Funeral

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Leiria, 2009 Henrique de Jesus Teixeira de Sousa

O Funeral de Miguel Santos Quando chegámos à Fornada, já a missa de corpo presente ia a meio, o padre estava a ler, segundo ele próprio anunciou, uma passagem de um testamento antigo. Pensei cá para os meus botões: "mal se morre, começa-se logo a falar em testamentos!". Para ser franco, nem me lembro da passagem lida. Porque o certo é que a questão dos bens do defunto ainda hoje, já lá vão cinco anos, não está resolvida. Os herdeiros, os três filhos legítimos do defunto, casados e já com netos, embrulharam-se de tal forma em quezília, que agora só em Tribunal se poderá decidir a questão. Mas um dos filhos teria que mover as acções necessárias, e pagar a bons advogados, para desembrulhar o assunto. Habilitação de herdeiros, partilha e sei lá que mais. O mais rico dos herdeiros utiliza, porém, a pobreza dos irmãos como garantia de que nenhum deles terá a necessária "coragem" para empreender as acções. E ele está-se nas tintas. No entanto, o que me leva a escrever este apontamento é apenas recordar aquele funeral de há cinco anos de Miguel Santos, nascido em 1914 no Chão de Pedreira, perto da Fornada. Homem dos mil ofícios que, aos sete anos, guardava ovelhas e, com onze, foi mandado para Lisboa, para casa de um parente rico, para servir como moço de mercearia e caixeiro. E que, de tão pequeno que ainda era, tinha que subir para cima de uma caixa de madeira para atender os clientes. Foi ali, naquela mercearia, que conheceu, mais tarde, a mulher com quem se casou aos dezoito anos (casava-se cedo na altura), e de quem teve os três referidos filhos. Filhos que agora, depois de ele morrer, não se entendem uns comos outros. Pouco tempo depois de estar casado, Miguel zangou-se com o tal parente dono da mercearia, porque o "raça" do velho começou a atirar-se à mulher dele. Perdeu o emprego, como já era de esperar. Passaram um mau bocado, ele e a mulher. Tão mau que, por vezes, tinham que ir à noite, pela calada, pedir couves emprestadas em hortas alheias para com elas fazerem uma sopa e enganar a fome. Felizmente, um fornecedor da mercearia do tio, que conhecera o Miguel como excelente empregado da mesma (ainda por cima honesto e orgulhoso), perguntou por ele e mandou chamá-lo para lhe oferecer trabalho como vendedor à comissão. Era tempo de guerra e havia muitas oportunidades para "negócios".


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Funeral by Henrique Sousa - Issuu