Livro melodias imortais

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S A N R E T E S A I D MELO nce musical um roma



Antônio Marcus Carvalho Machado

S A N R E T E S A I D MELO musical ce n a m o r m u

1ª Edição


Copyright 2015 by Antônio Marcus Carvalho Machado 1ª edição Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização expressa do autor. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Edição: Antônio Marcus Carvalho Machado Revisão: Mária Lacerda Santos Neves Capa: Directa Design (Bruno Dias e Higor Ferraço) Projeto gráfico e editoração: Directa Design (Bruno Dias e Higor Ferraço) Arte interna: Directa Design (Bruno Dias e Higor Ferraço) sobre foto de Daniella Spadeto com matérias publicadas pelo autor no jornal A Gazeta Foto da orelha: Daniella Spadeto Catalogação na fonte Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo


SUMÁRIO


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melodias eternas


Escrever esse livro foi uma sensação inenarrável. Por mais que eu tivesse o dom de Scott Fitzgerald, Oscar Wilde, Hemingway, Flaubert (meu ídolo), Proust, Cervantes, Machado de Assis, Eça, Vinícius ou tantos outros escritores imortais, eu nunca conseguiria transpor para essas páginas a emoção de reviver um tempo que se fez mais que o próprio tempo, se fez a eternidade em que repousam placidamente a saudade, a lágrima e o sorriso de cada um que o compartilhou. Mas, mesmo sem o brilho dos grandes escritores, tentei e nasceu esse livro. Pedaços de prosas e versos irrigaram meu coração e minha alma, delineando partículas memoriais que se aglutinam em imaginárias partituras musicais. Não escrevi um livro, penso eu. Escrevi uma modesta sinfonia. Sem a pretensão de ser Mozart, Beethoven, Liszt ou Villa-Lobos. Escrevi uma modesta ópera. Sem a pretensão de ser Puccini ou Verdi. Minha intenção foi somente, e humildemente, passear pelo passado musical dos anos 1940, 50 e 60 em Vitória e Vila Velha. Fui apenas um mero catador de notas musicais, em forma de palavras e fotos, levadas pelo vento do tempo, como partículas musicais. Partículas de Melodias Imortais.



CAPÍTULO 1

INFÂNCIA MUSICAL

P

erto da Primavera de 1954, em uma noite de agosto, na cidade de Vitória, uma ilha capixaba, eu vim ao mundo. Morávamos na Rua Santa Cecília, lá na ladeira Santa Clara, com sua inclinada escadaria que leva ao Parque Moscoso. Antes, havíamos morado no final da Rua Sete, perto da escadaria do Morro da Piedade. Seis meses depois meus pais mudaram para Vila Velha, município vizinho, para uma pequena casa com um lindo e comprido quintal onde aprendi a dar os meus primeiros passos e construir minhas primeiras lembranças. Das memórias de meus seis anos de idade, eu me lembro de um sábado primaveril em que os dourados raios de luz solar invadiam a sala e destacavam o amarelo ouro dos tacos de peroba do campo, em contraste com o preto intenso dos tacos de braúna, todos encerados e reluzentes naquela manhã. Era nos sábados tão esperados que a música vinda da eletrola, um móvel alto, de jacarandá, que trazia em seu interior um rádio e um toca discos Garrard, ecoava pela casa. Caçula de uma família de nove irmãos com seis homens e três mulheres, eu cresci ouvindo os discos que meu pai, Francisco Machado, e meus irmãos colocavam para tocar aos sábados de manhã, logo após acabar o barulho leve do vai-e-vem do pesado escovão que lustrara o assoalho. Havia sempre um cheiro de óleo de peroba nos móveis, e das plantas vinha o cheiro da terra molhada pelos banhos de um regador de mão. Das árvores no quintal, especialmente de um frondoso pé de jamelão, vinha o farfalhar das folhas iluminadas pelo sol da manhã, e o canto dos sanhaços e dos bem-te-vis que saltitavam de galho em galho. Além da nossa cerca de madeira, esquecido em um canto sombreado do terreno vizinho, um carregado pé de abil nos desafiava a


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lhe pegar algumas frutas, mas um pequeno pé de amoras em nosso próprio quintal já nos divertia bastante. E ficava enciumado quando o preteríamos. Assim como as amoras deixavam a boca avermelhada, os jamelões a deixavam com um azul quase anil, talvez roxo. Difícil depois era tirar essas cores de nossas roupas infantis, para desespero de Catarina, nossa empregada doméstica que muitos anos depois eu viria a reencontrar, pois ela assistiu a uma entrevista que dei na televisão e conseguiu meu telefone, marcando um encontro para lembrar aqueles tempos, quando a rua ainda não tinha calçamento e brincávamos de “ferrinho”, “bolinha de gude”, “queimada”, e por onde passavam os carrinhos de lata, enfileirados por arcos de arame. Também, de pique-esconde. Só mais tarde eu saberia que pique vem de “pick” em inglês, que significa pegar, tocar. E, claro, as brincadeiras de faroeste, “camone boy”, cujo nome vem do inglês “Come on, boy” que significa “vamos, rapaz” e se ouvia nos filmes de faroeste, que, por sua vez, vem de “Far West”, o distante oeste a ser conquistado pelos norte-americanos. Frutas nos quintais, pássaros a cantar e mil brincadeiras de ruas. Assim eram aqueles meus tempos de infância. Tempos em que as manhãs de sábado tinham sonhos, brincadeiras, luminosidades, cheiros e sons inesquecíveis. Sons esses que, além da natureza, vinham dos discos de vinil. Depois de voltar da feira, onde comprava um cento de laranja seleta, manga espada ou manguita, dúzias de banana prata ou nanica, hortaliças, queijo, goiabada cascão e um pouco de rapadura ou melado de cana de açúcar para comer com banana, meu pai gostava de ouvir seus discos. No início, quando eu era apenas um recém-nascido, havia aqueles de 78 rotações, que ainda tenho alguns, de um acetato grosso e que facilmente quebrava, com as vozes de Orlando Silva, Ângela Maria (a Sapoti, para Getúlio Vargas), Emilinha Borba, Elizeth Cardoso, Dóris Monteiro, Dolores Duran, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Silvio Caldas, Tommy Dorsey, Freddy Gardner, Antonio Rago, Mel Tormé, Pedroca e seu conjunto tocando Moonglow do filme “Férias de Amor” e muitos outros. Segundo minha irmã Wanda, Francisco Alves era o grande ídolo de meu pai. Gravou muita composição de Lupicínio Rodrigues e uma das que meu pai mais gostava de ouvir era Cadeira Vazia, lançada em 1949, como viria a me dizer um antigo seresteiro e amigo de nossa família, o Thompson, filho do faroleiro do farol de Santa Luzia, que durante muitos anos cantou em serestas lá em casa, quando exibia humildemente a sua voz incomparável.


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Wolney, meu irmão primogênito, serviu na Aeronáutica do Rio de Janeiro de 1952 a 1954, e me disse que certa vez foi ao auditório da antiga Radio Nacional, em 1952, ouvir Francisco Alves, no programa “Variedades Manoel Barcelos” que fazia tanto sucesso quanto o de César Alencar, sempre pontualmente ao meio-dia dos domingos, no 19º andar do Edifício A Noite, sede do auditório da poderosa Rádio Nacional, na Praça Mauá. Porém, três semanas depois, no dia 27 de setembro, “Chico” Alves viria a falecer em um acidente de carro quando voltava, em seu belo Buick, de um show que fizera em São Paulo, no Largo da Concórdia, bairro do Brás. Havia perto de 5.000 pessoas e sua apresentação foi uma apoteose transmitida pela Rádio Nacional de São Paulo. Com a notícia de sua morte o Brasil entrou em choque, pois perdera seu maior ídolo, o Rei da Voz, com apenas 54 anos de idade. Da coleção de meu pai, eu tenho até hoje um disco de 78 rotações da gravadora Odeon, lançado em homenagem à sua morte em que no lado A tem Dalva de Oliveira cantando “Meu Rouxinol (homenagem póstuma)” e no lado B, no selo central está escrito: O silêncio desta face não gravada é o nosso preito de veneração àquele que foi o “Rei da Voz”. Logo abaixo de uma tarja preta horizontal também está escrito: A Odeon, continuando a campanha filantrópica a que FRANCISCO ALVES dedicou os últimos dias de sua vida, doará às duas Instituições de Caridade que mereceram a sua proteção, os Direitos Artísticos e Autorais que seriam devidos ao saudoso cantor se nela houvesse uma sua gravação. Nesse lado B toda a faixa é um silêncio profundo. Apenas o chiado do atrito da agulha com o acetato se faz ouvir. O som de uma saudade irreparável. A homenagem mais emocionante, dentre as de tantas cantoras e cantores na noite do dia em que foi divulgada sua morte, foi de Nelson Gonçalves, seu amigo, que em apresentação na Boate Mocambo na noite daquele fatídico dia, só cantou músicas de Francisco Alves, do início ao fim. Pouco depois surgiu um cantor naquela mesma época chamado João Dias, com uma voz muito semelhante à de “Chico” Alves, mas nada chegaria sequer aos pés de sua majestade, o Rei da Voz. Wolney frequentou o “Clube da Aeronáutica”, que tinha nada mais nada menos que a Orquestra Pan Americana, sob a batuta de Severino Filho. Em seus salões, a linda voz de Dolores Duran ecoou por vários e prestigiados bailes. Em relação aos programas de rádio que meu irmão gostava de ouvir, assim como meu pai, havia também os de Cesar Ladeira, com “Seu criado, obrigado” e Renato Murce, com seu


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“Papel Carbono”, que revelou, por exemplo, ídolos como Ivon Cury, Ângela Maria, Dóris Monteiro, Ellen de Lima e Ademilde Fonseca, na Rádio Nacional. Mas o que eu me recordo bem era do tempo dos vinis de 33 1/3 rotações, mais finos e fáceis de manusear. Havia o long-playing, com várias músicas, e o compacto, com uma música de cada lado apenas. Também, compactos duplos, com duas músicas de cada lado. Mas a predominância absoluta era do LP, como era apelidado o disco long-playing. Meu pai, assim como meus irmãos, também gostava muito das músicas orquestradas e dos músicos norte-americanos como, por exemplo, Errol Garner. Um dia, ele me disse que a sua música preferida de Errol era “I´m In the Mood for Love”, mas o que tornou esse músico autodidata muito conhecido em todo o mundo foi sua gravação de “Misty”. Lá em casa havia também um disco do Earl Grant em que ele usava o órgão para simular o canto de pássaros na música “Ebb Tide”. Recordo-me bem dessas duas músicas, memórias inquebrantáveis de minha infância. Morávamos no centro de Vila Velha, próximo ao Colégio São José, e a principal diversão dos jovens daquela época, como meus irmãos mais velhos, era ir ao Clube Golfinho, que ficava em uma casa ao lado da entrada do caminho que levava para a prainha de Inhoá, reduto de pescadores onde hoje se situa a Escola de Aprendizes Marinheiros e que hoje é de propriedade da família Schalders, para dançar ao som de um discotecário. Este era alguém que tinha muitos discos e divertia-se os colocando para as pessoas ouvirem e dançarem ao som de suas músicas, quando não era possível contratar um conjunto para ter música ao vivo, como Hélio Mendes e seu Trio Vagalume; João Virgílio e sua Orquestra; Gilberto Garcia e seu trio, Jorge Saade e trio ou Edson Quintaes e seu Conjunto. Interessante que no Clube Golfinho aconteceu um fato muito curioso com um cantor brasileiro em início de carreira. Recentemente, um primo meu, Ely, que morava ao lado do Clube já em sua sede nova, contou-me que o presidente do saudoso Golfinho, Sr. Jessé, certa vez contratou este referido cantor para lá se apresentar. Consta que depois de algum tempo o então presidente pediu que ele parasse, pois as pessoas queriam dançar e as suas músicas não estavam boas. E lá foi o discotecário com seu toca discos substituir o cantor que, meio acabrunhado, saiu de mansinho. Hoje, ele é simplesmente conhecido como o Rei Roberto Carlos. O ícone da memorável Jovem-Guarda.


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Curioso sobre como surgiu o Clube Golfinho, meus irmãos me orientaram que procurasse Geraldo, filho de Dona Pitita, pois ele saberia dizer como aquele clube surgiu. Casado com Lígia Paoliello, Geraldo é amigo de nossa família há muitos anos e foi nosso vizinho na Rua 15 de Novembro, desde o tempo em que nem tinha calçamento algum e onde aconteciam as peladas de futebol no fim de semana. Pois bem, marquei com ele e fui até sua residência. O dom de Geraldo, além da prodigiosa memória, é gostar de falar, falar bastante. Então foi bem fácil. Foi só ligar o gravador e as histórias foram se revelando. Algo que eu me lembro bem em relação a Geraldo é o fato de ele ter ido de Kombi ao Chile, com um vizinho de nossa rua chamado Lelo, para ver a Copa do Mundo de 1962. Com oito anos de idade eu achava aquilo algo notável, impressionante. Bem, Geraldo contou-me que o Golfinho - o GIC, Golfinho Iatch Clube - surgiu da necessidade de alguns amigos terem um lugar para se encontrar e se divertir, pois se reuniam ora na casa de um, ora na casa de outro. Muitas vezes, na garagem da casa de Dr. Martins para jogar ping-pong. Era o grupo “TT”, o “Topa Tudo”, lembrou ele. A casa de Dr. Martins ficava em frente da nossa e era muito bonita, sem muito luxo, mas imponente. Havia um quintal imenso, pois a propriedade cobria quase cinco lotes urbanos, nos quais brinquei muito, assim como meus irmãos e irmãs. Havia pés de abil, carambola, tamarindo, goiaba, manga, abacate e uma frutinha muito diferente chamada siriguela. Na parte frontal havia um jardim muito bem cuidado e um muro com folhas de ficus delineava o limite da casa e da calçada, com seus ”lacerdinhas”, um pequenino inseto que ardia nossos olhos, principalmente quando usávamos roupa amarela, que os atraía mais ainda. Dr. Martins gostava muito de criar peixes em grandes tanques ao ar livre, e ao andar por aquele paraíso natural, cheio de plantas e árvores, sempre esbarrávamos em alguns jabutis quando caminhávamos. Eu ficava impressionado com eles, pois diziam que viviam por quase 100 anos. Bem nos fundos da casa havia um viveiro imenso, muito alto, cheio de passarinhos. Lembro-me que entrávamos e a altura do viveiro era três vezes ou quatro vezes maior que a dele próprio. Era imenso, alto e largo. Em algumas ocasiões, o ajudei a alimentar os peixes e dar alpiste para os pássaros. Para mim, um menino de quatro ou cinco anos muito curioso, era uma adorável aventura. Lembro-me de um carro muito bonito, um Studebaker, que ficava parado em frente de sua casa, com o motorista Aderbal aguardando-o para levá-lo ao trabalho na Administração do Porto de Vitória. O falecimento de sua filha


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mais velha, Mary, me marcou tanto, apesar de eu ser uma criança de pouco mais de cinco anos. Garoto, ainda ficou em minha memória o dia em que a vi chegar do Rio de Janeiro e a descerem de uma ambulância em uma maca, toda revestida de branco, acompanhada por uma enfermeira em um níveo uniforme. Quando eu estudava no Colégio Marista, na quarta série do ginasial, o professor de português, Aylton, pediu que fizéssemos uma redação sobre “Um acontecimento em minha rua”. Eu escrevi sobre ela e sua perda. Devia ter uns treze anos e alcancei a melhor nota da sala naquela redação. O professor gostou tanto que convidou minha mãe para ir à reunião habitual que havia no final do mês no salão nobre da escola e na presença de todos os professores, diretoria e alunos, pediu que eu e minha mãe nos levantássemos. Então, em voz embargada, teceu muitos elogios ao meu texto, lendo-o. Minha mãe doou essa pequena redação a Dr. Martins, que a leu emocionado e a guardou. Até hoje sinto falta de não ter essa pequeno pedaço de papel, pois nunca mais consegui revê-lo. Voltando a turma “TT”, Geraldo me disse que em sua origem era composta pelas irmãs Belzinha, Fabíola e Mary Martins, Liliosa, Vera Pimenta, Cassiano, Assil, Uélisson, Florita Santos, Vera Santos, Aidé, Olga Maria, Marcelo Quintaes, Elias, Gudão, Bebeto Guimarães, Alzira, Juraci Muniz, José Ângelo Muniz, Maria Gláucia Muniz, Elisa e outros. Tinha muito arrasta-pé, quando a sala ou a varanda da casa de alguém era oferecida para as pessoas dançarem, como a casa de Seu David Pimenta. Quando queria acabar a festinha Seu Pimenta começava a piscar a luz e a turma sabia que era hora de ir embora. Naquela época, contou Geraldo, os homens iam aos clubes em Vitória, como Saldanha, Álvares e Vitória, mas as mulheres não podiam ir, porque o transporte era difícil. Dependiam do bonde para voltar para Vila Velha, tarde da noite ou mesmo de madrugada. A solução foi criar um clube. Então, Vera Pimenta disse que a tia dela, Celeste, tinha um cômodo em sua casa que poderia alugar para essa finalidade. Ficava, e ainda está lá, onde hoje é entrada para a Escola de Aprendizes Marinheiros em Vila Velha, na Prainha. Na época, havia apenas um pequenino cais e o mar batendo nas pedras. Dona Maria Lindenberg, mãe de Cariê, chegou a morar ali, disse-me Geraldo. O grupo de amigos alugou o cômodo, que tinha um banheiro e uma pequena cozinha, e o ampliou um pouco com uma pequena pista de dança estendida sobre uma área vazia, um jardim desabitado e entristecido pelo descaso. Na cidade, já havia o Clube Olímpico, em cima do bar Gardênia, na Prainha, e o Monte Castelo,


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ligado aos sargentos do Exército, no centro da cidade. Depois, surgiu o Clube Albatroz, ligado à Marinha, na casa do Coronel Camargo, na Prainha. Ainda havia o Tupi e o Atlético. Mas as “meninas” não os frequentavam. Preferiam o Golfinho. No início tudo era muito difícil e muitas vezes as cadeiras eram “carregadas” da própria casa dos amigos, algumas bem pesadas por serem de puro jacarandá ou peroba. Mas, esse grupo criador do Golfinho pagava mensalidades e o clube passou a ter uma boa situação financeira, comprando seus móveis e atraindo muitos turistas mineiros que vinham para aproveitar a Praia da Costa. Havia uma médica mineira, bem de vida, que sempre trazia material esportivo e boas contribuições para o clube, frisou Geraldo. O Clube tinha até jornal, na verdade um panfleto informativo, com eventuais “fofocas sociais” e acontecimentos da cidade. Chegaram a ter seis ou sete “jornais” ao mesmo tempo. Um deles era o “A Forca”, que inventava, propositalmente e de brincadeira, várias estórias hilárias sobre os sócios. Era a leitura dos finais de semana. Na década de 1950, houve uma festa junina que começou no Rio de Janeiro, em Botafogo, e terminou no Golfinho, vindo de avião. É que vários amigos foram morar no Rio e um belo dia combinaram de fazer uma festa junina naquele bairro carioca, pegar um avião no aeroporto Santos Dumont, todo mundo a caráter, e ir até o Golfinho, desfilando de carro pelas ruas da cidade, desde o aeroporto de Vitória. Foi uma festa, com caracterizações de padre, coroinha e casamento na roça! O livro em que foi registrado o “casamento” foi um pesado e volumoso livro da prefeitura: o livro de óbitos da cidade, que Zé Colombo pegou “emprestado”, para pavor de Dona Maria Queiroz. Os noivos eram Marcelo Quintaes e Terezinha, que morava no Rio. Os passageiros do avião não entenderam nada. E a festa não parou dentro do avião: a restrição era não soltar fogos! Conseguiram essa liberdade de voar fazendo festa porque havia uma pessoa muito importante na administração do aeroporto que participava bastante das festas do clube. No clube, todas as mesas das festas eram vendidas rapidamente, e veio a necessidade de uma sede maior. A sede do clube então se mudou para onde hoje é a Câmara de Vereadores de Vila Velha, na mesma Prainha. Nesse momento de nossa conversa, Lígia, esposa de Geraldo, entrou na sala e veio me cumprimentar, sempre muito gentil e atenciosa. Lígia é irmã de Maria Alice, que se casou com Cariê Lindenberg. Wanda, minha irmã, sempre lembra que era muito amiga de Maria Alice, pois estudavam no Colégio do Carmo e viu muitas


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vezes o Cariê aparecer por lá na saída das aulas. Lígia lembrou-se de um fato interessante quando, em 1959, na inauguração da Usina hidrelétrica de Rio Bonito, alguns estudantes da Escola de Serviço Social, e ela estava nesse grupo, foram de ônibus até o local da inauguração da obra no então Governo Carlos Lindenberg, em seu segundo mandato. Ela ainda não conhecia Cariê, mas lembra-se bem de uma pessoa saindo do Palácio do Governo com um violão embaixo do braço e que as moças diziam entusiasmadas: é o filho do governador! Cariê viria a namorar a irmã de Lígia, Maria Alice, mas Geraldo contou que apesar de passar a conhecer Cariê, pois namoravam irmãs, ele não conseguia acompanhar as noitadas de Cariê e Evanilo, já que tinha que trabalhar no outro dia bem cedo, inclusive aos sábados, como desenhista. A mão não podia tremer! Outro fato muito interessante surgiu quando Geraldo lembrou-se que Jairo Maia, um dos principais radialistas do Espírito Santo, muitas vezes dormiu em sua casa, em frente da igreja do Rosário, na Prainha, em Vila Velha. O ruim é que o sino da igreja ficava bem perto do quarto de Geraldo e tocava às 5 da manhã! Jairo fazia parte da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Músicos - Sbacem. E cobrava direitos autorais das músicas tocadas no Golfinho. A solução, para amenizar os gastos, continuou Geraldo, foi nomeá-lo para a diretoria do clube e conseguir um desconto. Com a dificuldade de voltar para Vitória de madrugada, muitas vezes dormia lá na casa dele. Curioso é que, lembrou-se Geraldo, José Krause Martins, “Zé” Martins, que viria a se casar com minha irmã Vera, não frequentava o Golfinho. Gostava mais de participar das músicas do pessoal da Cruz do Campo, bairro de Vila Velha, com Alonso “mão no bolso” ao violão e outros no cavaquinho e na percursão. Houve até uma vez em que Dr. Martins fez uma festa de aniversário de uma das filhas, aquela coisa toda solene e arrumadinha, e eis que chegou o “Zé Martins” com sua turma tocando aquela música toda espalhafatosa e cheia de alegria. Depois, que o Golfinho mudou para uma sede nova, as festas continuaram e aquela turma que tudo começou viu chegar muitos outros sócios. Nessas festas, muitos discos novos surgiam e logo as pessoas procuravam tê-los. Assim, além de meu pai, meus irmãos passaram a comprar discos de vinil e a ter suas próprias escolhas musicais, que, na verdade, tinham a mesma fonte de inspiração. Eu ficava impressionado com a beleza das capas e nunca saiu de minha lembrança, por exemplo, a capa do vinil “Melodia Imortal”, com Tyrone Power ao piano e o rosto de Kim


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Novak debruçada sobre o teclado. Tão bem impressionado até hoje que dei a esse livro o título de “Melodias Imortais”. Também, a capa do vinil “Dream Dancing”, do Ray Anthony, em que casais dançam em um lugar muito bonito, à luz da lua. A foto a seguir é do disco que meu pai comprou, muitos anos atrás e que hoje tenho comigo.

Ecto vent liquunt, officilibus aut autatenistio bero berrovid quassi offici consequ iberae solupta turitib eriorro quamus

Outra capa marcante foi a do disco “Convite para ouvir Maysa”, com aquele olhar indecifrável preenchendo todo o espaço. Ecto vent liquunt, officilibus aut autatenistio bero berrovid quassi offici consequ iberae solupta turitib eriorro quamus


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Depois daquele tempo, alguns anos à frente, meu irmão Jessé comprou uma eletrola norte-americana, “General Electric”, cujo som era melhor, com mais graves, mais agudos e mais médios. Era um móvel lindo, de madeira pura e amarelada, com portinhas que se abriam e davam acesso a um toca discos de embutir, que corria sobre um firme e fino trilho de metal. Sempre que estava ligada, uma luzinha amarela mantinha-se acesa, centralizada na base do móvel e revelando as iniciais daquela famosa marca. Por ela passaram Billy Vaugham, Sinatra, Waldir Calmon, Mario Lanza, Frankie Laine, Elizeth Cardoso, Maysa, Miltinho, Helena de Lima, Cyro Monteiro, Elis Regina e Jair Rodrigues, Sylvinha Telles, Agostinho dos Santos e tantos outros. Ainda criança, quando eu ia à casa de minha irmã Vera, casada com “Zé” Martins, depois de um passeio na caminhonete Chevrolet C-14, modelo 1967, de banco inteiriço e alavanca de câmbio presa no tronco do volante, sempre ouvíamos discos de Gilbert Becaud e Frank Pourcel. E, também, um disco do Trini Lopes ao vivo, que fazia muito sucesso. Em uma noite outonal qualquer de 1968, meu irmão recebeu uns amigos e ouviram uma música muito bonita, “Non ho l´eta (per amarti)”, da Gigliola Cinquetti, no lado B do pequeno disco que tinha “Dio Como ti amo” do outro lado. À época, com quatorze anos de idade, fiquei impressionado com a beleza da música e o deleite dos amigos de meu irmão ao ouvi-la. Anos mais tarde encontrei esse compacto duplo em uma loja de discos usados e o adquiri. Agora, de vez em quando o coloco para tocar, pois não só comprei uma aparelhagem que me permite ouvir os LPs, duas caixas de som Sansui que Pierre Debaneé me deu/emprestou, um receiver Sansui 6060 e um toca discos Gradiente DD 200Q, que na verdade é um JVC com uma boa agulha Shure, como também passei a procurar por bons discos de vinil e comprá-los. Não para ser um colecionador, mas para ter aqueles que marcaram minha vida de alguma forma. O que mais me marcou nos meus tempos de infância, por influência de meu irmão Mauro, foi ouvir Frank Sinatra. Aquela voz forte, clara, suave e inconfundível cantava lá em casa. Sinatra, desde a década de 1950 era muito querido e até havia um “Sinatra-Farney fan Club”, com sede na Tijuca, RJ, que era uma reunião da turma do Dick Farney com a de Johnny Alf. Lembro-me desse meu irmão corrigindo a minha lição de matemática e testando se eu aprendera tabuada, enquanto Sinatra cantava “All the way” ao fundo. Apesar de à época eu não entender inglês, eu adorava aquela música e sonhava em poder cantá-la um dia. Traços do destino permitiram que eu realizasse esse


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sonho ao cantá-la algumas poucas vezes no Wunderbar, um ótimo reduto musical de Vitória com Victor Biazutti ao violão e o excelente Roger Bezerra ao teclado. E, principalmente, vê-lo cantá-la no Maracanã, com minha esposa Luziene e o meu irmão “tomador” de tabuada. Na minha infância, eu ainda não tinha noção clara do que era Jazz, mas convivia diariamente com o que poderia ser classificado como Easy Listening. O trompetista Henry Jerome, com o vinil “Metais em Brasa”, estava sempre presente e nas tardes de sábado, por volta de duas horas, iniciava-se sempre o programa “Tardes Dançantes” na Rádio Difusora de Cariacica. Durante a semana essa mesma rádio tinha muita audiência com o programa “Músicas para seu Almoço”. Não havia os “fast foods” da vida ou os “self-services” de hoje e muitas pessoas almoçavam em casa. De todo modo, até os bons restaurantes a sintonizavam. Das lembranças daquelas tardes de sábado, quando meus irmãos ligavam o rádio da eletrola para ouvir o programa “Tardes Dançantes”, ficou o som de “Noturno”, de Chopin, com a orquestra de Jean Pacques, na série “Doucement”. Certo dia, depois de juntar a mesada que minha querida e saudosa mãe me dava, eu peguei um ônibus da “Viação Alvorada” e fui até a “cidade”. Era assim que as pessoas que moravam em Vila Velha se referiam a Vitória, a capital do Estado e seu município vizinho. Entrei na lojinha de discos denominada “Cacique”, perto da escadaria do Palácio do Governo, na ladeira em frente ao antigo Hotel Estoril, e voltei com um disco do então pouco conhecido Roberto Carlos, aquele mesmo iniciante cantor do Golfinho. Era meados da década de 1960 e na minha casa ninguém imaginava comprar um disco dele. A única música aceitável no disco, na opinião de meus irmãos, que riram muito da minha compra, era a música “Coimbra”. Bem ao estilo do que se ouvia à época. Mas logo outros discos dele vieram agora comprados por meu irmão Jessé, que ficou seu fã. Outro dia marcante em termos de gostos musicais foi quando eu cheguei a nossa casa trazendo o compacto dos Beatles, com a música Hey Jude de um lado e a esfuziante Revolution no outro. O meu irmão Mauro, fã de Sinatra disse: “até que aqueles cabeludos da Inglaterra fizeram uma música interessante”. Claro que ele se referia a Hey Jude, pois a outra estava muitos decibéis acima dos padrões normais lá em casa. Mas o tempo iria mostrar que eu tinha razão em ambas as compras. Assim, eu complementei as audições dos discos de orquestras, grandes cantores e cantoras originários de meu pai e meus irmãos, com as audições dos discos dos


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Beatles, que eu ouvi falar pela primeira vez em 1966 quando uma vizinha do outro lado de minha rua, Heloíta, trouxe emprestado pelo IBEU – Instituto Brasil Estados Unidos, de Vitória - o disco “Help”, importado. A capa era muito bonita, com fotos coloridas e as músicas eram incríveis, de tão boas. Vitória e Vila Velha tinham poucas lojas de discos e importados não existiam nelas ou eram raros, só por encomenda. A solução, já na minha adolescência, era ir ao Rio de Janeiro e visitar a “Modern Sound”, uma loja em Copacabana que era meu sonho de consumo em termos de vinil. Aquele lugar era um paraíso musical. Lembro-me como se fosse hoje o dia em que entrei no ônibus da Viação Itapemirim, de volta para casa, com o vinil “Harvest” de Neil Young. Para mim, o melhor de todos os seus discos, só comparável ao raro “On The beach”, que tempos depois eu ganharia de presente, quando minha filha Laura e minha esposa Luziene o compraram em uma loja de Saint Louis, no Missouri, com “floral inner sleeve” e tudo. Nesse período de minha vida, parece que aquela trilha musical da infância, dos cantores e das orquestras, tinha ficado perdida no tempo, esquecida em algum cantinho do passado. Ainda me vem à memória uma tarde em que argumentava com meu irmão que a gravação de “Something” de George Harrison, era melhor no original, com os Beatles, do que com Sinatra. A “briga” foi boa. E, ao final, ouvindo-o em uma boa eletrola Phillips com excelente som estereofônico, ele concordou. O meu “berço” musical não me levou à trilha do rock britânico e norte-americano mais denso, como Uriah Heep, Yes, Pink Floyd, The Who, Hendrix, Janis, Led Zeppelin, Stones, Black Sabath, Queen, Cream e outros tão notáveis à época. Mas muitos de meus amigos compravam esses discos e eu algumas vezes os ouvia. Nessa fase de minha vida, quando morávamos no Edifício Carone, em frente ao Colégio Marista, em Vila Velha, eu lembro-me de uma tarde de domingo em que ouvia um disco do Simon and Garfunkel e quando terminou a música “Silent Night”, minha mãe, que estava em seu quarto disse: - Essa música é linda, meu filho! Essa foi a única vez, que eu me lembre, de ver minha querida mãe, Joacila Carvalho Machado, expressar seu gosto musical. Foi quando me casei com Luziene Valle Barros, mãe de meus filhos Laura e Victor, que, além de continuar gostando daquele “sweet pop rock” de James Taylor, Carole King, Paul Simon, Neil Young, Crosby, Stills, Nash, Art Garfunkel, Jim Croce, Bob Dylan, America, Eagles, Moody Blues, Carly Simon, Cat Stevens


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e vários outros que ouvíamos no toca-fitas TKR de uma Brasília bege quando juntos íamos para a faculdade de Economia na UFES no final da década de 1970, eu voltei a buscar aquela linha musical anterior, das orquestras, cantores e cantoras como Ella Fitzgerald e Sarah Vaugham. E descobri a Alberta Hunter e o Joe Turner. Alberta eu tive o prazer de ver e ouvir em uma apresentação inesquecível e da qual tenho seu autógrafo, no Maksoud Plaza de São Paulo, em 1984, acompanhado de Fernando Albuquerque com sua esposa Paula, irmã de minha esposa, e sua prima Nady, que morava em São Paulo. Na época, já casado e morando naquela mesma casa de minha infância, onde ficamos por algum tempo, eu havia comprado uma coletânea chamada “Seleções do Reader´s Digest” com vários discos com orquestras, cantores, cantoras e um pouco de Jazz. Ali, naquela mesma sala com tacos de peroba e braúna, depois de chegar do trabalho, eu ouvi pela primeira vez as vozes de Jo Staford e Helen Forrest e percebi que a Luziene tinha muita facilidade em tocar em um pequenino teclado Casio, modelo Cassiotone MT-40, as melodias que ouvíamos. Eu me perguntava por que eu conhecia tão pouco de algo tão bom e além das músicas “Easy Listening”, passei a comprar muitos discos de Jazz com o educadíssimo Walcy, irmão do Golias, dono da tradicional “Golias Discos”, até hoje heroicamente resistindo ao tempo, com sua loja no centro de Vitória. Golias foi a pessoa mais importante na venda de discos em Vitória, na época do talentoso Jairo Maia. Jairo tinha um programa de rádio extremamente popular e as tendências musicais passavam pelo

Ecto vent liquunt, officilibus aut autatenistio bero


24 melodias eternas


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