FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
Higor Rafael de Souza Carvalho (pesquisador) Profa. Dra. Vera Maria Pallamin (orientadora)
Campos Elíseos: um bairro, um patrimônio, uma cidade. Um caso histórico de mutação urbana e de patrimônio público na cidade de São Paulo.
CARVALHO, Higor R.S. Campos Elíseos: um bairro, um patrimônio, uma cidade. Um caso histórico de mutação urbana e de patrimônio público na cidade de São Paulo. Relatório Científico Final de Iniciação Científica. São Paulo: FAPESP, FAUUSP, 2009.
Relatório Científico Final (3/3) Processo No. 2007/56386-3
São Paulo, 20 de julho de 2009. 1
Sumário
Introdução Metodológica ................................................................................................................................ 4
Lista de Abreviações .................................................................................................................................... 12
Capítulo 1 – Campos Elíseos: história e contrastes de um bairro paulistano .............................................. 13 1.1 Campos Elíseos hoje: análises sobre aspectos políticos e sociais .................................................. 14 1.2 Campos Elíseos e seu verdadeiro perfil populacional: formas de habitar, hábitos e práticas de espaço urbano .......................................................................................................................................... 15 1.3 Bom Retiro e Luz: aspectos de dois bairros vizinhos ....................................................................... 24 1.4 Anos 1970: mudanças de rumo ........................................................................................................ 27 Considerações ......................................................................................................................................... 30
Capítulo 2 – O Mercado Imobiliário como agente transformador do espaço –Novas considerações sobre a atuação deste setor sobre o bairro ............................................................................................................... 31 2.1 Dinâmicas imobiliárias do espaço urbano: breve análise na cidade. ............................................... 32 2.2 Campos Elíseos e o agente “Mercado Imobiliário” como participante da produção e re-produção da habitação e do bairro: uma perspectiva histórica. ................................................................................... 34 2.3 Mercado imobiliário e paisagem urbana: impactos da verticalização ............................................... 46 Considerações ......................................................................................................................................... 60
Capítulo 3 – Campos Elíseos: um bairro de importância patrimonial? ........................................................ 61 3.1 O que é Patrimônio? .......................................................................................................................... 62 3.2 Patrimônio Oficial e Patrimônio Banal ............................................................................................... 67 3.3 Campos Elíseos e seu patrimônio ..................................................................................................... 69 3.4 Políticas patrimoniais a partir dos anos 1980 .................................................................................... 75 3.5 Políticas patrimoniais para o Centro de São Paulo (1970 – 2004) .................................................... 78 3.6 Discussões sobre o estado de conservação e/ou os conflitos ligados ao patrimônio edificado nos Campos Elíseos ....................................................................................................................................... 82 3.6.1 Moinho e silos Matarazzo ............................................................................................................... 82 3.6.2 Da casa do Barão à casa da Toca ................................................................................................. 91 3.6.3 Teatro São Pedro e a especulação imobiliária ............................................................................. 101 3.6.4 O caso do Edifício de Gregori Warchavchik, Alameda Barão de Limeira ................................... 108 3.6.5 A empresa Porto Seguro e o patrimônio histórico dos Campos Elíseos ..................................... 110 3.6.6 Memória apagada: ações públicas e privadas. ............................................................................ 113 Considerações ....................................................................................................................................... 119
2
Capítulo 4 – Estratégias e Ideologias – Projetos e Políticas para o bairro ................................................ 121 4.1 A retomada dos Campos Elíseos.................................................................................................... 121 4.1.1 O projeto “A retomada dos Campos Elíseos” .............................................................................. 122 4.1.2 O discurso ideológico ................................................................................................................... 127 4.2 O “Projeto Nova Luz” e os Campos Elíseos ................................................................................... 133 4.3 Teatro de Ópera e Dança: nova casa para a São Paulo Companhia de Dança ............................ 138 4. 3. 1 A âncora da vez ......................................................................................................................... 138 4.3.2 O projeto ....................................................................................................................................... 141 4.4 O SESC Bom Retiro, nos Campos Elíseos .................................................................................... 145 4.5 Projetos e medidas legais: a proposta de revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo ...................................................................................................................................................... 146
Capítulo 5 – “Cracolândia” : nem projeto, nem política .............................................................................. 148
Capítulo 6 – Considerações Finais:............................................................................................................ 156
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 172
Anexos ........................................................................................................................................................ 176
3
Introdução Metodológica Considerações sobre procedimentos administrativos relativos à bolsa e sobre a evolução da pesquisa após sua renovação. A pesquisa de Iniciação Científica intitulada “Campos Elíseos. Um bairro, um patrimônio, uma cidade. Um caso histórico de mutação urbana e patrimônio público na cidade de São Paulo”, processo nº. 2007/56386-3, que vem sendo realizada desde janeiro de 2008, chega ao fim com este Relatório Científico Final 3/3. Quando da entrega do relatório anterior, em dezembro de 2008, havíamos solicitado renovação da bolsa por seis meses, e elaboramos cronograma de estudos condizentes com o novo prazo solicitado. No entanto, o pedido de renovação de bolsa foi aceito para a duração de 12 meses e tal decisão comunicada apenas em abril de 2009, com data de entrega do Relatório 3 (neste caso, intermediário) para 10 de junho de 2009. Em virtude destes dois equívocos, enviamos uma correspondência à Fundação pedindo redução da bolsa em 6 meses e a prorrogação da entrega do Relatório Final para dois meses a partir de sua data de entrega préestabelecida, o que corresponderia ao dia 10 de agosto de 2009. Nossa solicitação de renovação por 6 meses havia sido pautada em diretrizes metodológicas estabelecidas a priori e no fato de que a partir do mês de agosto de 2009, eu, bolsista em questão, realizaria intercâmbio de graduação com a duração de 1 ano na Faculdade de Geografia da Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne, em Paris, França, onde cursarei o programa específico de Urbanismo e Planejamento Urbano da Faculdade de Geografia, especialidade em Dinâmicas do Espaço1. Por sua vez, o pedido de prorrogação da entrega final (realizado em maio de 2009) tratava-se de estabelecer uma compensação no cronograma, uma vez que tendo sido aprovada a renovação em abril, restaria apenas pouco mais de um mês para a conclusão de um programa de pesquisa estabelecido para seis meses.
1
Para realizarmos este curso, conseguimos uma bolsa internacional fornecida pelo Conselho Regional de Ilê-deFrance, destinada a amparar intercâmbios de jovens pesquisadores de países em desenvolvimento.
4
Em resposta, a Fundação nos concedeu prorrogação de entrega do relatório final de 1 mês, passando agora a entrega para o dia 10 de julho de 2009, já que a redução de 12 para seis meses de renovação da bolsa também nos foi concedida. Diante disso, o programa de trabalho foi reduzido de seis para três meses, implicando numa intensificação do ritmo de trabalho que pode não ter ajudado a finalização da pesquisa a contento. Ainda assim, ratificamos que todas as promessas feitas no relatório anterior em relação ao pedido de renovação da bolsa foram cumpridas ou justificadas (caso em que sua pertinência revelou-se não mais importante ou em que sua realização foi impossibilitada por motivo de força maior). Abaixo, mostramos uma relação das promessas estabelecidas e sua condição final.
Promessas para renovação presentes no corpo do texto do Relatório 2: Capítulo
Página
Descrição
Situação
Patrimônio
31
Perfil populacional do bairro nos anos 1930 e suas formas de
Realizado
morar Patrimônio
65
Conceito de patrimônio ambiental urbano
Mantido
Patrimônio
69
Entrevista com CONDEPHAAT sobre estudo de 1986
Realizado
Patrimônio
79
Políticas patrimoniais: zoneamento e Plano Diretor
Realizado
Patrimônio
83
Entrevista com Emurb, Sempla ou Sehab sobre transformação
Não
da Favela do Moinho em Parque Moinho Novo.
(Emurb)
Teatro São Pedro: preservação patrimonial e especulação
Realizado
Patrimônio
90
autorizada
imobiliária Patrimônio
93
Praça Princesa Isabel: quando ela foi ampliada e porquê?
Não encontrado
Patrimônio
95
Loteamento da Chácara Carvalho em 1930 era rarefeito.
Não encontrado
Porquê? Ideologia e Projetos
112
Nova Luz e concessões urbanísticas – debate
Realizado
Dentre aquelas presentes no capítulo da Introdução, referentes às adaptações no projeto de pesquisa inicial, inserem-se: Página Descrição Objetivos
05
Acompanhamento e crítica (significado e impacto) dos projetos
Situação Realizado
políticos governamentais para a área e o entorno (Nova Luz,
5
Retomada dos Campos Elíseos, Teatro de Dança e Parque Moinho Novo).
Objetivos
05
Continuação dos estudos sobre patrimônio oficial e banal
Não r. (prazo)
Objetivos
05
Estudar relações entre gentrification e patrimônio
Realizado
Objetivos
05
Mercado
imobiliário
na
descaracterização
do
patrimônio
Realizado
(tipologias, morfologias e ambiente urbano). Objetivos
06
Lutas de diferentes agentes sociais: classe média nova e
Feito em partes
tradicional no bairro, locatários de cortiços, moradores da
(classe média e
favela, conquistas e derrotas do Movimento por Luta pela
moradores
Moradia.
Moinho)
do
Da metodologia teórica, traçada ainda na mesma Introdução do relatório anterior: Item
Página
Descrição da inserção
Situação
C
07
Do emprego do patrimônio com fins ideológicos num contexto
Estudado
político-econômico
compatível
(Arantes,
O,
1995;
Bidou-
Zachariasen, 2006; Davis, 2007; Smith, 1996; Zukin, 1995). E
F
07
07
Projetos para São Paulo ao longo do século XX (Segawa,
Estudado
2000);Geomorfologia e evolução da cidade de São Paulo (Ab’
(Segawa);
Saber, 2007).
Não (Azis)
Arquitetura Paulistana do século XIX e XX (Homem, 1996; Lemos,
Estudado
1994 e 2000; Segawa, 1998). G
07
Projetos para os Campos Elíseos (Sawaya, 2008).
Estudado
H
08
A estetização da cidade, a privatização do poder público, a
Estudado
espetacularização da vida e dos centros urbanos (Arantes, O., 2000; Débord, 1992). I
08
Crítica ao modo público de intervenção vinculado aos interesses
Estudado
de setores privados (Arantes, O., 1995, 2000; Bidou-Zachariasen, 2006; Davis, 2007; Smith, 1996; Zukin, 1995).
Das entrevistas, ainda na Introdução do último relatório: Entrevistado
Página
Situação
Arq. Carlos Lemos
Não realizada (devido ao prazo)
Arq. Sueli de Bem
Não realizada (devido ao prazo)
Condephaat
Realizada, transcrita e inserida no Caderno de Entrevistas.
SESC
Não realizada. A empresa não autorizou a entrevista.
6
Porto Seguro Seguros
Não realizada. A empresa não autorizou a entrevista.
Folha da Manhã S/A
Não realizada (devido ao prazo)
Sr. Nelson
Realizada, transcrita e inserida no Caderno de Entrevistas
Sra. Alessandra
Realizada com Irmão (religioso), agente na favela. Alessandra deixou a associação e mudou-se da favela. Perdemos o contato de Dona Gema. No entanto, foram realizadas
Dona Gema
entrevistas com Sra. Maria Aparecida, Sra. Maristela, Sr. Irineu, Sr. Álvaro
Não
previstas,
mas
realizadas:
Agentes da Secretaria de Assistência Social da PMSP; Sr. Irineu, Sr. Álvaro, Sra. Maria Aparecida, Sra. Maristela, corretora Cyrela Sra. Tereza Barros,
Solicitações do Assessor FAPESP Em carta à professora orientadora da pesquisa, o parecerista declarou que se tratava de um trabalho de fôlego, ressaltando a qualidade do que a pesquisa já havia produzido até então. Fez ainda ressalvas no que tange à organização do relatório e a questões metodológicas. Destacamos abaixo as recomendações da assessoria e a situação de tais sugestões (destacadas por “notas”) neste presente relatório final.
- Investir mais na sistematização dos dados: transcrição das entrevistas e descrição da metodologia empregada, princípios norteadores, forma de realização. NOTA: durante o período de renovação da bolsa privilegiamos o trabalho de campo, principalmente as entrevistas, que poderiam revelar dimensões ainda desconhecidas sobre o espaço de nosso objeto de pesquisa a partir da perspectiva de quem o pratica. Ao todo, desde o início da pesquisa, em janeiro de 2008, realizamos um total de 11 entrevistas, todas digitalizadas.
- Maior rigor na descrição da metodologia empregada: critérios escolhidos para a confecção do caderno de Artigos, como “esclarecendo e justificando as opções tomadas (quais jornais, qual o período, quais as palavras-chave, qual a forma de organização do material, etc)”, nas palavras do próprio parecerista; 7
NOTA: procuramos produzir este relatório pautado fortemente na descrição metodológica, visando inclusive esclarecer procedimentos realizados e sistematizações adotadas ao longo de toda a pesquisa, visando sanar deficiências anteriores observadas pelo assessor.
- Forma de organização do material fotográfico; NOTA: Ao longo de toda a pesquisa e mesmo antes da vigência da bolsa, realizamos sistemáticos levantamentos fotográficos. Procuramos realizar registros fotográficos a cada dois meses. Ao total, foram obtidas mais de 700 fotos catalogadas por data (vide tabela abaixo) e outras tantas centenas não catalogadas, mas divididas por temas. Neste relatório quisemos criar um panorama geral daquelas mais significativas, elencando sobretudo as panorâmicas e imagens que comunicassem a dimensão deste espaço estudado, buscando aproximar o leitor do objeto estudado, conforme recomendação da orientadora. Legenda: foto = F, vídeo = v, áudio = A Pasta
Arquivados
Objeto
08/01/2007
14 F; 1 V; 1 A
Registro da região da Chácara Carvalho e Br. de Limeira
15/01/2007
84 F; 14 A
Registro de paisagens de todo o bairro, favela do moinho
02/07/2009
12 F; 1 V; 2 A
Manifestação Sala São Paulo AMCCE
06/02/2009
41 F
Obras SESC, Museu de Energia, Porto Seguro, casarões
08/06/2009
34 F
Panorâmicas a partir do topo de edifício da R. Brig. Galvão.
16/09/2007
98 F
Panorâmicas a partir da torre do Liceu Coração Jesus e Bom Retiro
27/10/2008
30 F
Busca dos bens tombados
28/04/2009
80 F
Panor. a partir do topo de Ed.: Al. Barão de Limeira e R. Vitorino Carmilo
20/06/2009
78 F; 2 A
Pesquisa e entrevista na Rua Adolfo Gordo
15/07/2008
21 F
Registros de edifícios históricos sendo transformados
10/03/2009
30 F
Manifestação dos Lojistas da Santa Ifigênia
14/01/2009
35 F
Bens tombados na “Cracolândia” e Toca de Assis por dentro
20/05/2008
157 F
Campos Elíseos, Luz e Vila Buarque. Conflitos e patrimônio.
8
- Apresentação do Relatório: inserir paginação no sumário, identificar os anexos, revisão cuidadosa do texto, evitar a repetição de textos e de citações. NOTA: Corrigimos as deficiências declaradas pelo assessor. No que se refere a “evitar a repetição de textos e de citações”, particularmente em relação àquelas feitas como inserções de partes de Relatórios anteriores, comunicamos que, após conversa nossa com a orientadora, foi decidido manter o formato do relatório final como produto último de tudo o que foi produzido ao longo da pesquisa. Deste modo, a estruturação deste relatório foi baseada naquela do anterior, e manteve-se o texto referente às partes não alteradas ao longo da dos estudos, uma vez que era possível realizar a ampliação da pesquisa atendendo às solicitações e promessas seguindo a mesma estrutura de formatação da apresentação dos resultados encontrados. Em contrapartida, optamos por inserir apenas os Anexos novos, tanto materiais gráficos quanto no Caderno de Artigos de Imprensa (exceto no Caderno de Entrevistas, em que optamos por manter nele a realizada com Sawaya).
- Planta de imóveis tombados: inserir identificação dos mesmos. NOTA: Recomendação atendida, mapa inserido em Anexos.
Recomendações da Orientadora - Tornar o texto mais didático, com a aproximação das imagens presentes em anexo para o corpo do texto; NOTA: Acreditamos termos trabalhado bastante sobre este tópico, visando obter os resultados esperados pela orientadora, diminuindo a concentração de imagens nos anexos pela aproximação destes ao corpo do texto.
- Tornar o espaço relatado mais próximo do leitor, através de imagens que mostrem amplitude em detrimento daquelas cujo enfoque é limitado.
9
NOTA: realizamos ao longo do período de renovação da bolsa um ensaio fotográfico sistemático, buscando produzir perspectivas panorâmicas das áreas tratadas em pontos específicos do texto. Ainda neste ensaio, conseguimos realizar fotografias panorâmicas a partir do topo de edifícios altos do bairro, procurando obter fotos gerais de pontos diversos que sejam didáticas para a compreensão da paisagem urbana estudada.
- Correções pontuais na escrita do texto. NOTA: Itens corrigidos e revisão realizada.
- Realizar entrevistas e transcrevê-las. NOTA: Esta recomendação também foi solicitada pelo assessor FAPESP. Ela foi fortemente seguida, com ampliação do número de entrevistas e sua total digitalização.
Considerações
Como descrito na Justificativa Metodológica da solicitação de renovação de bolsa entregue em dezembro de 2008, “em nosso projeto de pesquisa inicial, nos propúnhamos a estudar, ao longo de um ano de trabalho, o objeto de pesquisa – o bairro dos Campos Elíseos – pelos vieses das políticas patrimoniais federais, estaduais e municipais, considerando as suas relações com o patrimônio público existente no bairro e os processos de „desenvolvimento‟ urbano que acompanharam o bairro desde seu projeto até os dias atuais, transformando-o a cada década, em decorrência das conjunturas políticas, econômicas e sociais de cada momento. De maneira geral, acreditamos que houve um desvio ligeiro dos objetivos iniciais e da metodologia teórica. À medida que a pesquisa foi se encaminhando, elementos não previstos foram surgindo, principalmente aqueles de natureza política, o que nos levou a desviar o traçado original que fora estabelecido em agosto de 2007”.
10
Ao longo deste período de renovação da bolsa, pudemos abordar o objeto de estudo seguindo a metodologia empírica e teórica declarada no item Justificativa do Relatório anterior (Relatório Científico de Acompanhamento 2). Esta nova metodologia pautava-se sobretudo em deficiências que foram percebidas na pesquisa teórica e à nova fenomenologia imposta sobre o objeto de estudo. Tratavam-se (e tratam-se, porque tais fenômenos ainda são atuais) de fenômenos de natureza política, econômica, social e patrimonial, configurando o bairro dos Campos Elíseos um foco de conflitos diversos que cercam os debates sobre as políticas de revitalização do Centro de São Paulo promovidas desde os anos 1990, mas intensificadas nas últimas gestões do poder executivo municipal.
11
Lista de Abreviações AMCCE – Associação de Moradores e Comerciantes dos Campos Elíseos CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano CEAGESP – Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo CETESB – Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo CONPRESP – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos CREMESP – Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo DEM – Partido dos Democratas DOPS – Departamento de Ordem Política e Social EMURB – Empresa Municipal de Urbanização FATEC – Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo FAUUSP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo FUNDUNESP – Fundação para o Desenvolvimento da UNESP (Universidade Estadual Paulista) IDH – Índice de Desenvolvimento Humano IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional PCC – Primeiro Comando da Capital, facção criminosa de São Paulo. PDE – Plano Diretor Estratégico PMSP – Prefeitura Municipal de São Paulo PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores RFF – Rede Ferroviária Federal SEHAB – Secretaria Municipal de Habitação (cidade de São Paulo) SEMPLA – Secretaria Municipal de Planejamento (cidade de São Paulo) SUS – Sistema Único de Saúde ZEPEC – Zona Especial de Preservação Cultural
12
1.
Capítulo 1 – Campos Elíseos: história e contrastes de um bairro paulistano
No primeiro capítulo do Relatório anterior dissertamos acerca do processo histórico de formação do bairro dos Campos Elíseos, empreendimento ideologicamente inserido numa nova proposta de cidade, para aquela São Paulo que começava a despontar como pólo econômico nacional. Fizemos também breve abordagem sobre o contexto social e político (no sentido mais administrativo do termo) do bairro, visando estabelecer uma comparação entre passado (1890 – 1930) e presente (anos 2000). Agora, reiteramos tal proposição inserindo na discussão novos elementos concernentes ao panorama mais humano do objeto de estudo, destacando o histórico do perfil populacional do bairro, considerando ainda a análise das particularidades sociais e atuais do objeto de estudo hoje.
Campos Elíseos hoje. Foto aérea do bairro e arredores em 2009. Fotomontagem a partir de aerofogrametrias do Google Earth, 2009.
13
1.1 Campos Elíseos hoje: análises sobre aspectos políticos e sociais O bairro dos Campos Elíseos localiza-se na região central de São Paulo, a cerca de 2 km da Praça da Sé, marco zero da cidade de São Paulo, e está inserido na região administrativa da Subprefeitura da Sé, no distrito de Santa Cecília que, por sua vez, engloba, além do bairro em questão, outros três: Santa Cecília, Várzea da Barra Funda e Vila Buarque. Estando numa das extremidades deste distrito, o bairro possui uma relação físico-espacial e proximidade das realidades sociológicas de bairros vizinhos de outros distritos muito mais intensa do que com os demais bairros do distrito ao qual faz parte (já que os outros três são os bairros centrais com maior concentração de famílias de alto poder aquisitivo). Assim, os bairros do Bom Retiro e da Luz (distrito Bom Retiro) em conjunto com o dos Campos Elíseos, conformam uma paisagem sociológica, urbanística e tipológica bastante uniforme. Esta proximidade nos fez adotar os dois distritos para estabelecer uma comparação das questões socioeconômicas (pois inexistem estatísticas oficiais por bairros da cidade de São Paulo) buscando um meio termo ao qual se encaixaria o bairro de nosso objeto de estudos. O distrito de Santa Cecília possui, segundo a Fundação Seade, em dados de 2007, 64.195 habitantes, divididos entre seus quatro bairros; sua população é majoritariamente adulta (59% com idade entre 25 e 64 anos); 29,75% das famílias moradoras do distrito possuem renda mensal de 0 a 5 salários mínimos (no município, 57,98% do total de famílias se inserem nesta faixa de renda) e, acompanhando uma característica geral do centro de São Paulo, apresenta crescimento populacional negativo (-1,49% a.a. em 2007), o que indica uma tendência à perda da população. O distrito do Bom Retiro, que apresenta realidades sócio-espaciais ainda mais próximas do bairro dos Campos Elíseos, possui (de acordo com a mesma Fundação, dados de 2007) uma população de 22.734 habitantes, dos quais 54% adultos, 50,08% dotados de renda familiar mensal de 0 até 5 salários mínimos e um crescimento também negativo, com taxa de -2,26% a.a. Diante de tais dados e da comparação entre os valores atribuídos aos dois distritos, podemos perceber que o bairro dos Campos Elíseos apresenta uma população predominantemente adulta, dotada de uma 14
faixa salarial entre médio-baixo e médio, e que vem sofrendo sucessivamente a diminuição de sua população. Fato este que nos parece interessante de ser confrontado com os esforços de um incipiente mercado imobiliário (considerando-se um tipo específico de atuação deste mercado e da forma por ele produzida – o padrão torre-clube –, bastante atual, e a estagnação deste setor no bairro por duas décadas após os anos 1980) em se reestabelecer na área Central de São Paulo. Após esta breve explanação sobre o perfil sócio-político do bairro e da região, acreditamos ser possível prosseguirmos com a evolução histórica do bairro sem perdermos o contato com sua situação corrente, o que nos instiga a pesquisar sobre os processos políticos, econômicos, sociais e culturais que acarretaram nesta atual conformação sócio-espacial dos Campos Elíseos.
1.2 Campos Elíseos e seu verdadeiro perfil populacional: formas de habitar, hábitos e práticas de espaço urbano Como já descrevemos em relatórios anteriores, o loteamento do bairro dos Campos Elíseos surge a partir da urbanização de antigas chácaras existentes nas franjas da mancha urbana da cidade até meados do século XIX. Discorrendo um pouco mais sobre estas chácaras e este momento da história da urbanização paulistana, citamos Maria Cecília N. Homem, autora que descreve o processo de incorporação destas propriedades rurais à área urbana da cidade: “os Campos Elíseos, situados entre Santa Ifigênia, os trilhos da Inglesa e da Estrada de Ferro Sorocabana, nasceram dos loteamentos de duas chácaras, efetuados no período de 1880 a 1890”, empreendimento dos imigrantes Nothmann e Glete, com levantamento técnico da área realizado pelo “arquiteto alemão von Puttkamer. Em 1885, Elias Pacheco e Chaves loteou o seu haras, completando o lado ímpar da antiga Alameda dos Bambus (hoje Avenida Duque de Caxias)” (Homem, 1996: 87).
15
Chácaras que formaram o bairro dos Campos Elíseos, Bom Retiro, Higienópolis, Santa Ifigênia. Legenda: 1- Chácara Elias Chaves; 2- Chácara do Carvalho; 3- Campo Redondo; 4- Marquês de Três Rios; 5- Barão de Antonina; 6Chácara Miguel Carlos; 7- Brigadeiro Gavião Peixoto; 8- Barão de Piracicaba II; 9- Brigadeiro Tobias (parte); 26Chácara Senador Feijó; 31- Chácara das Palmeiras. Fonte: HOMEM, 1996: 82 (recorte parcial).
A imagem acima mostra quais eram as chácaras existentes antes dos loteamentos. Fizemos um recorte na imagem, focando a área de nosso objeto de estudo, para mostrar as extensões destas propriedades. Portanto, nosso objeto de estudo é produto do parcelamento do solo e urbanização de partes das chácaras Campo Redondo, Elias Chaves e Chácara do Carvalho. Com a urbanização das fazendas, o objetivo dos empreendedores era que os Campos Elíseos fossem um bairro refinado, lugar de moradia burguesa, com espaço urbano inspirado nos padrões franceses de urbanismo. Mas esta uniformidade social desejada não foi totalmente atingida. Conforme prometemos no pedido de renovação da bolsa, faremos uma discussão a respeito da idéia de uniformidade social e arquitetônica, com o objetivo de revelar que, se hoje o bairro é marcado por abismos sociais e por ilhas de segregação espalhadas por seu território, outrora não o fora tão diferente2. Com fins metodológicos, abordaremos as formas de morar no
2
Neste ponto, referimo-nos à diversidade de perfis socioeconômicos da população do bairro presente nos dois momentos, dentro das particularidades de cada um dos contextos históricos, não entrando em discussão panoramas da desigualdade social urbana na cidade de São Paulo nestes dois tempos.
16
bairro no início do século XX através da seguinte polarização: o palacete, enquanto arquitetura residencial de elite, e o cortiço, moradia proletária mais comum nos Campos Elíseos3. No que se refere aos hábitos e costumes da população paulistana dos últimos anos do século XIX, em São Paulo, diferentemente das populações das grandes cidades litorâneas brasileiras, como Rio de Janeiro ou Salvador, na São Paulo de fins do XIX, “o paulistano incorporara hábitos rurais de vida e mostrava-se conservador quando comparado à sociedade da corte do Rio de Janeiro. Sua vida cotidiana regulava-se pelos astros e pelos sinos das igrejas, antes do que pelo relógio. Acordava ao raiar do dia e fazia as refeições muito cedo. Às nove e meia da noite, os sinos da Igreja do Carmo davam o toque de recolher e as ruas ficavam entregues aos retardatários, às prostitutas e aos arruaceiros, envoltos pela garoa gelada, característica de um clima mais ameno, sem os rigores das cidades litorâneas” (Homem, 1996: 20). O paulistano comum de antes da chegada dos barões do café e dos imigrantes e, portanto, proveniente das camadas populares da sociedade paulista, era regido por um ritmo de vida e cultura ainda bastante provincianos; ao contrário das famílias de elite que deslocavam suas residências para a capital com a chegada da ferrovia nas fazendas de café do oeste do Estado de São Paulo – estas famílias, apesar de habitarem longe dos grandes centros urbanos, possuíam cultura muito influenciada pelos ditames da burguesia européia; da mesma forma, os imigrantes recém-chegados, provenientes, em sua maioria, de países europeus onde a urbanização já era uma realidade, e onde estes indivíduos já se configuravam como proletariado, efetivamente, também trarão sua contribuição para a formação do caráter cosmopolita da cidade de São Paulo. Essa dicotomia entre o paulistano pobre ainda provinciano e o imigrante proletário conformará complexa e nova atmosfera política inserida em uma trama social diversificada, fenômeno inédito na cidade até então. Estas fusões de realidades sociais são causa e conseqüência
3
Entre as soluções habitacionais à disposição da nova classe trabalhadora (operária) da cidade de São Paulo, havia o cortiço, a pensão e as vilas, estas geralmente fornecidas pelos próprios empregadores, preocupados com a qualidade de vida de sua força de trabalho. Mas em nosso objeto de estudo estas vilas não eram comuns, nem tampouco as pensões, citadas anteriormente. Isso nos fez adotar o cortiço como ícone da polarização da moradia popular dentro do recorte sugerido.
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de novas práticas do espaço4 urbano paulistano, sendo os bairros operários e as próprias atividades fabris o lugar comum entre a nova sociabilidade e a formação política da classe trabalhadora da São Paulo do início do século XX. A chegada de novos trabalhadores, fazendo crescer constantemente a população a partir de então, fez aparecer conflitos em relação à questão habitacional, ainda que no final do século XIX um fato específico na esfera das finanças tenha gerado conseqüências no aumento da construção civil por toda a cidade: em 1875, “a falência do Banco de Mauá provocava a desconfiança da população nos estabelecimentos bancários, começando os cidadãos a partir desse momento a empregar o dinheiro na aquisição de terrenos e construção. (...) Entretanto, a despeito desse movimento, desse espetáculo que por todos os lados se apresenta de casas em construção, não corresponde o número de edificações que se prontificam às proporções da procura de casas pela sempre crescente população da cidade” (SEGAWA, 2000: 23, 26). Com uma população em constante crescimento, a cidade de São Paulo começa desde então a se ver diante da problemática do déficit habitacional, que impactará fortemente em aspectos sociais da vida urbana, tendo como conseqüência a supervalorização (em termos econômicos) dos cortiços, a partir do aumento da procura em relação à oferta, solução mais comumente empregada para combater o – e se aproveitar dele – déficit habitacional. Os cortiços eram mais comuns em bairros operários, como o Bom Retiro e a Barra Funda, ambos de grande importância no cenário urbano da época e imediatamente ligados por uma continuidade espacial e territorial aos Campos Elíseos. Aqueles dois bairros eram redutos do proletariado estrangeiro, sobretudo italiano, que chegava à cidade a partir da primeira década do XX, e o foram ao menos até os anos 1940, quando esta colônia passa a se concentrar na Mooca, bairro pericentral da zona leste da cidade. 4
O conceito de práticas de espaço que nos referimos é aquele traçado por de Certeau, pensador francês que defende a idéia de que na escala do indivíduo que pratica o espaço, i.e., daquele o usa e que dele se apropria, este espaço é diferente. Assim, segundo o autor (1994), seria a partir do espaço praticado que a antropologia e os estudos urbanos em geral deveriam se debruçar. Em nosso texto, o espaço praticado referido é definido pelas formas que os citadinos de São Paulo do início do século passado se relacionam e vivenciavam o espaço urbano, sendo portanto diferente daquele tomado a partir de uma perspectiva generalista.
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Mas também nos Campos Elíseos o perfil populacional contava com a participação de indivíduos oriundos dessas novas camadas sociais, enquanto trabalhadores de um novo setor econômico da cidade (a indústria). Os cortiços, enquanto forma de habitar mais recorrente da população proletária, estavam presentes também no elitizado loteamento de Nothmann e Glete, pois houve grande “adaptação do bairro às novas condições sociais provocadas pelo processo de urbanização da cidade, que determinou (...) a presença de cortiços nas antigas mansões”5. Nestor Goulart Reis Filho afirma que “existiram casas populares e cortiços em todos os lugares onde houve deterioração, em todos os pontos onde foi possível obter terrenos por preços mais baratos; em todas as frestas entre loteamentos de alta renda, até mesmo em alguns trechos da Rua da Consolação, em alguns setores da Alameda Santos e em desvãos de Higienópolis e da Vila Buarque. Sem falar nos bairros da Liberdade e de Santa Ifigênia, na Rua João Teodoro, na Luz, e em Santana” (REIS FILHO, 1994: 89); certamente, as ruas de borda dos Campos Elíseos também passaram por este tipo de ocupação – e em grande maioria, passam até hoje. Citando o Relatório apresentado à Câmara Municipal em 1893, Richard Morse revela em seu livro (1970) que “um cortiço típico (...) ocupava o interior de um quarteirão, onde o terreno era geralmente baixo e úmido. Era formado por uma série de pequenas moradias em torno de um pátio ao qual vinha ter, da rua, um corredor longo e estreito. A moradia média abrigava de 4 a 6 pessoas, embora suas dimensões raramente excedessem 3 metros por 5 ou 6, com uma altura de 3 a 3,5 metros. Os móveis existentes ocupavam um terço do espaço. O cubículo de dormir não tinha luz nem ventilação; superlotado, à noite era „hermeticamente fechado‟. (...) Eram variações do cortiço: um prédio único (às vezes um sobrado modificado), excessivamente subdividido; o hotelcortiço de tipo dormitório; e barracões improvisados no fundo de estábulos e armazéns” (MORSE, 1970: 264). Contrariamente a essas edificações cuja habitabilidade era tão precária, o palacete figurava, no pólo oposto de nossa análise, o modo de habitação mais característico da elite 5
Consta do texto de autoria do CONDEPHAAT no processo de tombamento da malha viária e de edifícios remanescentes em 1986. Ver em Relatório 2, Anexos, processo CONDEPHAAT.
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paulista em solo urbano. De acordo com Maria Cecília N. Homem, o palacete seria uma edificação que “constituiu um tipo de casa unifamiliar, de um ou mais andares, com porão, ostentando apuro estilístico, afastada das divisas no lote, de preferência nos quatro lados, situada em meio a jardins, possuindo área de serviços e edículas nos fundos. Internamente, sua distribuição era feita a partir do vestíbulo ou de um hall com escada social, resultando na divisão da casa em três grandes zonas: estar, serviços e repouso” (Homem, 1996: 14).
E eram
indivíduos “detentores dos principais meios de produção, de fazendeiros e demais empresários do café, como comissários, banqueiros, investidores da construção civil e pioneiros da indústria, compreendendo, ainda, os profissionais liberais, os funcionários públicos e os políticos bemsucedidos que estiveram vinculados a tais famílias, quer por laços de parentesco quer como prestadores de serviço. (...) Designou sempre, em São Paulo, a casa melhor e mais ampla, o sobrado de dois pavimentos, em oposição à casa térrea, popular” (Homem, 1996: 15, 19). Casas das famílias mais ricas, os palacetes possuíam recuos em todos os lados do terreno 6, ao passo que a tipologia das residências de classe média “persistiu no alinhamento, embora recebessem recuos ou entradas laterais, manifestos por entradas ou saguões, corredores ou jardins, soluções consideradas a meio caminho entre a arquitetura tradicional e o Ecletismo” (REIS FILHO, 2004: 89). Nestor Goulart Reis Filho faz uma abordagem bastante clara sobre arquitetura de elite e lote urbano. Ele disserta que no período de 1850 a 1900, surgem, no Brasil, “as casas urbanas com novos esquemas de implantação, afastados dos vizinhos e com jardins laterais” (ibidem, p. 43), a fim de garantir mais privacidade para a família residente. Este modo de promover a unidade habitacional, de grande destaque na época, pode ser encontrado ainda em alguns exemplares do patrimônio histórico sobreviventes no bairro. A nova casa burguesa aproximava-se de uma tipologia própria das chácaras, as quais, até então, eram as únicas edificações que comportavam jardins e de afastamentos limítrofes ao terreno particular. 6
Não era regra absoluta a existência de recuos para habitações das classes altas, apesar deles serem bastante recorrentes. Exemplo de exceção à regra é o palacete de Olivia Penteado, nos Campos Elíseos, construído no alimento do lote, numa das esquinas do cruzamento da Rua Conselheiro Nébias com a Avenida Duque de Caxias. Trataremos deste exemplo no item 3.6.5 deste relatório.
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Soluções deste tipo eram ainda tipicamente rurais, mas nas últimas décadas do século XIX este modelo de implantação começou a servir à cidade como novo ideal de espaço urbano. Entretanto, este novo conceito de habitar não era o único modo presente no “bairro dos barões do café”, mas talvez seja o que mais tenha se destacado na História – enquanto manifestação da memória coletiva da cidade – em decorrência de suas inovações tecnológicas e sua nova relação com o espaço construído da cidade. Partindo dessa relação estreita entre arquitetura e lote urbano, Nestor nos mostra que “as primeiras transformações verificadas então nas soluções de implantação ligavam-se aos esforços de libertação das construções em relação aos limites dos lotes. O esquema consistia em recuar o edifício dos limites laterais, conservando-o freqüentemente sobre o alinhamento da via pública. Comumente o recuo era apenas de um dos lados; do outro, quando existia, reduzia-se ao mínimo” (ibidem, p.44).
Palácio moradia sem recuo geminada “em série”
palacete (atual Colégio N. S. Loretto)
moradia geminada sem recuos palacete (atual Fundunesp)
moradia sem recuos
Observando a figura acima, um recorte do mapa Sara Brasil, de 1930, vemos uma grande diversidade de tipos de lotes e de tipologias arquitetônicas decorrentes das características do lote, 21
do que era possível ser feito. Lotes maiores eram caros, e quem tinha o poder de comprá-los também detinha o de construir uma edificação digna do porte do lote. O Palácio de Elias Chaves (que após ser comprado pelo Estado de São Paulo passou a ser chamado e Palácio dos Campos Elíseos), por exemplo, apresenta o maior lote urbano particular do recorte acima, assim como a maior residência unifamiliar, cabendo chamá-lo de palácio, ao invés de palacete. Em lotes menores, mas ainda uns dos maiores do bairro, as unidades atualmente ocupadas pela Fundunesp e o Colégio Nossa Senhora do Loretto, são exemplos de propriedades que permitiam aos arquitetos contratados certa ousadia, com proposições de jardins e posicionamentos do edifício em destaque, no meio do lote, como um palacete. Mas os mais comuns eram lotes que permitiam alguns recuos mínimos (frontais, laterais e de fundos) e aqueles que permitiam apenas um (ou frontal, ou lateral), tão numerosos na imagem inserida acima, assim como também era muito expressiva a quantidade de lotes que comportavam apenas a arquitetura mais tradicional, fina e alongada, geminada (ou sem recuos), porém ainda dotadas de adornos e proporções de fachada próprias do ecletismo. Estas edificações são moradias que ocupam lotes em série, geminados com o mesmo projeto, como conjuntos de casa de aluguel para os trabalhadores assalariados em ascensão à classe média.
A panorâmica acima mostra o estado atual (2009) de algumas das edificações representantes da classe média de antes de 1930. Estas construções são implantadas em lotes estreitos e profundos, e possuíam recuo no fundo do lote e algum lateral, onde se instalava o portão e a escada de acesso. Ao longo do século passado, contudo, estas edificações foram transformadas em cortiços e no fundo do lote foram construídos mais dormitórios, aumentando o número de famílias atendidas. Foto do autor tirada a partir da R. Adolfo Gordo, cruzamento com a Al. Ribeiro da Silva.
Assim, verificamos a complexidade da construção do espaço urbano e das construções privadas dos Campos Elíseos até a década de 1930. Fica clara a existência de uma relação estreita 22
entre espaço urbano, lote urbano e edificação, uma delimitação clara do espaço público e do espaço privado, e um método de produção habitacional que não era muito homogêneo. Podemos identificar, sim, a existência de uma única técnica e de um único estilo (ou conjunto de estilos, que aqui nos contemos em considerar como eclético), i.e., de um único partido arquitetônico. Mas as formas com as quais este partido arquitetônico era empregado variavam de acordo com o tamanho do lote e, certamente, de sua localização na cidade. Os hábitos e costumes presentes na ebulição de culturas de indivíduos de diferentes nacionalidades em contraste com o dos paulistanos não são coadjuvantes neste processo, pois “foi sob a inspiração do ecletismo e com o apoio dos hábitos diferenciados das massas imigradas, que apareceram as primeiras residências urbanas com nova implantação, rompendo com as tradições e exigindo modificações nos tipos de lotes e construções” (ibidem, idem). Portanto, a partir da variação dos padrões arquitetônicos analisados e do estudo da escassa bibliografia existente, podemos concluir quais as diferentes camadas sociais que encontraram no bairro a possibilidade de moradia. O padrão arquitetônico revela, então, o grau de investimento privado na produção da edificação, dentro de um conceito de beleza e habitabilidade dominante na sociedade daquele tempo. Arquiteturas soltas em um grande lote, com muitos recortes e bem trabalhadas revelariam, portanto, que a família residente naquele imóvel era, originalmente, de uma classe social mais enriquecida. Já as residências geminadas em série seriam ocupadas por indivíduos que não necessariamente eram seus proprietários, mas talvez locatários ou empregados assalariados de alguma fábrica local, ou mesmo domésticos das edificações mais luxuosas do bairro. Então, os registros de arquitetura e urbanismo servem como bases para investigações de cunho sociológico, buscando conhecer modos de habitabilidade e de apropriação do espaço por uma população residente de determinada área. Constatamos que o Centro de São Paulo é uma área historicamente popular e diversificada socialmente, assim como os Campos Elíseos, que desde o princípio abrigaram famílias de origens sociais bastante diversificadas, o que é evidente pela diversidade de tipologias existentes nos 23
registros oficiais do bairro e da cidade. Se existiu uniformidade social na região, contudo, esta não teria ocorrido nos Campos Elíseos, como é amplamente divulgado, mas possivelmente nos bairros contíguos a este último, em especial naqueles tradicionalmente ocupados pela classe operária e imigrante: o Bom Retiro, a Barra Funda e a Luz. Julgamos necessário descrevermos um pouco sobre como estava ocorrendo a ocupação dos territórios mais próximos do bairro: O Bom Retiro e a Luz. Isso se faz importante pois, apesar de derivados de processos de formação diferenciados, os três bairros configuram hoje uma unidade senão comum, ao menos bastante próxima, em seus aspectos sociais, econômicos e até patrimoniais.
1.3 Bom Retiro e Luz: aspectos de dois bairros vizinhos O Bom Retiro, ao contrário de seu vizinho, o bairro dos Campos Elíseos, sempre teve, desde o processo inicial de sua urbanização até os dias de hoje, uma vocação estritamente popular, acolhendo em suas ruas, lotes e casas (além das hospedarias), os imigrantes vindos de várias origens do mundo. A relação com os trechos nobres dos Campos Elíseos era de confronto de classes, de oposição de realidades de vida e de espaço urbano, apesar de haver certa interdependência entre ambos no quesito econômico: os palacetes dos Campos Elíseos precisavam de empregados que substituíssem a mão-de-obra que até pouco tempo ainda era escrava e, o Bom Retiro, por sua vez, possuía famílias inteiras que vieram para o Brasil dispostas a trabalhar – e muito – para obter melhores condições de vida. Mas o traço marcante do Bom Retiro não é apenas a acolhida dos imigrantes; é também a de acolher diferentes frentes de imigrantes, “humildemente os deixando partir” quando para eles fosse interessante, como os italianos que migraram para a Mooca e Bixiga na década de 1930 e os judeus que partiram rumo à Higienópolis nos anos 1970, deixando o bairro para que agora fosse 24
acolhida a comunidade coreana. Ainda hoje, porém, é possível ver alguns judeus andando nas ruas, embora sejam mais freqüentes os bolivianos e coreanos, estes, prioritariamente àqueles. Hoje diminuta no bairro, a comunidade judaica teve um papel fundamental para a consolidação urbana do local após o fim da década de 1930, quando vieram “fugindo da perseguição nazista. Sua chegada no bairro acentuou-se nos anos duros da 2ª Guerra – 1939 a 1945. Foram eles os responsáveis pelo grande progresso do bairro. Os judeus se tornaram pioneiros na venda em prestações, que deu grande impulso ao comércio da região, principalmente nas ruas José Paulino, da Graça e Barra do Tibagi” (PONCIANO, 2001: 33-34). A diversidade de línguas e sotaques encontrada atualmente nas ruas do Bom Retiro é uma das características que formam a personalidade do bairro, criando um verdadeiro patrimônio imaterial, com as falas, os poemas, as músicas... Parece que o destino do Bom Retiro é sempre o de acolher as minorias, até que estas sejam “maioria” e se mudem de lá. Mas as contribuições culturais permanecem presentes, mesmo silenciosas e eternizadas nas paredes levantadas em meados do século passado, no nome das ruas, nos hábitos locais, no patrimônio edificado, nas ruínas de uma época, guardadas no bairro como documentos de uma história. Mas há cerca de duzentos anos, o que hoje conhecemos como Bom Retiro era uma extensa área plana, onde se situavam chácaras e fazendas. Nesta época, a região já possuía um eixo improvisado de ligação ao platô triangular urbanizado da cidade de São Paulo; tratava-se de um caminho de terra, estreito, “uma estrada de tropeiro em direção norte, cruzando o [córrego] Anhangabaú” no ponto onde hoje se situa o Viaduto Santa Ifigênia, e onde, na época, fletia a leste este córrego (hoje canalizado), rumo ao Rio Tamanduateí, (o qual padeceu do mesmo destino) a partir de onde a estrada caminhava “para a planura adiante onde se situaria, mais tarde, o bairro do Bom Retiro.” (DERTONIO, 1971). Além dos sítios tipicamente rurais, a região também abrigava chácaras de lazer e veraneio, destinadas aos mais abastados moradores da cidade passarem períodos de descanso e retiros de finais de semana. Uma destas chácaras recebia, por essa “vocação”, o nome de Bom Retiro e, 25
quando foi loteada nas duas últimas décadas do século XIX, tal nome foi adotado para o novo espaço urbano, formado pelo traçado de algumas poucas ruas sobre a chácara de mesmo nome. Ponciano (2001: 33) nos mostra uma relação decisiva entre a formação do bairro do Bom Retiro e a existência do bairro da Luz: “a Luz (...) foi decisiva para o crescimento do Bom Retiro, que conheceu o progresso a partir da inauguração da estação ferroviária. Assim como no Bixiga, no Belém e no Brás, vivia no Bom Retiro uma grande colônia de italianos e portugueses. (...) Na década de 1880 a 1890 fez-se o loteamento e a urbanização do bairro do Bom Retiro, processados pelo empresário Manfredo Meyer. A divisão abrangeu muitos sítios e chácaras que se localizavam entre a linha férrea inglesa e as várzeas do Tietê e Tamanduateí.” Dessa forma, percebe-se que o bairro da Luz já era ocupado antes da urbanização do Bom Retiro, quando, segundo Affonso Taunay, teria o Frei Antonio de Sant‟Anna Galvão construído, em 1774, com uso da tradicional técnica colonial da taipa-de-pilão, o Mosteiro de Nossa Senhora da Luz, popularmente conhecido como Mosteiro da Luz (razão pela qual seus arredores ficaram conhecidos como “bairro da Luz”). Segundo o arquiteto, o edifício media “de comprido duzentos e quarenta e tantos palmos e de largo cento e setenta e tantos com grande área no meio e cerca extensa, obra da Providência” (TAUNAY, 1953) e, para ele, “o bairro da Luz haveria de tornarse como que o coração da cidade.” (apud TOLEDO, 2004: 58). Assim como o bairro do Bom Retiro era conectado ao platô triangular por meio de um caminho, a região da Luz conectava-se, no início do século XVIII ao Largo de São Bento por dois caminhos de terra que atravessavam o Anhangabaú; no século XIX foram consolidados na atual Rua Florêncio de Abreu e na Avenida Tiradentes. Aqueles caminhos de tropeiros coincidiam na planura da Luz, ao lado do Mosteiro, numa praça comercial improvisada, onde os tropeiros vindos de Bragança e Atibaia pela Zona Norte se reuniam para comercializar seus produtos. A Luz era, portanto, passagem obrigatória a quem saísse do Triangulo histórico em direção a parte nova da cidade, aos Campos Elíseos, ao Bom Retiro e à Santa Ifigênia.
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Ainda hoje, a atividade comercial é intensa no bairro, apesar do incipiente pólo cultural ali formado (anos 1990 – 2000). Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos sofreram um processo comum de popularização e deslocamento da elite ao longo das últimas décadas do século passado. E foi nos anos 1970 que o Centro como um todo assumiu o caráter verdadeiramente popular, e, ainda, foi quando se começou a pensar sobre a importância patrimonial que estes bairros centrais possuíam – e possuem – para a memória da cidade; esse quadro culminará na implementação de políticas patrimoniais específicas a partir de então, através do tombamento de edifícios históricos a partir da década de 1970, e de programas ditos de “revitalização”, a partir dos anos 1990.
1.4 Anos 1970: mudanças de rumo Apesar de ter sido marcadamente ocupado por uma diversidade de classes sociais, com algumas ilhas de concentração de alta renda, foi nos anos 1970 que o Centro de São Paulo passou a ser absolutamente popular. Com a proliferação de comércio de varejo, de ruas e setores comerciais especializados, dos fluxos constantes de pessoas e mercadorias, a elite teria se deslocado pelo município conduzindo a valorização imobiliária rumo ao vetor sudoeste. A vacância do estoque edificado que fora construído para moradia dos grupos dominantes culminou com a consolidação da área para moradia da baixa renda. A questão da violência urbana passa a entrar em pauta neste momento e, segundo Villaça, esta não é causa da saída da elite, mas conseqüência do abandono da área pela mesma e pelo poder público. Neste momento, a cidade cresce se expandindo para a periferia com moradias de auto-construção da classe trabalhadora, revelando que com novo contingente populacional, grande parte dos trabalhadores que antes ocupavam áreas populares do Centro, passam agora a ocupar as periferias – regiões detentoras de possibilidade, pela compatibilidade entre custo de vida e renda – já não habitariam mais a região central da cidade: é
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no final desta década que surge a idéia de que o Centro é local de ilegalidade, decadência e marginalidade7. Nos idos dos anos 70, a área central, mas principalmente aquela porção do Centro formada pelos bairros da Luz, Bom Retiro e Campos Elíseos, concentrava as estações ferroviárias da Luz e de Júlio Prestes, ainda importantes ligações metropolitanas; com a criação do primeiro Terminal Rodoviário Municipal8 proliferam-se pequenos hotéis, hospedarias, cortiços, bares e pequenos restaurantes, negócios advindos do aproveitamento do constante desembarque de novos fluxos migratórios, agora prioritariamente de origem nacional. Os anos 1970 são a época do “Milagre Econômico”, do auge da ditadura militar no Brasil, e da migração de milhares de nordestinos para a região sudeste do país, sendo a capital paulista o destino preferido. Vinham para trabalhar na construção civil, sobretudo, embora diversos outros setores econômicos de base tivessem aberto suas portas para os “novos paulistanos”. O Centro foi “progressivamente (mas ainda não totalmente) abandonado pelas camadas de alta renda desde a década de 1960, os centros tradicionais foram deixados deteriorar. Os „pontos‟ centrais não eram mais tão bons como outrora, pois a nova mobilidade territorial criou novos „pontos‟ para serviços pessoais, lazer, profissionais liberais e lojas das burguesias. Os edifícios do centro tradicional, abandonados, perderam seu valor imobiliário e foram deixados deteriorar. Assim, ao contrário do que essas classes afirmam, foi seu abandono que fez com que os edifícios se deteriorassem, pois não compensava mais mantê-los. Não foi a deterioração que provocou o abandono” (Villaça, 2007: 282, grifo nosso). Villaça nos mostra, ao analisar metrópoles brasileiras em “Espaço Intra-Urbano no Brasil”, que “por volta da década de 1970 – variando um pouco conforme a metrópole -, os centros já estavam bastante abandonados, principalmente como local de compras, diversões e escritórios 7
Curiosa a atribuição do Centro como espaço marginal, ainda que fisicamente seja “central”. Neste sentido, o termo é cunhado atribuindo ao espaço urbano central uma característica social, ou seja, um lugar praticado por práticas marginais às aceitas pela cidade formal. 8
Este só teria se saturado no final daquela década, e translocado somente em 1982 para onde se encontra o atual Terminal Rodoviário do Tietê.
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profissionais liberais das burguesias. Estabelecimentos como o Mappin, em São Paulo, que ainda atendiam à alta burguesia paulistana nos anos 50 tornaram-se lojas populares. (...) O Mappin não saiu do lugar e foi obrigado a se popularizar. Na década de 1980, os centros principais já estavam quase totalmente tomados pelas camadas populares. Aquilo a que se chama ideologicamente de “decadência‟ do centro é tão-somente sua tomada pelas camadas populares, justamente sua tomada pela maioria da população. Nessas condições, sendo o centro realmente da maioria, ele é o centro da cidade” (ibidem, p. 283). Se a presença do Terminal Rodoviário na Praça Júlio Prestes contribuiu para o desinteresse da elite e da classe média pelos bairros centrais, sua transferência para o Tietê levou os Campos Elíseos e a Luz, que haviam se tornado verdadeiramente populares, se tornassem lugar nenhum. Atividades e serviços que mantinham os bairros vivos até então, se dispersaram. O vazio tomou conta da região, até que a prostituição e o tráfico de drogas se apropriasse daquele espaço, por volta dos anos 1980 e início dos anos 1990. “A partir de então, outro fator especificamente brasileiro colaborou inegavelmente para agravar essa ruptura e aniquilar a frágil simbiose centro-classes média e média alta centrais: a tomada do centro pela violência, mais do que sua tomada pelos miseráveis. (...) A tomada do centro é mais efeito do que causa do abandono do centro por parte das classes média alta e alta” (Ibidem, p. 154). Essas mudanças de rumo – a popularização e o esquecimento – irão acarretar em problemáticas bastante específicas, como o abandono de imóveis, a violência, a depredação do patrimônio histórico, as demolições (em grande parte decorrentes de medidas desesperadas de proprietários temerosos do significado do tombamento e das conseqüências para seu patrimônio – neste caso imobiliário – que os levantamentos do Metrô sobre a importância patrimonial do bairro, nos anos 1970), o tráfico de drogas. No entanto, essa situação começará a sofrer um processo de reversão a partir de meados dos anos 1990, quando o poder público e setores da iniciativa privada irão pregar a volta ao centro, a recuperação do cenário histórico e a solução das problemáticas sociais latentes, mesmo que sem muito critério para tanto. 29
Considerações Projetado aos moldes do urbanismo francês do século XIX, o bairro dos Campos Elíseos eram a representação da vida moderna, na cidade. Se Paris era o cânone internacional de cidade burguesa por excelência, por que não nomear o novo bairro com uma referência direta ao mais charmoso boulevard parisiense? A estratégia ideológica de produção do espaço, instrumento inédito até então na produção urbana da cidade, atingiu facilmente seu objetivo. No começo do século XX, grande parte dos lotes que foram desenhados pelos engenheiros europeus já estavam vendidos, ocupados e construídos. Construções estas também referenciando a arquitetura eclética de Paris, seja nos edifícios mais luxuosos, como o Palácio dos Campos Elíseos, seja nos edifícios de até sete pavimentos, tão parecidos com aquela arquitetura característica da cidade haussmanniana, seja nas construções mais modestas, em lotes pequenos ou longos e estreitos, que não por isso poderiam deixar de empregar os adornos, ao menos, nas fachadas daquelas edificações mais humildes. Neste capítulo pudemos perceber, ainda, a existência de um hibridismo de classes sociais entre os moradores dos Campos Elíseos que não é exatamente de hoje; ela é original do bairro, e o desenho dos lotes levou a essa delineação do espaço com conseqüências nos aspectos sociais do bairro e da cidade, daí sua importância histórica como tecido urbano. Atualmente, contudo, a diferença social é mais latente, sinônimo de desigualdade social, pois se existe uma classe médioalta moradora de trechos ainda valorizados, como a parte Norte da Alameda Barão de Limeira, existe a poucos metros moradores favelados e encortiçados, quando não são indivíduos em situação de rua ou dependentes químicos que antes freqüentavam os espaços públicos da Luz. Os entorpecidos têm se tornado cada vez mais comum nos Campos Elíseos em decorrência das operações que vêm sendo implementadas pelas obras no bairro da Luz, para desgosto de uma classe média moradora. O Bom Retiro, curiosamente, fica à parte; e é provável que isso se deva à privatização da segurança no espaço público do bairro, com câmeras filmadoras nas esquinas e seguranças à paisana, contratados pelos comerciantes coreanos. Quando o privado se sobrepõe ao 30
público, o caráter social do espaço parece pasteurizar-se, tornando o bairro uma ilha, um tecido amorfo que se isola em si mesmo, deixando de haver as relações sociais que haviam até então. Mas o bairro mudou, ou melhor, os bairros mudaram, sobretudo nos últimos 50 anos. O Bom Retiro residencial dos italianos e residencial-comercial dos judeus passou a ser o bairro comercial dos bolivianos e coreanos; a Luz se popularizou intensamente, trazendo com isso moradores de renda mais baixa aos edifícios e um comércio de rua que se especializou em níveis continentais; os Campos Elíseos perderam sua áurea aristocrática, e passaram a ser ocupados por novos moradores, essencialmente os novos migrantes chegados a partir dos anos 1960, e que se estabilizavam nas margens da Antiga Rodoviária e das estações de trens da Júlio Prestes e da Luz. Novos moradores, novos usos, novos aspectos. E a nova contribuição para a constituição da cidade atual estava apenas começando. Os anos 1970 seriam o ponto ótimo dessa mudança, trazendo novos conflitos, novos agentes e “novos lugares9”.
2.
Capítulo 2 – O Mercado Imobiliário como agente transformador do espaço –Novas considerações sobre a atuação deste setor sobre o bairro
Poucos são os agentes da (trans)formação do espaço urbano tão incisivos sobre a cidade quanto o mercado imobiliário. Ao menos, dentro de um sistema capitalista. E dentro deste sistema, em que tudo – ou quase tudo – é mercadoria, o espaço urbano não poderia ser diferente à regra. No caso dos Campos Elíseos, sua atuação é ainda mais singular, dado o fato de que o bairro nasceu de um loteamento privado, com um planejamento específico para receber um público (ao menos em sua maior expressão) específico. Os vetores de expansão econômica, as desvalorizações seguidas de valorizações e os fluxos de capital dinamizam esse processo. E, ao longo de um século, 9
Partimos da bem difundida definição de que o lugar é o espaço onde há pertencimento. Novos lugares significaria, portanto, novas características de uso e apropriação do espaço, com outros fins e outros agentes.
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percebemos o desenvolvimento do bairro como o fechamento de um ciclo (valorização – desvalorização – revalorização) deste tecido urbano e, estamos certos de que o mercado imobiliário não assume papel coadjuvante nesta história.
2.1 Dinâmicas imobiliárias do espaço urbano: breve análise na cidade. A dinâmica do setor imobiliário na cidade de São Paulo cria e recria constantemente centros e centralidades, zonas valorizadas e privilegiada, e promove o abandono de outras já consolidadas, estrategicamente deixadas em estado de deterioração. Já expusemos em relatórios anteriores (respaldados principalmente pela perspectiva histórica da teoria de Flávio Villaça, 2007) a respeito do deslocamento das elites e dos chamados “centros” da capital paulista por seu território, e de como isso foi tomado como desculpa ideológica, nas palavras de Villaça, para descrever a “decadência” do Centro. Buscamos agora atingir a análise das dinâmicas do espaço urbano com o respaldo teórico de autores ainda não estudados. Na década de 1970, Paul Singer discutiu o caráter especulativo do mercado imobiliário no artigo “O uso do solo urbano na economia capitalista”, de 78, ao relatar que “no mercado imobiliário, a oferta de espaço não depende do espaço corrente, mas de outras circunstâncias. (...) Como a demanda por solo urbano muda frequentemente, dependendo, em última análise, do próprio processo de ocupação do espaço pela expansão do tecido urbano, o preço de determinada área deste espaço está sujeito a oscilações violentas, o que torna o mercado imobiliário essencialmente especulativo”10. Gabriel Bolaffi vai além, ao relatar como o processo de crescimento periférico das grandes capitais brasileiras tem acarretado na deterioração do habitat urbano; para o autor, a cidade de São Paulo é exemplo ímpar, pois “a aquisição de manipulação especulativa do solo, a incorporação desordenada e supérflua de novas áreas à cidade geram o desequilíbrio e a transitoriedade das 10
Singer, Paul. O uso do solo urbano na economia capitalista. In: Maricato, Ermínia (org). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979; pág. 23.
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funções urbanas e das vantagens locacionais dos setores do espaço urbano. As funções urbanas de bairros e distritos, em lugar de se expandirem pela incorporação do espaço vizinho, transferem-se para outras áreas, abandonando as localizações originais para novos usos. E a cidade cresce, mas cresce consumindo-se num movimento perene de demolições e de autodestruição” (BOLAFFI, 1975. In: Maricato, 1979: 60-61). Os dois excertos anteriores abordam significativamente duas questões: o caráter especulativo do mercado imobiliário e as estratégias de valorização do solo urbano por meio de deslocamentos ideológicos que, em geral, acompanham os caminhamentos da elite pelo território do município. São Paulo é, efetivamente, desta forma; ela cresce por meio dessa “lógica” e num “ritmo cancerígeno”, se nos é permitido o uso da figura de linguagem, para depois se consumir num processo de autofagia. Assim, como discorremos sobre a inovação que foi o loteamento das chácaras Campo Redondo, Elias Chaves e do Carvalho para o consumo da camada mais abastada da sociedade paulistana da belle époque – embora esteja claro de que a eugenia social não era total – os Campos Elíseos foram a primeira estratégia ideológica de “produção” e apropriação do espaço urbano segundo as teses de Singer e Bolaffi. Se até os anos 1980 a justificativa para esta mutação urbana era pautada numa perspectiva desenvolvimentista – em nome do progresso e modernização da cidade toda transformação era permitida –, hoje constatamos um momento outro: o estado de precariedade das áreas edificadas centrais na cidade, em consonância com a precariedade dos modos de vida de parte dos indivíduos que praticam aquele espaço, seriam as novas incontestáveis razões para tanto11. E o trecho de autoria de Bolaffi contribui para o debate que será traçado ao longo deste capítulo: as dinâmicas de criação e recriação de cenários urbanos valorizados, marcados por projetos de substituição do existente pela imposição de um novo uso justificado pelas novas necessidades sociais e de produção, contemporâneas a estes projetos.
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Sobre essa nova justificativa de intervenção urbana discorreremos mais a fundo no capítulo 3, sobre o patrimônio.
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2.2 Campos Elíseos e o agente “Mercado Imobiliário” como participante da produção e re-produção da habitação e do bairro: uma perspectiva histórica. Poucas décadas após a implantação da paisagem urbana europeizada, os anos 1930 trouxeram consigo novas configurações sociais para o bairro dos Campos Elíseos. O deslocamento da elite pelo território paulistano, como descreve Villaça (2007), teria servido de desculpa ideológica para o estado de desvalorização imobiliária e fundiária que se corporificava nos Campos Elíseos a partir de então. À desvalorização seguiu-se a vacância imobiliária e a esta, a apropriação dos imóveis para implementação de cortiços. Mas especificamente em relação ao deslocamento da elite dos Campos Elíseos, não é menos importante a influência de outros fatores, como a chegada da Estação ferroviária Júlio Prestes, em 1938, e do Terminal Rodoviário Municipal na Alameda Dino Bueno, também nos anos 30, fatores geradores de um aumento significativo de fluxos materiais, como transportes, mercadorias, novos comerciantes, migrantes e imigrantes, prestadores de serviços gerais, entre outros, como nos descreve Toledo: “Um dos fatores condicionantes do surgimento do bairro, a proximidade com a estação, acabou, aos poucos, contribuindo para sua decadência, dado o ruído e a intensa movimentação de veículos de carga no local” (1998: 108). Assim, o valor de mercado da terra do bairro caiu, a especulação imobiliária era atraída para outros vetores (não vindo a atuar na região até meados dos anos 1950), o que permitiu a instalação de uma população de renda média e médio-baixa no bairro. O bairro dos Campos Elíseos passou, então, a ser como os outros “locais antes pertencentes a estes grupos [de elite]” que “passaram a ser ocupados por camadas de mais baixa renda” (KARA-JOSÉ, 2004: 11).
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Foto do autor, tirada no final de 2007 a partir do topo da torre da igreja Sagrado Coração de Jesus, no Largo Sagrado Coração de Jesus. A foto mostra casarões dos Campos Elíseos transformados em cortiços, na região do Largo Coração de Jesus, e o estado de ruína de alguns deles. O cruzamento central da foto é o encontro da Alameda Glete com Alameda Barão de Piracicaba. A área central da foto, tomada por copas de árvores é a Praça Princesa Isabel, o terminal Princesa Isabel e o Palácio dos Campos Elíseos, todos objetos de intervenção no projeto de volta do Palácio do Governo para o bairro.
A desvalorização da terra e de alguns antigos casarões permitiu o surgimento de cortiços e habitações insalubres nestes lugares, solução que foi bastante procurada por imigrantes pobres (predominantemente no final do XIX e nas primeiras décadas do século XX) e pelos cidadãos brasileiros de outras regiões do país (migração predominante a partir dos anos 1950) que vieram à São Paulo em busca de emprego e melhores condições de vida. Os cortiços seriam, então, lugares onde estas famílias recém-chegadas à cidade, desprovidas de grandes recursos, poderiam alugar um cômodo mais facilmente, com a vantagem de estarem instaladas próximas aos meios de transporte e aos seus empregos, fossem na construção civil, nas fábricas e oficinas mecânicas, ou nos serviços domésticos. Ao mesmo tempo, os Campos Elíseos, entre outras regiões da zona central da cidade renegadas pelo poder público e pela população em geral, passou a ser um território livre para as ações ilícitas, como tráfico de drogas, meretrício e violência. Mike Davis afirma em “Planeta Favela” (2006:42) que “no antigo bairro elegante de Campos Elíseos, em São Paulo, ou em partes da paisagem urbana de Lima, bairros burgueses inteiros transformaram-se em favelas”, referindo-se ao encortiçamento dos antigos casarões da elite (tendência que o autor considera internacional), que hoje são perigosamente dilapidados e densamente povoados. O 35
fenômeno descrito pelo autor, apesar de um pouco generalista, revela uma situação real iniciada em meados dos anos 1930 e presente ainda nos dias de hoje. A proliferação de cortiços no bairro citada por Davis pode ser confirmada com o mapeamento dos cortiços da região central de São Paulo, realizado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), de 2004 e inserido abaixo (na cor laranja, os cortiços encontrados pelo estudo).
Cortiços nos Campos Elíseos. Fonte: CDHU. 2004.
Segundo esta pesquisa, existiam em 2004, nos Campos Elíseos, 115 casarões encortiçados (o número atual deve ser bastante próximo a este encontrado há quatro anos, uma vez que a questão da habitação foi pouco tratada nas gestões municipais desde então) desprovidos de condições mínimas de habitabilidade, com um contingente populacional variado, configurando uma verdadeira favela escondida por trás de cada muro e de cada fachada eclética degradada. Favela, em sua forma mais tradicionalmente encontrada, também existe nos Campos Elíseos; trata-se da Favela do Moinho e de suas 700 famílias vivendo em barracos, numa ocupação iniciada há cerca de 15 anos; mas este caso será melhor tratado no item 3.6.1.
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Nesta pesquisa, pudemos visitar alguns cortiços. Trazemos para o relatório a discussão de dois deles, ambos em edifícios históricos: um conjunto tombado no Largo Coração de Jesus e uma casa na Rua Adolfo Gordo (cuja vista frontal aparece na figura da página 20 deste texto; a casa referida é o sobrado verde mostrado no centro da imagem).
A foto da esquerda mostra o recuo lateral da edificação, originalmente projetado para servir de acesso ao pavimento principal da casa. Na foto da direita, o antigo recuo de fundo de lote agora ocupado por edículas insalubres para aluguel. A foto abaixo, fotografada a partir da laje de uma dessas edículas, mostra como é o espaço interno dessa quadra da Rua Adolfo Gordo, tendência que se repete nas demais regiões do bairro onde este tipo de uso do solo é predominante. Todas as imagens são de nossa autoria, de 2009.
O cortiço visitado da Rua Adolfo Gordo, cujas fotos foram estão expostas acima, é fragmentado em 14 dormitórios, cada dormitório tendo, em média, 10m2, “comportando” famílias de até cinco pessoas. Não muito diferente, ou talvez diferente apenas devido ao fato de ser dotado de habitabilidade ainda de mais reduzida, o cortiço visitado no Largo Coração de Jesus aparece em mapas oficiais da PMSP como centro cultural – algum equívoco grave ocorreu no processamento dessa informação, dentro da Secretaria de Planejamento, obviamente. No estudo da CDHU de 2004, o cortiço do Largo Coração de Jesus não foi inserido. 37
Imóvel localizado no Largo Coração de Jesus, tombado pelo Conpresp. Apesar de estar indicado nos mapas da 2 prefeitura como um centro cultural, o edifício abriga um grande cortiço, com quartos de até 15 m para famílias de até 8 pessoas. A segunda e a terceira imagem mostram os espaços internos do cortiço. A segunda mostra um quarto subterrâneo (a janela leva a um muro, não há ventilação nem iluminação natural) enquanto que a segunda mostra um corredor interno do cortiço, com uma série de portas de entrada em cada unidade. Segundo as informações que 2 obtemos com o Sr. Jonathan Mineiro, o “zelador”, o aluguel das unidades de 9 a 20 m é de cerca de 500 reais por mês, variando de acordo com as qualidades do espaço, para mais ou para menos. A imagem abaixo mostra o tecido urbano da área em que está inserido o segundo cortiço analisado, apesar de grande parte dos imóveis da área sejam de mesmo uso. São nestes cruzamentos que tem se encontrado a chamada “Nova Cracolândia”. Foto do autor, de 2008.
Cortiço analisado
Historicamente, a mesma desvalorização da terra que permitiu a apropriação destes casarões para a instalação de cortiços também permitiu aos agentes do mercado imobiliário a disponibilidade de lotes para a incorporação, demolição dos casarões existentes e construção, a partir dos anos 1950, de edifícios residenciais multi-familiares, verticais, como ainda hoje predominam na Alameda Barão de Limeira, causando um expressivo impacto na volumetria tipológica e na percepção da paisagem urbana original do bairro, produto de um ideal de cidade. Hoje, contudo, cabe a preservação destes primeiros edifícios verticais, já que o modelo mais atual de atuação do mercado imobiliário desconsidera a maioria das qualidades dos empreendimentos dos anos 50 a 70, agora consumindo o espaço urbano com maior voracidade. 38
Edifícios da Alameda Barão de Limeira, modelo vertical de até 8 pavimentos datados da década de 1950 a 1960. Foto do autor, de 2007.
Mas ao setor imobiliário, enquanto iniciativa privada, também coube, como vimos, a atuação na produção daquele espaço nas últimas décadas do XIX, aquele mesmo espaço que seria pelos “mesmos” agentes destruído e recriado sessenta anos mais tarde. O fato é que o mercado imobiliário, como uma força produtiva capitalista, visa apenas à multiplicação de seu capital, passando por cima de qualquer registro histórico, de interesses de uma coletividade ou de carências expressadas pelos conflitos sociais, em nome do “progresso”12, do qual julgam-se representantes. Nestor Goulart Reis Filho defende que “em cada época, a arquitetura é produzida e utilizada de um modo diverso, relacionando-se de uma forma característica com a estrutura urbana em que se instala. As principais cidades brasileiras foram em grande parte estruturadas nos séculos passados e funcionam precariamente nos dias atuais” (REIS FILHO, 2004: 15). A atuação de um mercado voltado para obter o maior lucro possível, não se preocupando com o tecido urbano ao qual irá inserir seus grandes empreendimentos, mostra-se bastante equivocada. A malha viária do Centro paulistano é própria de um momento histórico, onde o uso de automóveis não era freqüente, e o meio de transporte mais privilegiado era o público, com
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A idéia de progresso, e da necessidade de garanti-lo, justificaria as mais diversas posturas por parte dos agentes da produção do espaço urbano. Segundo Fonseca (2004: 282), a população aprendeu a aceitar a justificativa de que em nome da prosperidade, o novo precisa substituir o velho, o que passa a ser aproveitado pelos agentes imobiliários. No entanto, defendemos que o emprego desta justificativa foi substituído por outra, agora de cunho social, com manutenção do patrimônio histórico e sua incorporação ao investimento, como mostraremos adiante.
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inúmeras linhas de bonde que cortavam as ruas centrais da cidade. A solução adotada pelos agentes imobiliários dos anos 1950, por exemplo, ainda conseguia se relacionar propondo um meio-termo entre a cidade do início do XX com aquela de meados do século. Em geral, construíam-se edifícios não muito altos, de até oito pavimentos, com térreo comercial e sobreloja de serviços, sem garagem e sem equipamentos de lazer. A proposta nesse contexto era a de integrar arquitetura e cidade, de modo que seus moradores não precisassem ter automóveis, pois os bondes estavam à frente de casa, o trabalho e a residência não eram tão distantes um do outro como nos dias atuais e a compra de um automóvel ainda era um luxo restrito a poucas famílias; o espaço público das ruas, das praças e parques, os cinemas de rua e as sorveterias eram os equipamentos de lazer de seus moradores, refletindo outra lógica (diferente da original, distante da atual) de relações espaciais e sociais entre indivíduo e cidade, entre público e privado, entre arquitetura e urbanismo13. Vale retomarmos um pouco o esquema de atuação dos agentes imobiliários, desde sua primeira empreitada na cidade de São Paulo, no planejamento do bairro dos Campos Elíseos, para compreendermos de que maneira o mercado imobiliário pode alterar os espaços urbanos. A atuação da iniciativa privada ao comprar extensas chácaras no processo de planejamento dos Campos Elíseos e nelas criar um tecido urbano que servisse de base para um loteamento e que ainda fosse adequado para a venda do novo conceito de espaço urbano, lucrando através da venda destes terrenos, constituía a primeira manifestação da produção capitalista do espaço intra-urbano em São Paulo, como já citamos. Entretanto, se o capital privado se dedicou a adquirir um território e parcelá-lo, não coube a ele o investimento em instalações de infra-estrutura urbana necessárias para a configuração do espaço urbano formal, e sim o Estado; segundo Csaba Deák (1989: 18-31), a produção do espaço é uma “atribuição precípua do Estado, que delega o uso das localizações resultantes – o uso do solo – à regulação, sob restrições, pelo mercado”.
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Segundo Villaça (2001), essa experiência da arquitetura verticalizada e da convivência urbana com o Centro não será mantida após os anos 1970; detalharemos esta questão adiante.
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Sendo incumbência do Estado o fornecimento de infra-estrutura a todos os espaços urbanizados ou urbanizáveis, a do mercado imobiliário, por sua vez, refere-se à apropriação deste espaço produzido para a alteração de sua paisagem, vendendo não apenas o imóvel (terra, unidades habitacionais, empreendimentos etc.), mas também a imagem, a ideologia materializada no espaço recém-criado pelo Estado. Desta forma, seria um equívoco pensarmos no mercado imobiliário como responsável pela produção do espaço urbano, já que a ele cabe apenas atuar na edificação, construção e transformação deste espaço, produzido pelo Estado. Contudo, como toda atividade capitalista, o mercado imobiliário atua apenas em momentos economicamente favoráveis, isto é, quando existem estabilidade e crescimento econômico suficientes para garantirem o lucro do empreendimento. No início da atuação do setor imobiliário em São Paulo, ainda na República Velha, momento do florescimento econômico da cidade de São Paulo, regido pela exportação do café para países industrializados, a função da atividade imobiliária era “inicialmente incorporada diretamente como atividade suplementar ao nível de capitais empresariais urbanos, e não como um setor de atividade autônoma. A propriedade imobiliária urbana se valoriza”, então, “como garantia real ao crédito que se difunde como apoio às diferentes atividades” (LAMPARELLI; GUNN: 1991). O quadro econômico naquele começo de século permaneceria constante até 1930, quando é instaurada a política pública de industrialização por substituição de importações e controle dos excedentes da produção cafeeira como alternativa à crise econômica mundial, desencadeada em 1929 pela quebra da Bolsa de Nova Iorque. Como reflexo, a forma de atuação do mercado imobiliário nos espaços construídos da cidade também foi alterada. Para Ermínia Maricato, as “mudanças políticas por que passou o país após 1930, com a tentativa de industrialização visando à substituição de importações, com o processo de urbanização e verticalização dos centros urbanos constituíram importante impulso à indústria da construção, fortalecido no fim da Segunda Guerra Mundial com a acentuação do êxodo rural” (1984: 92).
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No início do século XX e diante do fortalecimento da construção civil, o sucesso do empreendimento dos engenheiros imigrantes nos Campos Elíseos passou a ser visto com bons olhos pelos proprietários de chácaras circunvizinhas à área urbanizada da cidade de até então; quanto à morfologia urbana, iniciou-se um processo intenso de crescimento urbano, evidenciado na proliferação de loteamentos em terras até então rurais ou de lazer, visando atingir o lucro que Glette e Nothmann haviam obtido com a criação do bairro de elite. Quanto à tipologia urbana, estava em voga o projeto e construção de edifícios verticais aos moldes dos horizontais, que buscavam referências externas no Neoclassicismo Francês. Para a arquiteta Nádia Somekh (1994), o período delimitado pelos anos 1920 a 1940 pode ser caracterizado por uma produção tipológica chamada de “verticalização européia”, com a inserção de soluções urbanas por meio de uma relação mais próxima entre o edifício e a cidade.
Edifício Prudente de Morais, construído nos anos 1920, na Alameda Barão de Limeira. Com 5 pavimentos e destinado à classe média, o edifício é um exemplo daquela verticalização européia descrita por Somekh (1994). Na foto do 2º semestre de 2008, o edifício aparece em reforma. Foto do autor.
O período compreendido entre 1940 e 1957, ainda segundo a mesma pesquisadora, seria chamado de “verticalização americana”, com a apropriação dos preços da terra reduzidos, dada a desvalorização supracitada, referente à saída da elite da região, para a incorporação de edifícios 42
verticais em concreto armado ou aço, resultando em empreendimentos com uma taxa de aproveitamento do terreno muito mais intensa do que os edifícios do período anterior. A autora descreve ainda que foi nesse momento que tornou-se mais efetiva a verticalização de bairros centrais, como Vila Buarque, Santa Cecília e Santa Ifigênia, bem como é o período em que se inicia a verticalização de bairros mais próximos à Avenida Paulista, como Cerqueira César, Perdizes, Consolação e Higienópolis. Já para Fonseca, a verticalização do bairro de Campos Elíseos e Higienópolis foi resultado de transformações sociais, como troca de populações, de uma elite que era capaz de consumir o espaço urbano em baixa densidade, por uma classe média que só pode consumi-lo por meio do adensamento, e conseqüente verticalização. “Essas mudanças, às vezes, conduziram à decadência rápida do bairro, como foi o caso de Campos Elíseos” (FONSECA, 2004: 207). Analisando Fonseca, no entanto, percebemos que o emprego do termo “decadência” é similar àquele que critica Villaça (2007), por referir-se à saída da elite como uma queda de nível na qualidade de vida do bairro. Também vale destacarmos que, nessa época, a cidade crescia a ritmos nunca vistos antes, em decorrência do crescimento econômico provocado pela indústria em expansão e por transformações estruturais nos meios de transporte, que causaram impacto na estrutura urbana da cidade, como descrevem Rolnik, Kowarik e Somekh: “Na década de 1950 seu crescimento até então basicamente orientado por um sistema ferroviário que ligava o interior do Estado à Capital – São Paulo – rumando daí para o Porto de Santos, principal porta para exportação de seus produtos predominantemente agrícolas, fundamentalmente o café, transforma-se, passando a se apoiar essencialmente no sistema rodoviário. A indústria também se expande a partir desta época, vindo a se tornar na década de 1960 o grande fator propulsor do desenvolvimento. A metrópole cresce a altas taxas, e desse modo crescem também os problemas decorrentes dessa urbanização acelerada. Este crescimento pode ser observado pelos contrastes das taxas de urbanização, na década de 1950, atingindo uma taxa anual de 5,5%, explodindo na década de 60
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para 6,9% e reduzindo significativamente na década de 70 para 4,4% ao ano” (ROLNIK; KOWARIK; SOMEKH, 1990). A ocupação desses novos empreendimentos verticais nos bairros centrais da cidade pela classe média nos anos 1950, contudo, não indica que esta classe se relacionava com o Centro da cidade; a existência do automóvel permitia que as pessoas se deslocassem rapidamente para fora do centro, a fim de exercerem suas atividades diárias, e não se estabeleceu um vínculo entre moradores e espaço urbano, essencial para a criação de uma urbanidade. Flávio Villaça defende esta idéia, referindo-se à urbanidade com o termo “simbiose”: “Também a classe média ocupou áreas centrais e contíguas ao centro: Campos Elíseos (rua Barão de Limeira), Vila Buarque e Santa Cecília. (...) Essas classes não geraram simbiose com o centro. (...) Elas romperam com o centro. Esse rompimento, embora sem dúvida existisse, não era tão sério até por volta da década de 1970. A partir de então, outro fator especificamente brasileiro colaborou inegavelmente para agravar essa ruptura e aniquilar a frágil simbiose centro-classes média e média alta centrais: a tomada do centro pela violência, mais do que sua tomada pelos miseráveis. (...) A tomada do centro é mais efeito do que causa do abandono do centro por parte das classes média alta e alta” (VILLAÇA, 2007: 154). A violência citada por Villaça era conhecida pelo povo, que começou a se referir ao bairro dos Campos Elíseos como “lixão”, reflexo da marginalização e do abandono do bairro, tanto pelas classes médias, como pelo poder público, que preferiu se retirar de todo aquele cenário, como descreveremos a seguir, e ignorá-lo, aumentando a violência e a marginalização, além do tráfico de drogas. Foi no início dos anos 1990 que a região do bairro da Luz, bastante próximo aos Campos Elíseos, passou a ser definida pela mídia como “Cracolândia”, expressão que, se por um lado reflete o alto consumo e a quase livre comercialização do crack naqueles arredores, também comete um ato de preconceito e marginalização de toda a população de baixa renda habitante do local que, por não possuir recursos para buscar espaços com melhor qualidade de vida, tinham de se sujeitar a viver em um espaço violento e discriminado, o que acarretava (e acarreta pois, ainda 44
hoje o termo é utilizado pela imprensa e pelo poder público, em circunstâncias escolhidas estrategicamente, e está impregnado no inconsciente coletivo) a falsa idéia de que quem mora na região é criminoso; as conseqüências deste preconceito, como podemos imaginar, é a acentuação do problema, como em um círculo vicioso, onde as pessoas mais fragilizadas (socialmente) não conseguem emprego por morarem na “Cracolândia” e, por não conseguirem trabalho, precisam continuar habitando os cortiços, precários e insalubres, muitas vezes por não terem condições sequer para quitar suas dívidas com o proprietário, permanecendo na miséria, agravando os problemas sociais. A questão da “Cracolândia” será citada em capítulos seguintes e estudada no quinto, com uma discussão específica sobre as estratégias e interesses envolvidos. Até os anos 1970 a configuração do espaço edificado dos Campos Elíseos foi bastante modificada pelos empreendimentos imobiliários. Mas entre o período de 1970 e os anos 2000 pouco foi produzido por este segmento econômico, que estava mais interessado em atuar na verticalização da região sudoeste da cidade, que despontava como “cidade global” 14. O fato é que “até a Segunda Grande Guerra a cidade conservou sua imagem de metrópole do café. A partir de então, os grandes empreendimentos imobiliários vieram destruir, um a um, os documentos arquitetônicos da cidade. Os poderes públicos sempre ficaram para trás da iniciativa privada e um código de obras anacrônico permitiu um uso abusivo do solo. Os símbolos urbanos, a imagem da cidade, os monumentos históricos deixaram de entrar na composição das preocupações das autoridades” (TOLEDO, 2004: 181). E ainda mais incisiva é a transformação urbana provocada pela maneira corrente de atuação do setor imobiliário nos bairros pericentrais mais desvalorizados (como Campos Elíseos e a Mooca), modificando não apenas o caráter patrimonial destes bairros, mas também a estrutura urbana pública, tornando-a insuficiente para o novo modelo de cidade que nela se impõe (o padrão das altas torres residenciais, com lazer privativo no condomínio, que se fecha para a rua com altos muros). Ainda, o mercado imobiliário no Centro atua de maneira a promover habitação para classe média alta, o que demonstra reais interesses dos diversos agentes 14
Cf. FIX, 2001; 2007 e FERREIRA, 2003.
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da produção do espaço para a construção de uma nova cidade dentro da cidade existente, promovendo valorização fundiária e imobiliária a tal ponto que se torna insustentável, para os atuais moradores do Centro, morar em um lugar onde os custos e preços são tão elevados. O mercado estaria começando a voltar a se interessar pelas áreas centrais para a promoção imobiliária, e a maneira como isso é feito é cercada de problemáticas e particularidades, as quais começaremos a descrever a seguir.
2.3 Mercado imobiliário e paisagem urbana: impactos da verticalização
Foto do autor (2008) tomada a partir da Alameda Nothmann, olhando para a Rua Adolfo Gordo. Tipologias variadas: à esquerda, prédio dos anos 1950, mais à direita, sobrado multifamiliar dos anos 1930. Ao fundo, torres dos anos 1990; à esquerda, as duas torres novas: o edifício Milênio e o Cult, este, da Klabin Segall.
“Em cada etapa do desenvolvimento, o patrimônio edificado é projetado para ser adequado a uma determinada escala de população e vida social. Rompida a escala, esse patrimônio é devastado e descaracterizado pelo uso intensivo ou inadequado e a perda de sua proporcionalidade. No espaço de uma geração, cada obra é reformada dez vezes, aos pedaços, sem respeito pelo projeto original, em resposta a um uso intensivo, para o qual não estava preparada. Cada rua é refeita, cada bairro é reconstruído aos tropeços” (Reis Filho, 1994: 17). 46
Como descrevemos no Relatório anterior, prevalecem dois métodos de produção de moradia pelo mercado imobiliário formal, nos Campos Elíseos: a incorporação/construção do edifício novo, e a reciclagem (ou retrofit, na linguagem de mercado) de edifícios antigos. A reciclagem ainda não é uma metodologia muito aplicada no Brasil, ao contrário de países europeus, como a França, onde proporção considerável das unidades habitacionais comercializadas a cada ano provém da recuperação de edifícios antigos. Como explicação para este fenômeno, podemos elencar elementos como a diferença cultural (pois a forma de se encarar o patrimônio histórico em diferentes países é tão diversa como qualquer outro valor cultural, existindo posturas diversas diante das contraposições “reabilitar versus refazer” ou “comprar novo versus comprar reciclado”) e a existência de uma força de trabalho qualificada para este tipo de operação naqueles países como centrais, dentre tantos outros. Por sua vez, a metodologia de construção a partir de procedimentos de incorporação imobiliária é a alternativa com a qual o setor da construção civil e os investidores brasileiros em geral estão mais habituados a operar, talvez por ser a forma cuja lucratividade seja mais garantida. Para escolher os terrenos ideais aos seus investimentos15, o incorporador costuma considerar diversas variáveis que possam impactar na valorização do negócio, como as qualidades do entorno, por exemplo. O papel do incorporador é o de alavancar o empreendimento, procurando, mesmo em uma região degradada, a porção de terra com maior potencial de rápida valorização. Porém, apesar do Centro de São Paulo ser uma região fortemente servida de infra-estrutura e de fácil mobilidade para seus moradores, a maior dificuldade encontrada por estes investidores é a questão da propriedade pulverizada (diversos proprietários para um só imóvel) e do tipo de parcelamento do solo, historicamente planejado para pequenos lotes (cinco metros de frente e o dobro de profundidade, em média), produto de uma época em que os paulistanos residiam em
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Atualmente, as grandes construtoras e incorporadoras possuem “bancos de terras”, isto é, um estoque de terrenos adquiridos a priori por tais empresas, que se antecipam à expansão urbana para poderem lucrar através da mais-valia da terra. É este o motivo, por exemplo, da existência de vazios urbanos em áreas centrais e pericentrais: a especulação imobiliária, propriamente dita.
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casas térreas ou sobrados, ou ainda nos pequenos prédios de até três pavimentos, como já descrevemos anteriormente, sobre as formas de morar vigentes no final do século XIX e no início do XX. Os casos que serão apresentados aqui são paradigmáticos16 deste modelo de incorporação imobiliária, todos localizados em nosso objeto de estudo. No relatório anterior havíamos discutido sobre dois novos empreendimentos nos Campos Elíseos: o Cult (incorporação, construção e vendas Klabin Segall), e o Milênio (comercialização e incorporação CMarqx, construção Marco Engenharia), ambos situados na Rua Adolfo Gordo. Agora, inserimos mais dois casos na análise: o edifício Varanda Expressions (construção e incorporação Cyrela Brazil Realty e vendas Abyara) e o edifício Nolita Loft (construtora Zabo Empreendimentos e Construções Ltda., projeto Addor Arquitetura) ambos na Rua Brigadeiro Galvão. Com finalidades metodológicas, dividimos a análise dos casos por ruas, para depois compararmos os casos de destaque de cada uma delas.
- Os Casos da Rua Adolfo Gordo A Rua Adolfo Gordo é uma discreta referência no que tange ao atual contexto situacional que o patrimônio arquitetônico do bairro dos Campos Elíseos vem enfrentando. Trata-se de uma pequena rua de apenas duas quadras de comprimento que funciona como ligação viária entre a Alameda Barão de Campinas e a Alameda Eduardo Prado, sem muito trânsito. Originalmente projetada como parte da malha viária do primeiro bairro planejado da cidade de São Paulo, a rua agregava nos anos 1930 exemplares arquitetônicos de diversos usos, reflexo de uma sociedade e cidade que já crescia se transformando. Desse modo, mesclam-se no legado patrimonial da rua (do bairro, e da cidade) galpões industriais a casas operárias; algumas 16
Outro bairro paulistano que vem sendo descaracterizado pelo mercado imobiliário é a Mooca. Devido à sua estrutura urbana e tipológica, onde nas primeiras décadas do século passado se instalou grande parte das indústrias paulistas, o bairro da Mooca, na zona pericentral de São Paulo, tem sofrido um grande processo de mutação urbana. Uma das razões para o fenômeno é a maior facilidade dos incorporadores imobiliários em encontrar grandes terrenos, uma vez que o solo foi originalmente parcelado para permitir a existência de amplos galpões construídos em alvenaria de tijolos. Dessa forma, surge ali outra cidade, que destrói seu patrimônio e apaga a memória da cidade. Sobre este tema, ver: RUFINONI, Manoela. R. Preservação e restauro urbano: teoria e prática de intervenção em sítios industriais de interesse cultural. Tese de Doutoramento. São Paulo: FAU USP, 2009.
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residências unifamiliares de antigas famílias abastadas e outras que eram voltadas para a classe média (hoje ocupadas por cortiços, como já citamos acima) e prediozinhos de três pavimentos, multifamiliares. A contribuição do tempo também agregou diversos outros modelos de edificação, de uso e de ocupação do solo – casas geminadas sem recuo, casas isoladas com recuo, prediozinhos no limite do lote, edifícios mais altos com recuos frontais e laterais, galpões contínuos e alinhados ao lote. Diversas formas de ocupar o solo, diversas técnicas de se construir, diversas concepções do “morar”. Diante de toda essa multiplicidade de características, mas sobretudo devido à existência de exemplares históricos dessa formação da cidade, e das ameaças que vem se dando pela expansão do mercado imobiliário, achamos importante estudar este conjunto arquitetônico que conforma a rua, que caracteriza o bairro e que é um registro relativamente uniforme de um tempo histórico da cidade.
Sara Brasil (redesenhado)
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Na imagem anterior, redesenho nosso a partir do mapa produzido pela empresa Sara Brasil em 1930, podemos observar a existência de uma cidade projetada para ser compatível com uma sociedade que procurava organizar de um modo específico sua ocupação no território. A linha verde no meio de algumas vias desta figura representa parte de um de ramal de bondes que cortava o bairro na época. As edificações desenhadas em azul destacam a rua Adolfo Gordo do restante dos Campos Elíseos. Em vermelho, o desenho dos lotes. Aquelas preenchidas de cinza são as que, datadas já neste levantamento de 1930, ainda persistem no local. Apesar de apenas poucas unidades terem resistido às transformações da cidade de então até hoje, ao longo dos anos do século 20, outras contribuições arquitetônicas, hoje tão valiosas para o patrimônio da cidade, foram desenvolvidas.Analisando este desenho percebemos que a variedade de usos já estava então presentes desde o início da história do bairro. Galpões fabris, residências, comércio; de um a três pavimentos; geminadas ou com recuo, evidenciando a complexidade das formas de habitar e de se edificar nos Campos Elíseos, desde sua origem, como já pudemos citar anteriormente. A imagem abaixo, retirada do sitio geoportal.com.br, datada de 1958, mostra uma vista aérea da Rua Adolfo Gordo e de seu entorno. Apesar da resolução baixa, podemos perceber que até os finais dos anos 1950, a paisagem urbana ainda era bastante uniforme, inexistindo até mesmo os prediozinhos mais antigos, de até quatro pavimentos.
Em todo caso, não é inútil anexarmos tal imagem neste Relatório Final. Ela serve como um ponto intermediário entre nosso primeiro registro e o de 1970. Por isso, ela tem por objetivo nos mostrar que até quase os anos 60, a área era uniforme e não verticalizada. Em todo caso, é 50
evidente que o mercado imobiliário já começava a atuar na verticalização do bairro dos Campos Elíseos, dado o número de torres que ocupavam lotes na Alameda Barão de Limeira (via mais larga e destacada da imagem, paralelamente acima da Adolfo Gordo). Já na próxima imagem, um redesenho a partir do Gegran, levantamento dos anos 1970, que nos dá uma idéia do que era esta rua num momento histórico em que os Campos Elíseos passaram a ser conhecidos pelos munícipes como “boca de lixo”. Tetro Macunaíma Sobrado azul à venda
Sobrado branco Sr. Álvaro
casas geminadas anteriores aos anos 1950
cjto. Sr. Irineu; Tigrão
Galpões Hércules Vicari e Filho Ltda.
Em cinza, as tipologias que foram documentadas nos anos 1970 e que permanecem edificadas em 2009. Os lotes de linhas vermelhas mostram onde houve, num passado bastante recente, a atividade de incorporação imobiliária. Sem sabermos se demolições ocorreram em virtude das novas edificações, percebemos através da imagem o que existia nestes lotes antes de sua transformação. Assim, a última casa da rua (no sentido de numeração de endereço, e não temporal), um sobrado branco existente desde os anos 30, e que há quarenta anos é de propriedade do Sr. Álvaro, por nós entrevistado, hoje possui um estacionamento nos fundos, por ele 51
construído, provavelmente a partir de demolições de edículas ou casas pequenas vizinhas, já que o que se vê no desenho de 1970 não corresponde ao que atualmente está construído. Nos lotes demarcados com a mesma legenda na quadra acima, provavelmente existiam duas edificações antes da instalação da escola. Na quadra ao lado, sete lotes sofreram incorporação para se transformarem em três, dois deles muito recentemente – a partir de 2005. Todos os três novos lotes se transformaram em edifícios verticais de habitação voltada para a classe média, mas não foi possível encontrarmos registros do que existia, efetivamente, antes de sua construção. Nos últimos anos, a especulação imobiliária tem encontrado na Rua Adolfo Gordo a possibilidade de incorporar lotes pequenos para realizar seus investimentos, como já relatamos no relatório anterior. Em apenas 350 metros, e em apenas três anos, surgiram dois condomínios verticais residenciais e duas unidades escolares privadas. A imagem abaixo, retirada do Google Earth de 2009, mostra um grande número de telhados cobertos com telhas cerâmicas, características de um momento em que lajes planas de concreto ou coberturas metálicas não eram opções de solução para coberturas de edifícios residenciais em São Paulo.
A imagem mostra ainda novíssimas construções verticais que se destacam na paisagem urbana da área. Os dois empreendimentos de maior destaque, porém, foram edificados em lotes tornados vazios há vários anos. Se seus gabaritos contrastam com o entorno e o padrão de 52
infraestrutura – como a rua – existente, ao menos, não destruíram elementos preciosos para a memória da cidade. No entanto, manifestações do mesmo setor imobiliário especulativo vem repetidas vezes investigando os proprietários dos imóveis mais antigos sobre a possibilidade de compra dos imóveis – obviamente para a construção de mais torres-clubes em grandes lotes incorporados, com muros altos voltados para a rua. Não é essa a urbanidade tradicional do bairro, mas é este o modelo que vem sendo ostensivamente empregado em bairros históricos da cidade de São Paulo, como a Mooca. Como já descrevemos anteriormente, o Cult, da Klabin Segall, é destaque na paisagem do bairro, em sua torre única de 29 pavimentos, sendo 27 pavimentos-tipo onde se distribuem 800 unidades de 27m2 e 35 m2. São “kitinetes de luxo”, como nos afirmou o corretor na época das obras; as unidades foram vendidas ao preço médio de 120 mil reais, saindo a mais de 3 mil reais o metro quadrado. Já o “Milênio” é uma iniciativa mais “modesta”: são 14 pavimentos de seis unidades de, em média, 55 m2, além do “lazer completo”; neste caso, o preço das unidades chegava a 140 mil reais, mais acessível se pensarmos na metragem quadrada e compararmos ambos os casos. Passemos agora para a análise da outra rua foco de investimentos do setor imobiliário.
- Os Casos da Rua Brigadeiro Galvão A Rua Brigadeiro Galvão, ao contrário da Adolfo Gordo, é uma via importante na circulação de pedestres e veículos, pois é a via imediatamente paralela à Avenida São João no sentido dos Campos Elíseos. Até bem recentemente – meados de 2007 – a quadra formada pela rua em questão, pela Albuquerque Lins, Avenida São João e pela Avenida Angélica (continuação da Al. Eduardo Prado) possuía dois lotes parcialmente vagos, ambos grandes, que eram usados para estacionamento (e provavelmente mantidos como reserva por parte do proprietário, que deve ter esperado muitos anos até que o mercado se interessasse em pagar preço suficientemente elevado por eles). Em 2008 começou a ser construída a torre de 17 andares do empreendimento 53
Nolita Loft, entregue em 2009, mesmo ano em que começou a ser construído o primeiro empreendimento da Cyrela, o Varanda Expressions.
Imagens do empreendimento Nolita Loft, já construído, de junho de 2009. Todas de autoria nossa. A primeira sugere como é a distribuição das unidades de loft dentro do edifício. A segunda mostra o patrimônio ambiental urbano existente na rua onde a torre se insere. A terceira é uma foto da cobertura, com estrutura de lazer.
O edifício Nolita Loft, cuja foto está ao lado, é formado por apartamentos de 45m 2 livres (sem paredes internas); possui 17 pavimentos e uma a estrutura de lazer montada na cobertura (piscina, churrasqueira, etc.). Sua implantação é mesmo interessante e o edifício não se destaca na paisagem como o Cult, pois além de ser bem mais baixo, ele possui forma mais modesta, com lado maior voltado para a quadra, e não para a rua, como o Cult. O edifício Varanda Expressions ainda está em obras (fase de fundação em junho de 2009), mas o projeto já revela muito sobre ele. Será uma torre de 30 pavimentos, dos quais 24 serão de uso habitacional. Com um terreno maior, a equipe projetista planejou o pavimento-tipo para comportar oito unidades de 66m2 cada. O nome “varanda” é justificado quando se observa a dimensão da área em balanço estrutural: aproximadamente 15m2, quase tão grande quanto a sala de estar e jantar. Os empreendimentos tipo “Varanda” são uma linha que a Cyrela vem desenvolvendo nos últimos anos, e produto parecido, porém já construído, foi recentemente vendido no bairro de Perdizes, o “Varanda Pompéia”. Serão na torre dos Campos Elíseos, ou
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melhor, no Baixo Higienópolis17, um total de 208 apartamentos, com ao menos uma vaga de garagem; portanto, 208 novos carros no tráfego do Centro, trazidos por um único empreendimento. O Varanda Expressions é ainda mais instigante quando analisamos a relação do empreendimento com o patrimônio histórico do bairro. Como o empreendimento deriva de uma incorporação que permitiu a ligação do condomínio vertical em duas vias paralelas, e diante da impossibilidade de demolir o que estava construído no terreno que conectava o espaço maior do empreendimento à Avenida São João, o edifício foi mantido, não para habitação (cujo programa até hoje em uso prova a viabilidade disso), mas sim para ser um ateliê histórico – o caso será mais debatido adiante; aqui apenas apresentamos o problema.
Imagem da divulgação comercial do empreendimento, pela Abyara Brokers, esta foto mostra especificamente o pavimento térreo do edifício, onde vemos o estacionamento e o acesso ao edifício histórico restaurado para abrigar o cinema, o ateliê, a sala de jogos e o lounge do edifício.
Os dois casos novos mostram o sucesso deste tipo de empreitada. Tanto o “Nolita Loft” quanto o “Varanda Expressions” foram empreendimentos de grande sucesso, sendo totalmente vendidos antes do término das obras – no caso do último, todas as unidades se esgotaram ao mesmo tempo: durante o lançamento. Nos dois empreendimentos, uma torre em cada lote, o que deve ter sido norteador da escolha do gabarito dos edifícios: sendo impossível construir mais de
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A estratégia mercadológica de denominação do bairro dos Campos Elíseos como Baixo Higienópolis, baseada numa possível valorização do bairro, foi citada pelo Sr. Nelson Barbosa, vice-presidente da AMCCE, em entrevista de 10 de julho de 2009. Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com Sr. Nelson Barbosa.
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uma torre por falta de espaço, por que não duplicar o coeficiente de aproveitamento usando a mesma taxa de ocupação? Restrições no Plano Diretor não existem, mas cremos que o pagamento de medidas compensatórias de impacto ou de adicional construtivo resolvam o impasse legal.
Acima, foto do autor tomada a partir do 3º. Pavimento do edifício Nolita Loft. O canteiro de obras mostrado na foto refere-se à construção do Varanda Expressions. No segundo plano da imagem é mostrado o edifício tombado que servirá de anexo cultural do empreendimento. O edifício possui seis andares e deve ter, no mínimo, doze apartamentos. Abaixo, foto tomada do mesmo ponto, com vista para o bairro, de onde é possível perceber a contribuição patrimonial construída ao longo do século, existente no enorno.
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- Comparações e Considerações dos quatro casos
Maquetes dos quatro empreendimentos analisados. Da esquerda pra direita, Nolita Loft (fonte: sítio Skycraper), Milênio (fonte: sítio da Cmarqx), Cult (foto do autor) e Varanda Expressions (fonte: sítio da Cyrela). Curiosamente, todos os empreendimentos são localizados na região central de São Paulo e, portanto, densamente construída. No entanto, em nenhuma das imagens é feita referência ao entorno real, em todas o empreendimento parece ser único e agradavelmente inserido em um parque. Estratégia de marketing, mas que vale ser apontada.
Dentre os quatro casos escolhidos para análise, os dois de maior vulto são o da Klabin Segall e o da Cyrela, ambas empresas construtoras que abriram capital na Bolsa de Valores de São Paulo recentemente18. As torres das duas empresas no bairro dos Campos Elíseos possuem (ou vão possuir, já que apenas o Cult da Klabin Segall está pronto) cada um aproximadamente 100 metros de gabarito, se impondo na paisagem característica de apenas poucos pavimentos, como fica evidente na figura esquemática abaixo, referente ao novo perfil da Rua Adolfo Gordo.
Escola judia (2008) Torre > 1970
Sobrados anteriores à 1930
Casario geminado (~1940)
prediozinhos < 1950
“Milênio” “Cult” (2010) (2008)
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Em pesquisa realizada no sítio da Bovespa, os ativos da Klabin variavam de R$3,07 a R$5,18, enquanto que os da Cyrela eram cotados de R$9,10 a R$16,80; para comparação, a Vale e a Petrobrás, duas maiores empresas brasileiras de capital aberto, possuíam no mesmo instante ativos a, respectivamente, R$35,00 e R$39,00. Pesquisa realizada dia 21 de julho de 2009, às 18 horas.
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Entretanto, o impacto desses empreendimentos na opinião pública é menos intenso que na paisagem urbana. Nas entrevistas que realizamos, a aprovação dos empreendimentos foi constatada desde o pequeno comerciante local (o Sr. Irineu, entrevistado pela presente pesquisa, enxerga nestes investimentos imobiliários oportunidades preciosas de melhoramento paisagístico e de qualidade de vida da região) a até o profissional da área de arquitetura do Conselho de Defesa ao Patrimônio Histórico do Estado19. A Associação dos Moradores e Comerciantes dos Campos Elíseos, porém, posiciona-se mais cautelosa. Para seu vice-presidente, tais empreendimentos são equivocados, por não considerarem a paisagem histórica sobre a qual se inserem. Por sua vez, o representante entrevistado do CONDEPHAAT considera desejável a verticalização nessa escala, e não vê nesses empreendimentos nenhum problema quanto à inserção urbana, uma vez que os Campos Elíseos “já teriam deixado de ser uniformes há décadas”. A nosso ver, estes empreendimentos causam sim um impacto na leitura da paisagem; e ainda se inserem numa área que, apesar de dotada de infra-estrutura, não possui um tecido urbano projetado para receber coeficientes de aproveitamento desta ordem. É certo que o Centro possui infra-estrutura, transportes mais eficientes que na média da cidade, mas o problema está no modo como os novos habitantes costumam se locomover: todos com seus carros particulares. Só no edifício Cult, onde existem 800 unidades, se todos tiverem ao menos um carro, será um total de 800 novos veículos no bairro, na rua. E a estrutura sanitária das redes públicas de coleta também deverão ser adaptadas para comportar as novas cargas, entre tantos outros serviços que não são pensados para servirem aleatoriamente a um número infinito de habitantes. A construção de arranha-céus tão altos para o entorno, em pleno centro de São Paulo, é colocada em xeque ao ser comparada com as taxas de vacância imobiliária da região, já que no Centro de São Paulo elas são das mais altas da cidade. Parece-nos que o aproveitamento do estoque existente para a produção de moradia faria mais sentido, até em termos de
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Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com Sr. Irineu e Entrevista com Técnico do CONDEPHAAT.
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sustentabilidade (palavra que se tornou novo jargão mercadológico dos últimos tempos), além de contribuírem para a manutenção do patrimônio edificado. Curiosamente, o empreendimento da Cyrela, cujo acesso será pela Rua Brigadeiro Galvão, propunha em sua proposta original estender o empreendimento até a via paralela, do outro lado da quadra, a Avenida São João. Devido à existência de um imóvel tombado nesta Avenida, a solução encontrada pela incorporadora foi comprar este edifício e transformá-lo em um espaço cultural para o condomínio. Uma estratégia que concilia a impossibilidade de demolição de um imóvel a uma imagem de consciência preservacionista, angariando valor ao empreendimento. Mais uma vez, uma torre alta se instala ao lado de um edifício patrimonial tombado, contrariando diretrizes de área envoltória, uma vez que o edifício é protegido pelo CONDEPHAAT, órgão que impõe este instrumento adicional ao bem tombado. Mas dessa vez, o patrimônio não será coadjuvante, ele será parte integrante do novo processo.
Na figura acima, recorte da propaganda do empreendimento, a torre em obras aparece em primeiro plano, a partir de uma visão da Rua Brigadeiro Galvão. O edifício tombado, na perspectiva já “restaurado”, é mostrado no fundo do lote, ligado à torre principal por meio de uma passarela coberta com vidro.
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Considerações O mercado imobiliário é o principal agente privado de transformação do espaço urbano. Só perde para o Estado quando este se dedica a criar programas específicos de desenvolvimento urbano que garantam o aproveitamento máximo do setor privado, ou seja, do próprio mercado imobiliário. Foi dito aqui que a produção capitalista do espaço urbano de São Paulo iniciou-se em nosso objeto de pesquisa – e foi nele que desenvolveu diversos modelos de edifícios e ideologias de espaço público e privado, ao longo do século XX –; também é nele que vem se desenvolvendo nos últimos anos um novo modelo de produção de moradia, ora desconsiderando a história, a memória e o patrimônio, ora fazendo-o superficialmente, ora adotando-o como marketing. E conforme já discorremos anteriormente, o “novo conceito de morar” promovido pelos agentes imobiliários é aquele em que “a casa se fecha em si mesma”, isto é, em que tudo o que o morador precisa (e muitas vezes o que ele não precisa) encontra-se no piso térreo ou na cobertura de seu condomínio: clube, sauna, espaço gourmet, garage band, fitness, child care, brinquedoteca, porte cochére, lobby, entre muitos outros atrativos que sirvam de isca para o consumidor adquirir sua unidade no empreendimento. Nesta nova etapa da pesquisa descobrimos uma nova estratégia dos incorporadores imobiliários diante da dificuldade em incorporar lotes em tecido marcado por patrimônio histórico: sua adoção como espaço cultural, acompanhando as tendências de intervenção no patrimônio promovidas pelo Estado, mas agora com caráter “privativo”. É evidente que a construção de conjuntos de torres em lotes incorporados a partir de pequenos galpões ou casarões num tecido urbano concebido para edifícios baixos e poucos carros nas vias provoca sérias conseqüências para a sustentabilidade do tecido urbano e para a urbanidade das ruas, as quais, muradas, perdem sua vida e tornam-se mais perigosas (cf. JACOBS, 2000). O modelo de empreendimento ao qual chamamos de “torre clube” vem sendo constantemente empregado nos bairros centrais, rompendo com a característica que define o Centro, dotado de alta densidade decorrente não de torres altíssimas, mas de um total
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aproveitamento do lote, geralmente sem recuo, formando prédios geminados que se relacionam totalmente com as ruas. De maneira geral, acreditamos que este segmento econômico em expansão causa sérios danos no patrimônio do bairro, no registro da memória e na urbanidade deste tecido urbano. Mas esta não é a visão do CONDEPHAAT, órgão maior de defesa do patrimônio histórico, arqueológico, artístico e turístico do Estado de São Paulo. Logo, o debate está aberto. Além de iniciativas diretas do mercado imobiliário, temos ainda a atuação do poder público, que demanda e executa projetos advindos de parcerias público-privadas, com o intuito de revitalizar [economicamente] a região, instalando projetos de cunho cultural, geralmente associada a uma suposta preservação do patrimônio. A natureza patrimonial se insere também neste ponto, e será a partir dela que serão elaboradas políticas patrimoniais, sobretudo a partir dos anos 1970. Porém, encontramos o patrimônio ainda com a recuperação de edifícios de importância histórica para a cidade por meio da instalação de usos culturais que segregam declarada (pela restrição de visitação, passagem ou pela exigência de pagamento e taxa de entrada) ou discretamente (pelos aspectos de projeto). Essas questões, bastante polêmicas, serão o foco do próximo capítulo deste trabalho.
3.
Capítulo 3 – Campos Elíseos: um bairro de importância patrimonial? A dimensão patrimonial da cidade não pode ser considerada apenas a partir do patrimônio oficial. E a função de todo patrimônio não é mera representação do passado (ou não o deveria ser). Edifícios, obras de arte, literaturas, costumes e saber-fazer: tudo isso é patrimônio. Mas em que consiste dizer que um bairro inteiro possui importância patrimonial? Qual a dimensão que o 61
patrimônio assume neste caso? Quais as implicações são acarretadas a partir da definição da importância patrimonial de um determinado bem, e a quais conflitos está sujeito o patrimônio (institucionalizado ou não)? Todas essas questões, sem a pretensão de poder respondê-las satisfatoriamente neste relatório, serão inicialmente discutidas neste capítulo. Começamos, portanto, com a definição do que é patrimônio, e de qual o conceito de patrimônio estamos nos referindo nessa pesquisa.
3.1 O que é Patrimônio? Define o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, publicado pelo Ministério da Educação e Cultura, em 1969: “patrimônio: s.m. herança paterna; bens de família; dote dos ordinandos; (por ext.) quaisquer bens, materiais ou morais”. Já o britânico dicionário da Universidade de Cambridge20, define: “Heritage: elementos pertencentes à cultura de uma sociedade em particular, como suas tradições, línguas ou edifícios que, vindos do passado e ainda existentes, têm importância histórica” (tradução nossa). Essas definições, longe de esgotarem o debate sobre o que é patrimônio, apenas nos servem para iniciarmos o estabelecimento de uma orientação lingüística do termo, sem maiores pretensões. Mas de acordo com o dicionário brasileiro, o patrimônio está atrelado à questão da herança, especificamente paterna21, sob a forma de diversos bens, sejam eles materiais ou imateriais; o britânico contribui para a inserção de um outro aspecto: o dos elementos pertencentes a uma sociedade em particular, representantes de um passado social e histórico. O patrimônio seria então, a partir destas duas leituras, uma herança de nossos antepassados, dotado de valor
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Retirado de “Cambridge Advanced Learner's Dictionary”, em dezembro de 2008, diretamente do website: http://dictionary.cambridge.org/define.asp?key=36823&dict=CALD 21
Aqui poderíamos inclusive discursar sobre a “família de palavras” formada pelo radical (-pat): patrimônio, paterna, pátria. A definição de patrimônio poderia ser, neste caso, a de “uma herança da pátria”, representando a importância para a coletividade de uma memória comum.
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referencial à memória, representante de um meio social histórico, registro de nossas origens e tradições. Uma vez que o patrimônio assume diversas faces e categorias, entre material e imaterial, histórico e artístico, arquitetônico e arqueológico, além de ecológico e urbano, adota-se o termo “patrimônio cultural” de maneira universal. Existem, porém, definições mais precisas dentro desta idéia de patrimônio cultural, realizadas a partir de estudos de pesquisadores, como é o caso do francês Varine-Boham, citado por Carlos Lemos em “O que é patrimônio histórico”. Carlos Lemos se apóia em Hugues de Varine-Boham, professor e assessor da Unesco, para a definição do que é patrimônio cultural. Segundo o pesquisador, o patrimônio cultural pode ser dividido em três categorias: o patrimônio natural (abrange os recursos disponíveis na natureza, de maneira bastante abrangente); o patrimônio ligado ao “conhecimento, às técnicas, ao saber e ao saber fazer” (Lemos, 200622: 9), isto é, ao patrimônio imaterial; e, por fim, o patrimônio dos bens culturais e artefatos, que “engloba toda a sorte de coisas, objetos, artefatos e construções obtidas a partir do meio ambiente e do saber fazer” (Ibidem, p. 10). A arquitetura, o urbanismo, a paisagem urbana inserem-se neste último grupo. No campo legal, a própria Constituição Federal de 1988 define, através do Artigo nº. 216, o que a União considera como patrimônio cultural brasileiro. O Artigo define: “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
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Em 2006 foi realizada a 4ª reimpressão da 5ª edição de 1987 do livro, sobre a qual nos referimos.
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Em suas diversas formas, materiais e imateriais, artísticas, históricas e arqueológicas, ecológicas e urbanas, a salvaguarda do patrimônio formador da identidade nacional é de responsabilidade do Estado e da Sociedade Civil. Outra referência fundamental para a discussão deste tema é a Carta de Veneza (1964) – enquanto Documento atualizado em relação à Carta de Atenas (1933) –, produzida durante o II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, na cidade de Veneza, em maio daquele ano. Ela estabelece critérios e considerações sobre o patrimônio23, sua importância e finalidade, a necessidade de sua salvaguarda, diretrizes para preservação, conservação e restauração dos bens históricos, abrangendo as diversas formas patrimoniais possíveis de materialidade desses “monumentos”. Cabe aqui destacarmos alguns Artigos deste Documento: “Definições: Artigo 1º: A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural. (...) Conservação: Artigo 7º: O monumento é inseparável da história de que é testemunho e do meio em que se situa. Por isso, o deslocamento de todo o monumento ou de parte dele não pode ser tolerado, exceto quando a salvaguarda do monumento o exigir ou quando o justificarem razões de grande interesse nacional ou internacional. (...) Artigo 11º: As contribuições válidas de todas as épocas para a edificação do monumento devem ser respeitadas, visto que a unidade de estilo não é a finalidade a alcançar no curso de uma restauração, a exibição de uma etapa subjacente só se justifica em circunstâncias excepcionais e quando o que se elimina é de pouco interesse e o material que é revelado é de grande valor histórico, arqueológico, ou estético, e seu estado de conservação é considerado satisfatório. O julgamento do valor dos elementos em causa e a decisão quanto ao que pode ser eliminado não podem depender somente do autor do projeto. (...)
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Os termos empregados pelo documento para designar “patrimônio” são: “monumento”, “monumento histórico” e “obras monumentais”.
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Sítios Monumentais: Artigo 14º: Os sítios monumentais devem ser objeto de cuidados especiais que visem a salvaguardar sua integridade e assegurar seu saneamento, sua manutenção e valorização. Os trabalhos de conservação e restauração que neles se efetuarem devem inspirar-se nos princípios enunciados nos artigos precedentes .”
As recomendações da Carta de Veneza, portanto, incidem sobre o patrimônio, em sua definição, conservação, restauração e documentação. Do Artigo 1º, obtemos a definição de o que é patrimônio – ou monumento histórico – de acordo com aquele Congresso: são criações arquitetônicas e sítios urbanos ou rurais, entre outras obras de arte, que testemunhem um momento histórico de uma civilização ou de um acontecimento importante para esta civilização. Justapõem-se, portanto, a “coisa” (nas palavras de Carlos Lemos, 2006) e o lugar da coisa; obra e espaço da obra; edificação urbana e tecido urbano, no caso das cidades. As relações entre o elemento e seu entorno, entre o imóvel e a cidade, são patrimônios por si só, pois, “o núcleo urbano é um bem cultural composto de mil e um artefatos relacionados entre si, que vão desde aqueles de uso individual, passando por outros de utilidade familiar, a começar pelas moradias, até aos demais de interesse coletivo” (LEMOS, 2006: 46). Este fator também está expresso no Artigo 7º da Carta de Veneza, sobre a inseparabilidade do monumento com seu lugar de origem; vemos aí uma preocupação daquele Congresso em relação aos bens móveis, que podem ser deslocados de seu espaço de origem, com o qual estabelecem relações verdadeiras e históricas; mas podemos estender esse conceito à importância de não alterar o lugar, para que o monumento imóvel não seja descaracterizado, como descreve Carlos Lemos: “não há quem colecione casas de uma rua ou monumentos de uma cidade e, em geral, esses chamados „bens imóveis‟ necessitam do amparo e da autoridade do Governo. Daí, as entidades oficiais, sejam repartições públicas ou fundações, a zelar pelo chamado Patrimônio Histórico e Artístico” (ibidem, p.66). De acordo com o autor, o patrimônio imóvel de uma rua que conserva características originais, de interesse histórico, devem ser mantidas e zeladas pelas instituições 65
públicas especializadas no tema. No caso de nosso objeto de estudo, seriam os responsáveis pela salvaguarda do patrimônio construído – a cidade – os órgãos das três instancias de supervisão: O IPHAN, a nível federal, o CONDEPHAAT, instância estadual, e o CONPRESP, a nível municipal. Ainda nos referindo à Carta de Veneza, define o Artigo 14º sobre os sítios monumentais, como lugares que, por manterem intactas suas relações espaciais entre arquitetura, espaço urbano e natureza, devem ser integralmente preservados. Caso similar ao de cidades como Ouro Preto24 e Paraty, por exemplo, cidades coloniais dos tempos áureos da mineração no Sudeste Brasileiro, durante os séculos XVII e XVIII. Abandonadas pela perda de sua principal atividade econômica e de seu contingente municipal, esquecidas no tempo, hoje mantêm intactos os espaços simbólicos da memória nacional do período. Pelo debate que foi realizado até aqui, fica evidente nossa abordagem do patrimônio como um conjunto complexo, formado por arquitetura e cidade, como um bem uno. Segundo Ulpiano Bezerra de Menezes, esse conjunto complexo de bens e relações pode ser denominado de Patrimônio Ambiental Urbano, isto é, “um sistema de objetos, socialmente apropriados, percebidos como capazes de alimentar representações de um ambiente urbano. (...) Trata-se de paisagens, espaços, construções, objetos móveis também, cujo sentido se manifesta não por si, mas pela articulação que entre si estabelecem e que lhes dá suporte” (MENEZES, 1978:45). Lemos (2006) nos revela que foi apenas “em meados da década de 1970 que esse assunto ligado à preservação de bens culturais vistos em conjunto dentro de centros urbanos tem sido discutido (...), trazendo consigo a expressão „Patrimônio Ambiental Urbano‟” (LEMOS, 2006: 44). E é este o termo que nos propomos a adotar para nosso objeto de pesquisa: Patrimônio Ambiental Urbano. Nossa intenção aqui, entretanto, não é a de resgatar toda a bibliografia definidora de patrimônio cultural, histórico e arquitetônico, nem do debate entre patrimônio material e imaterial 24
A preservação integral de Ouro Preto não partiu, entretanto, de uma consideração à importância de seu espaço urbano, como registro da urbanização brasileira dos séculos XVII e XVIII, como fator de manifestação cultural de interesse social. Ela deriva de uma sobreposição contínua de áreas envoltórias dos bens tombados da cidade (cf. Lemos, 2006).
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ou de todas as Cartas Patrimoniais; acreditamos que isso já foi intensamente e competentemente feito por diversos autores de todo o mundo, teóricos especialistas do tema. Cabe aqui apenas evidenciarmos nossa abordagem de patrimônio, sobre quais bases nos apoiamos, e qual a definição que adotamos deste tema. Consideramos ser mais importante, agora, discorrermos acerca da discussão entre patrimônio oficial e patrimônio banal, patrimônio público e privado, sobre as políticas patrimoniais implantadas no Brasil ao longo do século XX, bem como sobre os conflitos atuais que envolvem o patrimônio existente em nosso objeto de estudo, e os processos que alteraram, ao longo do século XX, esta paisagem de importância patrimonial, os Campos Elíseos.
3.2 Patrimônio Oficial e Patrimônio Banal Esta é uma discussão importante no que se refere ao patrimônio edificado. O patrimônio institucionalizado, oficial, inscrito nos livros de tombo dos órgãos de preservação, recebe uma série de restrições de intervenção, que se estende ao entorno, inclusive – dependendo da política de tombamento de cada órgão. Muitos são os edifícios, entretanto, que possuem importância patrimonial, mesmo não sendo oficialmente inscritos nos livros de tombo. Configuram uma paisagem histórica, por guardarem em sua forma relações com o entorno próprias de uma época, posicionamentos do edifício no lote que caracterizam uma relação específica entre a arquitetura e a cidade, tratamentos de fachada originais, que demonstram uma preocupação com a contribuição da estética urbana, e ainda gabaritos uniformes, que configuram – ou configuravam – um conjunto de massas contínuo, que expressam um momento histórico da cidade. Ermínia Maricato (2000) cita, em sua análise sobre a viabilidade de instrumentos de politica pública de habitação social na região central de São Paulo, que “grande parte das características do Centro são dadas pelo patrimônio „banal‟ ou comum. Este fornece parte dos 67
padrões de parcelamento do lote, tipologia de construção, relação dos imóveis com a rua (...) neste caso, a reciclagem de edifícios cria relevância. (...) dependendo dos parâmetros, uma operação urbana pode estimular mais a demolição do que a reciclagem” (p. 7).
Patrimônio banal. Casario dos anos 1930, pouco expressivo individualmente, mas que configura e conforma o espaço. Alameda Glete. Foto do autor. Out/2008.
Patrimônio Oficial. Colégio Maria José, construído na década de 1890. Bem tombado pelo Conpresp. Alameda Glete. Foto do autor. Out/2008.
Ao considerarmos o objeto de pesquisa um bairro de importância patrimonial, estamos considerando o valor representado pelos exemplares mais comuns, também contemporâneos aos oficiais, mas não protegidos por instrumentos legais por não representarem fortemente um fato específico da história da cidade, ou um método singular de construção que lhes foi empregado. Nos Campos Elíseos, por exemplo, são vários os edifícios que, datados dos anos 30 do século passado, ainda sobrevivem na paisagem do bairro, mas não são inscritos nos livros de tombo. Isso não exclui de imediato a possibilidade de sua preservação, afinal, a melhor maneira de conservar um bem histórico é através do uso (e uma natureza de uso compatível com a capacidade da edificação). 68
Acreditamos que seja importante estender essa discussão, mas apesar de termos prometido de fazê-la neste espaço da pesquisa, optamos por deixá-la para um próximo trabalho, de graduação ou pós-graduação na área. O objetivo deste trecho de capítulo era o de mostrar as duas diferentes abordagens de patrimônio histórico edificado e evidenciarmos a importância de ambas. Levantados esses conceitos, prosseguimos com a análise do patrimônio dos Campos Elíseos, baseado no repertório de questões trabalhadas até agora.
3.3 Campos Elíseos e seu patrimônio Abordamos desde o título do trabalho a defesa dos Campos Elíseos como patrimônio público da cidade de São Paulo. E, de fato, ele o é: um patrimônio por agregar valores representativos de uma sociedade específica (num dado momento histórico) em seu território – e ainda por ser um exemplo como poucos dos contrastes paisagísticos, urbanísticos e sociais advindos da inexistência de políticas públicas de planejamento urbano que considerem o desenvolvimento da cidade como um todo, dando a devida atenção à memória da cidade –; e é um caso público de patrimônio por ter em seu maior elemento patrimonial um bem público: a rua, ou melhor, as ruas, o tecido urbano, as vias de circulação e passeio, as praças e largos abertos há quase 130 anos, e que ainda mantém, em sua maior parte, as características históricas daquele planejamento de meados de 1880; ainda, público, devido aos referenciais da memória coletiva que são mantidos na área pelo conjunto edificado, pois, ainda que privado, o conjunto edificado é representação de um método construtivo, de uma forma de morar, trabalhar e viver, enfim, de uma cidade, espaço por excelência da coletividade. Como evidenciamos no item 3.1, consideramos o bairro dos Campos Elíseos um Patrimônio Ambiental Urbano, como um espaço que reúne não somente edificações de interesse histórico oficializado, mas também exemplares do dito “patrimônio banal” ou “comum”, sendo o espaço da malha viária – projetada num momento único da história da cidade, a fim de expressar 69
uma ideologia de cidade através de relações entre rua, lote e edifício -, como elemento interceptor destas vertentes patrimoniais diversas. As relações entre os ainda existentes edifícios originais e a calha da rua, as construções datadas daquele tempo (1880-1930), públicas e privadas, as pessoas que habitam o bairro, as relações sociais que nele ocorrem, a vida de bairro que persiste em algumas ruas, com seu ritmo leve e tranqüilo, em pleno Centro da cidade. Este conjunto reúne elementos, indivíduos e exemplares de uma época em que a cidade começava a se tornar cosmopolita, e os Campos Elíseos é a memória viva de sua expansão urbana, de seus conceitos e modelos urbanísticos empregados, da ideologia que queria ser transmitida pelo espaço urbano enquanto uno. A partir da Carta de Veneza, como já discutimos no item 3.1, chegamos à conclusão de que o bairro em questão possui duas configurações de importância histórica, porque se aproxima da configuração de um sítio histórico e também é lugar de criações arquitetônicas de um momento específico (transição do século XIX para o XX e primeiras décadas do XX) de uma civilização específica (a sociedade paulista e paulistana daquela época, marcada pela concomitância dos ricos barões com os pobres trabalhadores migrantes e imigrantes, por exemplo). Partindo da mesma conclusão, em 1982 o CONDEPHAAT iniciou um estudo dos bens de importância patrimonial nos Campos Elíseos, concluído com a abertura do processo de tombamento do tecido urbano e de mais 52 imóveis. A justificativa do processo pautava-se no interesse daquele Conselho de preservar a memória da época em que os Campos Elíseos eram o bairro da elite cafeeira, mas também de trabalhadores populares e imigrantes, que encontraram ali condições de habitar. No final de 2008 acreditávamos que o processo tinha sido concluído com o tombamento de apenas alguns exemplares da lista de dezenas, entre eles, a Estação Júlio Prestes (Rua Mauá, 51), o casarão Santos Dumont e residência vizinha (Alameda Cleveland, 601 e 617), o Palácio dos Campos Elíseos (Avenida Rio Branco, 1289), e a residência Dino Bueno (Rua Guaianazes, 1238 e 1282). Faltava a explicação do porquê não preservar os outros 47 e a malha viária. Querendo resolver esta incógnita, solicitamos renovação da bolsa e, tendo a obtido, 70
realizamos uma entrevista com um profissional técnico do CONDEPHAAT que trabalha no Conselho mesmo antes dos anos 80. Foi então que na entrevista o técnico nos informou que o processo ao qual nos referíamos havia sido o produto de um estudo mais antigo, iniciado em 1982, um inventário especificamente realizado a fim de proteger o patrimônio dos Campos Elíseos. Após quatro anos de trabalhos, o Conselho decidiu o referido processo de tombamento, o SC 24.506/86. A justificativa do processo iniciava-se considerando que “o traçado urbano do bairro dos Campos Elíseos, reticulado e regular, surgido de núcleo arruado e loteado pelo suíço Frederico Glete e pelo alemão Victor Nothmann, foi uma das primeiras implantações organizadas na expansão da cidade”, que “sua ocupação original, a partir do final do século XIX, se deu predominantemente pela elite enriquecida com a cafeicultura, através da construção de residências de grande porte e luxo, inseridas dentro dos padrões estéticos e técnicos dominantes na arquitetura eclética paulista desse período”, além de ser “em algumas áreas (...) marcada pela construção, ao lado de grandes mansões, de edificações representativas de outras camadas da população (desde residências de profissionais liberais até moradias e estabelecimentos modestos de operários e pequenos comerciantes), e que na construção destas edificações, como na das grandes mansões foi marcante a presença e a influencia dos mestres de obra e artesãos europeus imigrados: italianos, portugueses espanhóis” e também que “apesar do processo de estagnação e modificação sofrido pelo bairro após a década de 30, um significativo cinjunto de edificações e espaços urbanos conservam-se como testemunhos inestimáveis do período de formação e desenvolvimento dos Campos Elíseos”, deliberando os bens listados e o traçado urbano como em processo de tombamento. O fato de apenas alguns terem sido tombados se deve a não conclusão do processo de tombamento, ou seja, os bens listados no processo de 1986 ainda não possuem deliberação efetiva em relação ao tombamento. Eles continuam como se estivessem tombados, como afirma o entrevistado, mas não o são, efetivamente. Ainda segundo o entrevistado, a demora do processo se deve aos problemas que existiram ao longo desses últimos vinte e três anos, divergências políticas 71
existentes entre os diversos membros do Conselho, nas diversas composições que o mesmo possuiu, desde então. A cada nova composição administrativa do Conselho, a lista era reformulada, nunca chegando a uma conclusão definitiva. O impasse teria incitado alguns proprietários a optarem pela demolição do bem construído; entretanto, o entrevistado não sabia ao certo quais foram aqueles que padeceram deste destino. Seria interessante pesquisarmos através de busca de campo, e pretendíamos fazê-lo, mas a tarefa revelou-se muito longa, o que acarretaria a necessidade de uma nova renovação da bolsa, o que de fato não é possível no momento. Mas sabemos quais são os pontos que devem ser retomados em trabalhos futuros, e pretendemos continuá-los. Em relação aos outros órgãos de proteção ao patrimônio histórico, Campos Elíseos não possui nenhum bem tombado na instância federal, o IPHAN. O maior número de bens tombados é da instância municipal, o CONPRESP. São ao todo onze bens tombados, entre edificações e árvores históricas. Atendendo à solicitação do assessor, produzimos um mapa dos bens tombados com suas respectivas identificações, inserido abaixo e em maior resolução nos Anexos.
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Abaixo, inserimos algumas fotos de bens tombados e de representantes do que estamos chamando de patrimônio banal.
Posto de Saúde Especial para DST. Alameda Cleveland. Bem tombado pelo Conpresp, recentemente restaurado pela Companhia de Restauro. Foto do autor, 2º semestre de 2008.
Conjunto arquitetônico da Alameda Glete. Não tombado. A edificação amarela é atualmente um cortiço com bar no térreo, enquanto que a azul, em primeiro plano, é uma creche privada, ligada ao Colégio Maria José. Foto do autor, 2º semestre de 2008.
Museu de Energia (antiga Mansão Santos Dumont), localizado na Alameda Nothmann. Edifício tombado em duas instancias: estadual (Condephaat) e municipal (Conpresp). Foto do autor. 2008.
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Foto do autor. Patrimônio banal no Largo Coração de Jesus. Nota-se o uso como pensão e bares, no térreo. 2008.
Foto do autor. Patrimônio oficial no Largo Coração de Jesus. Repare que os casarões em primeiro plano encontram-se lacrados com alvenaria, provavelmente para evitar que o edifício vazio fosse ocupado pelo Movimento de luta por Moradia Digna. 2008.
Foto do autor. Patrimônio oficial na Alameda Glete. Na foto, tanto a árvore (uma figueira, a “figueira da Glete”) quanto o muro (único remanescente da presença do antigo Palacete Jorge Street) são tombados pelo Conpresp; O local onde estão inseridos ambos os “bens históricos” é atualmente um estacionamento a céu aberto. 2008.
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Foto do autor, tomada em 2007 a partir da torre da Igreja Sagrado Coração de Jesus. Vemos um conjunto de quatro edificações antigas em estado de ruínas, na Alameda Barão de Piracicaba. O conjunto contrasta com a edificação logo atrás, conservada pelo seu uso como Fundação da UNESP (Fundunesp). À direita, casas mais baixas de importância histórica, tombadas pelo Conpresp, funcionam como secretarias e órgãos administrativos. No centro da imagem encontramos o Palácio Campos Elíseos e mais ao fundo o edifício Cult, ainda em obras na época.
3.4 Políticas patrimoniais a partir dos anos 1980 Constituição, legislação estadual e municipal – conpresp e condephaat Os anos 1980 trazem uma mudança significativa na ordem do Brasil: o processo político de redemocratização. Com ele, o instrumento legal Maior, a Constituição Federal de 1988. E para o patrimônio histórico brasileiro, a Constituição veio regulamentar definições e direitos, através dos Artigos 5º, inciso LXXIII; do 23, incisos de III a V; e do 216, incisos I a V. Os excertos seguem abaixo:
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“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; (...)”
“Art. 23: É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; (...)” “Art. 216: V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.”
O instrumento da Constituição de 1988 reforça aspectos que já vinham sendo abordados por instrumentos legais anteriores, nos três níveis (federal, estadual e municipal). 76
O antigo SPHAN, criado em por Mário de Andrade, tornou-se o que entendemos hoje por IPHAN. No nível estadual, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, o CONDEPHAAT, havia sido criado ainda na década de 1960, por meio da Lei Nº. 10.247, de 22 de outubro de 196825. O nível municipal receberia o CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural E Ambiental da Cidade de São Paulo) três anos antes da Constituição Federal, em 1985, pela Lei Nº. 10.032, de 27 de dezembro daquele ano26. Foram atribuídos aos três órgãos, em suas diversas instâncias, o poder do tombamento, “Há outras formas legais de preservar o patrimônio, além do tombamento e de leis de preservação mais genéricas. Isso pode ser feito “através de instrumentos legais de planejamento urbano, a nível municipal. A criação dessas áreas tanto pode se dar através de procedimento legislativo, isto é, inseridas na própria lei de uso do solo urbano, quanto virem a ser estabelecidas por decreto executivo, quando a lei de uso e parcelamento do solo urbano assim o permitir. Trata-se, basicamente, de legislação de caráter urbanístico, somente aplicável a imóveis urbanos; no entanto, pode produzir os mesmos efeitos práticos do tombamento, já que a legislação urbana pode impor ao proprietário do bem imóvel as restrições que julgar cabíveis, do ponto de vista do meio ambiente urbano; é que dentre as diretrizes que orientam o planejamento urbano e o uso do solo, está a preservação ambiental” (CASTRO, 1991: 8). Esse tipo de preservação inserido na legislação urbanística municipal não pode ser considerada tombamento, ainda que provoquem os mesmos efeitos. O caso é que, como descreve a autora, os procedimentos para a imposição de restrições são diferentes, “assim como podem ser diversos a competência, a forma, o motivo e a finalidade. Podemos verificar, portanto, que há uma grande diversidade de formas jurídicas assemelhadas que, restringindo o direito de propriedade, acabam por proteger o bem cultural direta ou indiretamente. O tombamento é 25
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Fonte: http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/SEC, acessado em agosto de 2008.
O CONPRESP foi readaptado em 1986, pela Lei Nº. 10.032, de 16/12/1986. http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/conpresp, acessado em agosto de 2008.
Fonte:
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apenas uma dessas formas legais. A lei o delimita, estabelecendo os lindes do exercício desse poder de polícia da administração, dispondo sobre seu conteúdo, seu procedimento e, a partir daí, estabelecendo os efeitos jurídicos que lhe são específicos” (Ibidem, p.8). As políticas patrimoniais encontram nos anos 1980 novo aparato legal, de fundamental importância para a constituição de instrumentos de preservação e registro dos bens culturais. Especificamente em relação ao centro de São Paulo, contudo, é necessário voltarmos ainda uma década atrás, até os anos 1970, período em que começou a se discutir a importância patrimonial dos bairros centrais e pericentrais, conforme já descrito. A seguir, essa análise focada na região central da cidade de São Paulo.
3.5 Políticas patrimoniais para o Centro de São Paulo (1970 – 2004) Como já foi citado neste relatório, a preocupação com a importância patrimonial dos bairros centrais, entre eles os Campos Elíseos, só começou a ser considerada a partir dos anos 1970. Nessa década, surgiu uma preocupação com o destino que seria dado aos edifícios antigos de potencial patrimonial das áreas de intervenção do Metrô –, incitados pelos conflitos encontrados no projeto e nas obras de construção do Metrô de São Paulo, e pela tendência internacional em discutir o patrimônio e a transformação urbana, como o caso de Bolonha, na Itália, por exemplo. Mas apenas no final dos anos 1970 se iniciará em São Paulo o debate acerca da necessidade ou conveniência da elaboração de regimentos legais – às vezes não tão claros como políticas urbanas – sobre patrimônio histórico, cultural e ambiental. A partir de então, o Centro de São Paulo passou a ser palco de grandes projetos de revitalização e recuperação urbana, ora pelo poder público, ora pela iniciativa privada, ora por uma atuação conjunta entre ambos. Décadas antes, e até mesmo no início daquela, vigorava a idéia de que os conflitos sociais e urbanos deveriam ser aniquilados por meio de grandes obras viárias que cortassem pontos “críticos” e atraíssem investidores para uma troca de populações, de 78
uma mais carente e local, por uma mais abastada e nova. Essa ideologia, porém, já vinha sendo aplicada desde o início do século passado em cidades brasileiras, como foi o caso do centro do Rio de Janeiro durante a Reforma Urbanística realizada na gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906). Em São Paulo, obras como o elevado Costa e Silva, inaugurado em 1971, e a do alargamento da Avenida Rio Branco, concluída em 1977, acabariam por contribuir para uma desorganização do espaço urbano, como afirma Regina Meyer, em “A Urbanidade em Transe”: “O sistema viário adaptado às novas dimensões criou rupturas urbanas muito intensas, segregou trechos de bairros, afastou setores urbanos onde a vida cotidiana era, até bem pouco tempo atrás, equilibrada e integrada” (2000: 54-57). Apesar de ainda estar muito vinculado a uma solução viarista, o primeiro instrumento criado como tentativa de preservação do patrimônio em São Paulo foi criado em 1972, num conjunto de regulamentos legais chamado Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI), a partir de uma inserção de uma zona especial na lei de zoneamento municipal. Esta nova zona, Z8007, tinha caráter restritivo e foi posta em prática quando do início do projeto e das obras das linhas do Metrô que passariam pelo centro da cidade, numa ação conjunta do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional), de instância federal, e do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo), de instância estadual, já que na instância municipal ainda seria criado o DPH (Departamento de Patrimônio Histórico), em 1975. Um ano antes, em 1974, uma mudança no Zoneamento incluiu um novo tipo de área de atenção patrimonial, a Z8-200. Consistia numa outra zona restritiva para patrimônio histórico, podendo ser um alvo pontual – um edifício de importância histórica – ou mais ampla, como uma mancha de interesse num trecho do tecido urbano. A legislação restritiva resultante acabou desestimulando os investidores privados, num receio de que o capital ali investido não fosse capaz de trazer um lucro expressivo; é quando começam a investir na região da Avenida Faria Lima e se desperta o interesse pela região da Avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini e pela Marginal do rio 79
Pinheiros. Em 1975, a EMURB (Empresa Municipal de Urbanização), que fora criada em 1971 para gerir as medidas propostas pelo PDDI de 1972, realizou uma série de obras pontuais, visando construir um “Plano” de Revitalização para o Centro de São Paulo, com reformas de praças, criação de ruas para pedestres, e recuperação de alguns monumentos históricos, numa tentativa de “atrair para a área central os interesses que haviam migrado para outras regiões da cidade” (KARA-JOSÉ, 2004 : 14) que, por não ser efetivamente um conjunto de ações integradas, não pode ser considerado como Plano. “No final dos anos 70, a crise nas finanças municipais teve como conseqüência a diminuição do número de grandes obras publicas (...) [e] poucas foram executadas. (...) Uma delas foi a reurbanização do Vale do Anhangabaú, proposta de maior destaque no plano chamado Pró-Centro, elaborado pela EMURB, na gestão do Prefeito Reynaldo de Barros (19791982)”. (Ibidem, p. 30-31). A partir dos anos 1980, período de redemocratização política do Brasil, a idéia de “revitalização” – um novo conceito de intervenção urbana –, do Centro entra em pauta, de certa forma também influenciada pelas discussões sobre patrimônio no espaço internacional. É quando, aqui e na América do Norte, diferentemente do que vinha ocorrendo na Europa, a idéia de recuperação urbana de regiões degradadas e históricas é atrelada a uma re-ativação da economia, e não a um caráter de reforma social, como ocorria em cidades européias, como Bolonha. É nessa época que é criado o CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), através da Lei nº. 10.032 de 27 de dezembro de 1985, atribuindo a este Conselho o poder de tombamento, significativo acréscimo nas atribuições de políticas de patrimônio do poder Municipal. Entretanto, a política de tombamentos de patrimônio histórico e cultural acabou por influenciar um rápido desaparecimento destes patrimônios, como descreveremos no item 3.6.5 deste relatório.
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O Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo, de 2002, traz novas especificações no que tange ao patrimônio e à política de preservação patrimonial, por meio das ZEPECs. Inserimos aqui um recorte do PDE 2002, específico sobre estas novas zonas: “CAPÍTULO II Subseção II - Da zona especial de preservação cultural - ZEPEC
Art. 168 - As Zonas de Preservação Cultural - ZEPEC são porções do território destinadas à preservação, recuperação e manutenção do patrimônio histórico, artístico e arqueológico, podendo se configurar como sítios, edifícios ou conjuntos urbanos. § 1º - Os imóveis ou áreas tombadas ou preservadas por legislação Municipal, Estadual ou Federal, bem como os imóveis classificados como Z8-200 por Lei Municipal, enquadram-se como ZEPEC. § 2º - Aplica-se às edificações particulares localizadas em ZEPEC a transferência do potencial construtivo, conforme disposto nos artigos 217, 218 e incisos I e II do artigo 219 desta lei. § 3º - Excluem-se do disposto no parágrafo anterior, os bairros tombados.”
Regulamentadas pela Lei de Zoneamento de 2004, vigente desde o ano de 2005, estabelece regulamentações e zonas que atualizam os instrumentos de zoneamento para preservação de bens históricos; nesta Lei, as Z8-200 tornaram-se ZEPECS (Zonas Especiais de Preservação Cultural) e ficou extinta aquela denominação da Legislação dos anos 70. As ZEPECS podem ser de três tipos: BIR (Bens Imóveis Representativos), abarcando todo o imóvel que se julgar de importância patrimonial por qualquer justificativa; as AUE (Área de Urbanização Especial), referentes às áreas que possuem como característica patrimonial que vale ser conservada o ambiente urbano, o desenho da cidade, com referência a um ideal específico de espaço urbano; e as APP (Áreas de Preservação Paisagística), aplicável aos espaços verdes livres públicos, às praças e parques. A ZEPEC de Área de Urbanização Especial se aplicariam a diversos lugares dos Campos Elíseos, lugares que se referem ao patrimônio banal, à importância
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de se estabelecer diretrizes para a preservação do conjunto edificado, envolvendo edificação, lote, malha urbana, enfim, desenho e paisagem urbanos.
3.6 Discussões sobre o estado de conservação e/ou os conflitos ligados ao patrimônio edificado nos Campos Elíseos 3.6.1 Moinho e silos Matarazzo
Foto do autor, de 2009. Na imagem, o elemento central são os silos e a praça do campinho de futebol. À esquerda, construída em alvenaria de tijolos, a creche da comunidade, obra da Aliança de Misericórdia. Na extrema esquerda, e um pouco acima da creche (na perspectiva), vemos uma das linhas férreas, enquanto a outra é mais clara na extrema direita da imagem. Ao fundo, edificação do Moinho, também ocupada por barracos. O segundo plano ao fundo da imagem já mostra edificações presentes no bairro do Bom Retiro.
Única na região central de São Paulo, a Favela do Moinho se localiza na antiga propriedade da família Matarazzo, onde funcionava um dos moinhos de suas indústrias. Décadas após o auge da atividade industrial daquele lote, pioneira em São Paulo, deflagra-se o abandono. E foi a partir deste estado de abandono que no início dos anos 1990 o terreno foi gradativamente ocupado por moradores de rua e famílias despejadas de outras ocupações da região central da cidade. Começamos a acompanhar a Favela do Moinho há cerca de dois anos, quando ainda preparávamos o projeto de pesquisa a ser encaminhado para esta Fundação. Durante o período de renovação da bolsa, contudo, percebemos que as informações que havíamos obtido até então nos 82
trabalhos de campo eram incompletas; na verdade, a situação da favela era muito mais complexa do que pensávamos. Alessandra, 24 anos de idade e mãe de três filhos, que além de líder da Associação de Moradores da Favela até 2008 era também nosso contato principal dentro da favela, estava envolvida com o tráfico de drogas existente dentro da ocupação – e até meados do primeiro semestre de 2009, estranho ao nosso conhecimento. Pelo comprometimento de sua família com a atividade ilegal, Alessandra não nos havia dito sobre a complexidade das tramas de poder e de ilegalidade presentes na favela. Esta informação atualizada só chegou até nós através da entrevista com um dos agentes da Aliança de Misericórdia – entidade religiosa de orientação católica que prima pela formação de padres, religiosos e religiosas também por meio da prática da caridade junto a comunidades carentes – no Moinho, cujo nome omitimos a fim de preservar sua identidade e integridade (chamamo-lo apenas de “Irmão”). Segundo ele, a antiga representante das famílias faveladas, Alessandra, exercia uma representatividade mais simbólica e externa à favela, já que nunca houve uma articulação política entre os moradores do Moinho, nem uma identificação com sua liderança. O bar que era por ela coordenado na entrada da favela, hoje se encontra fechado: era lá que eram entregues correspondências para os demais moradores e talvez este era um dos serviços que possivelmente contribuiriam para sua imagem de líder comunitária. O número de famílias que moram no terreno entrincheirado por duas ferrovias da CPTM, uma no sentido Luz-Itapevi e outra Luz-Francisco Morato, de acordo com o entrevistado, é de 700, bastante próximo daquele de 750 que havíamos obtido em 2008 com Alessandra, dado o empirismo dos levantamentos. As cerca de setecentas famílias possuem histórias e origens muito diversificadas, o que dificulta na construção de uma sociabilidade pautada nas similaridades entre indivíduos, apesar do compartilhamento da mesma situação presente. Irmão nos revelou ainda que não existe interesse entre os moradores em criar uma organização interna, uma representatividade política.
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A favela existe há ao menos quinze anos, tendo surgido a partir de um núcleo de barracos sob o viaduto Orlando Murgel, que liga a Avenida Rio Branco à Rudge; mas o número de famílias aumentou muito a partir de 2005, de acordo com a antiga “representante” da favela, tendo se expandido para o lado direito do viaduto Orlando Murgel, terreno de propriedade da extinta Rede Ferroviária Federal27. Podemos identificar uma aproximação entre o crescimento populacional do Moinho desde 2005 à chegada ao poder de partidos políticos de orientação mais direitista, no Estado e na cidade. Isso porque medidas de caráter higienista têm sido mais frequentemente adotadas nos últimos quatro ou cinco anos28, como afirmou em 2007 o defensor público Carlos Henrique Loureiro em entrevista à Carta Maior: “desde que a atual gestão assumiu, em 2005, há uma prática de eliminar a pobreza do centro, enviá-la para a periferia e escondê-la da classe média”29. O fato de não existir uma Associação de Moradores, não impede as famílias de realizar assembléias de informação e deliberação, visando a obter um posicionamento comum de todas as famílias, principalmente face a uma possível ação de despejo. Por outro lado, os religiosos da Aliança de Misericórdia e o próprio tráfico configuram em si dois pólos de coordenação geral da favela: o primeiro mais ligado à razão (apesar de ser religioso) e à educação, enquanto o segundo atua por meio de seus interesses econômicos. Desse modo, cabe aos religiosos da Aliança a coordenação da creche (por eles construída, através de doação de materiais encaminhados pela Aliança e da doação da terra, pelos traficantes), da capela (a Capela de Nossa Senhora do Moinho, batizada pelos moradores e construída com os mesmos materiais da maioria dos barracos) e de um apoio psicológico e consolador. Ao tráfico, cabe o controle da comercialização da droga e das
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Ver em Relatório 2, Anexos, Caderno de Artigos de Imprensa, artigo “Prefeitura quer mudar linha de trem”, publicado na Folha de São Paulo em 19 de outubro de 2008. 28
O maior exemplo dessa diferença entre políticas pode ser constatado pela observação do caso do Edifício São Vito, na região do Parque Dom Pedro, centro da capital, em que se contrapunham duas propostas: a conversão do edifício em habitação de interesse social (gestão Marta Suplicy, PT) e a demolição do edifício para a construção de uma praça (gestão Serra-Kassab). 29
Ver em Relatório 2, Anexos, Caderno de Artigos de Imprensa, artigo de Rafael Sampaio publicado na Carta Maior em 17 de janeiro de 2007: “Favelas são novo alvo de higienização em São Paulo”.
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dinâmicas do espaço da favela: quem entra e quem sai, quem visita, quem se muda para a favela, quem se muda da favela. Mas não se pode simplesmente morar na favela, é preciso pagar pela terra e pelo aluguel (ou compra) do barraco. Os traficantes do Moinho controlam o “mercado imobiliário e de terras”, ilegal, da comunidade, regulando os preços de compra e venda e os aluguéis dos barracos de acordo com as leis da oferta e da procura, assim como o faz o mercado imobiliário legal30. Em entrevista ao autor, Irmão destacou o papel centralizador do tráfico, baseado no poder que os traficantes detém de donos da força (violência), e do medo que impõem aos demais31. No entanto, o raio de atuação do tráfico não está inscrito apenas dentro do perímetro da favela; segundo o entrevistado, os traficantes do Moinho estariam inseridos numa rede trans-local do narcotráfico, sob a liderança de criminosos do PCC (Primeiro Comando da Capital, facção criminosa), os quais estruturariam o abastecimento de crack e outras drogas na chamada “Cracolândia”, através de telefonemas emitidos de dentro de presídios, alguns dos quais de segurança máxima. Os traficantes da favela do Moinho seriam, ainda segundo o Irmão, jovens cuja faixa etária média é de 18 anos, configurando um grupo cheio de privilégios dentro da favela. Em outra visita que realizamos em junho de 2009, fomos acolhidos por uma outra Irmã, que nos contou a dificuldade de se negociar com as famílias cujos filhos são chefes do tráfico interno: elas se recusam a ajudar as demais ou a se mobilizar em prol de outrem, pois elas “não precisam passar por isso”, nas palavras da Irmã, ironizando as falas dos indivíduos ligados ao tráfico de drogas. São eles que permitem ou proíbem diversas atividades na favela, como a aceitação ou a recusa da instalação de uma nova família ou mesmo a vigilância de tudo o que acontece, de todos que entram e saem da favela, mas sempre que estão em dúvida, os traficantes entram em contato
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Sobre a atuação imobiliária do grupo do narcotráfico da favela, ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com “Irmão”, pág. 7 a 8. 31
A violência sobre os demais moradores não é física, mas psicológica. A imagem de quem porta a arma já é suficientemente convincente para determinar quem é o dominante e quem o dominado.
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com as lideranças locais da Aliança de Misericórdia, aferindo assim as procedências de indivíduos suspeitos, por exemplo. A situação jurídica da ocupação não é menos complicada. Inserida no atual PDE como Zona Especial de Interesse Social, após a extinção da Rede Ferroviária Federal (RFF) a propriedade de aproximadamente 17000 metros quadrados passou para a União, pois a antiga RFF era vinculada ao governo federal. Em 2008 a PMSP iniciou um processo jurídico junto à União solicitando transferência do terreno para o município, a fim de viabilizar a construção de um parque urbano, o Parque Moinho Novo. No entanto, qualquer projeto que se deseje implantar na área deverá obrigatoriamente visar à promoção de habitação de interesse social, devido à delimitação da área no PDE como ZEIS32. Além disso, o projeto parece estar engavetado, já que a mídia não publicou artigos sobre o tema e que a EMURB, empresa responsável pelo projeto, está por ora totalmente voltada para a viabilização da Nova Luz. Na gestão anterior à de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM), havia um projeto de regularização fundiária e de promoção de habitação social para as famílias moradoras aos moldes do que havia sido feito com o Conjunto do Gato33, em 2003, apropriando-se da orientação da área como de interesse social. Contudo, nem a gestão Serra, nem a Kassab se mostraram interessadas em implementar o projeto da gestão Marta Suplicy e, em outubro de 2006, o então secretário das Subprefeituras, Andrea Matarazzo, emitiu um decreto de desapropriação da favela. A justificativa da medida era pautada na suposta contaminação do solo pela existência de materiais explosivos no subsolo, o que nunca foi comprovado. Segundo a advogada Anna Vazzoler, coordenadora do Escritório Modelo da Pontifica Universidade Católica (PUC-SP), “a prefeitura elaborou um laudo sem base técnica, feito a partir de depoimentos, em que a culpa das explosões é atribuída às 32
Nas ZEIS, toda e qualquer intervenção que for feita deve prever uma destinação de 40% da área para habitação de interesse social, 40% para habitação de mercado popular e 20% de outros usos. Trata-se de um instrumento progressista na defesa de áreas subutilizadas ou ocupadas por favelas contra a especulação imobiliária. 33
“Conjunto do Gato” é o nome dado pela gestão Marta Suplicy para a então extinta favela do Gato, localizada na região central na várzea do Rio Tamanduateí, que foi substituída pelo “Conjunto” de prédios habitacionais de qualidade arquitetônica bastante superior à que se fazia nas gestões anteriores, como o Cingapura das gestões Maluf e Celso Pitta.
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ligações elétricas clandestinas, e não às ditas substâncias”34 A responsabilidade por análises de contaminação de solos é da CETESB, empresa da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente do Governo do Estado de São Paulo. A empresa possui um cadastro 35 de todas as áreas contaminadas do Estado e, após realizarmos a busca em todo o documento, não encontramos nenhuma ficha de contaminação referente à favela do Moinho, ou ao endereço ocupado pela favela, o que nos leva a crer que, de fato, o decreto de Andrea Matarazzo seria pautado em informação leviana. Outra questão política que se insere no aspecto jurídico da problemática é a revisão do PDE. A proposta de revisão do Plano Diretor fere as conquistas da população pela delimitação de zonas especiais, nas quais estaria garantida a destinação do solo para fins de habitação social. Com o objetivo de viabilizar o projeto do Parque Moinho Novo, na proposta de revisão do PDE a área da área entre as duas linhas de trem que hoje é ocupada pela favela foi retirada da ZEIS que se estende pela orla ferroviária, numa medida claramente higienista e estratégica para consolidar o centro de São Paulo como uma área turística onde pobres não podem morar. Novamente o patrimônio histórico da cidade é empregado como elemento central de políticas de gentrificação, uma vez que o parque terá o diferencial de possuir dentro de sua área equipamentos raros da indústria centenária da cidade. As outras ZEIS existentes no entorno, principalmente aquelas da Nova Luz e da Praça Julio Prestes, não trariam grande problema para os planos da prefeitura, pois o elevado preço da terra (em decorrência da valorização fundiária, tão desejada) será a fronteira de classes; ainda, a
34
Trecho retirado do artigo “Favelas são novo alvo de higienização em São Paulo”, publicado na Carta Maior de 17 de janeiro de 2007. Ver em Relatório 2, Anexos, Caderno de Artigos de Imprensa. 35
Disponível em www.cetesb.sp.gov.br/Solo/areas_contaminadas/relacao_areas.asp
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orientação dos arquitetos da EMURB para a construção dos edifícios de habitação social é clara: nada de prédio baixo sem elevador com a cara estigmatizada de conjunto habitacional 36; a idéia é valorizar, seguindo os moldes do projeto de HIS na ZEIS da Operação Urbana Águas Espraiadas, de autoria do renomado escritório MMBB Arquitetos Associados. A referência, de modelo arquitetônico a ser seguido, portanto, não poderia ser mais ajustada para o gosto da classe médioalta, e o edifício projetado (ver figura ao lado, publicada no jornal O Estado de São Paulo, de 11/06/09, que mostra maquete do edifício projetado, onde unidades de 50m2 serão vendidas a um preço médio de R$60.000,00) à promoção real de habitação para um perfil populacional que não precisa de um instrumento tão progressista como a ZEIS para ter acesso à moradia. A valorização da terra adicionada da valorização do empreendimento planejado por arquitetos renomados do cenário arquitetônico paulistano gerariam encargos enormes para que uma população cuja renda é de até três salários mínimos possa com eles arcar. Todos os fenômenos, dados, propostas e justificativas convergem para o mesmo ponto: para a atual gestão municipal e estadual, lugar de pobre não deve ser o Centro; deve ser, de preferência, em uma longínqua periferia. Certamente, grande parte dos moradores legais dos Campos Elíseos prefeririam a instalação do Parque em detrimento de um projeto de habitação social, como nos foi revelado em encontros com diversos moradores da área mais nobre do bairro, no entorno das últimas quadras da Alameda Barão de Limeira, em meados do ano de 2008. Além do interesse na valorização de suas propriedades, estes moradores possuem uma opinião bastante clara no que tange à ocupação da favela: para eles, grande parte das famílias seriam oportunistas interessadas apenas no recebimento do cheque-despejo (como já se convencionou chamar a indenização dada pelo poder público a cada família, numa quantia que costuma variar entre três mil e cinco mil reais – apenas 36
Este posicionamento foi revelado pelos arquitetos Anna Moraes Barros e Vladir Bartalini, ambos da EMURB, quando questionados sobre a efetividade das ZEIS da Luz como habitação voltada à baixa renda, na palestra “Nova Luz: Diretrizes do Plano Urbanístico”, realizado na FAUUSP em abril de 2009. Após ligeiro debate, Vladir acabou revelando que a chamada “gentrificação” é inevitável, pois ela acontece mesmo em conjuntos habitacionais do Cingapura instalados ao lado de favelas, na periferia da cidade. Ainda segundo o arquiteto, a solução estaria na gestão do edifício e do problema, e não no projeto arquitetônico ou político.
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uma verba para que a família encontre um lugar suficientemente bom para instalar seu próximo barraco), quando a divulgação do projeto de reintegração de posse tornou-se mais enfática. Entretanto, em maio de 2008 conversamos a respeito com Alessandra, então “representante” dos moradores, ao que ela respondeu prontamente: “Não. Aqui ninguém está aqui por causa de dinheiro, não. A gente não tem outra opção, mesmo. As pessoas estão vindo morar aqui por causa dos despejos que estão ocorrendo na região central. O Kassab não quer pobre no centro”, concluiu. O terreno é certamente de importância memorial para a história da cidade e do bairro, constituindo-se como registro de um dos primeiros usos industriais dedicados a este solo específico, que narra a história do bairro dos Campos Elíseos e da cidade como um todo, bem como o do processo de industrialização de São Paulo, já que as indústrias da família Matarazzo foram uma das primeiras a despontar na cidade – e no país – como unidade de produção mecanizada. O resgate da história da área pode ser importante para a compreensão de sua importância patrimonial. Dessa forma, na imagem aérea recortada abaixo, datada do ano de 195837, percebemos a existência de uma série de galpões, ainda em provável utilização produtiva, bem como do silo de armazenamento; este, por sua vez, aparenta ser o único remanescente do conjunto original, que pode ser visualizado no mapa Sara Brasil de 1938. Alterações devem ter sido feitas no espaço entre estes vinte anos (1938 – 1958), e então, a área teria permanecido intocada até meados dos anos 1990, quando surgiram os primeiros barracos da favela.
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disponível no site www.geoportal.com.br
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1958 – foto geoportal.
2008 – foto Google Earth.
A família Matarazzo, que formava um dos mais importantes empreendedores da indústria paulista, alcançou o sucesso pela transferência da fábrica de produtos alimentícios de Sorocaba para São Paulo, no final do século XIX. Aqui, “Matarazzo construiu em 1900 uma grande fábrica de farinha. A necessidade de ensacamento de seu produto levou-a à fundação da grande fábrica Maringela (1904), e essa, às fábricas de óleo de caroço de algodão e daí ao sabão e artigos de toilette. Assim, veio a necessidade de encaixotamento e, para isso, ele estabeleceu serrarias. E assim por diante. Antes da guerra de 1914 possuía fábricas que se dedicavam a fiação, estamparia, tinturaria e mercerização. A própria guerra estimulou a expansão e os lucros, e alguns socialistas diziam que Matarazzo (que recebeu do rei da Itália o título de conde pelos seus serviços) não teria sido contrário a uma prolongação indefinida do conflito dado o aumento de rendas que lhe trouxe” (Morse:304, citando O Parafuso, de 7 de julho de 1917). 90
O espaço da Favela do Moinho, e toda a orla ferroviária, possuem como registro na memória da cidade o vazio, i.e., o não-construído, o entre-trilhos. Qualquer projeto que seja pensado para se aplicar à área deve considerar isso. Deve ser considerada também a existência de uma Zona Especial de Interesse Social na área, exigindo que qualquer intervenção ali seja feita com o interesse social de promover a habitação popular. E isso não permite estratégias de contorno, como dizer que o parque Moinho Novo possui interesse social, dada a carência de áreas verdes na cidade. O instrumento da ZEIS, nesse caso, é para garantir o acesso das famílias assentadas em moradias dignas, dentro do centro da cidade e não nos extremos da mancha urbana, longe do trabalho e dos equipamentos públicos. O andamento das negociações e do projeto do Parque são desconhecidos. Contudo, em 19 de outubro de 2008 o jornal Folha de São Paulo publicou a matéria “Prefeitura quer mudar linha de trem”38, onde era exposto que CPTM, CEAGESP e PMSP estariam atuando conjuntamente com o objetivo de viabilizar reformulação dos trilhos de trens e a nova ocupação desse vazio histórico. Sendo a EMURB a responsável por este tipo de projeto, procuramos o Sr. Rubens Chamas, diretor de intervenções urbanas da EMURB, para esclarecermos a questão. Porém, tal encontro não foi possível, já vez que sua secretária informou que o Sr. Chamas estava fortemente comprometido com o projeto Nova Luz e ela, particularmente, desconhecia o tema “Parque Moinho Novo”. A polêmica continua não resolvida, mas se depender dos atuais gestores da cidade, não será difícil prever como será a São Paulo dos próximos anos.
3.6.2 Da casa do Barão à casa da Toca Rua Conselheiro Nébias, 1355
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Ver em Relatório 2, Anexos, Caderno de Artigos de Imprensa.
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Fotos do autor. À esquerda, casarão utilizado pela Toca de Assis visto da Rua Conselheiro Nébias (2007). À direita, foto da entrada social do antigo casarão, com destaque para a escadaria de acesso (2009).
O casarão situado na Rua Conselheiro Nébias, 1355, é um belo exemplar da arquitetura em tijolos realizada no inicio do século XX, técnica trazida pelos imigrantes europeus que chegavam à cidade de São Paulo a partir da última década do século XIX, quando começou a ser empregada para construção dos palacetes dos barões do café e das casas da classe média. Constitui-se atualmente como um dos poucos edifícios remanescentes daquela época e daquele porte, um bem fundamental para a história e a memória desta cidade. Também é um exemplar único quanto ao debate que suscita a partir dos conflitos patrimoniais, sociológicos e políticos envolvidos desde o ano de 2005, dado o grau de seriedade e complexidade destas questões. Durante a renovação da bolsa pudemos avançar na pesquisa do histórico da edificação. O edifício foi projetado e construído por Alberto de Oliveira Coutinho em 1909 para ser residência de seu tio, o Sr. José de Souza Queiroz, neto do Brigadeiro Luís Antonio de Souza. Como era comum para os filhos da elite brasileira, José Queiroz estudou na Áustria e formou-se em Direito pela Academia do largo de São Francisco, em São Paulo. “Ao retornar da Europa, enquanto seus irmãos residiam na Rua São Luís, José de Souza Queiroz adquiriu um terreno nos Campos Elíseos, onde mandou edificar uma casa isolada no lote, de dois pavimentos, com porão semi92
enterrado e habitável, cozinha em puxado no térreo, entrada social e de serviços” (HOMEM, 1996: 221). Morou na casa com sua esposa Gisela Braun de Souza Queiroz e seus onze filhos, além das famílias daqueles casados. Em 1944 faleceu o patriarca, já com 90 anos de idade (ibid., p.223). Trata-se de um palacete projetado sob a luz do Ecletismo, com uma implantação bastante inovadora para a época: edificação solta do lote, com recuos em todos os lados. Por ter sido inaugurada em 1909, é representativa da primeira fase dos Campos Elíseos, quando a aristocracia cafeeira ainda habitava a região. Segundo Maria Cecília Homem, o engenheiro projetista teria se inspirado na Vila Penteado (palacete da família Penteado localizado na Avenida Higienópolis, no bairro de mesmo nome), projeto de Carlos Ekman, mas sem o rebuscamento da residência dos Penteado; assim, o hall interno de pé-direito duplo organizando todos os cômodos da edificação seria uma referência àquele casarão. O porão semi-enterrado foi planejado para permitir a instalação das dependências dos empregados, da adega e depósito. O projeto do térreo permitia ao visitante a percepção de um espaço compartimentado como ditava a arquitetura francesa: vestíbulo, gabinete, sala de visita, salão, sala de jantar, hall principal, sala de música e de jogos, dormitório de hóspede, sala da governanta, cozinha, despensa, banheiro, banho. O pavimento superior, por sua vez, possuía oito dormitórios normais, um dormitório do casal, um dormitório para a governanta, um banheiro, um banho e um banho posterior e o mezanino. Para Maria Cecília, o fato de haver intercomunicação entre todos os quartos e apenas um banheiro era exemplo do arcaísmo da arquitetura empregada, uma vez que a garantia da intimidade dos moradores estava cada vez mais em voga. Após a morte do Sr. José Souza Queiroz, a família mudou-se da casa, a qual permaneceu vazia por alguns anos até que em 1952 fosse adquirida pelo Governo do Estado de São Paulo, que ali implantou o Escritório Regional de Saúde, departamento da Secretaria de Saúde do Governo. Este uso foi mantido até outubro de 2004. Diante de uma nova situação de abandono, e do risco de ser ocupado por movimentos sociais de luta por moradia digna, tendência que vinha ocorrendo 93
com freqüência – como foi o caso ocorrido na Mansão Santos Dumont, na Alameda Nothmann – o Governo do Estado tratou logo de buscar um novo uso para o edifício. Em agosto de 2004, um mês antes da saída do departamento da Secretaria da Saúde, ocorreram crimes sucessivos de agressão física e violência a moradores em situação de rua do Centro de São Paulo, ferindo um total de 15, mas culminando com a morte de 7 deles 39. Entre os quatro suspeitos pelo crime, predominavam os policiais militares. Diante de tal catástrofe, o Padre Julio Lancelotti, coordenador da “Pastoral do Povo da Rua”, teria solicitado ao Governador a solução do problema com a criação de uma casa de amparo aos moradores de rua, na região central da cidade. Sendo assim, em 19 de abril de 2005, o então Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), assinou o decreto nº49551, fazendo, por meio deste, a doação a título do imóvel em questão à comunidade religiosa católica – embora não reconhecida oficialmente pela Igreja – “Fraternidade de Aliança Toca de Assis”, por tempo indeterminado, destinando aos beneficiários, contudo, o dever de cuidar dos moradores de rua da região, respondendo, assim, ao apelo do Padre Lancelotti. A entidade, mais popularmente conhecida apenas por “Toca de Assis” ou “Toca”, atua em escala nacional, em diversas casas de acolhida dispersas em 16 estados da Federação, mais o Distrito Federal, predominando as capitais estaduais e as grandes cidades. A Toca foi criada em 1992 pelo Padre Roberto Lettieri, a fim de atuar por meio do assistencialismo emergencial aos moradores de rua, que, segundo a própria entidade, em auto-definição publicada em seu website, se “inspirou nos ensinamentos de São Francisco, em seu zelo eucarístico e amor aos pobres” e é formada por “religiosos, os Filhos e Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento, Instituto de Vida Consagrada não clerical, e também pelos leigos, que não aspiram à vida religiosa, mas vivem o carisma”, e contam com ajuda de “amigos e benfeitores, aqueles que se comprometem
39
Ver em Relatório 2, Anexos, Caderno de Artigos de Imprensa, artigo do Jornal G1.
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mensalmente com doações para o sustento de nossas casas, sendo canal da providência de Deus no nosso dia-a-dia”40. A partir de então instalou-se a polêmica: por que o Governo do Estado de São Paulo entregou a propriedade para a entidade? Como o Governo permitiria o uso do bem público com finalidade religiosa? A opinião dos moradores do bairro eram (e são) divergentes, apesar de percebermos forte polarização em dois grupos: os que encaram a Toca como uma importante entidade de serviço social e missionária, e os que julgam suas ações assistencialistas e danosas para os indivíduos atendidos e para a qualidade de vida no bairro. Através das entrevistas, percebemos que aqueles indivíduos favoráveis à Toca de Assis são em geral católicos que fazem trabalhos de caridade para a comunidade, como os religiosos “Irmão”, da favela do Moinho, e a Irmã Rosa, do colégio Nossa Senhora do Loretto) além de católicos leigos – usando termo da própria doutrina católica –, que admiram o trabalho dos frades e o julgam necessário. Do outro lado, aqueles que discordam da Toca de Assis costumam ser moradores tradicionais do bairro, indivíduos de classe média (membros da AMCCE, genericamente). Os primeiros julgam os últimos de simplesmente “não gostarem de pobres à porta”41, enquanto os contrários à instituição afirmam que os frades não teriam formação profissional necessária para exercer as funções que exercem, e que acabam cuidando dos internos de maneira medieval. A oposição à Toca tem recorrido inúmeras vezes ao poder público pedindo que a doação seja revista, solicitando a interdição do imóvel e de sua atividade; por sua vez, os “toqueiros” (como a entidade chama aqueles que desejam se agregar à Toca, tornando-se religiosos) pedem auxílio aos católicos mais fervorosos e simpáticos à causa da Renovação Carismática Católica – grupo de fiéis católicos de orientação neopentecostal, existente em todo o mundo –, através de rádios e emissoras de televisão católicas. A luta entre a AMCCE e a Toca de Assis se desenvolve há pelo menos quatro anos; desde então, nada foi resolvido.
40
disponível em www.tocadeassis.org.br, acessado em 15.05.2008.
41
Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com Irmão da Favela do Moinho e entrevista com Irmã Rosa.
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A crítica da Associação dos Moradores do bairro é pautada na suspeita de que a Toca de Assis estaria usando um bem público para promover seus ideais religiosos, contrariando o princípio constitucional do Estado laico. Segundo a Constituição Federal, art. 19, inciso I, o Brasil adota o princípio da laicidade, isto é, de separação entre Estado e Igreja, entre instituições governamentais e religiosas. Deste modo, justifica-se a inconstitucionalidade desta ocupação, uma vez que o espaço utilizado pela entidade é um casarão que fora comprado pelo estado de São Paulo sendo, portanto, e desde então, um bem público, “governamental”. As práticas religiosas neste casarão ocorrem, ainda de acordo com a Associação – que acompanha o caso desde o início –, frequentemente e indiscriminadamente. Logo no momento de instalação da entidade no edifício, ainda no ano de 2005, o uso religioso se daria por meio de missas e celebrações, pregações com alto-falante, quermesses com rifas, procissões dentro e fora dos limites do casarão, sem o cuidado de respeitarem a Lei do Silencio e os horários de tais atividades; paralelamente, ofereciam pouco ou quase nenhum atendimento social. No mês de maio de 2009, realizamos uma visita à Toca, alegando interesse positivo em conhecer o trabalho desenvolvido. De fato, o uso do edifício como instituição religiosa é evidente pela transformação de um dos dormitórios em santuário eucarístico. A grande maioria dos quartos possuem inúmeras camas, onde se hospedam os internos e os alberguistas, todos homens. A polêmica, porém, não se limita na inconstitucionalidade do uso do edifício, mas se estende à qualidade – e ao tipo – do serviço prestado, a problemáticas éticas internas da entidade e à destruição do patrimônio histórico representado pelo casarão para a história da cidade e do Estado, uma vez que o bem é tombado pelo CONDEPHAAT, órgão patrimonial de instância estadual (Proc. SC 24.506/86, apensos os proc. 20.151/79 e 24.248/85). No que tange ao tipo de serviço prestado, a Toca afirma que o atendimento se baseia em dois sistemas: o de internação e o de albergue. Afirmam ainda habitarem em regime de internação cerca de 40 moradores de rua doentes que não se retiram da casa (são doentes terminais, portadores de infecto-contagiosas, vícios, além de transtornos psicóticos). O sistema de albergue 96
funciona diariamente e baseia-se numa triagem que ocorre todas as noites, entre as 18 e 19 horas, com o objetivo de selecionar os 30 homens (apenas indivíduos adultos, do sexo masculino, excluindo suas esposas e filhos no caso destes possuírem família) que irão passar a noite na casa, em regime de albergue. Os selecionados são despachados doze horas mais tarde, após receberem um café-da-manhã e drogas lícitas, baseado nos vícios de cada um (existem fotos que provam a distribuição de cigarros, tanto para os internos quanto para os alberguistas, o que acaba por contribuir e estimular o uso de drogas e a manutenção dos vícios destes indivíduos). Aqueles não contemplados pela triagem permanecem na calçada externa do casarão, na esperança de serem ajudados de alguma forma pelos “frades” da Toca de Assis. Quanto à qualidade do serviço prestado, fica evidente que a conduta da entidade é discutível, não apenas pelos critérios de seleção e de atendimento dos “pacientes”, mas também pela inexistência de profissionais da área da Saúde capacitados para atender e cuidar dos doentes; todo o trabalho é executado pelos “frades”, voluntários, que não possuem a menor formação técnica atrelada à Saúde e não propõem
nenhuma
atividade
para
estas
pessoas, que passam horas à deriva no pátio do casarão. Ainda, a falta de higiene e as instalações precárias dominam todo o edifício, pois o casarão é velho, visivelmente precisando de um restauro (para a salvaguarda do patrimônio) e de adaptações (caso o uso do mesmo fosse confirmado para atendimento médico), e os “frades” voluntários vivem em condições precárias de higiene, vestem-se com túnicas marrons e pés descalços. Na visita que realizamos em maio de 2009, cenas como idosos paraplégicos recebendo soro na veia ou trocando a sonda deitados no 97
chão, sobre uma folha de papelão, desprovidos de higiene, chamou nossa atenção. A própria existência de um serviço assistencialista de saúde no casarão, sem a presença de uma equipe de médicos, com enfermeiros, psicólogos e terapeutas, contraria a legislação que estabelece o Sistema Único de Saúde (SUS). A arquitetura do casarão que, como descrito acima na opinião de Maria Cecília Homem, já possuía programa obsoleto em 1909 para uma residência, torna-se ainda mais comprometedora ao constatarmos a existência de pouquíssimos banheiros para a quantidade de usuários diários. A foto acima, de nossa autoria, datada de maio de 2009 mostra o estado de algumas paredes externas: bolores, sujeira e instalações precárias, além de remendos construtivos. Diante desses fatos, a questão patrimonial do casarão parece se perder; contudo, ela não é menos importante do que aquelas discutidas acima. Ao contrário, sendo o casarão um bem tombado, sendo representativo de um momento histórico da cidade de São Paulo, constituindo-se verdadeiro referencial de uma época e de um contexto sócio-político importantíssimo para a conformação desta cidade, enquanto objeto máximo de representação coletiva. Para a instalação do casarão, “o governador autorizou a reforma do imóvel, um casarão tombado pelo patrimônio histórico, onde serão construídos mais banheiros e uma enfermaria e feitos reparos elétrico e hidráulico. O casarão, comprado pelo Estado em 1952, será cedido à entidade em regime de comodato” (O Estado de São Paulo, 29 de março de 2005). Além destas adaptações, desde que a referida entidade ocupou o casarão, foram completamente trocadas a cobertura, algumas esquadrias e houve ainda a instalação de outras novas onde não existia, demoliram paredes e construíram monumentos aos moradores de rua mortos em 2004. Além do edifício, também é tombada a árvore centenária que ocupa o pátio do edifício, pelo Decreto nº30443, de 20 de setembro de 1989, artigo nº12, “São imunes de corte, em razão de sua localização e beleza, as árvores que compõem agrupamentos de vegetação nas seguintes ruas e lotes: (...)Rua Conselheiro Nébias, 1355.”.Apesar de ser protegida por lei, a árvore foi subitamente morta, em apenas poucos meses do ano de 2005, o que gerou a suspeita de envenenamento. A entidade teria chamado, no mesmo ano, o Corpo de Bombeiros, alegando que a 98
árvore morta poderia ser perigosa para o entorno, e, então, os Bombeiros a cortaram. Líderes da Toca já teriam comunicado à AMCCE seu interesse em construir uma capela no pátio do edifício, o que confirmaria a suspeita de envenenamento.
Foto da esquerda: fonte: AMCCE, liberado o uso para o autor. Percebe-se nesta foto de 2006 a árvore tombada em fase de apodrecimento, após sua morte. Foto da direita: retirada do Google Earth. Note a ausência da árvore tombada na clareira do pátio da edificação. Abaixo: Foto do autor, de maio de 2009. Detalhe do que resta da árvore “tombada”.
Diante de todos esses fatos, a AMCCE vem procurando por diversas vezes se comunicar com órgãos públicos responsáveis pela questão, entre eles, a Secretaria de Saúde, Vigilância Sanitária, Governo do Estado, Prefeitura, CREMESP, Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. A única que respondeu às queixas foi a Secretaria Municipal de Assistência Social, que se encontrou algumas vezes com os representantes da AMCCE, procurando promover uma frente de fiscalização. Entretanto, como pretendia armar toda uma base de apoio antes de pedir a reintegração de posse, o desenrolar da situação foi bastante lento, mas teria chegado a uma 99
posição formal em fevereiro de 2008, visando solicitar a interdição do edifício, a cassação do decreto, a retirada digna dos moradores e a reintegração de posse do imóvel ao público, que pretende fazer do casarão uma biblioteca municipal, já que o bairro carece deste tipo de serviço. Porém, este secretário foi trocado em março de 2008 e as negociações tiveram de recomeçar do estágio inicial. De maneira geral, as autoridades não se interessam pelas reivindicações dos moradores, que já marcaram encontros com Andrea Matarazzo, inclusive, sem que houvesse qualquer retorno ou comparecimento oficial. Em vista deste descaso do poder público, atualmente a AMCCE42 cogita que a instalação da Toca no edifício seria uma estratégia planejada pelo poder público, partindo do princípio de que a natureza do serviço prestado no casarão atrairia um número constante de mendigos e moradores de rua adoentados – o que geraria uma situação tal capaz de desvalorizar o solo, reduzir o interesse da população pela área e passar a impressão de que projetos como o Teatro de Dança, a Operação Urbana Diagonal Norte, a volta do Gabinete do Governador para o Palácio dos Campos Elíseos seriam medidas indispensáveis43 para a sobrevida da cidade. Constitui-se, assim, este caso como um dos mais polêmicos envolvendo o patrimônio edificado como objeto de valorização da memória coletiva, trâmites políticos e questões sociais, sendo necessária uma postura urgente em relação a isto. Por enquanto, nada está resolvido, apesar de termos sido informados pelo entrevistado na favela do Moinho de que a Toca de Assis da Rua Conselheiro Nébias seria em breve desativada, tanto devido à pressão política da AMCCE, quanto por problemas internos da instituição, principalmente no que se refere à questão orçamentária.
42
Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com Nelson Barbosa.
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Como disse o entrevistado do CONDEPHAAT em entrevista a esta pesquisa: “a cidade precisa de projetos como este”. Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com Técnico do CONDEPHAAT.
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3.6.3 Teatro São Pedro e a especulação imobiliária Inaugurado em janeiro de 1917 na esquina das ruas Barra Funda e Albuquerque Lins, em território compreendido por nosso objeto de estudo, o Teatro São Pedro possui uma história que parece sempre ter acompanhado a história do bairro no qual está inserido. Idealizado por dois imigrantes – assim como o bairro dos Campos Elíseos –, o empresário português Manoel Fernandes Lopes e o arquiteto italiano Augusto Bernardelli Marchesini, o teatro que se inaugurava apenas seis anos após o Municipal44 era pensado por seus idealizadores como um espaço cultural a ser destinado à população abastada da cidade, como o declararam na inauguração do edifício: “Um teatro digno à altura da grande Paulicéia!!! Uma obra de arte neste populoso e adiantado bairro!!! O centro da „élite‟ dos bairros: Barra Funda, Santa Cecília, Hygienopolis, Campos Elyseos e Perdizes.”45. Entretanto, segundo entrevista obtida pelas historiadoras Sonia Rodrigues e Marly Rodrigues Seixas com um antigo frequentador do teatro (o Sr. Ângelo Catapano), entrevista também presente no livro de onde extraímos a última citação, o caráter popular do teatro era superposto ao elitista, contrariando os objetivos iniciais de seus idealizadores. O entrevistado ainda revelava os aspectos mais cotidianos da população que se sociabilizava naquele espaço, apresentando códigos de conduta vigentes na época e o que significava a novidade de um edifício projetado para ser teatro em meio a uma população menos abastada do que aquela que freqüentava o Teatro Municipal. Na entrevista, afirmava o Sr. Ângelo, nascido e criado na Barra Funda, que ele se lembrava que “aqui só tinha um cinema, o Barra Funda, até que mais ou menos em 1920 construíram o São Pedro. O São Pedro saía do comum dos cinemas daquela época porque não foi montado aproveitando qualquer galpão, já construído. O prédio dele foi feito de acordo para teatro. (...) Quem freqüentava o São Pedro era o pessoal aqui do bairro mesmo.
44
O Teatro Municipal de São Paulo, projetado pelo arquiteto-engenheiro Ramos de Azevedo e localizado na praça que leva seu nome, no centro da capital paulista, foi inaugurado em 12 de setembro de 1911. 45
Excerto do jornal retirado de São Paulo (Estado), Secretaria do Estado da Cultura. Theatro São Pedro: resistência e preservação. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.p. 18-19. Grifos nossos.
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Oitenta por cento deles eram italianos. O pessoal do bairro – esse bairro é muito antigo – era de classe média para baixo. As famílias freqüentavam e se misturavam com a moçada porque o São Pedro não era de elite. (...) Pra entrar na geral a gente pagava 300 réis. Pra vocês terem uma idéia, isso era mais ou menos 30 centavos de hoje. Tinha uma exigência: no cinema não podia entrar descalço.”46. A partir da leitura deste trecho de entrevista realizado pelas historiadoras, depreendemos claramente que o teatro – o qual dos anos 1920 a 1968 foi mais comumente usado como cinema – não era espaço muito utilizado pelos moradores das classes mais altas da região, como idealizavam o proprietário português e o projetista italiano. Mas ele se constituiu importante espaço de lazer e de encontro de uma população operária e imigrante, em grande parte moradora da Barra Funda – bairro surgido do processo de industrialização da região próxima à via férrea Santos-Jundiaí, refúgio de grande parte dos italianos recém-chegados na cidade de São Paulo, assim como o bairro do Bom Retiro – e do próprio bairro dos Campos Elíseos, moradores daqueles edifícios mais simples intrínsecos no tecido urbano mais elitista do bairro. De fato, em 1917 e nos últimos anos daquela década, eram comuns bailes de máscaras no salão do teatro, voltados para um público de classes sociais mais altas. Mas como descrevemos neste e em relatórios anteriores, a aristocracia cafeeira já começava seu primeiro deslocamento no espaço urbano de São Paulo nesta mesma época, rumo ao bairro do Higienópolis, em grande parte. A saída desta parcela da população do bairro permitiu a chegada de um outro perfil de moradores e de espectadores do Theatro São Pedro. Era a época da proliferação e popularização dos cinemas de bairro, e este foi o uso predominante do teatro durante várias décadas. Em 29 de outubro de 1968, após ter sido locado por mais de quarenta anos por duas empresas cinematográficas para a exibição diária de filmes, inicia-se uma nova fase da história do Teatro 46
Retirado do mesmo livro produzido em 2000 pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo (página 21), grifos nossos. Consideramos válido acrescentarmos aqui estes dois trechos deste livro dado o fator documental e, de certa forma, até etnográfico – numa etnografia do passado, como defende Fraya Frehse (2006) – que ambos aportam sobre o bairro, contribuição indispensável neste ponto de nossa pesquisa.
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São Pedro: agora sob direção de Fernando Torres e Maurício Segall, a proposta era dar ao edifício um uso mais amplo e de maior significado do que apenas o de uma sala de cinema. Os diretores queriam que este fosse um centro de cultura inovador, não apenas voltado para a prática do teatro, mas também um espaço aberto para acolher óperas, recitais, concertos, danças, todas apresentações dotadas de elevado refinamento técnico e de um sólido posicionamento crítico face ao contexto político de então (cf. São Paulo (Estado), 2000). Na época, destacam-se as atuações de Beatriz Segall, Mazzaropi, Lélia Abramo, Gianfrancesco Guarnieri, Fernando Torres, Fernanda Montenegro, entre outros tantos atores e diretores que buscavam naquele Teatro um palco para a encenação de uma sociedade nova, agora símbolo da resistência à repressão do governo totalitário instaurado no Brasil com o golpe militar de 1964. Mas esse caráter politizado do uso do Teatro São Pedro findou-se pouco antes da década de 1980, uma vez que a bilheteria não era capaz de pagar o aluguel do imóvel, nem tampouco de executar as devidas manutenções. O uso excessivo do espaço como cinema teria causado danos consideráveis na conservação do edifício, principalmente no palco, que por tanto tempo sustentara a máquina de projeção por trás da tela, apesar do uso teoricamente próximo daquele ao qual o teatro fora projetado. Nos anos 1980, o Theatro São Pedro atinge seu ponto máximo de degradação e abandono, quando em 1982 a Academia Paulistana de História abriu processo de tombamento do teatro, através do Condephaat, que já havia sido criado em 1968.
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Fachadas externas do Theatro São Pedro, deteriorado, nos anos 1990, antes da restauração.Fonte: São Paulo (Estado); Secretaria de Estado da Cultura, 2000.
Então, em agosto 1984, “o então Secretário Estadual da Cultura, Jorge da Cunha Lima, declarava oficialmente a preservação do histórico teatro. Em março de 1987, a partir de decreto de desapropriação, o São Pedro, criado pela iniciativa de um empresário e sempre gerido sem a participação direta do Estado, passava a guarda e responsabilidade da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo” (ibidem, p. 77). Contudo, como viemos discutindo ao longo desta pesquisa, o instrumento do tombamento não é garantia definitiva da salvaguarda do bem material tombado, e as políticas patrimoniais podem se mostrar bastante contraditórias. O caso do Theatro São Pedro é um exemplo desta dicotomia, que analisaremos mais adiante, após tratarmos do processo de Restauração do imóvel, cujo edifício principal – o teatro em si – estava agora tombado. Durante finais da década de 1980 e a primeira metade dos anos 1990 foram elaborados estudos para a restauração do teatro e sua preservação, sob coordenação da Secretaria de Estado da Cultura. Em 1997 o projeto foi revisado por empresas privadas especializadas em intervenções deste tipo, como a Spenco Engenharia e Construções, a Teuba Arquitetura e Urbanismo, dentre 104
outras que se tornaram responsáveis por projetos específicos de acústica, cênica e acessibilidade, e as obras foram iniciadas em junho do mesmo ano. Os trabalhos de restauração, segundo texto publicado pela Secretaria de Estado da Cultura (2000), foram conduzidos de maneira a obter um resultado que se aproximasse ao máximo do que fora o teatro desde o início de sua trajetória, buscando recuperar elementos escultóricos e decorativos, as características do jogo de fachadas, o espaço cênico, as estruturas de fundação e cobertura – ambas tiveram que sofrer intervenções mais bruscas para garantir a sobrevivência do edifício e viabilizar apresentações contemporâneas. O palco foi refeito e sob ele foi instalado um elevador para ser usado no transporte vertical de cargas e instrumentos, tão comum em recitais e concertos de câmara. Trabalho cuidadoso foi realizado nos foyers, agora novamente dotados das características art nouveau originais. O Theatro São Pedro, restaurado, foi reaberto em 24 de março de 1998, totalmente recuperado, como o encontramos hoje, com administração e programação coordenadas pela própria Secretaria da Cultura. Contudo, há cinco anos, i.e., apenas seis anos após sua restauração, o Theatro São Pedro voltou a ser ameaçado. O CONDEPHAAT, órgão de defesa do patrimônio que havia tombado o Teatro de 1917 no final dos anos 80, permitiu, dezessete anos mais tarde, a demolição de parte do conjunto edificado para a construção de um empreendimento imobiliário residencial 47. De fato, a resolução de 1987 tombava somente o edifício principal do teatro, de 1917, desconsiderando seus anexos, construídos em 1918. Mas mesmo não sendo tombados, é evidente que aqueles sobrados do Teatro apresentam uma linguagem uniforme que configura a percepção do espaço e que historicamente consubstanciou-se como um organismo único, ligado à sala principal. A nosso ver, e para a comunidade que se engajou na luta contra esta decisão do Conselho, a aprovação da demolição dos sobrados era um equívoco ímpar. 47
Caso semelhante já teria ocorrido em 1999 quando da aprovação pelo CONDEPHAAT do projeto de Nelson Dupré, encomendado pelo Governo do Estado de São Paulo, para a transformação do Salão Nobre da Estação Júlio Prestes em Sala São Paulo, contrariando os princípios que devem reger a política de preservação de edifícios tombados, como a reversibilidade e a mínima intervenção. E ainda ocorreria o mesmo com a Estação da Luz, bem tombado nas três instâncias de proteção ao patrimônio e que seria aprovado em todas as instâncias (CONPRESP, CONDEPHAAT e IPHAN) para a construção e inauguração, em 2006, do Museu da Língua Portuguesa.
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A reação a esta medida foi demonstrada tanto pela Academia quanto pelos moradores dos bairros adjacentes. Moradores dos Campos Elíseos liderados por Fábio Fortes organizaram uma manifestação contra o projeto da torre de dezenove andares em um ato simbólico em que dezenas de pessoas se juntaram para abraçar o teatro, tornando público seu posicionamento diante de tal ameaça – naquela época a Associação dos Moradores do bairro ainda não existia. Do mesmo modo, o jornal Folha de São Paulo, de 23 de julho de 2004, publicou o artigo “Sobrados não podem ser demolidos”, de autoria de Fernanda Fernandes, pesquisadora e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Segundo a autora do artigo, “em 1918 foram construídos quatro sobrados em seu entorno [do teatro], respeitando o mesmo estilo arquitetônico. [Hoje], um desses sobrados, que não está incluído no projeto de demolição, é ocupado pelas bilheterias e pela sala Dinorá de Carvalho, com cem lugares. Os demais abrigam parte da administração e o Museu da Memória da Ópera, com mais de 6000 peças.” Em sua edição de 11 de dezembro de 2005, o jornal Folha de São Paulo publicava artigo onde se divulgava que “em uma tarde de domingo, táxis e carros começam a estacionar na rua Barra Funda. De dentro deles, saem pessoas elegantes. A cena, que acontecia em 1916, quando o Teatro São Pedro foi inaugurado, é repetida hoje. (...) A construção em estilo art nouveau faz com que uma tarde no meio dos galpões da Barra Funda pareça européia. A localização do teatro, em uma rua que fica vazia durante os finais de semana, não assusta os freqüentadores admiradores de música erudita” 48.
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Ver artigo “Teatro São Pedro exibe glamour da origem”, reportagem de colunista da Folha, presente no Caderno de Artigos, nos Anexos deste relatório.
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Foto do Teatro, a partir do cruzamento viário da Abulquerque Lins com a Rua Barra Funda. Na imagem, retirada do sítio da Secretaria de Estado da Cultura, as partes da fachada do teatro mais distantes (próximas ao ponto de fuga) são os sobrados anexos, não tombados, que quase foram demolidos em 2004.
Ao que parece, o objetivo do imigrante português de criar um teatro digno das famílias mais ricas está se manifestando agora, para o pesar da tradição popular de uso do espaço, que agora aparenta ser luxuoso demais para se tornar convidativo aos mais pobres. Ao menos, a memória material dos teatros de bairro do início do século XX e a memória do teatro brasileiro dos anos de repressão militar está salvaguardada, e se este valor pode despertar o interesse da especulação imobiliária, este interesse, por sua vez, gera um posicionamento político de diversas esferas da sociedade, numa manifestação coletiva em favor do patrimônio histórico e da memória social da cidade. Melhor assim.
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3.6.4 O caso do Edifício de Gregori Warchavchik, Alameda Barão de Limeira
Imagem do prédio projetado por Gregori Warchavchik, tombado pelo CONDEPHAAT. O estado precário do estuque, das esquadrias e do piso são alguns dos elementos que demonstram a necessidade urgente de uma intervenção de manutenção. Foto do autor, de abril de 2009. Projetado pelo precursor da arquitetura moderna no Brasil, Gregori Warchavchik, o edifício localizado na Alameda Barão de Limeira, 1003, é um demonstrativo de que o processo de deterioração do patrimônio histórico não precisa estar vinculado ao abandono ou à sua transformação em cortiço. Na verdade, todo e qualquer elemento construído deve passar por manutenções periódicas, porque os materiais que o compõem possuem suas especificidades e suas vidas úteis. O edifício é discreto, surpreende aos moradores da área e aos passantes que desconhecem a história da arquitetura que este seja um elemento de importância histórica. Construído entre 1938 e 39 – aproveitando-se da tendência de desvalorização da terra, que permitia a construção de empreendimentos verticais no bairro até então predominado pela arquitetura eclética de baixo gabarito, apesar deste edifício ter se instalado em um terreno onde até 1930 não existia nada edificado49 –, o edifício de sete pavimentos teria sido um investimento do próprio arquiteto para ter seus apartamentos locados ou para ser transformado em hotel, gerando
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Pela observação do mapa Sara Brasil, de 1930.
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renda ou deixando um patrimônio sólido para a família que, segundo a zeladora entrevistada, Sra. Maristela, ainda é a proprietária do imóvel. Especula-se que o arquiteto modernista teria projetado e construído o edifício, passando a propriedade para o nome de seu filho e sua filha. Décadas depois, o neto do arquiteto que também seguiu a profissão de arquitetura, o Sr. Carlos Warchavchik, teria comprado a parte da propriedade de seu pai, afim de começar um investimento na restauração do edifício. Segundo Maristela, as obras só não começaram ainda porque Carlos teria achado melhor aguardar o término dos contratos de locação – em abril de 2009, quando realizamos a entrevista com a zeladora, apenas uma ou duas unidades ainda estavam alugadas. Quando o investimento for realizado, a cargo do neto do modernista, ele abarcará tanto as partes mais comprometidas quanto aquelas menos evidentes: “telhado, fundação, hidráulica, elétrica, persianas, elevador – é óbvio que o elevador terá que ser modernizado, mas vai ser procurado onde tem que ser restaurado... O mármore,vai procurar um mármore, igual vai ser impossível, mas que seja semelhante, então o prédio deve ficar muito bonito após essa reforma” 50. Em 18 de setembro de 2006, o jornal Folha de São Paulo publicou o artigo “As marcas de Warchavchik”, onde se discutia o estado de conservação das obras projetadas pelo arquiteto ucraniano responsável pela introdução no Brasil dos ideários modernistas de arquitetura. No caso do imóvel sito nos Campos Elíseos era descrito o estado de suas “fachadas pichadas e perda do jardim”, provavelmente porque o forro da laje da sacada de um dos apartamentos não estava tão deteriorada, como se vê na foto acima. Após as obras, o edifício deverá voltar a cumprir com sua função social, ou seja, ter seus apartamentos habitados. Já que se trata de um bem de importância histórica, e que o tipo de intervenção pretendido é o da restauração, devemos apenas atentar para possíveis intervenções desnecessárias que desvirtuem o caráter de “restauração” da obra para o de simples “manutenção”. A troca completa da cobertura, do mármore de revestimento, das persianas, do elevador já deixa de se caracterizar com o propósito ao qual a intervenção se propõe, contrariando 50
Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com Sra. Maristela, realizada em 28 de abril de 2009.
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as recomendações das Cartas oficiais de proteção ao patrimônio histórico (mínima intervenção, reversibilidade, distinção de épocas, etc.). Sem falar nos equívocos que se caem constantemente, quando se acredita ser possível conseguir materiais iguais ou atingir empiricamente uma suposta “cor original” com a qual o monumento teria sido pintado. Infelizmente, o instituto do tombamento não é garantia de salvaguarda dos bens materiais por ele protegidos. A degradação do patrimônio histórico pode decorrer mesmo de intervenções que desejem com ele fazer exatamente o oposto51, ainda que (ou principalmente se)52 conduzidas por um arquiteto (e, neste caso, um arquiteto emocionalmente envolvido com a obra). Havendo o interesse em investir em sua restauração, contudo, já é avanço significativo, pois casos como este não acontecem frequentemente.
3.6.5 A empresa Porto Seguro e o patrimônio histórico dos Campos Elíseos Agente bastante presente nos Campos Elíseos, a Porto Seguro atua de maneira incisiva com investimentos de “revitalização” do patrimônio histórico do bairro. Apesar de não termos conseguido entrevistá-la, é inquestionável a existência de um interesse dessa empresa por sobre o patrimônio arquitetônico. São conhecidas suas ações através da compra de imóveis abandonados visando recuperá-los para a instalação de seus escritórios e núcleos de atendimento. A própria sede da empresa fica localizada em um casarão antes tombado pelo CONDEPHAAT, a mansão Dino Bueno, numa das esquinas do cruzamento das Alamedas Guaianazes e Ribeiro da Silva. Para
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Afim de exemplificar um equívoco freqüente quando se trata de “restauração” em obras históricas, a simples escolha de uma tinta de base polimérica para pintura de paredes construídas com alvenarias de tijolos assentados e rebocados com argamassa de cal, por exemplo, já pode gerar danos que conduzam o monumento à ruína, a longo prazo, graças à inversão do modo como todo material de base calcária trabalha, necessitando de contato com o ar. As tintas poliméricas constituem-se como membranas impermeáveis que impedem a argamassa de entrar em contato com o ar. Exemplos de ocorrência de conflitos como este são a pintura do Museu Paulista e da Vila Penteado, ambos patrimônios históricos da cidade e da universidade de São Paulo, protegidos pelo tombamento. 52
É tendência comum que arquitetos não preparados para planejar e conduzir obras de restauração caiam no equívoco de projetar impondo o novo ao antigo, mesmo quando o bem está protegido pelo tombamento. Exemplos disso são visíveis nos próprios Campos Elíseos, como a “restauração” do salão nobre da Estação Júlio Prestes ou a da Estação da Luz.
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poder implantar um prédio-lâmina naquele lote, que contava com o tombamento do edifício e uma restrição de área envoltória imposta pelo Conselho, a Porto Seguro teve de se comprometer a restaurar o casarão, ao que lhe seria permitida a construção do “anexo” do sobrado 53, que deixaria de ser tombado por aquele órgão, a partir de então. Fechado o acordo, foi então construída a torre e restaurado o bem antes tombado, como mostra a figura abaixo, ainda que não saibamos quais os critérios empregados para a intervenção nos espaços internos do mesmo.
Foto do autor, datada de 2008. Vista da torre com o conjunto edificado, antiga propriedade Dino Bueno.
A recuperação do patrimônio histórico degradado é, de fato, um sinal positivo no que tange à preservação do patrimônio público (enquanto registro da memória coletiva, da cidade) do bairro. A política de preservação da empresa pode ser visualizada no caso particular de um pequeno palacete situado na Alameda Guaianazes, o qual padecia da deterioração e do abandono há décadas. As imagens são de nossa autoria, e as duas primeiras mostram o estado de deterioração da fachada e da cobertura da edificação no ano de 2006, quando começamos a documentar os casos de degradação de exemplares arquitetônicos de interesse histórico.
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Informação fornecida pelo entrevistado do CONDEPHAAT. Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas.
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Foto do autor, do primeiro semestre de 2009. Esta imagem foi a única que conseguimos fotografar do casarão, pois logo em seguida seguranças e vigilantes da empresa nos impediram de continuar registrando o imóvel.
Em 2009 a Porto Seguro comprou o imóvel e o recuperou de seu estado calamitoso, instalando nele mais um grupo de seus escritórios. A grade mais alta que se sobrepunha ao gradil baixo e original, mostrado na foto acima, foi retirada; o terreno foi recapeado, os beirais refeitos e o jardim voltou a ter grama, além dos arbustos em forma de pinheiro, tão empregados nos paisagismos que desejam instaurar uma atmosfera elitizada no espaço em que se inserem. Desse modo, recupera-se a imagem do patrimônio, um ganho para a salvaguarda de nosso patrimônio. Mas como viemos discorrendo até aqui, o patrimônio ambiental urbano é reflexo de um passado que não é particular, mas sim de toda a sociedade no qual este se insere, como reflexo do passado de todos, daí o caráter público do patrimônio. Este caráter, no entanto, parece perderse na medida em que a apropriação excessivamente controladora assume o patrimônio para si,
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impedindo que os transeuntes parem e contemplem o bem recuperado, público, registro da história de social da cidade. A paisagem urbana passa a ser regida exclusivamente pela esfera privada, que determina quando é permitido ou não admirar o registro do qual ela se apropria. Como discorremos em momentos anteriores, a empresa Porto Seguro não aceitou nossa solicitação de entrevista. Em contrapartida, buscamos obter informações de outros entrevistados, que conhecem as particularidades desse caso enquanto agentes da sociedade civil ou representantes de órgãos públicos. Para o vice-presidente da AMCCE, Nelson Barbosa, essas ações específicas da Porto Seguro são passíveis de questionamento: “é uma coisa estranha porque eles (...) ficam ali esperando aqueles casarões quase caírem [até] serem colocados à venda, (...) [e então] eles compram e reformam. Por um lado é interessante porque eles recuperam o bem, mas eu não sei qual a finalidade que eles vão dar para aquilo. (...) Eles não deixam mesmo você ficar olhando para os casarões deles e de algum modo ficar documentando a questão. Eles não deixam nem você olhar para o casarão. Eu não sei o que se passa, a gente nunca sabe, mas falta transparência, falta honestidade no trato da coisa pública. Ela está entregue nas mãos de quem pode mais”
54
, contrariando o entrevistado do CONDEPHAAT, o qual “não vê o menor
problema”. 3.6.6 Memória apagada: ações públicas e privadas. Como tratamos itens acima, é fato que as medidas iniciais da década de 1970, de proteção ao patrimônio histórico, gerou euforia nos proprietários de imóveis de importância histórica; temerosos de terem seus imóveis tombados e assim, perderem seus lucros, muitos proprietários passaram a demoli-los antes mesmo que o Município entrasse com abertura de processo de tombamento do imóvel.
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Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com Sr. Nelson Barbosa.
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Foto inicio do século XX, tirada da torre da Igreja Sagrado Coração de Jesus. Fonte: TOLEDO, 2004.
Foto do autor, de 2007, tirada pelo autor a partir do mesmo ponto da foto acima. A mutação urbana ocorrida é evidente; felizmente persistem alguns exemplares significativos do início da história do bairro e do crescimento urbano da cidade. No entanto, a maior parte encontra-se em péssimas condições de manutenção, e ainda se destinam a fins não ideais para a sociedade, como cortiços ou hotéis para tráfico de drogas.
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Beatriz Kara-José explica que “as pressões dos proprietários e do mercado imobiliário contra o tombamento sempre foram grandes empecilhos para as praticas de preservação do patrimônio histórico. Afora os interesses voltados para especulação imobiliária, a forma de funcionamento dos instrumentos, restritos ao tombamento, acabava dando margem para que uma parcela da sociedade se posicionasse contra a preservação, aparentemente inimiga do presente e do progresso” (KARA-JOSÉ, 2007: 58). Assim foram destruídos prédios como o Palacete Jorge Street55 (em 1973), foto ao lado, construído na Alameda Glete no final do século XIX, e que desde a criação dos cursos até 1969, sediou o núcleo de Geologia e História Natural da extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, além do Curso de Química, quando todos foram transportados para a Cidade Universitária, ou como o casarão de Olívia Penteado (1872 – 1934) – importante mecenas do Movimento Modernista Brasileiro – proprietária de um lote hoje vazio da Avenida Duque de Caxias, esquina com a Rua Conselheiro Nébias. Sua mansão era espaço de constante encontro e reuniões de grandes artistas modernistas do país, sendo evidentemente de importância como patrimônio histórico e cultural, não só da cidade de São Paulo, mas da história da arte brasileira. Os proprietários destes imóveis, como tantos outros padeceram do mesmo fim no bairro, teriam demolido o edifício, dando lugar a estacionamentos, existentes nestes vazios até hoje. Muitos outros palacetes tiveram o mesmo fim. E a grande maioria foi demolida durante os anos 1970, o que comprova a relação entre a polêmica da atuação do metrô com a preservação patrimonial. São inúmeros os estacionamentos a céu aberto nos Campos Elíseos; alguns deles deixam marcas discretas do que havia antes: marcas de paredes nas fachadas laterais das edificações vizinhas, grades originais, trechos de muros e até pequenas esculturas.
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O palacete foi residência do industrial Jorge Street e sua família. Este foi um dos primeiros industriais da capital, e um dos que mais se preocupou com a qualidade de vida de seus funcionários. Foi ele quem mandou construir e manteve a vila operária Maria Zélia, hoje em franca deterioração, no bairro do Belenzinho. (cf. BLAY, 1985).
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Fotos do Palacete de Olivia Guedes Penteado, na Rua Conselheiro Nébias com a atual Avenida Duque de Caxias. A primeira mostra vista frontal, a segunda, posterior. Com projeto de Ramos de Azevedo, a casa possuía materiais importados da Itália, país origem também do estilo do casarão: o Risorgimento italiano. Demolido em 1943, em seu lugar foi construído o Hotel Comodoro, hoje reciclado para ser edifício de apartamentos (ver capítulo sobre mercado imobiliário). Fonte: HOMEM, 1996: 153.
Mas não foi apenas os proprietários de imóveis que facilitaram a perda dos registros da memória coletiva; o poder público também foi eficiente neste quesito. E nos Campos Elíseos, três quadras inteiras foram apagadas do mapa. Uma para ampliar a Praça Princesa Isabel, outra para a construção do Terminal de ônibus Princesa Isabel, e outra para a formação da Praça Júlio Prestes. As imagens abaixo, por nós produzidas a partir do mapa Sara Brasil de 1930, ilustram os usos anteriores à ação haussmanniana do Estado. Nos anos 1930 a Praça Princesa Isabel era menor, com um formato bastante próximo ao de um quadrado, delimitado por quatro vias. É também interessante observar que o entorno mais imediato a ela era formado por lotes e arquiteturas intermediárias, ou seja, nem tão modestas como em outras regiões do bairro, nem tão suntuosas como o Palácio Elias Chaves (atual Campos Elíseos). O poder público teria demolido uma quadra inteira para ampliar a praça56.
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No relatório 2 prometemos descobrir quando e porquê a ampliação da Praça Princesa Isabel foi realizada, mas, mesmo após buscas intensas na bibliografia de referência, em entrevistas com antigos moradores e na Internet, não encontramos informações relevantes a este respeito.
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Redesenho nosso a partir do mapa Sara Brasil, de 1930. Hoje, as duas quadras que separam a antiga praça do Palácio Campos Elíseos foram demolidas, para a ampliação da praça e para a construção do terminal Princesa Isabel, este já nos anos 1990.
A atual Praça Julio Prestes também não existia na época dos anos 30. A área era ocupada por edifícios de uma quadra maior, contígua à que vemos hoje mais próxima à gare da estação. A comparação histórica pode ser feita com o auxílio da segunda imagem abaixo, retirada do Google Earth (2008), em que se percebe a situação atual.
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Analisando as transformações ocorridas no desenho urbano do bairro, nota-se que até os anos 1930, na então Chácara do Carvalho, não existia uma ocupação intensa, e ainda faltavam três ruas que hoje podem ser encontradas na região. É curioso também que os lotes maiores desta parte mais baixa do bairro não estavam ainda ocupado, o que pode indicar a saturação da demanda por esse tipo de residência, ou o desinteresse em morar tão próximo à linha do trem. Apesar de termos prometido encontrar respostas para este questionamento, não conseguimos encontrar explicações sobre o caso, permanecendo em aberto esta lacuna, a ser sanada em estudos futuros.
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Considerações
Patrimônio é um termo muito amplo. Adotamos a especificidade da vertente Patrimônio Ambiental Urbano, porque julgamos esta como a melhor síntese do conceito, numa abordagem pertinente a essa pesquisa. A definição de patrimônio, todavia, é bastante ampla e, como mostramos, é trabalhada por diversas regulamentações e recomendações nacionais e internacionais. A consciência clara da definição de patrimônio é a garantia de que a história não será manipulada de acordo com interesses particulares e de que o patrimônio não será empregado como justificativa para medidas descabidas. Isso fica claro quando pensamos na tendência mundial das últimas décadas em atribuir ao patrimônio significados simbólicos que reforçam tomadas de medidas e posturas políticas que não representam o interesse maior de uma coletividade, a quem esse patrimônio serve como identidade. Quando dizemos que um bairro todo possui importância patrimonial, estamos nos referindo ao registro de uma memória coletiva de um espaço urbano, enquanto ambiente urbano específico, palco de relações sociais históricas culminantes na realidade presente. A memória assume, então, significação política, uma vez que orienta e esclarece o cidadão sobre seu papel social. Em se tratando de Centro, é evidente a oferta de imóveis de importância histórica (seja oficializada ou não), mas geralmente estes se encontram abandonados ou em estado precário de conservação. Também é clara a demanda por habitação de interesse social, numerosa, como pode ser observado no caso dos moradores de cortiços, das famílias que ocupam edifícios vazios, daquelas faveladas, dos cidadãos em situação de rua. Dizer que um bairro possui importância patrimonial significa afirmar que deve ser conservado para as gerações futuras, como argumento vivo de uma história da cidade, de um contexto social. Isso não impede a entrada do novo, da criação ou de novos usos (e nem deve, caso contrário, a cidade torna-se refém de si mesma, museu de si própria, nas palavras de Henri119
Pierre Jeudy); mas reforça a importância de respeitar um bem maior, as marcas sociais da evolução da cidade. No caso dos Campos Elíseos, não são poucos os edifícios de importância patrimonial que permanecem como registro de uma época da cidade no bairro. Apesar da atuação ostensiva do mercado imobiliário ao longo dos últimos setenta anos, que dizimou inúmeros imóveis, seja para a construção de habitação verticalizada, seja para a garantia certa do arrendamento fundiário da propriedade (o que ocorre em estacionamentos), permanecem alguns exemplares e, por sorte, permanece uma gama variada de padrões arquitetônicos, reflexos de configurações sociais específicas. Neste sentido, questões simples e, de certa forma, praticamente subjetivas, como o parcelamento do solo de uma determinada época pode revelar informações ricas sobre formas organizacionais da sociedade que dele se utilizava. O desenho de lotes urbanos, portanto, também revela sua face patrimonial, já que o loteamento condiciona a arquitetura, que, num determinado momento era regida por um ciclo de características padrões, como a mão-de-obra escrava, a técnica, os materiais, os objetivos. Hoje, bairros históricos são descaracterizados por uma arquitetura que transpassa o lote por meio da figura do incorporador, que por angariar lotes pequenos para construir grandes torres, forçam a perda do referencial do parcelamento do solo urbano daquele momento histórico, daquelas relações sociais. Os conflitos a que estão sujeitos o patrimônio (como aqueles que citamos em relação ao bairro dos Campos Elíseos), entretanto, também possuem sua carga de significado histórico, uma vez que refletem a maneira como uma sociedade encara seu passado e projeta seu futuro. Lembremos da burguesia cafeeira do início do século XX que queria apagar da cidade de São Paulo as marcas provincianas da cidade de taipa, em prol da imagem inventada de que a cidade teria nascido moderna. Atitudes como esta são de um autoritarismo ímpar e devem ser banidas, por não representarem verdadeiramente o caráter da evolução social.
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O próximo capítulo visa a mostrar como o patrimônio pode ser manipulado em um contexto político-ideológico, alterando as marcas do passado e a memória social da cidade.
4.
Capítulo 4 – Estratégias e Ideologias – Projetos e Políticas para o bairro Neste capítulo, pretendemos traçar uma crítica às questões mais atuais do bairro, principalmente àquelas relativas às ideologias trabalhadas em favor de um ideal de espaço público. As gestões partidárias na Prefeitura Municipal da Cidade são responsáveis por muitas das ações que aqui serão apresentadas. Serão analisados cada caso se servindo do que foi até agora produzido neste relatório, para fundamentação da argumentação e para o conhecimento da evolução “históricosócio-político-econômica” do Centro de São Paulo, com destaque para o nosso objeto de estudo: os Campos Elíseos. Entre os pontos que discorreremos neste capítulo, estão o uso do patrimônio como estratégia cultural de segregação, o projeto de renovação urbana através da volta do Governo do Estado ao Palácio Campos Elíseos, as relações existentes entre o Projeto Nova Luz e nosso objeto de estudo, o projeto (ainda que em fase um tanto especulativa) do Parque Moinho Novo.
4.1 A retomada dos Campos Elíseos É com esta frase que se intitula o Caderno de “Estudo de Arquitetura e Urbanismo” realizado em 2008, por equipe comandada pelo Arquiteto Sylvio de Barros Sawaya, atual diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU USP). Trata-se de um projeto solicitado diretamente ao arquiteto pelo Governador do Estado de São Paulo, José Serra, referente à volta da Sede Administrativa do Estado para o antigo palacete na Avenida Rio Branco, local que foi gabinete oficial até a década de 1970. 121
E o título em si já bastante elucidativo do caráter deste trabalho: trata-se de retomar um espaço, um momento histórico, uma ideologia que estava presente no Palácio dos Campos Elíseos através do seu uso como gabinete do Governador do Estado de São Paulo. É evidente que existem muitos outros lugares aptos e até melhor servidos para receber tal atividade. Assim como é claro que um palacete daquele porte não é o bastante para acolher todo o aparato burocrático existente no Palácio do Morumbi. A questão fica mais clara, contudo, se resgatarmos o papel ideológico que este edifício e esta “retomada” podem transmitir. E ainda mais evidente se aproximarmos este projeto de um outro que vem ocorrendo, numa gestão política iniciada pelo próprio Serra, enquanto prefeito, e continuada por seu sucessor, Gilberto Kassab, nas proximidades deste local – o projeto Nova Luz. Nossa intenção, neste capítulo, é a de analisar criticamente ambos os projetos – prioritariamente o primeiro – para compreendermos como a estrutura paralela de dois projetos sintonizados ideologicamente pode impactar sobre uma mesma área como uma estratégia una de “revitalização”, o Centro de São Paulo e, mais especificamente, nosso objeto de estudo, os Campos Elíseos. 4.1.1 O projeto “A retomada dos Campos Elíseos” Para que a operação de retomada possa ser viabilizada, segundo o autor do projeto, muitas intervenções no entorno se fazem necessárias. A começar pelo próprio Palácio, que passaria por reformas – além das atuais referentes à restauração57 – para abrigar o Gabinete e a Residência Oficial do Governador.
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O processo de Restauro que o edifício está atualmente submetido é comandado pelo escritório de arquitetura Companhia de Restauro, de São Paulo. A foto acima, de nossa autoria, mostra o estado do Palácio em fevereiro de 2009, em processo de restauração.
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O palácio de quatro pavimentos conta com uma área edificada de aproximadamente 4.000 m2, dividida em quatro pavimentos: subsolo ou porão, térreo, andar superior e ático. Cada pavimento passaria a contar com reformas específicas, como o ático que teria seu sistema estrutural original, de madeira, substituído por um de aço, o que “conferiria maior conforto” à Residência Oficial do Governador. Julgamos necessária a inserção, neste ponto, de um trecho do Caderno do projeto, de autoria de Sylvio Sawaya: “Vale a pena especificar a qualidade dos espaços do palácio. Sendo a melhor construção de São Paulo na sua época, tem no seu porão um espaço ventilado e arejado, com ampla iluminação natural. O térreo, com seus amplos e dignos salões, apresenta um alto requinte no tratamento e grande unidade de linguagem na sua decoração. O andar superior, que mantém as mesmas características de tratamento do térreo, possui uma divisão em compartimentos favorável às atividades do gabinete. O ático, uma vez substituída a estrutura antiga de sustentação da cobertura por uma metálica com poucos apoios, possui uma iluminação interessante através de suas mansardas que, reforçada por um pátio interno coberto de vidro, poderá, devido ao seu bom pé direito, atender perfeitamente ao desempenho de uma residência pensada em termos contemporâneos, atendendo às melhores condições de conforto” (pág. 5).
O entorno também deverá ser adaptado para o novo uso do palácio. Gabinete do ViceGovernador e secretarias, por exemplo, serão instalados em edificações [que seriam poupadas da demolição por serem tombadas como patrimônio histórico] presentes na atual quadra do palácio. Para eventos específicos, o Salão dos Atos seria construído onde hoje se encontra o Terminal
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Princesa Isabel, cujo destino após remoção não fora pensado 58. Trecho da Alameda Glete entre o Palácio e o atual Terminal será substituído por um espelho d‟água, das dimensões deste trecho de rua, para isolar o edifício principal; outro espelho d‟água seria construído no lado paralelamente oposto. A partir do espelho d‟água “da Glete”, passando por cima do Terminal, uma grande área aberta gramada, onde estará contido o Salão dos Atos, se estenderá a partir de então até a Avenida Duque de Caxias, incorporando a Praça Princesa Isabel numa grande Esplanada Cívica, com espaço projetado para manifestações, inclusive. Aqui, damos voz ao próprio arquiteto:
“A existência de edificações anexas em cada lado do Palácio, à esquerda onde hoje se encontra o terminal de ônibus, à direita onde atualmente se aloja o batalhão da Polícia Militar e as residências tombadas, permite, juntamente com a Praça Princesa Isabel, constituir uma grande Esplanada Cívica, com aproximadamente 100 metros de largura por 500 metros de comprimento. O tratamento uno e gradativo desse espaço trará uma grande expressão simbólica ao conjunto” (pág. 6).
Sawaya ainda relata, no mesmo Caderno, sobre as intervenções a serem feitas neste complexo em relação à circulação, dentro e fora do edifício principal. O fato que mais nos desperta o interesse, nesse ponto, não está no palacete em si, mas no sistema de circulação subterrâneo projetado pela equipe: “A circulação interna é favorecida pela existência de uma boa galeria que se repete no térreo, no andar superior e no subsolo que corta transversalmente a edificação nos três blocos que a constituem. Justaposto a esta galeria encontra-se o eixo principal de circulação vertical que permite através do subsolo acesso a uma edificação nova destinada aos „Atos‟ situada à esquerda do palácio e às quatro residências tombadas situadas à sua direita que preencherão funções de apoio. Essas três áreas, Palácio, Pavilhão, Pavilhão de Atos e Edificações de Apoio serão conectadas por intermédio de três níveis de subsolo. Esse subsolo liga-se a um anel de redes de infra-estrutura, serviços e circulação exclusiva do Governador e seu „staff‟” (pág. 5, grifos meus).
Tudo isso nos parece serem justificados pela necessidade de proteger o espaço restrito dos governantes do Estado. Ao propor o estreitamento da Avenida Rio Branco, o acesso subterrâneo particular do Governador e seu “staff”, vemos um esforço grande em isolar os usuários daqueles 58
Ver em Anexos, Entrevista com Sawaya.
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espaços do seu entorno; se no Palácio dos Bandeirantes esse afastamento era facilitado pelas dimensões do terreno e pelo perfil de seu entorno, predominantemente residencial de baixa densidade e alto padrão, nos Campos Elíseos, em meio a um tecido urbano consolidado, histórico e altamente ocupado – seja pela densidade populacional de residentes, seja pela densidade de postos de trabalho, ou pela confluência de rotas viárias, por sua densidade construída ou por concentrar um fluxo metropolitano de pedestres – a lógica projetual também “teve” de ser modificada. Isso pode ser constatado, inclusive, por elementos de projeto, como espelhos d‟água, por exemplo, que não facilitariam o contato direto com o edifício que seria o símbolo do Estado de São Paulo. Aqui, vale retomarmos o discurso dos projetistas presente naquele Caderno, quanto aos mecanismos a serem empregados a fim de garantir a segurança: “Há uma cerca metálica compatível com a segurança e a visibilidade necessárias em torno de toda a área ampliada do palácio que irá desde a Alameda Helvetia, onde se encontra o acesso de público ao bloco dos „Atos‟, à esquerda, até a Alameda Nothmann, à direita. No alinhamento da área na Rua Guaianazes e com a Avenida Rio Branco há uma mureta larga para demarcar o espaço institucional, antecedendo a referida cerca. O Palácio e seus jardins são separados desses anexos laterais por dois espelhos d‟água situados de um lado e de outro com 20 metros de largura cada um, estendendo-se da Avenida Rio Branco até a Rua Guaianazes. Os acessos públicos e de funcionários se dão cotidianamente pela Alameda Nothmann. Na Rua Guaianazes há o acesso protocolar ao Palácio e à Residência Oficial. Nas solenidades o acesso ao Palácio se dá pela Avenida Rio Branco” (pág. 6, grifos meus).
Segundo o arquiteto, as exigências em relação à segurança teriam sido feitas pela chefia da Casa Militar do Governador, como também a redução do tráfego mais imediato ao palácio, “de baixa velocidade, destinado prioritariamente à demanda das edificações que ali se encontram” (p. 8).
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Imagem não oficial. Trata-se apenas de uma ilustração feita por nós a partir da foto perspectiva também de nossa autoria, tomada a partir do topo da torre da Igreja Sagrado Coração de Jesus. O elemento prismático no centro da imagem é uma referência ao volume ainda não detalhado do que seria o Paço dos Atos.
No que concerne ao anel de redes de infra-estrutura, verificamos um remanejamento viário de dimensões urbanas. O projeto prevê transposições na via férrea e uma rearticulação viária com os bairros adjacentes, a saber: Campos Elíseos, Barra Funda, Bom Retiro, Luz e Pari. As transposições da ferrovia ocorreriam em quatro pontos: uma conexão entre a Alameda Eduardo Prado e a Rua Tenente Pena, sob a ferrovia (1), outra já existente, na Alameda Nothmann com a Rua Silva Pinto, sob a ferrovia (2), mas com sua extensão até a Avenida do Estado, onde passaria sobre a Avenida em direção ao Pari, uma terceira entre a Helvetia e a Rua Ribeiro de Lima, também sob a linha férrea (3), e a quarta sobre a ferrovia entre a Avenida Duque de Caxias e a via Praça da Luz, conectando com a Avenida Tiradentes (4)59. O estudo também prevê modificações específicas no Bom Retiro, como a transferência da FATEC (Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo) para o edifício do Liceu de Artes e Ofícios, a criação de um Pólo voltado aos museus interativos, nas áreas de arquitetura e engenharia (aos moldes da Cité des Sciences et de l‟Industrie de Paris, como o estudo mesmo define), a desapropriação e demolição de imóveis situados na Rua Afonso Pena (somente aqueles situados na quadra formada pela Rua Ribeiro de Lima, Avenida Tiradentes e a Praça Cel.
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Ver em Relatório 2, em Anexos, Imagens, Imagens do Projeto “A Retomada dos Campos Elíseos”, Croqui sobre as intervenções viárias no projeto.
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Fernando Prestes) e da Escola Prudente de Moraes, situada na mesma quadra, para a construção de um novo prédio para a Escola Prudente de Moraes e para a construção do Museu de Tecnologia. A área seria fundida com os imóveis da Antiga Escola Politécnica (o qual seria readaptado para se tornar o Centro de Referência em Engenharia e Arquitetura) e do Arquivo Histórico Municipal, por meio da Praça Coronel Fernando Prestes e da liberação de muros definidores de lotes da quadra descrita acima60. Apresentado o projeto, trataremos agora de discutir o discurso ideológico presente no projeto, e sobre como estas intervenções simbolizam uma ideologia de espaço público voltada para a “espetacularização” do urbano e para a gentrificação. 4.1.2 O discurso ideológico Já foi dito aqui que a saída do Governador dos Campos Elíseos para o Palácio dos Bandeirantes, na década de 1970, fora fundamental para a desvalorização e deterioração do bairro em análise. Já foi dito também que ambos os termos, “deterioração” e “desvalorização”, também estão inseridos em um contexto ideológico, uma vez que eles reforçam a idéia de que o espaço urbano antes usado pela elite, perde sua qualidade urbana em decorrência da saída deste grupo. De fato, os fenômenos que vêm ocorrendo neste espaço central da cidade de São Paulo a partir dos anos 1940 e, sobretudo, após a década de 1970, testemunham a favor daquela tese, da qual Villaça defende como sendo uma desculpa ideológica para o deslocamento das camadas dominantes da sociedade paulistana pelo território (1998), dinamizando nesse processo valores fundiários e investimentos públicos. A idéia da volta ao centro da cidade teria partido do próprio Governador José Serra, e o pedido de elaboração de projeto teria sido feito diretamente a Sawaya (ver entrevista em anexo). Serra teria solicitado um projeto metodologicamente aos moldes do que Jaime Lerner costumava fazer, com desenhos claros e textos explicativos; quanto ao partido arquitetônico, teria deixado 60
Ver em Relatório 2, em Anexos, Imagens, Imagens do Projeto “A Retomada dos Campos Elíseos”, Croqui sobre as intervenções no Bom Retiro.
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clara sua preferência pelos estilos mais clássicos e historicistas da arquitetura, o que orientou a equipe de trabalho na produção desse desejo. Com um orçamento estimado em cerca de R$215 milhões, o projeto não contaria com o financiamento de nenhum banco ou programa internacional; seria dinheiro do próprio Estado; ele, “que não é nada pobre”, nas palavras do próprio Sawaya, é quem arcaria com todas as despesas. Para o arquiteto, as obras teriam uma duração correspondente a uma gestão (4 anos), mas destaca o interesse do Governador em concluir as obras ainda em seu mandato (o prazo seria de cerca de 2 anos, neste caso). Mas é claro que a volta do Palácio do Governo para os Campos Elíseos exigiria reformas estruturais no entorno. Neste projeto, estão sendo consideradas reformas arquitetônicas, urbanísticas e viárias; o Palácio deve ser adaptado para se tornar Gabinete e residência oficial do Governador. Serviços de apoio e secretarias contariam com o espaço incorporado das 4 edificações tombadas existentes na quadra do Palácio, com frente para a Alameda Nothmann e para a Rua Guaianazes. Espaços para conferências e festas oficiais seriam criados em um edifício prismático, de estilo contemporâneo, que ocuparia o terreno onde hoje existe o Terminal Rodoviário Princesa Isabel. A equipe projetou, inclusive, espaços para a “manifestação democrática” dos cidadãos, com a criação da grande Esplanada Cívica, derivada da junção do terreno do atual Terminal à Praça Princesa Isabel. A monumentalidade do casarão seria obtida em decorrência da abertura de uma grande área de contemplação, um eixo perspéctico, como recomendava Michelangelo durante a Alta Renascença. Obras de Michelangelo inclusive são citadas como referências de espaços urbanos, em entrevista ao autor. Perguntado sobre o cunho de substituição do projeto e sua orientação com a linha projetual Haussmanniana, Sawaya revelou: “É uma ideologia dupla. (...) ela também tem referência nos melhores espaços públicos criados por essa história recente dos 500 anos”, referindo-se ao período dos últimos 5 séculos da História da Arquitetura mundial. O discurso ideológico está presente desde o título do Estudo de Arquitetura e Urbanismo “A Retomada dos Campos Elíseos"; não se trata apenas de reocupar o palacete pelo uso 128
administrativo, mas de retomar o espaço e sua simbologia. Ainda, podemos associar os dois últimos deslocamentos do Gabinete do Governador com os vetores de valorização fundiária. De fato, quando a Sede do Governo do Estado se mudou para o bairro do Morumbi, aquela já despontava como área residencial de alto padrão, naquela lógica de morar, então dominante, vendida para as famílias mais abastadas: o subúrbio arborizado, com grandes lotes murados e baixíssima densidade. Curiosamente, retornar aos Campos Elíseos neste momento nos parece uma estratégia política. Tendo partido do atual Governador José Serra – o mesmo que, enquanto prefeito da capital (2005-06), iniciou o Projeto Nova Luz – o pedido de projeto61, um projeto parece reforçar o outro, e contribuem para alavancar as práticas de gentrificação e valorização fundiária daquela que é, de fato, uma das áreas com maiores conflitos sociais e urbanísticos. A solução para os problemas sociais estaria, mais uma vez, na transformação do espaço foco de conflitos por meio de obras de engenharia e infra-estrutura, retirando os usuários daquele lugar sem implantar um programa de atendimento social, nem tão pouco de um planejamento de remanejamento habitacional. Neste sentido, o projeto “Retomada dos Campos Elíseos” se aproxima bastante do “Nova Luz”, pela crença na solução interventora da substituição de espaços como eliminação de conflitos. Entretanto, este projeto apresenta um caráter novo de intervenção na cidade de São Paulo: a solução adotada foi a recuperação paisagística e o uso de intervenções de cunho cultural para “revitalizar” áreas centrais desvalorizadas (KARA-JOSÉ, 2007; ARANTES, 2000; ZUKIN, 1995), o que aproxima este conjunto de intervenções aos modelos mais conhecidos de intervenção urbana ligados a programas como o Monumenta – basta pensarmos no Pelourinho, em Salvador, que, com financiamento deste Programa, conseguiu
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De acordo com Sawaya, em entrevista ao autor.
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recuperar as fachadas históricas e “limpar” dos cenário histórico todo o conflito social latente daquela sociedade por um embelezamento gentrificador.62 O esforço da equipe liderada pelo Arq. Sylvio Sawaya não deixa escapar às entrelinhas o paradigma de referência para a proposta: Paris; a capital francesa, representada no projeto pela adoção do exemplar arquitetônico de inspiração ao estilo do século XVIII, e a recriação de seu entorno, numa tentativa de exaltação monumental (com a esplanada cívica e o cuidado com o entorno) e de recuperação de um passado histórico (em intervenções urbanas propostas pelo Estudo, como o estreitamento viário da Avenida Rio Branco que, até 1977 possuía calha de via local, ou a troca do revestimento das calhas das ruas do entorno, de asfalto para paralelepípedo). De acordo com o estudo publicado pelo diretor da FAU USP na biblioteca da mesma Instituição, “a retomada do velho casarão que tem sido Palácio do Governo desde 1911 e que em breve completará 100 anos com essa atividade é emblemática. Possui grande valor simbólico e reafirma o papel do Estado na condução de nossa vida, nossas gentes e de tudo que implica enquanto organização social, econômica e espacial” (SAWAYA, 2008: 4). O papel do Estado de conduzir nossas gentes estaria então representado nas intervenções urbanísticas, na demolição de algumas edificações, na criação de uma arquitetura cenográfica e na volta à cidade. É evidente o caráter ideológico que este projeto assume neste contexto. Torna-se uma intervenção emblemática da (boa) ação do governo, do cuidado deste com os cidadãos que estão inseridos no contexto social problemático e na entrega a toda a população de mais um cartão postal. Trata-se de um espetáculo63 criado pelo Estado para estimular a atuação da iniciativa privada que, até agora, não se manifestou muito interessada em investir na área central, mesmo após a Operação Urbana Anhangabaú (1990-93), a Centro (1997), e o Projeto Nova Luz (2005).
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A “revitalização” do Pelourinho contou com investimento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) no contexto do Programa Monumenta. O projeto de retomada dos Campos Elíseos, por não contar com recursos advindos deste Programa, se aproxima das intervenções ocorridas na capital Bahiana pelo caráter interventor e não pela engenharia financeira. 63
O sentido do termo “espetáculo”, neste contexto, é baseado naquele definido por Guy Debord, em La Societé du Spetacle, Paris: Éditions Buchet-Chastel, 1967.
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Para que o aparato burocrático pudesse ser acolhido nesta intervenção, estariam previstas reformas no entorno imediato, com a demolição de edificações não tombadas da quadra do Palácio e do terminal de ônibus. Neste ponto, a Arquitetura assume um papel máximo de representação simbólica de uma ideologia. O Palácio dos Campos Elíseos seria o foco de todo este espetáculo. Mas o entorno também receberia seu tratamento, com uma justificativa dupla: servir de apoio técnico aos serviços do Gabinete e, por outro lado, conferir uma dimensão física para o conjunto que reflita sua dimensão simbólica. Destacamos a seguir os trechos do Caderno que “explicam” estas intervenções:
“O entorno imediato é delimitado pelo meio das quadras da Rua Guaianazes, da Alameda Nothmann, da Avenida Rio Branco e da Rua Marechal Rondon e o prosseguimento da sua diretriz demandando a Rua Barão de Piracicaba. Esse espaço que se volta para a esplanada cívica é mantido com suas construções antigas tombadas e significativas, integradas em um único jardim. Essas construções são destinadas a órgãos funcionalmente ligados á administração central, como por exemplo, o gabinete do Vice Governador. A outra parcela dessas quadras formada pelo quadrilátero delimitado pela Avenida Duque de Caxias, Rua Conselheiro Nébias, Alameda Ribeiro da Silva e Rua Barão de Piracicaba compõem uma área que deverá ser gradativamente adquirida pelo Estado para a construção de anexos que se façam necessários, de gabarito compatível com as construções de interesse histórico ali situadas”.
Ainda, no que tange ao patrimônio histórico e ao caráter de transmissão de idéias e símbolos por meio do espaço edificado, Sawaya descreve, adiante:
“Cria-se, dessa forma, uma gradação nos espaços que vai da manutenção das características tradicionais de implantação nas áreas lindeiras ao Palácio até uma auréola institucional marcante definida pelo quadrilátero acima citado. O conjunto assim formado passa a se constituir em elemento singular na região que se situa, atendendo às necessidades funcionais, atuais e futuras da sede central do Governo, ao mesmo tempo em que afirma, pela sua extensão de sua área e distinção de suas funções, toda dimensão exigida para tal fim”. (pág.7)
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O desejo de criar uma nova cidade, ou um mero cenário para ela, é tratado com o esmero exigido por uma intervenção em relíquias, como se assume64. A novidade, contudo, apresenta-se bastante polêmica, e desperta a oposição e o apoio de parcelas da população, do mercado imobiliário. Opõem-se aos projetos moradores de baixa renda que habitam os cortiços, outros imóveis alugados, ou mesmo ocupados, como o caso das ocupações do Movimento dos Sem Teto e da União dos Movimentos de luta por Moradia (UMM) de prédios sem uso na região central. Temerosos da valorização fundiária que estes projetos podem trazer – e de sua conseqüente expulsão –, eles são contra65. Por sua vez, os proprietários destes imóveis vagos parecem esperar há décadas pela valorização da região, a fim de terem seu patrimônio multiplicado. Do outro lado, moradores de classe média dos Campos Elíseos, que habitam os edifícios verticais construídos nos anos 1950 a 1970 na região da Alameda Barão de Limeira, estão ansiosos pela confirmação da vinda do Governador para o bairro66. Eles, como os proprietários de imóveis vagos, acreditam na valorização fundiária, na “solução” de problemas sociais presentes no bairro e intensificados após as demolições do Projeto Nova Luz67, na “retomada” daquele estilo de vida que muitos deles encontravam ainda nos anos 1960. A luta de classes da sociedade paulistana encontra nos Campos Elíseos, portanto, um palco expressivo para suas disputas. Apesar de o mercado imobiliário começar a se interessar pela porção dos Campos Elíseos mais afastada da Luz, o mesmo não parece ocorrer no perímetro do Nova Luz. O jornal A Folha de São Paulo, de 11 de março de 200768, já apontava para o despertar do Centro como novo foco de investimento de construtoras, construindo imóveis para a classe média, com preços de R$100 mil a R$200 mil; Campos Elíseos e República estavam entre os destaques.
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Ver entrevista em Anexos. Baseado em entrevista realizada pelo autor com representante do movimento de ocupação de edifício na Rua Mauá, no bairro da Luz. 66 Informação dada pelos representantes da Associação de Moradores e Comerciantes dos Campos Elíseos (AMCCE) em reuniões com o autor. 65
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Ver em Anexos, Entrevista com Irmã Rosa, do Colégio Nossa Senhora do Loretto.
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Ver em Relatório 2, em Anexos, Caderno de Artigos, matéria de 11/03/2007.
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Essa tendência de associação entre promoção de políticas culturais e interesses imobiliários em centros urbanos já vem sendo muito discutida nas últimas décadas por teóricos de todo o mundo. Sharon Zukin é uma delas. Em The Cultures of Cities (1995), a autora descreve como em cidades ditas globais o patrimônio histórico é empregado em políticas urbanas de cunho gentrificador, como instrumentos de produção de símbolos através da preservação patrimonial e do desenvolvimento especulativo de grandes projetos imobiliários em centros urbanos que, até os anos 1990, não despertavam o interesse dos moradores abastados dessas cidades. Uma ressalva em relação ao patrimônio histórico dessas cidades é feita por Niel Smith, em The New Urban Frontier: Gentrification and the Revanchist City (1996), ao mostrar que cidades como Amsterdam e Paris, por possuírem tipologias arquitetônicas datadas dos séculos XVI ao XIX que, ao contrário das cidades norte-americanas, passaram por séculos de abandono, investimento e reinvestimento, e mesmo processos diversificados de destruição, como o emburguesamento da cidade no século XIX e os efeitos da guerra (p. 180-181). Isso nos faz voltar à cidade de São Paulo, para observarmos qual o tipo de patrimônio histórico que possuímos em nosso centro urbano. Como denuncia Benedito Lima de Toledo, a cidade de São Paulo soube destruir em um único século os vestígios de suas fases hegemônicas de desenvolvimento, e que caracterizavam a cidade em seu estoque imobiliário: a cidade de taipa, colonial, a cidade de tijolo, aristocrata, e a cidade concreto, moderna ou contemporânea.
4.2 O “Projeto Nova Luz” e os Campos Elíseos Nossa intenção neste ponto não é a de trabalhar o Projeto em si, isso apenas já seria uma pesquisa inteira, por isso só. Na verdade, o que pretendemos é analisar em que consiste o Projeto Nova Luz, quais suas principais características, intenções e medidas promovidas por ele; os efeitos do projeto sobre os Campos Elíseos e a polêmica criada em 2009 sobre a questão das Concessões Urbanísticas serão tratadas a seguir. 133
O novo “projeto urbano” da Prefeitura Municipal de São Paulo, que vem sendo implementado desde 2004, é o “Nova Luz”, que pretende acabar com a “Cracolândia” (aqui notase que, mesmo o poder público se serve deste termo que marginaliza a região, como estratégia de justificativa ideológica do projeto), num perímetro mais focado no bairro da Luz, entre as ruas Mauá, Santa Ifigênia, dos Protestantes, General Couto de Magalhães, o Largo General Osório e a Praça Alfredo Issa e as Avenidas Duque de Caxias e Casper Líbero. Segundo a própria Prefeitura, o projeto foi iniciado em 2005 visando “revitalizar uma das mais degradadas áreas da cidade ganha interesse definitivo de 23 empresas que ali instalarão suas sedes, investindo R$ 752,72 milhões e gerando 26 mil empregos” (disponível: www.centrosp.prefeitura.sp.gov.br/sis/l enoticia.php?id=185&c=35). O projeto que conta com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pretende aniquilar o espaço existente para a construção de um pólo de tecnologia, com empresas do ramo e uma profusão de centros culturais, shoppings centers, hipermercados e galerias de arte, retirando dali os moradores do bairro da Luz, em sua maioria pobres, que terão de procurar um novo lugar para morar, na periferia. Trata-se de uma operação oficial aos moldes do que fez Haussmann em Paris, na segunda metade do século XIX. Críticas a este tipo de políticas estão presentes em estudos de pesquisadores de todo o mundo, como Mike Davis: “nas grandes cidades do Terceiro Mundo, o papel panóptico coercitivo de „Haussmann‟ costuma ser desempenhado por órgãos especializados de desenvolvimento; subvencionados por financiadores estrangeiros como o Banco Mundial e imunes aos vetos locais, a sua tarefa é limpar, construir e defender ilhas de cibermodernidade em meio a necessidades urbanas não atendidas e ao subdesenvolvimento em geral” (DAVIS, 2006:107). Edifícios que irão abrigar futuros prédios públicos já foram demolidos, entretanto, a iniciativa privada ainda não se manifestou claramente interessada em investir no projeto. Os conflitos atuais, como a questão do projeto de Lei das Concessões Urbanística
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Fotos do autor, tiradas em frente à Câmara Municipal de São Paulo, no dia 17 de março de 2009. Na imagem, manifestantes mostram cartazes e um deles levanta o jogo de tabuleiro Banco Imobiliário, numa alusão à Lei de Concessão Urbanística como uma brincadeira de interesses.
O projeto de lei das Concessões Urbanísticas foi encaminhado pelo próprio prefeito pessoalmente à Câmara Municipal em 26 de fevereiro de 2009. A idéia básica divulgada é a de viabilizar a desapropriação de imóveis inseridos em um recorte específico (a área do Projeto Nova Luz) pela iniciativa privada. Na prática, parece mais uma terceirização do espaço urbano (como publicou o jornal Folha de São Paulo, de 23 de abril de 2009, “Câmara aprova terceirização da Nova Luz”). Dessa forma, empresas que se interessassem em empreender na área poderiam se responsabilizar por esta etapa que tem sido tão difícil de ser implementada pelo poder público municipal, como jornais de diversas datas deste ano mostraram. O projeto de lei causou grande polêmica, tanto na Academia, quanto na mobilização de agentes locais. A discussão ficava pautada se a medida era inconstitucional ou não. O fato é que a concessão urbanística estava prevista no PDE de 2002, como instrumento alternativo a ser regulamentado. É nisso que se pauta aqueles que defendem a (agora) lei. Uma discussão ocorrida na Casa da Cidade, entidade sem fins lucrativos criada pelo ex-vereador petista Nabil Bonduki, onde compareceram pesquisadores e pensadores dos temas urbanos em geral, de orientação política de esquerda, foi dito que o instrumento é uma faca de dois gumes, “tanto serve pra matar como serve para passar a manteiga no pão”. O projeto urabnístico fica sob responsabilidade do poder executivo municipal. 135
A maior organização foi a da Associação dos Comerciantes da Santa Ifigênia, que compareceram em peso na Audiência Pública ocorrida na Câmara em 17 de março de 2009, organizada pela Comissão Permanente de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente. A seguir, anexamos texto de nossa fala, enquanto orador e munícipe, em momento algum nos reportando à qualquer instituição, nem a FAUUSP, nem a FAPESP: “Acredito que algumas questões apresentadas pelo projeto de lei PL 87/2009 e seus discursos precisam ser repensadas, como a idéia de política pública urbana, de solução de conflitos sociais, da noção de patrimônio histórico, da noção do que é um projeto público e a que ele serve, e até mesmo a definição precisa do que é essa área do centro de São Paulo, que ora é chamada de “Cracolândia” e ora é chamada de Nova Luz. Então, para começar sobre o conceito de política pública urbana, penso que esta não deve ser política de privatização do espaço público urbano, que foi construído coletivamente por toda a sociedade e que é dela. Da mesma forma, solucionar conflitos sociais não é o mesmo que destruir espaços edificados e camuflar os sintomas através do espraiamento de efeitos danosos, como o faz o Projeto Nova Luz. Vale lembrar que a quadra demolida no bairro da Luz por este projeto espalhou problemas sociais para os Campos Elíseos, ao ponto de uma escola tradicional do setor privado, o Colégio Nossa Senhora do Loretto, há 50 anos funcionando na Alameda Glete, ter sido fechada em grande parte em decorrência do aumento da violência nos arredores do colégio, com o tráfico de drogas ameaçando os alunos; este é apenas um exemplo de que resolver problemas sociais é bastante distinto de simplesmente derrubar paredes. É evidente o caráter do Projeto Nova Luz como iniciativa imobiliária, que visa elevar o valor da terra e atrair o investimento do alto Capital, a fim de tornar a área mais atraente para o turismo, de estimular a classe média a voltar a habitar o centro da cidade e para vender a imagem da cidade em cenário internacional, como foi feito com a área da Operação Urbana Águas Espraiadas, onde para criar o “novo cartão postal” da cidade, famílias moradoras há décadas do Jardim Edith foram expulsas da área e transferidas, inclusive pela própria Prefeitura, para outras áreas menos incômodas aos interesses imobiliários, como a região dos mananciais de Guarapiranga e Billings (cf. Fix, 2001). E então eu questiono, é esse um método para solução de problemas sociais? Porque o conflito não está mais exposto na área da ponte estaiada, mas é latente nos mananciais. Isso nos faz lembrar o texto secular de Engels, “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, em que o autor afirma que os projetos de renovação urbanística de uma área alagável do rio Medlock, conhecida por Little Ireland devido à forte presença de 136
imigrantes pobres irlandeses, tornaram a área atraente para o uso da burguesia, com um novo conjunto arquitetônico, mas que os problemas sociais do Little Ireland não haviam sido sanados, mas apenas havia ocorrido o deslocamento daquelas famílias, que continuaram na mesma situação em um outro lugar (cf. Engels, 2008; Fix, 2007). Na área da Luz, as estratégias de valorização imobiliária pelos projetos-âncora culturais criam abismos sociais, ilhas de segregação que não consideram o espaço onde estão. Se pensarmos no que é a Sala São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa, a Pinacoteca do Estado, o Museu de Energia, a Estação Pinacoteca, o atual projeto do Teatro de Dança na quadra da antiga rodoviária, entre tantos outros equipamentos de alta cultura, percebemos que estas medidas se inserem em políticas de higienização social, a promoção de empreendimentos imobiliários que desconsiderem o local onde estarão inseridos e o desrespeito à população moradora e comerciante local. É ainda sintomático que um projeto de lei claramente afinado aos ideais neoliberais de gestão do espaço público, de privatização, como este de regulamentação das Concessões Urbanísticas continue sendo adotado mesmo quando o mundo se vê diante do colapso deste sistema, tão evidente pelos efeitos da crise americana atual. O que há de errado em querer melhorar o espaço físico da cidade, a imagem da cidade? Ao meu ver, não há erro algum, desde que este projeto esteja inserido em um plano político pertinente, que considere as necessidades reais e os direitos dos cidadãos. Obrigado.
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Contentamo-nos, portanto, com o levantamento de suas questões neste espaço, a fim de registrar, neste relatório, a manutenção de políticas perversas para a solução dos problemas sociais.
4.3 Teatro de Ópera e Dança: nova casa para a São Paulo Companhia de Dança 4. 3. 1 A âncora da vez O Teatro de Ópera e Dança previsto para ser inaugurado em dezembro de 2010 é a tradução materializada de todo o esforço que a gestão PSDB no governo do Estado de São Paulo tem desempenhado desde a gestão Mário Covas (1995 a 2001), quando o então Governador implantou novo modelo de intervenção urbanística, não mais pautado em obras viárias, mas sim em equipamentos-âncora de alta cultura, irradiadores de melhorias e valorização do solo urbano69. O Theatro São Pedro, a Sala São Paulo são expoentes já construídos deste novo “urbanismo” 70, mas o equipamento voltado à dança apresenta polêmica sem precedentes. Em apenas um ano e meio, a gestão José Serra conseguiu gerar toda a estrutura necessária para que o novo empreendimento cultural do Governo tornasse realidade; suas atuações consistiram em duas frentes: a criação da “alma” e a construção do “corpo” 71. Para criar a “alma” do novo equipamento cultural do Estado, foram convidadas duas das mais experientes bailarinas brasileiras (Iracity Cardoso e Inês Bogéa) para conduzir a São Paulo Companhia de Dança e para organizar o concurso internacional de busca por dançarinos de talento e a contratação da equipe, composta por técnicos, professores, assistentes, coreógrafos, e toda sorte de profissionais 69
A dita fala encontra-se presente no capítulo 5 deste relatório.
70
Cf. Arantes, 2001, sobre o novo urbanismo, ou o “urbanismo em fim de linha”.
71
O emprego dos termos “alma” e “corpo” é uma referência direta ao artigo Notas sobre a Sala São Paulo, publicado por Wisnik, Mariana Fix entre outros, na Revista Pós, da FAUUSP (2001). Os autores fazem referência para o histórico da sala de concertos da Estação Júlio Prestes analisando a formação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (a “alma”) e a Sala São Paulo (o “corpo”). Neste caso, no entanto, a “alma” da Sala São Paulo já existia, tratava-se apenas de investir na construção física do empreendimento.
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altamente capacitados para dar o suporte necessário para os oitenta bailarinos escolhidos. O “corpo” provisório foi instalado no histórico edifício da Oficina Oswald de Andrade – adaptado para atender ao novo programa –, no bairro do Bom Retiro; o definitivo, que talvez seja o elemento central de toda essa história, foi pensado para ser instalado no bairro dos Campos Elíseos, na quadra onde hoje existe o Shopping Luz na estrutura da antiga Rodoviária Municipal, uma unidade do Corpo de Bombeiros e uma dezena de outras edificações construídas aos moldes das demais arquiteturas tradicionais do bairro; este espaço urbano tem sido frequentemente empregado para acolher cortiços,
alguns pequenos hotéis e pensões usados por imigrantes
clandestinos, prostitutas e usuários de drogas. Esta é a região que a imprensa vem chamando de “Nova Cracolândia”, uma vez que a antiga foi fisicamente destruída pelas demolições do projeto Nova Luz. Por fim, mas definitivamente não menos importante, faltava escolher quem seriam os autores do novo evento arquitetônico72. Em 2007, segundo Sylvio Sawaya, o governador José Serra teria lhe solicitado a indicação de um arquiteto para fazer o projeto do Teatro de Dança. Sylvio indicou o Arquiteto Marcos Acayaba, professor da mesma escola de Sylvio, a quem o diretor disse admirar muito. O projeto de Acayaba faz parte do caderno “A retomada dos Campos Elíseos”, e consiste em uma solução que “resolve” a encomenda criando uma praça pública pergolada, permitindo um fluxo contínuo de passantes e usuários dos teatros. Entretanto, o projeto não foi aceito pelo governador que, de acordo com Sylvio, preferia “uma coisa mais neoclássica”, como um possível rebatimento da fachada da Estação Julio Prestes. Em conversa particular que tivemos com Marcos Acayaba, contudo, o arquiteto afirmou que seu projeto não seria adotado porque o governador queria outra coisa para a área, algo mais chamativo. Meses depois, em 4 de novembro de 2008, era anunciada 72
A expressão “evento arquitetônico” é de autoria do professor emérito da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, Gérard Monnier. Ele define que alguns edifícios são construídos ou mesmo demolidos com a finalidade de gerar um evento, dentro do contexto da “sociedade do espetáculo”, de Guy Débord. Para o autor, o edifício torna-se um evento quando desperta – ou é realizado para despertar – o interesse do grande público e da mídia, muitas vezes por meio de debates polêmicos. São exemplos de edifícios-evento citados pelo autor: o Palácio de Cristal, construído na Inglaterra do século XIX, o Grand Palais de Paris, a pirâmide do Museu do Louvre em Paris, o viaduto de Milau, no sudoeste da França, o museu Guggenheim de Bilbao e o Centro Georges Pompidou, em Paris (cf. Monnier, 2006).
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a escolha do escritório estrangeiro Herzog & de Meuron pelo jornal Folha de São Paulo, notícia causadora de desconforto na classe dos arquitetos brasileiros, que se manifestaram publicamente contrários à decisão de Serra73. Naquele artigo do jornal paulistano tornava-se pública a fala de Sayad, Secretário de Estado da Cultura, de que a decisão da escolha de um escritório internacional para projetar o novo complexo era uma “concorrência informal” entre arquitetos de renome no cenário da arquitetura contemporânea mundial74, pautada na lei federal “8.666/93, que diz ser „inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos [...] de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização‟”75. Incontestavelmente, Pierre Herzog e Jacques de Meuron possuem notória especialidade na construção de edifícios-evento, nas palavras de Monnier, ou de espetáculos urbanos, naquelas de Débord; basta recuperarmos o portfólio dos arquitetos, cuja principal obra é o Estádio Nacional Olímpico de Pequim, conhecido como “ninho de pássaro”, espetáculo assistido por bilhões de pessoas ao redor do mundo, quando da inauguração dos Jogos Olímpicos de Pequim (2008). Em entrevista à revista AU, o Secretário de Cultura afirmou que o interesse do projeto não era momento algum o de requalificar a zona, mas sim o de construir um bom teatro. Para Sayad, “senti do Serra que ele nunca apoiaria, assim como eu também não, um projeto do tipo o do Frank Gehry em Bilbao, espetacular. É uma obra para o público de dança e não para o arquiteto” 76.
73
Inúmeros manifestos foram publicados na Internet, no portal paulistano do Instituto dos Arquitetos do Brasil, com o repudio da classe diante da decisão. A polêmica foi divulgada até em um jornal da Suíça, país natal dos arquitetos contratados. 74
Entre os escritórios de arquitetura escolhidos para participar da concorrência informal, estavam Pelli Clarke Pelli, Norman Foster, OMA (Rem Koolhaas) e Herzog & de Meuron (segundo reportagem da AU) e Zaha Hadid (segundo Inês Bogéa, em palestra dada sobre o projeto na FAUUSP, no primeiro semestre de 2009). Na reportagem da revista são comunicados os critérios empregados pelo Secretário para a escolha do projeto: o tipo de projeto, a notoriedade, a disponibilidade de montar um escritório em São Paulo e a capacidade de negociar. 75
Ver em Relatório 2, Anexos, Caderno de Artigos de Imprensa, p. 6, artigo “Arquitetos do Ninho do Passáro projetam teatro de dança em SP”, de 04 de novembro de 2008, da Folha de São Paulo. 76
Embora não seja divulgada a data do artigo ou da entrevista, é possível encontrá-lo na íntegra no endereço eletrônico www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/177/imprime118584.asp
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A obra do Teatro de Ópera e Dança deve ser iniciada ainda em 2009, com conclusão prevista para final de 2010. O custo está previsto para 30 milhões de reais, dos quais de 6,5 a 8,5% (i.e., de 1,95 a 2,55 milhões de reais) serão repassados ao escritório suíço como pagamento pelo projeto. A título de comparação, em geral, arquitetos brasileiros recebem como pagamento por seus projetos algo entorno de 0,5 a 1% do custo total da obra, o que daria, no caso, o valor máximo de trezentos mil reais. Mesmo diante das cifras, dos contrastes e da discrepância entre as prioridades do governo e a situação real da cidade, a estratégia fatal do uso da cultura como instrumento inquestionável destas – se é que podemos considerá-las assim – “políticas públicas”, continua funcionando, afinal, “São Paulo precisa desses projetos”77. Nada poderia ser mais sintomático. 4.3.2 O projeto Após a contratação dos arquitetos, a expectativa em ver o que os estrangeiros proporiam para a cidade manteve presente o empreendimento enquanto evento. Em abril de 2009 o projeto fora apresentado para o Secretário de Cultura e para o Governador do Estado, mas publicado pela imprensa apenas em junho do mesmo ano e ainda assim com imagens pouco esclarecedoras. O fato é que até hoje (meados de julho de 2009) não é conhecido como será o novo teatro do Estado. Entretanto, após meses de negociação com o escritório Herzog & de Meuron, com a Secretaria de Cultura e com representantes do escritório no Brasil, obtivemos com exclusividade para esta pesquisa as imagens que mostramos a seguir. Tratam-se de imagens de maquete eletrônica, não tivemos acesso às plantas ou ao memorial descritivo. Portanto não foi possível fazer uma leitura dos materiais que serão empregados dentre outras questões técnicas. Por isso traçaremos a discussão pautada principalmente nas questões formais e na relação do complexo projetado com o entorno, numa tentativa de estabelecer, ainda assim, descrição e crítica do projeto.
77
Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, entrevista com técnico do CONDEPHAAT.
141
Seguindo a linguagem empregada no seu projeto de maior sucesso, o Estádio Olímpico de Pequim, em que se sobrepõem diversas camadas de lâminas que conformam a espacialidade do edifício, o Teatro de Ópera e Dança de São Paulo terá destaque para as múltiplas tramas e planos de superfície que configurarão o espaço do edifício bem como seu aspecto plástico. Diferentemente do espetacular estádio chinês, o primeiro projeto da dupla de suíços na América Latina terá uma implantação menos sinuosa, acompanhando, de certa forma, o entorno no qual está inserido. Todas as vistas laterais imediatas mantêm a relação com o entorno histórico, não se sobrepõe a ele. A caixa de palco do teatro, elemento mais alto de uma composição arquitetônica deste programa, foi colocada ao lado do edifício residencial existente na Praça Julio Prestes, alinhando-se a ele. Ao que as imagens indicam, haverá permeabilidade para os transeuntes que queiram cruzar a quadra por meio do complexo cultural. Os sucessivos planos cruzados em forma de lâminas em trama geram transparência que simulam uma desmaterialização do edifício, já que se torna mais leve, como uma construção feita através de vazios.
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Nas imagens acima,fornecidas pelo escritório ao pesquisador, percebemos a manutenção de uma linguagem comum à do Estádio de Pequim, mas com maior integração entre o espaço construído ao seu redor. A imagem superior mostra a vista do complexo com o bairro dos Campos Elíseos. A inferior mostra a plasticidade visual do novo empreendimento cultural patrocinado pelo Governo do Estado, na região da Luz.
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Perspectiva fornecida ao pesquisador pelo escritório suíço, em julho de 2009. Na imagem, lê-se um equipamento que não se impõe fisicamente no entorno, mas sim através da valorização imobiliária.
O quadro acima mostra a distribuição das áreas destinadas a cada uso neste complexo. A maior parte será destinada ao Teatro de Dança propriamente dito (15600m2), seguido do espaço para as escolas de música, de dança, da biblioteca e de uma sala de proposta múltipla (total 10600m 2). A Companhia de Dança terá um espaço só dela, para ensaios, composição de coreografias, aulas para os dançarinos do corpo de baile da Companhia. Uma dúvida nos surgiu durante os últimos dias de pesquisa (pois este material foi disponibilizado posteriormente à data de entrega do relatório): a imagem publicada pela Folha de São Paulo (ver foto ao lado) mostra claramente um complexo entre duas grandes praças, dispostas ao longo do eixo da Avenida Duque de Caxias. Mas para realizar haver uma praça de cada lado do teatro seria preciso 144
demolir toda a quadra à direita do complexo, hoje ocupada por edifícios residenciais e comerciais. Talvez a versão de imagens que nos foi enviada seja um pouco anterior à última publicada pelo jornal brasileiro. Se for o caso, se realmente houver desapropriação de mais uma quadra para a construção de uma praça, o Governo do Estado estará, mais uma vez, desabrigando centenas de famílias e comerciantes, que terão de arcar com as conseqüências de um ideário governamental de higiene social.
4.4 O SESC Bom Retiro, nos Campos Elíseos Os novos investimentos do Serviço Social do Comércio na cidade de São Paulo são voltados para a região central de São Paulo. São dois projetos: um deles na Rua 24 de Maio, com projeto de Paulo Mendes da Rocha para reabilitação de um edifício pré-existente; o outro é na Alameda Nothmann, no bairro dos Campos Elíseos, construído sobre um lote onde havia um galpão sem grande importância arquitetônica ou patrimonial. Chamado de SESC Bom Retiro, provavelmente devido à grande proximidade daquele que hoje é um grande pólo comercial de São Paulo, as obras do SESC Bom Retiro, localizado na Alameda Nothmann em frente ao Museu de Energia e ao lado do centenário Colégio Sagrado Coração de Jesus, foi projetada por arquitetos menos renomados que o autor do projeto da unidade 24 de Maio: o escritório Diksztejn Arquitetos Associados.
Imagens do projeto e obra do SESC Bom Retiro, ambas retiradas do portal SESC na internet. A imagem da esquerda mostra a maquete da nova unidade. A da direita mostra o estado da obra em março de 2009, com detalhe do Liceu Coração de Jesus ao fundo.
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Sobre o assunto, pouco foi divulgado pela imprensa. Procuramos obter informações visitando a obra, assim como entrando em contato com dois engenheiros responsáveis pela obra que respondem pelo SESC, com um engenheiro que responde pela construtora Omar Maksoud e também tentamos entrar em contato com o escritório que projetou o edifício. Todos recomendaram que enviássemos as perguntas por escrito, e assim o fizemos. Eram elas: “Por que o SESC pretende construir uma nova unidade neste bairro? Quais tipos de serviço vão estar disponíveis para os comerciários da área? O que havia construído no lote antes das obras do SESC Bom Retiro? Como o projeto pretende se articular com as demandas sociais tão claramente latentes da área em que se insere? Houve paralisação na obra durante vários meses do ano passado. Porquê? Que tipo de impacto o SESC prevê para o valor da terra do bairro e que tipo de impacto negativo as problemáticas da „Cracolândia‟ podem causar ao empreendimento?” As respostas que obtivemos foram claras: não podemos ajudá-lo. Em uma das mensagens respondidas pelo engenheiro do SESC, ele nos escreveu: “não posso responder a estas perguntas. Seria preciso abrir um processo jurídico de solicitação dessa entrevista, que começaria com o envio de cartas oficiais de sua faculdade para o SESC”. Os demais preferiram responder através do silêncio, não respondendo às nossas mensagens.A análise fica, portanto, em aberto.
4.5 Projetos e medidas legais: a proposta de revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo Este último item do capítulo de projetos para o bairro refere-se à proposta de 2007da revisão do Plano Diretor Estratégico do Município, vigente desde 2002. A proposta foi criada no contexto da gestão de Gilberto Kassab (DEM) na PMSP, e apresenta propósitos muito claros: acelerar o processo de transformação da área do Centro de São Paulo, permitir que tornem-se legais projetos que contrariem a perspectiva progressista do plano anterior e facilitar a gestão da prefeitura a promover seus ideais transformados em políticas públicas.
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A proposta de revisão do PDE vigente desde 2002 foi encaminhada em outubro de 2007. Estabelece uma série de modificações que alteram sensivelmente o Plano, do 1º ao 47º artigo, deixando de ser uma revisão para ser um Plano novo. Não discorreremos muito sobre este aspecto, apesar de nos despertar o interesse. Mas o que incide efetivamente nesta pesquisa é a proposta de revisão das ZEIS, alteração mais criticada pelos defensores do PDE de 2002. Entre as ZEIS modificadas, era proposta uma grande modificação na área de nosso objeto de estudo: a remoção da indicação da orla ferroviária no trecho da Favela do Moinho como uma dessas zonas. Caso a proposta de revisão do PDE fosse aceita, os moradores da Favela do Moinho que há 15 anos residem na área seriam enfraquecidos politicamente. Um dos grandes argumentos daqueles que lutam contra a reintegração de posse e a favor de uma política de promoção habitacional para a favela, mais do que o pedido de concessão do direito de usucapião, é o fato desta estar inserida em uma ZEIS, o que obriga o poder público a atentar para a questão, e proíbe a iniciativa privada de construir na área qualquer empreendimento que não destine 40% da área construída para HIS, 40% para HMP e 20% para outros usos. O desenho abaixo, também reproduzido em maior resolução nos anexos deste relatório, é de nossa autoria, e identifica o tamanho desta modificação.
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Construir um parque numa área protegida legalmente para fins habitacionais seria, portanto, ilegal. A proposta de revisão do PDE foi, contudo, vetada em 29 de junho de 2009, suspensão decretada pelo juiz Valentino Andrade, da 10ª. Vara da Fazenda Pública de São Paulo. O juiz considerou que a revisão dos artigos 1º ao 47º do PDE de 2002 fere fortemente a determinação do próprio plano, que restringe alterações tão substanciosas. O jornal O Estado de São Paulo, de 30 de junho, mostra que esta é a primeira derrota legislativa do atual prefeito, e que a base governista da prefeitura vai recorrer da decisão. Mas a decisão de cancelamento da revisão é uma vitória para aqueles que lutam por cidades mais justas.
5.
Capítulo 5 – “Cracolândia” : nem projeto, nem política A “Cracolândia” é assunto para um capítulo à parte, por mais sucinto que este seja. O tema não se insere metodologicamente nem em “políticas e projetos”, nem em “crítica do patrimônio”, nem no projeto “Nova Luz”; talvez este seja o que mais se aproxima, de fato, mas ainda não teria propósito inseri-lo no capítulo destinado para projetos, do qual o Nova Luz faz parte. A “Cracolândia” é mais polêmica do que os casos explanados anteriormente, e muito menos coerente do que os mesmos. Diante disso, optamos por separá-la dos demais temas tratados anteriormente neste relatório, ainda que o assunto já tenha sido citado em capítulos anteriores. A verdade é que para abordar a chamada área do crack de compra, venda e consumo facilitados, foi preciso adotar metodologia diferenciada, mais investigativa do que teórica, pautada principalmente em visitas a campo, entrevistas e conversas, e trabalho de levantamento da cobertura de imprensa, atividade que já vinha sendo realizada desde o relatório anterior – e que
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continuou sendo feito – para todos os temas-chave relacionados à pesquisa, mas para este tema específico foi necessário atenção ainda maior. A “Cracolândia” seria um termo criado pela imprensa para designar o estado de calamidade que uma região específica do bairro da Luz, das proximidades da Rua Mauá até a Santa Ifigênia, vinha passando desde o início dos anos 1990. Esta situação calamitosa teria se tornado cada vez maior, diante da não-intervenção do poder público, de qualquer instância política. O ápice nos anos 1990 teria chegado ao final da década, quando das obras de construção da Sala São Paulo e de sua inauguração. Anos passaram-se e a “Cracolândia” ficou nacionalmente conhecida como uma área de criminalidade e insegurança, o que justificaria medidas intervencionistas do poder público no sentido de dirimir tais questões. Além do policiamento esporádico e do investimento em equipamentos culturais, justificados como sendo instrumentos capazes de transformar a área e resolver o problema, nenhuma política pública foi implementada para sanar a situação, até o lançamento do Nova Luz, em 2004, anunciado como a solução definitiva para o problema da “Cracolândia”, através da transformação urbanística e paisagística da área. Dois anos mais tarde, a PMSP anunciou, em janeiro de 2006, o início das obras públicas do projeto, que começariam com demolições das quadras mais degradadas da Luz, até então foco da “Cracolândia”, etapa realizada efetivamente apenas em novembro de 2007. No local demolido está sendo construída a nova unidade da Subprefeitura da Sé.
As fotos acima, de nossa autoria, mostram a área inicial da chamada “Cracolândia” e a interdição dos edifícios pela Subprefeitura da Sé, para preparar a demolição. Outubro de 2007. 149
Demolidos os imóveis, a atividade ilícita do tráfico e uso de drogas tornou-se mais explícita. Mas como a intervenção na área acabou meramente com o patrimônio existente, preparando o terreno para o empreendimento público – que funcionaria como um chamariz dos investidores privados – a atividade e prática do tráfico atravessaram a Rua Mauá e a Avenida Duque de Caxias e se abrigaram nas quadras formadas pelas Alamedas Cleveland, Dino Bueno, Barão de Piracicaba, Glete e Rua Helvétia, formando aquela que passou a ser chamada pela imprensa como “Nova Cracolândia”, em abril de 2008. As conseqüências do deslocamento do tráfico e uso do crack para o bairro dos Campos Elíseos foram o aumento significativo da criminalidade e da insegurança dos moradores e passantes desta região, que já constava no PDE de 2002 como área prevista como futura Operação Urbana.
O mapa acima, de nossa autoria, mostra o deslocamento espacial da “Cracolândia”, e elenca as unidades de policiamento existentes (algumas lançadas nos últimos meses, apenas): a 150
77ª Delegacia de Polícia (Santa Cecília), localizada na Alameda Glete, a 3ª DP, situada na Rua Aurora, o Corpo de Bombeiros da Alameda Barão de Piracicaba, a base comunitária da Polícia, instalada no Largo Coração de Jesus, e a mais recente unidade de policiamento móvel, na Praça Julio Prestes. Para quem mora no novo cenário do narcotráfico, a situação é desesperadora. Entrevistamos moradores como o Sr. Nelson Barbosa, vice-presidente da AMCCE, que considera morar na Cracolândia como “passar uma temporada no inferno” (sic). A Sra. Maria Aparecida, residente do único edifício residencial da Praça Julio Prestes, explica o motivo: “a gente não consegue dormir, existem moradores cadeirantes que não conseguem sair [sozinhos de casa] porque têm medo”, as pessoas “são inibidas ao passarem pelo meio deles, eles fazem barulho a noite toda, eles brigam, eles se agridem, eles xingam, eles fazem arruaças absurdas, sem falar na sujeira, porque o lixo são eles que fabricam”. Outra denúncia foi feita pela Irmã Rosa, entrevistada coordenadora de um colégio tradicional dos Campos Elíseos, fechado em grande parte devido à chegada da Cracolândia. Ela afirma que a violência é constante, porque existem “muitos ladrõezinhos que roubam as pessoas. Recentemente eles chegaram a roubar a grade de ferro do nosso colégio. Era uma grade muito bonita, feita em ferro, da época em que a casa foi construída. E eles roubaram. Primeiro um trecho, no dia seguinte um outro, e depois a gente não esperou eles roubarem o terceiro e nós mesmos já retiramos o gradil e guardamos aqui dentro, porque você sabe que este edifício é histórico e é tombado”. No dia 09 de julho de 2009, aniversário de inauguração da Sala São Paulo (10 anos), a AMCCE organizou uma manifestação pacífica em frente à sala de concertos, entregando aos visitantes e políticos panfleto defendendo sua causa: a necessidade e a urgência da atenção do poder público para a questão do tráfico de drogas, do uso de drogas e de medidas assistencialistas que não resolvem o problema, exigindo também que uma reunião fosse agendada com os representantes da Prefeitura. Andrea Matarazzo se comprometeu a ouvi-los, mas até agora
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nenhuma reunião foi agendada. A foto abaixo, de nossa autoria, mostra a mobilização, que contou com cerca de 50 pessoas.
Perguntada na manifestação sobre como encarava o problema (se considerava questão de segurança, saúde pública ou vigilância), a moradora Maria Aparecida sugere: “problema de vigilância eu não entendo o que seja. Porque você vê eles [policiais] passarem, por diversas horas do dia, circularem, os usuários não têm medo nenhum da autoridade policial, nenhum mesmo, pelo contrário, eles enfrentam os policiais, a gente já viu cenas disso, eles não ficam inibidos”, e, em outro trecho, indica que “não compreende como uma base comunitária da guarda municipal”, assim como a polícia, “fica em meio a tudo isso sem a gente ver uma atuação forte deles. Eles convivem no meio deles, de uma maneira até harmoniosa”. Não tão harmoniosa, contudo, é a relação entre policiais e agentes da Secretaria de Assistência Social da PMSP. Em conversa com dois agentes, eles declararam “até pra gente aqui o trabalho tem sido complicado, porque a policia não aceita o nosso trabalho”, que acabam recebendo-os com spray de pimenta e cavalaria. Segundo os agentes, na gestão anterior à Kassab e Serra na prefeitura, as coisas eram tratadas de maneira diferente, existia mais apoio tanto para quem se encontra na situação de usuário de drogas como para quem com eles trabalha. Considerando a problemática com um histórico de quase 15 anos, apesar de estar há apenas um nos Campos Elíseos, a situação se mostra estrutural. Ao entrevistarmos liderança 152
religiosa da Favela do Moinho, foi revelado que também na favela existe o tráfico de drogas. Ao perguntarmos ao entrevistado se haveria ligação entre o tráfico que acontece na favela e aquele que acontece na chamada “Cracolândia”, foi afirmado: “total [ligação]. Porque essa região toda aqui tem ligação com o PCC (Primeiro Comando da Capital), daqui do Moinho até a Luz até a Santa Cecília, isso aqui tudo”. Como era a primeira vez que ouvíamos a respeito de que a área analisada estava inserida em um perímetro de atuação do PCC, perguntamos a outros entrevistados o que eles achavam desta hipótese. O vice-presidente da AMCCE foi categórico: “Eu não tenho a menor dúvida. Inclusive tudo piorou muito depois que teve aquele toque de recolher, acho que foi em maio de 2007, se não me engano. E a polícia deve estar articulada com isso, por meio de corrupção. Mas você acha que eu não tenho medo de te falar uma coisa dessas e depois levar uma “bala perdida”? A gente tem medo sim”. Insinuamos a mesma pergunta para os agentes da prefeitura; estes, apesar de não terem declarado explicitamente como o outro entrevistado, não se mostraram muito surpresos com esta possível articulação. Somando todos os eventos polêmicos que ocorrem na área da Luz e arredores desde meados dos anos 1990, tudo parece estar articulado. Essa suspeita nos levou a pesquisar se haveria alguma relação entre os empreendimentos e investimentos culturais do Governo do Estado e da PMSP com o sensacionalismo78 da mídia em relação à problemática “Cracolândia”. Então começamos uma pesquisa em um jornal específico, a Folha de São Paulo, e produzimos um gráfico cruzando a cronologia política da cidade nos últimos quase três anos com o número de artigos publicados mensalmente pelo jornal, referindo-se à “Cracolândia”. O resultado foi surpreendente: as publicações tornam-se mais freqüentes quando próximas temporalmente de eventos chaves do cenário político, como quando do início dos estudos de demolição dos edifícios da “antiga Cracolândia”, da inauguração do Museu de Língua Portuguesa, do anúncio do projeto do Teatro de Dança, das Concessões Urbanísticas, da nova configuração de vereadores do corpo 78
O termo “sensacionalismo” cunhado acima não se refere tanto ao conteúdo do que é divulgado, o assunto já é suficientemente polêmico para ser aumentado. Mas nos referimos a uma observação que traçamos durante a pesquisa, quando o número de artigos publicados pela imprensa escrita sobre a “Cracolândia” parecia aumentar quando divulgados investimentos estratégicos por parte do poder público.
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legislativo municipal, dos anúncios do Nova Luz. Observe o gráfico abaixo. O mês de julho de 2009 ainda não tinha acabado quando o gráfico foi montado (naquele mês, do dia 1º ao 26, um total de 21 artigos havia sido publicado). As aparências, neste caso, não enganam.
Inserir uma hipótese em um trabalho de Iniciação Científica pode não ser recomendado, nós o sabemos. Mas dada a seriedade com a qual ela se apresenta, e encarando a Iniciação Científica como um exercício de pesquisa, optamos por adotá-la neste trabalho, principalmente após verificarmos sua validade, quando entrevistamos o Sr. Nelson Barbosa, vice-presidente da AMCCE, que declarou voluntariamente, antes que nos pronunciássemos sobre a construção que estávamos traçando: “a gente fica pensando... como não existe nenhum programa social, isso revela o descaso total do poder público. Aí você soma algumas coisas: a inexistência de uma ação diante do caso, o fato de que o projeto Nova Luz foi pensado sem nenhuma articulação com o entorno, a chegada há uns cinco ou seis anos da Toca de Assis naquele casarão doado pelo Governo do Estado (ninguém sabe o porquê, como a entidade foi selecionada, como foi o 154
processo, não houve nenhum estudo), a gente começa a pensar “será que essas coisas são tão aleatórias assim?” Os governantes se esquivam, mas as empresas que financiam as candidaturas e mesmo que suportam os governos têm seus interesses, que quando colocados à luz desse fenômeno você percebe que nada é tão ingênuo assim. A grande parte dos vereadores hoje existentes na Câmara foram eleitos com financiamentos de campanhas realizados por companhias imobiliárias, e não é estranho que a grande maioria deles tenha aprovado a lei que permite a desapropriação imobiliária pelo setor privado?” A pesquisa empírica encontrou um respaldo na teórica na perspectiva do argumento de Gabriel Bolaffi, ainda dos anos 1970. Discutindo principalmente a questão da habitação no Brasil, mas também se referindo à problemática do planejamento urbano brasileiro, e ainda sendo muito cabível nesta discussão que estamos traçando sobre a “Cracolândia”, Gabriel Bolaffi indica uma estratégia criada pelos grupos de poder para obtenção de seus interesses por meio da substituição do problema real por um falso problema. Segundo ele, “os governos e os grupos no poder enfrentam problemas reais, particulares e determinados, de cuja solução depende a sua possibilidade de manter-se enquanto poder. (...) este é o processo pelo qual a ideologia mascara os problemas do real e os substitui pelos falsos problemas. Isto é, formulam-se problemas que não se pretende, não se espera e nem seria possível resolver, para legitimar o poder e para justificar medidas destinadas a satisfazer outros propósitos” (BOLAFFI, 1975. In: Maricato, 1979; pp.39-40). Neste caso, os outros propósitos certamente seriam a construção de uma marca identitária da atual gestão da PMSP e do Governo do Estado como os recuperadores da “Cracolândia” pela sua transformação em um pólo turístico de alta cultura, obviamente, rumo às próximas eleições.
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6.
Capítulo 6 – Considerações Finais: Campos Elíseos e as Novas tendências de intervenções urbano-patrimoniais “Aquilo a que se chama ideologicamente de “decadência‟ do centro é tão-somente sua tomada pelas camadas populares, justamente sua tomada pela maioria da população. Nessas condições, sendo o centro realmente da maioria, ele é o centro da cidade” Villaça, 2007: 283. “São Paulo está crescendo e eles estão diminuindo, entendeu? Eles são o lixo da casa, ficam lá no cantinho”.
“Irmão”, da Favela do Moinho, referindo-se às condições de vida
dos indivíduos favelados do município79. “Ilha reluzente em plena Cracolândia, uma das áreas mais degradadas da cidade, a Sala São Paulo parece ser a expressão acabada e atual desse disparate chamado Brasil. A justaposição ostensiva entre luxo e lixo talvez a torne, para alguns, escandalosa e intolerável. Contudo, ela representa a regra e não a exceção de uma „sociabilidade‟ com a qual já nos acostumamos a conviver, como se fosse uma segunda natureza” Revista Pós nº. 9, p. 193 “a cidade tem que ser encarada como um artefato, como um bem cultural qualquer de um povo. Mas um artefato que pulsa, que vive, que permanentemente se transforma, se autodevora e expande em novos tecidos recriados para atender a outras demandas sucessivas de programas em permanente renovação”.
Carlos Lemos
“basta pensar na São Paulo de 1920, 1930 e 1940 e verificar o que restou dos valores da arquitetura urbana de então. Talvez eles fossem apenas o apanágio de uma elite reduzida, mas não deixavam de representar valores urbanos, sociais e culturais, cuja destruição antes empobrece a sociedade do que a democratiza”
Reis Filho, 1994: 61.
“Mas eu aprendi uma coisa com essa proximidade dos governos agora: eles só pedem aquilo que eles precisam, eles não pedem aquilo que a gente gostaria, então, não tem muita condição de troca nisso, 79
Ver em Anexos, Caderno de Entrevistas, Entrevista com Irmão da Favela do Moinho.
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depende deles quererem, por alguma razão. Em geral são conjunturais as razões; prazos fixos, políticos, etc. Tem que ter muita sabedoria nessa história toda. Se a gente entrar de crítico e atacar a gente destrói tudo e perde a oportunidade. Se a gente aceitar a condição, às vezes absurda que colocam pra gente, a gente não faz o que devia fazer, então... é andar em cima da navalha isso aí. Mas é melhor andar do que não andar. É melhor até errar em tentar fazer do que não fazer.” Sylvio Sawaya, em entrevista ao autor em junho de 2008.
Campos Elíseos: um bairro, um patrimônio uma cidade. Um caso histórico de patrimônio público e mutação urbana na cidade de São Paulo. Discorremos durante toda a pesquisa que o bairro dos Campos Elíseos configurou-se ao longo de mais de cem anos como um espaço urbano de importância patrimonial para a história da cidade e da sociedade de São Paulo; não apenas por sua planificação ideológica inicial ou por ser dotado de um repertório arquitetônico interessante, mas sim pelos processos de mutação urbana que foram modificando aquele bairro homogêneo da belle époque paulistana no palimpsesto que atualmente nele encontramos. Essas alterações espaciais ocorridas no bairro ao longo do século XX, estão atreladas a modificações de cunho social, enquanto reflexos da identidade de uma sociedade em constante transformação ao longo do tempo. Diversos são os processos que levaram o bairro mais valorizado da cidade no início dos 1900 a se desvalorizar bruscamente, tornando-se uma das áreas mais problemáticas da capital paulista, destacando-se as questões ideológicas e de mercado. No bojo desses conflitos, em sua maior parte corporificados a partir dos anos 1970, o patrimônio surge como o resquício de um momento histórico da cidade, e passa a ser, ele mesmo, um ponto nevrálgico daquele contexto caótico deflagrado nas últimas décadas do século XX. Interesses de toda parte costuraram agentes e espaço numa trama de interligações ideológicas, onde o espaço urbano não apenas era o denominador comum a todas elas, mas seu protagonista. Simultaneamente à desvalorização crítica do bairro, políticas patrimoniais começam a surgir com o objetivo de salvaguardar o patrimônio sobrevivente. Mas esses instrumentos que tinham por objetivo a preservação dos bens históricos acabaram, em parte, incitando o apagamento da memória coletiva pelos processos de demolição, promovidos por proprietários temerosos de serem prejudicados pelas restrições que ainda seriam impostas pelos recém-criados 157
órgãos de proteção ao patrimônio histórico. Hoje os instrumentos também se mostram falhos, em decorrência da falta de educação patrimonial proliferada em todas as classes, órgãos e grupos existentes na cidade. A questão é que imóveis e propriedades fundiárias são de fato capital entesourado, como descreve Marx em “O Capital”. Se dentro do sistema capitalista entesourar Capital não faz sentido, o Capital entesourado ao menos serve como garantia sólida de uma certa estabilidade econômica (basta vermos que a atual crise americana, de fundo imobiliário, assumiu as proporções atuais em decorrência da especulação financeirizada das residências americanas e da autonomização de suas formas enquanto fetiche da certeza do capital materializado), daí uma possível explicação para a euforia daqueles que preferiram ver seus bens reduzidos a propriedades fundiárias, explorando o aluguel daquele espaço para estacionamentos, por exemplo, do que o destino incerto de ter um bem declarado como “de interesse coletivo”. O papel ideológico de políticas urbanas ligadas ao patrimônio foi sendo alterado ao longo dos anos. A estratégia de obter a mais-valia sobre o patrimônio edificado é sua vinculação aos equipamentos de alta cultura. Assim, edifícios cunhados com algum valor de memória passaram a receber grandes investimentos em equipamentos culturais desde meados dos anos 1990, acompanhando uma tendência internacional de atribuição de usos culturais aos exemplares históricos; foi o que ocorreu com a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Jardim da Luz (que se tornou Jardim das Esculturas), o Museu de Arte Sacra, o Centro Cultural Banco do Brasil, a Universidade Livre de Música, a Estação Pinacoteca no antigo prédio do DOPS, a Sala São Paulo no antigo hall principal da gare da Júlio Prestes, o Museu da Língua Portuguesa sobre andares inteiros da Estação da Luz, o Conjunto Cultural dos Correios, a inserção de acervo escultórico do MASP na Galeria Prestes Maia, o espaço de artes do Centro Cultural da Caixa, na Praça da Sé, o Museu da Energia sobre o casarão Santos Dumont (expoente da luta dos movimentos de moradia no centro de São Paulo), o Teatro de Dança no edifício da Antiga Rodoviária, nos Campos Elíseos. 158
Em relação ao novo empreendimento cultural da cidade, promovido pelo Governo do Estado, a história oficial do Teatro de Dança se inicia em 28 de janeiro de 2008, quando o Governador José Serra anuncia oficialmente a criação da São Paulo Companhia de Dança (SPCD), primeira iniciativa estatal de amparo à arte da dança na cidade de São Paulo, que há muito reivindicara patrocínio do poder público. Como relatamos no item 4.1.1, no caderno “A Retomada dos Campos Elíseos: estudo de arquitetura e urbanismo”, assinado pela FAU USP, já estava prevista a intervenção na infra-estrutura urbana do entorno e, dentre as obras elencadas estava a construção do Teatro de Dança, na quadra da antiga Rodoviária Municipal. Se a São Paulo Companhia de Dança foi criada em 28 de janeiro de 2008 e no dia seguinte o governador já declarava em conversa particular com o diretor da Faculdade de Arquitetura da USP sua intenção em realizar a volta da Sede administrativa do Estado para os Campos Elíseos, e após apenas dois meses já era publicado o terreno onde seria construída a sede da Companhia, concluímos que todos os projetos já estavam alinhados nos planos daquela gestão do Governo do Estado de São Paulo como estratégia política de valorização do entorno do projeto Nova Luz, iniciado poucos anos antes, quando o governador José Serra ainda era prefeito da capital. Por conseguinte, a proposta de revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo já havia sido encaminhada ao Legislativo em 02 de outubro de 2007, pouco mais de três meses antes do anúncio público (sobre o Teatro) e da declaração particular (sobre a volta da Sede do Governo); sabendo que a proposta de revisão do PDE propunha revisão na delimitação das áreas de ZEIS, facilitando a remoção da favela do Moinho e a construção do Parque Moinho Novo, é evidente que todos os projetos foram calculados conjuntamente, divulgados de maneira gradativa a fim de resguardar o impacto dos planos do Governo para a área. Ao longo desta pesquisa, percebemos que a nova estratégia de atingir a mais-valia, ainda mais recente do que aquela citada por Otília, é a ação das incorporadoras imobiliárias de se apropriarem do bem histórico como diferencial de mercado, transformando empreendimentos comuns em negócios infalíveis. De fato, esta estratégia mercadológica gera impacto maior do que 159
a anterior, pois se antes o bem tombado era transformado em equipamento cultural, teoricamente destinado ao público em geral (teoricamente), a nova metodologia do mercado torna o bem histórico numa relíquia para poucos. A função social da propriedade também padece de uma perda de significado, uma vez que se antes o imóvel histórico servia como equipamento habitacional, agora, ele é convertido em mero enfeite, sendo destinado a usos muito aquém do potencial de contribuição social tradicional do edifício. Seja para o uso urbano, seja para o individual ou condominial, o valor cunhado ao patrimônio é geralmente aquele “cultural”. Mas o papel que a cultura tem assumido nestas intervenções no Centro de São Paulo não é uma tendência local, pois insere-se em uma onda de políticas urbanas internacionais, existentes desde meados dos anos 1970, que visam à promoção de espetáculos urbanos, tão necessários para a atração de capital investidor nacional e estrangeiro, bem como para a valorização fundiária e imobiliária. As cidades tornam-se, então, mercadoria dentro de um sistema capitalista global e neoliberal, onde a iniciativa privada recebe em suas mãos uma cidade sem leis, ou com leis muito fracas, dadas as providências de regulação flexível do urbano (Arantes, 2000: 49) e instala-se um processo de competição permanente por investimentos diversos, entre cidades globais de todo o mundo (cf. Fix, 2007). E se nos anos 1990 os grupos políticos dominantes da cidade tiveram que escolher entre as duas possíveis “cabeças” que desejavam para a cidade, Centro e região da Marginal Pinheiros, “há uma aparente disputa de „identidades‟ para a cidade de São Paulo: enquanto a primeira promete a alta cultura, o glamour dos velhos tempos, uma cidade civilizada e democrática, pois é „acessível a todos‟, a segunda promove novos arranha-céus, casas de show e bingos, um sky-line americanizado, com vias expressas e túneis. Diante das „duas cabeças‟, a resposta de qualquer pessoa com tino empresarial é evidente: por que escolher uma? Fiquemos com as duas! Combinação, aliás, que faz parte dos negócios em toda grande cidade no mundo” (Wisnik et al, 2001). No campo político, esses fenômenos de elitização dos centros, de gentrificação, do uso dos espaços públicos com equipamentos de alta cultura, de higienização social e estratégica, só 160
vingam devido a uma “substituição escandalosa – nos dois sentidos da palavra – do Estado Social pelo Estado Empresário Cultural, cujo sucesso crescente ainda por cima se alimentava explicitamente da corrosão programada do primeiro” (Fix, 2007: 50). Desse modo, não existe o mesmo interesse na viabilização de políticas públicas de inserção social, que considerem a demanda latente da população daquela região – como a falta de moradia –, e a conjuguem com o potencial de inclusão social existente no Centro – representado, por exemplo, pela vacância imobiliária da região central. É visível a crença na solução interventora da substituição de espaços como eliminação de conflitos. Quando as soluções adotadas são de recuperação paisagística pelo uso de intervenções culturais, percebemos uma aproximação destas políticas àquelas ligadas a programas como o Monumenta – basta pensarmos no Pelourinho, em Salvador, que, com financiamento deste Programa, conseguiu recuperar as fachadas históricas e “limpar” do cenário histórico todo o conflito social latente daquela sociedade por um embelezamento gentrificador.
O
patrimônio
histórico assume papel importante neste contexto. Ao invés de promover a politização da memória, intervenções culturais desta ordem o banalizam, ao reduzi-lo a mera mercadoria, quando muito, ou a iscas para atrair investimentos, o que é corrente. Diante de tal fato, muitos edifícios históricos que foram ocupados por famílias mais pobres desde a recuada das elites em direção aos subúrbios são forçados a mudar de caráter, priorizando os usos ligados ao comércio e serviços de apoio para o uso da elite. “Embora a delimitação de áreas históricas reflita um julgamento cultural, os efeitos da preservação histórica são mediatizados pelo mercado imobiliário. Pesquisas de sociólogos sobre gentrificação sugerem que as preservações de áreas históricas podem aumentar os aluguéis de tal forma que os habitantes de renda mais baixa são forçados a se mudarem de lá” (ZUKIN, 1995: 124 – tradução minha). Qualquer intervenção em um entorno protegido pelos órgãos do Patrimônio Histórico é tarefa complexa e polêmica. E ainda corre-se o risco de a opinião crítica destes organismos não serem muito apuradas, ocorrendo permissividade e conformismo. Mais uma vez, na cidade regida 161
pelo urbanismo neoliberal, tudo é negociável, tudo é permitido, desde que se pague por isso. Neste caso, a cultura na cidade tem um papel simbólico e ideológico: segregar ricos de pobres e gentrificar a cidade existente. Diretrizes construídas para garantir benfeitorias para a sociedade como um todo são revisadas e transfiguradas, ou pelo menos tentam transfigurá-las, para o interesse de uma minoria, como historicamente se processam os acontecimentos neste país marcado pela desigualdade social. No projeto do arquiteto Sawaya para os Campos Elíseos, encomendado pelo Governador, e ainda passível de ser implementado, partindo do princípio que a atual gestão está no poder há mais de 20 anos, insere-se a “lógica” de trabalhar com o patrimônio através da intervenção projetual. Nas palavras de Sawaya, “respeitar o patrimônio não quer dizer ele ficar exatamente como ele é. Pra mim, o patrimônio histórico é elemento integrante de um projeto. Então eu quero que essas referências do passado existam de forma viva e orgânica naquilo que vai ser feito no futuro. Então, nesse momento, ele deixa de ser passado e já passa a ser um elemento futuro”. Entretanto, acreditamos que se o patrimônio histórico for encarado como um bem social, um registro da memória, e não apenas da memória mais antiga, mas também da memória social da evolução do uso e das relações sociais que se passaram no espaço de importância histórica, essa tendência de gentrificação seria, possivelmente, retraída. A postura “consciente” dos agentes dessas novas políticas urbanas, pautadas em intervenções culturais, é clara: promover a revitalização econômica através de políticas culturais é um bom negócio. Como descreve Mário Covas no texto de abertura da Sala São Paulo, em julho de 1999, “o Governo do Estado de São Paulo deixa claro que opções ligadas à cultura passarão a substituir a velha promessa de que somente obras viárias de grande porte e custos altíssimos podem alterar a face de uma região”. O descaramento de tais agentes da transformação do espaço atinge o ponto máximo nesta frase de Sawaya, em entrevista concedida ao autor: “com certeza, um projeto de requalificação como esse, muda a população. Isso é inexorável. Porque ele tende a valorizar, tende a chamar outras atividades, e o pessoal paga pra ter os lugares; e quem está lá 162
aceita o dinheiro pra ir embora, se é que vai receber algum dinheiro. Então essa componente social do projeto não pôde ser analisada ainda. A gente sabe disso, a gente sabe que se o projeto for levado adiante vai ter que se enfrentar isso”. O processo do CONDEPHAAT de tombamento da malha viária e de diversos casarões nos Campos Elíseos permanece engavetado há 23 anos, sendo, contudo, revisado conforme as necessidades momentâneas vão se impondo. A última modificação do processo foi a retirada da malha viária da lista de bens a serem tombados no bairro, contrariando o que o próprio Conselho julgou importante por mais de 20 anos, contrariando recomendações internacionais como a Carta de Veneza, que recomenda a salvaguarda dos sítios históricos de maneira integral, sendo tão importante a obra arquitetônica para a história da cidade como o é o tecido urbano no qual esta obra se insere. A justificativa não convence: “não mais julgamos pertinente”; se pensarmos no projeto que está sendo articulado pelo Governo do Estado, de transformação do Palácio dos Campos Elíseos para voltar a ser a Sede oficial do Governo, com intervenções previstas na rede viária local com ligações metropolitanas, a retirada do elemento “traçado urbano” da lista de bens a serem preservados parece ser justificativa de explicação mais eficiente. Mas justificativas de toda sorte são atribuídas para projetos e políticas de teor privatizante. A conclusão que chegamos é que mesmo fenômenos tão singulares e tão polêmicos, como a “Cracolândia” podem ser empregados para justificar intervenções de grande escala, pois a região torna-se “horrível”, como se pronunciou o CONDEPHAAT em nossa entrevista, como se pronuncia grande parte da população paulistana. Na polêmica e no caos, o governo encontra o respaldo necessário para poder tocar adiante seus projetos higienistas e segregadores.
E a transformação urbana parece dar mais uma vez seus indícios de retomada, de volta à cidade, mesmo que essas operações envolvam “riscos”. Estes, contudo, não são suficientemente fortes para alterar o pensamento dos promotores imobiliários. Mais uma vez, os Campos Elíseos irá ser transformado. Que comece o espetáculo! 163
Campos Elíseos: um bairro, um patrimônio uma cidade. Um caso histórico de patrimônio público e mutação urbana na cidade de São Paulo. Discorremos durante toda a pesquisa que o bairro dos Campos Elíseos configurou-se ao longo de mais de cem anos como um espaço urbano de importância patrimonial para a história da cidade e da sociedade de São Paulo; não apenas por sua planificação ideológica inicial ou por ser dotado de um repertório arquitetônico interessante, mas sim pelos processos de mutação urbana que foram transformando aquele bairro homogêneo da belle époque paulistana no palimpsesto que atualmente nele encontramos. Essas alterações espaciais ocorridas no bairro ao longo do século XX estão atreladas a modificações de cunho social, enquanto reflexos da identidade de uma sociedade em constante transformação ao longo do tempo. Diversos são os processos que levaram o bairro mais valorizado da cidade no início dos 1900 a se desvalorizar bruscamente, tornando-se uma das áreas mais problemáticas da capital paulista, destacando-se as questões ideológicas e de mercado. No bojo desses conflitos, em sua maior parte corporificados a partir dos anos 1970, o patrimônio surge como o resquício de um momento histórico da cidade, e passa a ser, ele mesmo, um ponto nevrálgico daquele contexto caótico deflagrado nas últimas décadas do século XX. Interesses de toda parte costuraram agentes e espaço numa trama de interligações ideológicas, onde o espaço urbano não apenas era o denominador comum a todas elas, mas seu protagonista. Simultaneamente à desvalorização crítica do bairro, políticas patrimoniais começam a surgir com o objetivo de salvaguardar o patrimônio sobrevivente. Mas esses instrumentos que tinham por objetivo a preservação dos bens históricos acabaram, em parte, incitando o apagamento da memória coletiva pelos processos de demolição, promovidos por proprietários temerosos de serem prejudicados pelas restrições que ainda seriam impostas pelos recém-criados órgãos de proteção ao patrimônio histórico. Hoje os instrumentos também se mostram falhos, em decorrência da falta de educação patrimonial proliferada em todas as classes, órgãos e grupos 164
existentes na cidade e devido à problemas internos nos órgãos de preservação. Dente os problemas, a formação dos conselhos deliberativos envolvendo políticos e empresários, e não pessoas com formação na área patrimonial, condena todas as decisões destes órgãos a um fim comum: a descridibilidade e a incompetência administrativa. Mas se nos anos 70 – e mesmo atualmente – proprietários optam por demolir suas propriedades de interesse histórico, isso se deve ao fato de que estes imóveis e propriedades fundiárias são de fato capital entesourado, como descreve Marx em “O Capital”. Se dentro do sistema capitalista entesourar Capital não faz sentido, o Capital entesourado ao menos serve como garantia sólida de uma certa estabilidade econômica (basta vermos que a atual crise americana, de fundo imobiliário, assumiu as proporções atuais em decorrência da especulação financeirizada das residências americanas e da autonomização de suas formas enquanto fetiche da certeza do capital materializado), daí uma possível explicação para a euforia daqueles que preferiram ver seus bens reduzidos a propriedades fundiárias, explorando o aluguel daquele espaço para estacionamentos, por exemplo, do que o destino incerto de ter um bem declarado como “de interesse coletivo”. O papel ideológico de políticas urbanas ligadas ao patrimônio foi sendo alterado ao longo dos anos. A estratégia de obter a mais-valia sobre o patrimônio edificado é sua vinculação aos equipamentos de alta cultura. Assim, edifícios cunhados com algum valor de memória passaram a receber grandes investimentos para comportarem em si equipamentos culturais desde meados dos anos 1990, acompanhando uma tendência internacional de vinculação do patrimônio à cultura; foi o que ocorreu com a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Jardim da Luz (que se tornou Jardim das Esculturas), o Museu de Arte Sacra, o Centro Cultural Banco do Brasil, a Universidade Livre de Música, a Estação Pinacoteca no antigo prédio do DOPS, a Sala São Paulo no antigo hall principal da gare da Júlio Prestes, o Museu da Língua Portuguesa sobre andares inteiros da Estação da Luz, o Conjunto Cultural dos Correios, a inserção de acervo escultórico do MASP na Galeria Prestes Maia, o espaço de artes do Centro Cultural da Caixa, na Praça da Sé, o Museu da Energia sobre o casarão Santos Dumont (expoente da luta dos movimentos de moradia no centro 165
de São Paulo), o futuro Teatro de Ópera e Dança no edifício da Antiga Rodoviária, nos Campos Elíseos. Este novo empreendimento cultural da cidade, promovido pelo Governo do Estado, tem a data de 28 de janeiro de 2008 como início de sua história oficial, quando o Governador José Serra anuncia oficialmente a criação da São Paulo Companhia de Dança (SPCD), primeira iniciativa estatal de amparo à arte da dança o Estado de São Paulo, que há muito reivindicara patrocínio do poder público. Como relatamos no item 4.1.1, o caderno “A Retomada dos Campos Elíseos: estudo de arquitetura e urbanismo”, assinado por equipe de professores e pesquisadores da FAU USP, já previa a intervenção na infra-estrutura urbana do entorno e, dentre as obras elencadas estava a construção do Teatro de Dança, na quadra da antiga Rodoviária Municipal. Se a São Paulo Companhia de Dança foi criada em janeiro de 2008 e no dia seguinte o governador já declarava em conversa particular com o diretor da Faculdade de Arquitetura da USP sua intenção em realizar a volta da Sede administrativa do Estado para os Campos Elíseos, e após apenas dois meses já era publicado o terreno onde seria construída a sede da Companhia, concluímos que todos os projetos já estavam alinhados nos planos daquela gestão do Governo do Estado de São Paulo como estratégia política de valorização do entorno do projeto Nova Luz, iniciado poucos anos antes, quando o governador José Serra ainda era prefeito da capital. Por conseguinte, a proposta de revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo já havia sido encaminhada ao Legislativo em 02 de outubro de 2007, pouco mais de três meses antes do anúncio público (sobre o Teatro) e da declaração particular (sobre a volta da Sede do Governo); sabendo que a proposta de revisão do PDE propunha revisão na delimitação das áreas de ZEIS, facilitando a remoção da favela do Moinho e a construção do Parque Moinho Novo, é evidente que todos os projetos foram calculados conjuntamente, divulgados de maneira gradativa a fim de resguardar o impacto dos planos do Governo para a área. Ao longo desta pesquisa, percebemos que a nova estratégia de extrair a mais-valia, ainda mais recente do que aquela citada por Otília, é a ação das incorporadoras imobiliárias ao se 166
apropriarem do bem histórico como diferencial de mercado, transformando empreendimentos comuns em negócios infalíveis. De fato, esta estratégia mercadológica gera impacto maior do que a anterior, pois se antes o bem tombado era transformado em equipamento cultural, teoricamente destinado ao público em geral (teoricamente), a nova metodologia do mercado torna o bem histórico uma relíquia para poucos. A função social da propriedade também padece de uma perda de significado, uma vez que se antes o imóvel histórico servia como equipamento habitacional, agora, ele é convertido em mero enfeite, sendo destinado a usos muito aquém do potencial de contribuição social do edifício. Seja para o uso urbano, seja para o individual ou condominial, o valor cunhado ao patrimônio é geralmente aquele “cultural”. Mas o papel que a cultura tem assumido nestas intervenções no Centro de São Paulo não é uma tendência local, pois insere-se em uma onda de políticas urbanas internacionais, existentes desde meados dos anos 1970, que visam à promoção de espetáculos urbanos, tão necessários para a atração de capital investidor nacional e estrangeiro, bem como para a valorização fundiária e imobiliária. As cidades tornam-se, então, mercadoria dentro de um sistema capitalista global e neoliberal, onde a iniciativa privada recebe em suas mãos uma cidade sem leis, ou com leis muito fracas, dadas as providências de regulação flexível do urbano (Arantes, 2000: 49) e instala-se um processo de competição permanente por investimentos diversos, entre cidades globais de todo o mundo (cf. Fix, 2007). E se nos anos 1990 os grupos políticos dominantes da cidade tiveram que escolher entre as duas possíveis “cabeças” que desejavam para a cidade, Centro e região da Marginal Pinheiros, “há uma aparente disputa de „identidades‟ para a cidade de São Paulo: enquanto a primeira promete a alta cultura, o glamour dos velhos tempos, uma cidade civilizada e democrática, pois é „acessível a todos‟, a segunda promove novos arranha-céus, casas de show e bingos, um sky-line americanizado, com vias expressas e túneis. Diante das „duas cabeças‟, a resposta de qualquer pessoa com tino empresarial é evidente: por que escolher uma? Fiquemos com as duas! Combinação, aliás, que faz parte dos negócios em toda grande cidade no mundo” (Wisnik et al, 2001). 167
No campo político, esses fenômenos de elitização dos centros, de gentrificação, do uso dos espaços públicos com equipamentos de alta cultura, de higienização social e estratégica, só vingam devido a uma “substituição escandalosa – nos dois sentidos da palavra – do Estado Social pelo Estado Empresário Cultural, cujo sucesso crescente ainda por cima se alimentava explicitamente da corrosão programada do primeiro” (Fix, 2007: 50). Desse modo, não existe o mesmo interesse na viabilização de políticas públicas de inserção social, que considerem a demanda latente da população daquela região – como a falta de moradia –, e a conjuguem com o potencial de inclusão social existente no Centro – representado, por exemplo, pela vacância imobiliária da região central. É patente a crença na solução interventora da substituição de espaços como eliminação de conflitos. Quando as soluções adotadas são de recuperação paisagística pelo uso de intervenções culturais, percebemos uma aproximação destas políticas àquelas ligadas a programas como o Monumenta – basta pensarmos no Pelourinho, em Salvador, que, com financiamento deste Programa, conseguiu recuperar as fachadas históricas e “limpar” dos cenário histórico todo o conflito social latente daquela sociedade por um embelezamento gentrificador.80 O patrimônio histórico assume papel importante neste contexto. Ao invés de promover a politização da memória, intervenções culturais desta ordem o banalizam, ao reduzi-lo a mera mercadoria, quando muito, ou a iscas para atrair investimentos, o que é corrente. Diante de tal fato, muitos edifícios históricos que foram ocupados por famílias mais pobres desde a recuada das elites em direção aos subúrbios são forçados a mudar de caráter, priorizando os usos ligados ao comércio e serviços de apoio para o uso da elite. “Embora a delimitação de áreas históricas reflita um julgamento cultural, os efeitos da preservação histórica são mediatizados pelo mercado imobiliário. Pesquisas de sociólogos sobre gentrificação sugerem que as preservações de áreas
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A “revitalização” do Pelourinho contou com investimento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) no contexto do Programa Monumenta.
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históricas podem aumentar os aluguéis de tal forma que os habitantes de renda mais baixa são forçados a se mudarem de lá” (ZUKIN, 1995: 124 – tradução minha). Qualquer intervenção em um entorno protegido pelos órgãos do Patrimônio Histórico é tarefa complexa e polêmica. E ainda corre-se o risco de a opinião crítica destes organismos não serem muito apuradas, ocorrendo permissividade e conformismo. Mais uma vez, na cidade regida pelo urbanismo neoliberal, tudo é negociável, tudo é permitido, desde que se pague por isso. Neste caso, a cultura na cidade tem um papel simbólico e ideológico: segregar ricos de pobres e gentrificar a cidade existente. Diretrizes construídas para garantir benfeitorias para a sociedade como um todo são revisadas e transfiguradas, ou pelo menos tentam transfigurá-las, para o interesse de uma minoria, como historicamente se processam os acontecimentos neste país marcado pela desigualdade social. No projeto do arquiteto Sawaya para os Campos Elíseos, encomendado pelo Governador, e ainda passível de ser implementado, partindo do princípio que a atual gestão está no poder há mais de 20 anos, insere-se a “lógica” de trabalhar com o patrimônio através da intervenção projetual. Nas palavras de Sawaya, “respeitar o patrimônio não quer dizer ele ficar exatamente como ele é. Pra mim, o patrimônio histórico é elemento integrante de um projeto. Então eu quero que essas referências do passado existam de forma viva e orgânica naquilo que vai ser feito no futuro. Então, nesse momento, ele deixa de ser passado e já passa a ser um elemento futuro”. Entretanto, acreditamos que se o patrimônio histórico for encarado como um bem social, um registro da memória, e não apenas da memória mais antiga, mas também da memória social da evolução do uso e das relações sociais que se passaram no espaço de importância histórica, essa tendência de gentrificação seria, possivelmente, retraída. A postura “consciente” dos agentes dessas novas políticas urbanas, pautadas em intervenções culturais, é clara: promover a revitalização econômica através de políticas culturais é um bom negócio. Como descreve Mário Covas no texto de abertura da Sala São Paulo, em julho de 1999, “o Governo do Estado de São Paulo deixa claro que opções ligadas à cultura passarão 169
a substituir a velha promessa de que somente obras viárias de grande porte e custos altíssimos podem alterar a face de uma região”
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. O descaramento de tais agentes da transformação do
espaço atinge o ponto máximo nesta frase de Sawaya, em entrevista concedida ao autor: “com certeza, um projeto de requalificação como esse, muda a população. Isso é inexorável. Porque ele tende a valorizar, tende a chamar outras atividades, e o pessoal paga pra ter os lugares; e quem está lá aceita o dinheiro pra ir embora, se é que vai receber algum dinheiro. Então essa componente social do projeto não pôde ser analisada ainda. A gente sabe disso, a gente sabe que se o projeto for levado adiante vai ter que se enfrentar isso”. O processo do CONDEPHAAT de tombamento da malha viária e de diversos casarões nos Campos Elíseos permanece engavetado há 23 anos, sendo, contudo, revisado conforme as necessidades momentâneas vão se impondo. A última modificação do processo foi a retirada da malha viária da lista de bens a serem tombados no bairro, contrariando o que o próprio Conselho julgou importante por mais de 20 anos, contrariando recomendações internacionais como a Carta de Veneza, que recomenda a salvaguarda dos sítios históricos de maneira integral, sendo tão importante a obra arquitetônica para a história da cidade como o é o tecido urbano no qual esta obra se insere. A justificativa não convence: “não mais julgamos pertinente”; se pensarmos no projeto que está sendo articulado pelo Governo do Estado, de transformação do Palácio dos Campos Elíseos para voltar a ser a Sede oficial do Governo, com intervenções previstas na rede viária local com ligações metropolitanas, a retirada do elemento “traçado urbano” da lista de bens a serem preservados parece ser justificativa de explicação mais eficiente. Mas justificativas de toda sorte são atribuídas para projetos e políticas de teor privatizante. A conclusão que chegamos é que mesmo fenômenos tão singulares e tão polêmicos, como a “Cracolândia” podem ser empregados para justificar intervenções de grande escala, pois a região torna-se “horrível”, como se pronunciou o CONDEPHAAT em nossa entrevista, como se
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Citação presente na página 206 da Revista Pós nº. 9, no artigo “Notas sobre a Sala São Paulo e a Nova Fronteira Urbana da Cultura”, de Guilherme Wisnik, Mariana Fix et al.
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pronuncia grande parte da população paulistana. Na polêmica e no caos, o governo encontra o respaldo necessário para poder tocar adiante seus projetos higienistas e segregadores. E a transformação urbana parece dar mais uma vez seus indícios de retomada, de volta à cidade, mesmo que essas operações envolvam “riscos”. Estes, contudo, não são suficientemente fortes para alterar o pensamento dos promotores imobiliários. Mais uma vez, o bairro dos Campos Elíseos será transformado. O espetáculo já começou; e como diziam os cartazes da manifestação contra o projeto de lei das concessões urbanísticas, “São Paulo está a venda”. Quem vai pagar?
Imagem retirada do PDE de 2002. Em amarelo, as Operações Urbanas previstas para ocorrerem nos anos seguintes. Os Campos Elíseos ainda não fazem parte de nenhuma, mas sua indicação já estava prevista, estrategicamente prevista, desde o início deste século.
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