nela está detalhado e escrito cabalmente o modo de adoração que Deus requer de nós (Confissão Belga, art. 7). Cremos que os que governam a igreja devem a todo instante vigiar para que, naquilo que fazem, não se desviem das ordenanças de Cristo, nosso único Mestre — embora seja útil e bom que imponham à igreja certa ordem para conservação dela mesma. Por isso rejeitamos a todas as invenções e leis humanas introduzidas no culto a Deus que, de qual-

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quer modo, obriguem ou forcem as consciências. Só aceitamos aquilo que for apropriado para preservar e promover a unidade e tudo guardar em obediência a Deus, ainda que para isso seja necessário exercitar a disciplina e a excomunhão, de acordo com a Palavra de Deus (Confissão Belga, art. 32). Que exige Deus no segundo mandamento? Resposta: Que não façamos a imagem de Deus em hipótese alguma, nem o adoremos de nenhum outro modo diferente do que nos ordenou em sua Palavra (Catecismo de Heidelberg, P. 96).

Os elementos de culto

Finalmente, nosso culto é bíblico por causa daquilo que compõe nossa liturgia. Os “elementos de culto” são tudo aquilo que a Escritura nos ordena fazer no culto público. Por exemplo, Atos 2.42 nos dá um esboço descritivo do culto nas primeiras congregações cristãs. Aqui lemos que os cristãos primitivos devotavam-se à “comunhão”, que é o vínculo de amor que existe entre os membros da igreja, como expresso no dar esmolas. Como uma comunhão de crentes, eles também se devotavam ao ensino dos apóstolos (a Palavra), ao partir do pão (a Ceia do Senhor, como o texto grego diz “o pão”), e às orações. As categorias gerais de um culto aceitável são a Palavra, os sacramentos, a oração e as ofertas. Essas categorias foram usadas por João Calvino em seu Prefácio ao Saltério, bem como pelo Catecismo de Heidelberg, P. 103. A categoria da Palavra inclui muitos elementos. Na prática histórica Reformada, o culto começa com a Escritura, sejam as palavras batismais de Jesus, a la Estrasburgo (Mt 28.19), ou o votum de Genebra: “Nosso socorro vem do Senhor que fez o céu e a terra” (Sl 124.8). Em nossos dias, a maioria das igrejas Reformadas começa o culto com a própria Palavra de Deus invocando seu povo à adoração num chamado escriturístico para o culto (e.g.: Sl 95). O ministro, então, pronuncia as palavras de saudação de Deus (e.g.: 1Tm 1.2; Ap 1.4-5). Então lê-se a Lei de Deus (Êx 20; Dt 5) juntamente com o sumário da Lei segundo Jesus (Mt 22.37-39). Após a confissão de pecados, as igrejas que seguem o modelo histórico Reformado têm alguma forma de “Declaração de Perdão” (baseada em Mt 18.18; Jo

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O Culto Reformado é Bíblico

20.23) na qual um outro texto da Escritura (e.g.: 1Jo 1.9) prometendo as boas novas é lido e aplicado para os ouvintes. Cantam-se as palavras da Escritura nos Salmos, cânticos bíblicos, e hinos baseados na Bíblia; confessa-se a Palavra conforme resumida no Credo dos Apóstolos ou no Credo Niceno; ouve-se a Escritura, lida e proclamada (1Tm 4.13); ouvem-se as palavras de instituição da Ceia do Senhor e recebem-se as palavras da Bênção (Nm 6.24-26; 2Co 13.14). Nosso culto, então, é um culto bíblico porque seu conteúdo é realmente “segundo o rito” (Lv 9.16). Na categoria dos sacramentos temos a administração dos dois sacramentos da Nova Aliança, batismo e Santa Ceia, que foram dados por ordenança de Cristo (Mt 28.18-20; Lc 22.17-20; 1Co 11.23-26), “segundo o rito”. Seguindo a divisão de João Calvino, sob a categoria da oração estão os dois maiores tipos de oração: orações faladas e orações cantadas. As faladas são orações escriturísticas tais como as de intercessão (e.g.: 1Tm 2.1), confissão (e.g.: Sl 51), iluminação (e.g.: Sl 119), e adoração (e.g.: 2Cr 6.12-42; Sl 8). As orações cantadas ocorrem quando a congregação oferece orações em forma de cântico de Salmos, hinos e cânticos espirituais (Ef 5.19; Cl 3.16). Os Salmos, especialmente, têm sido o hinário inspirado do povo pactual de Deus por 3.000 anos. Durante a Reforma Protestante, uma das mais radicais reformas que sacudiu a terra, foi feita a tradução e metrificação dos Salmos para cântico dos leigos. Nossos antepassados insistiram nesta reforma, pois, como Paulo ensina, através do cântico de Salmos, hinos e cânticos espirituais nos edificamos uns aos outros (Ef 5.19; Cl3.16). Finalmente, a prática da “caridade cristã” (Catecismo de Heidelberg, P. 103; Fp 4.10-20), que é a coleta para os que estão em necessidade, é um elemento de culto conforme Atos 2.42. Isto pode também estar na categoria da oração, uma vez que a oferta é um voto de ação de graças ao Senhor (Sl 116.18; 1Co 16.2). As igrejas Reformadas fazem o que fazem no culto por causa da Bíblia. Afinal de contas, a própria Bíblia fala do culto cristão como sendo “de acordo com o rito”, por causa da santidade de Deus, da mesma forma como se fez no culto de Israel em Levítico 9-10:

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O que é o culto reformado?

“Por isso, recebendo nós um reino inabalável, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus de modo agradável, com reverência e santo temor; porque o nosso Deus é fogo consumidor” (Hb 12.28-29)

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