O Pequeno Macedônio

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Henrique Komatsu texto Fabio Quill arte e capa Mayara Dempsey revisão Anderson Barboza diagramação



Eu nunca acreditei em anjos.

Eu acreditava em gente e acreditava em pássaros. Separados. Mas sempre desconfiei daquelas asas, cheias de penas, coladas nas costas de homens talhados nas pedras, guardados nos cantos das igrejas.



Aquelas criaturas com asas pareciam sempre paradas demais, sem ter muito para onde ir, mais presas do que livres. Eu achava que aquilo não deveria ser coisa boa. Nem para as asas coladas no homem, nem para o homem colado nas asas. Os anjos, para mim, eram invenções de Deus que não faziam muito sentido e que foram ficando de lado, abandonados por trás das colunas das igrejas.



Era como se alguém, num dia, numa garagem, tivesse tentado colocar duas rodas de bicicleta numa prancha de surfe. Depois de pronta a cirurgia, viu que a prancha deixou de servir para as ondas e as rodas deixaram de servir para a rua. E a prancha com rodas ficou num canto, atrás de alguma coluna, como ficam os anjos nas igrejas. E sempre que alguém passa, se pergunta: “Será que se pedala? Ou será que flutua?”.


Na minha cabeça, os anjos eram uma geringonça: um pássaro que não canta colado num homem sem os pés no chão, não faziam muito sentido. Até que um dia eu conheci um anjo de verdade e descobri porque eles são essa confusão entre gente e pássaro.


Isso foi quando eu era pequeno. Na minha escola, um dia, chegou um menino da Macedônia. Eu não sabia que esse lugar existia… Macedônia, e nem sabia onde ficava. O nome dele era Sasko e ele falava uma língua estranha que ninguém na escola entendia. Nós não éramos amigos. Aliás, amigo, amigo, o Pequeno Macedônio não tinha nenhum.


Toda vez que o sinal tocava ele saía correndo para o parquinho e sentava-se no último balanço. Ali o menino da Macedônia ficava durante todo o recreio, sozinho, falando palavras que pareciam inventadas. Tinha pernas curtas, que mal tocavam o chão. E ele falava sentado, balançando suas pernas. Em frente ao balanço do Pequeno Macedônio ficava o escorregador amarelo. Um dia, na rampa do escorregador, pousou um pardal e o Pequeno Macedônio meteu-se a conversar com o passarinho.




- “Como se chama, passarinho? Meu nome é Sasko e eu venho da Macedônia. E você, de onde vem?”. O pardal, que não falava macedônio, nem português, nem espanhol, nem francês, nem qualquer outra língua, não respondeu. Inclinou a cabeça para um lado, depois para o outro e ficou ali, olhando para um lugar qualquer do céu, esperando que o vento mudasse de direção. Sasko continuou no balanço mastigando aquelas palavras que só ele sabia o significado… e o sabor.


Alguém tinha inventado aquelas palavras para Sasko decorar? Ou será que Sasko é quem inventava elas na hora?


- “Eu queria poder voar como você, passarinho, eu voaria até a Macedônia, mas tenho que ficar aqui. Eu só consigo me balançar um pouquinho, porque meus pés não alcançam bem o chão”. Sasko olhou para o lado e viu que as outras crianças balançavam-se bem alto porque uma empurrava a outra. Elas gritavam “Mais alto! Mais alto!”. Só que Sasko não entendia aquelas palavras repetidas. Parecia divertido, só que o Pequeno Macedônio brincava sozinho e as pontas dos seus pés só triscavam a areia. - “Você pode me ensinar a voar, passarinho? Você empurraria meu balanço se fosse um menino igual a mim né?”.


Só que o pardal não respondia. Virava o pescoço e prestava atenção no vento. Porque o passarinho não entendia macedônio, mas entendia o vento. Foi quando um outro menino foi se achegando perto de Sasko e perguntou: “Quer que eu te empurre?”. Sasko, que só falava macedônio, não compreendeu uma só palavra. Até encolheu-se um pouco porque não sabia o que o menino tinha dito. As palavras podem ter vários significados, bons e ruins, nem sempre é fácil saber a diferença.


Então o menino empurrou um pouquinho o balanço e o Pequeno Macedônio sorriu. O sorriso é uma linguagem que todo mundo entende. O novo amigo continuou empurrando e Sasko disse: “Veja só passarinho, eu também estou voando!”. O menino que empurrava o balanço não entendia uma só palavra do que Sasko dizia.



A brincadeira parecia divertida, só que esse garoto não era um bom amigo, era um menino que tinha um espinho de crueldade espetado no coração. Mas ninguém consegue ver o que espeta o coração dos outros. É parecido quando alguém anda mais devagar porque tem uma pedra dentro do sapato. A gente vê a pessoa andando diferente, mas não enxerga a pedra machucando o pé. Entre um empurrão e outro, o menino decidiu fazer medo ao Pequeno Macedônio e começou a lançar Sasko cada vez mais rápido e mais alto.


No começo, Sasko gostou da brincadeira, e disse: “Olhe passarinho, eu também tenho asas!”. Mas logo ficou assustado, porque o outro garoto dava mais e mais impulso e o balanço ia alto demais e rápido demais.


As mãos do Pequeno Macedônio, que seguravam as correntes do balanço, começaram a suar e a cada empurrão elas deslizavam um pouco mais pelos elos de metal. Quando o balanço passava voando perto do chão, Sasko quase sentia os grãos de areia se levantarem e um vazio parecia encher sua barriga. Dava medo ter asas.


O menino que empurrava o balanço começou a se perguntar quando Sasko gritaria, e o quanto ele gritaria e como ele gritaria... de medo. Sasko estava com medo, e o medo era tanto que não conseguia respirar. Sentia que seu corpo às vezes se desprendia do balanço. Tentou esticar um pouquinho as pernas para encostar no chão, mas o menor movimento de qualquer músculo fazia parecer que seu corpo ia cair.


As correntes rangiam muito e o outro menino continuava empurrando. Cada vez que as mãos do garoto tocavam o balanço, Sasko sentia que ia perder o equilíbrio, e as correntes balançavam e suas mãos apertavam os elos de ferro. O Pequeno Macedônio queria gritar, mas o grito estava engasgado na garganta.



Ele estava petrificado, em pânico, com pavor de cair, e de se soltar, do chão, do alto, e do ar que passava veloz pelas suas pernas e pelos seus braços.... Pelo seu corpo brotavam calafrios e o outro menino ficava mais curioso para saber o que sua maldade poderia causar ao Pequeno Macedônio. De repente, Sasko conseguiu gritar na sua língua. “Para! Para!”. Sasko tinha já os olhos cheios de lágrimas. O outro menino não entendia macedônio, é verdade, mas conseguia ouvir o medo na voz de Sasko, e empurrou mais forte – pois o espinho da crueldade espetavalhe o coração. Estava contente em ouvir o grito de Sasko. Então esse menino começou a se perguntar quando Sasko iria chorar e empurrou mais uma vez o balanço.


Uma lágrima escorrida do rosto de Sasko, saiu voando, porque o balanço estava rápido demais e o vento que o pardal esperava tinha começado a soprar, jogando a lágrima de Sasko pelo ar. Era um sopro que vinha de longe e que o passarinho sabia que uma hora chegaria. O pardal virou a cabeça mais uma vez e, sentindo o ar mudar de direção, deu um passinho para o lado. Sasko não podia ver nem ouvir, de tanto medo, mas sentia que um sorriso de maldade crescia no rosto do menino que o empurrava. Era um sorriso grande e largo


que ia tomando conta do rosto do menino a cada empurrão. Até que ele se transformou só nesse sorriso maldoso e nas duas mãos que empurravam o balanço.


O menino com espinho no coração não percebeu o choro de Sasko e ainda por cima achou que o balanço estava muito devagar e muito baixo. E deu mais um empurrão, mas desta vez o vento que o pardal esperava soprou forte e também embalou o balanço, e Sasko foi tão alto e tão rápido que as correntes que seguravam o balanço arrebentaram.


O balanço foi arremessado para longe e se espatifou contra o escorregador amarelo do parquinho, aquele onde havia pousado o passarinho. O barulho foi ensurdecedor. As correntes chacoalharam pelo ar durante muito tempo, como chicotes de ferro, estalando contra o metal do escorregador e enrolando-se nos degraus da escada e da rampa, porque o vento agora corria mais forte do que nunca.


O vento era agora uma ventania tão grande, jogando areia nos olhos das pessoas, desarrumando os cabelos, batendo portas e janelas, que fez todas as crianças saírem correndo do parquinho. O menino com espinho no coração, começou a procurar Sasko. Ele estava curioso: queria saber onde o Pequeno Macedônio tinha caído, queria ver se Sasko estava machucado, ou se estava, enfim, chorando.


Estava mais curioso que o vento, que fuçava tudo, levantava as folhas e chacoalhava as árvores. Olhou em volta, mas não encontrou o Pequeno Macedônio. Andou ao redor do balanço, perto do gira-gira e nada. Enquanto procurava o menino pensava: “O que será que vai acontecer depois que Sasko chorar?”.



Procurou mais um pouco até que, debaixo do escorregador amarelo, ele viu alguma coisa. A areia levantava com a ventania e era difícil enxergar. Chegando mais perto, ele viu um passarinho morto. Era o pardal, com o bico aberto, os olhos fechados, e as patas e as asas caídas no chão. Olhando bem para o pardal o menino achou que o passarinho parecia… parecia Sasko. Oh, o pardal era Sasko! Do lado do passarinho, na areia, o menino viu as gotas de lágrimas do Pequeno Macedônio.


E quando ele viu as lágrimas, a curiosidade acabou. “Ele chorou. Sasko chorou”. O menino olhava o passarinho e as lágrimas, o passarinho e as lágrimas, e não conseguia entender como Sasko poderia ser mesmo o passarinho morto. “Sasko era um menino, não um passarinho” - pensou. Mas para onde teria ido Sasko quando o balanço quebrou? O Pequeno Macedônio voou?


E olhando novamente o pardal morto, ele parecia tanto com Sasko. Tudo estava confuso na sua cabeça. Quem estava morto ali, debaixo do escorregador? Um passarinho? Ou um menino? De quem eram aquelas lágrimas? Do pardal? De Sasko? Queria que alguém estivesse vendo o que ele via debaixo do escorregador amarelo.


Olhou em volta e já não havia ninguém no parquinho. Enquanto isso, o vento secava as gotinhas de lágrimas e cobria com areia o passarinho. O que aconteceu depois que Sasko chorou? Depois que Sasko chorou, nada aconteceu. Não teve mais Sasko, nem teve mais balanço.


Nos dias seguintes, as palavras no parquinho voltaram a ser as mesmas, todas iguais, ditas pelas mesmas pessoas, mais ou menos no mesmo horário. Não havia mais palavras inventadas, mastigadas, com sons estranhos, nem palavras novas. Não existia mais o Pequeno Macedônio sem amigos. Não existia mais a chance de fazer um amigo novo.


Então o menino com espinho no coração chorou. O porquê? Ninguém sabe. Mas o espinho que estava no coração do menino perdeu sua força, e secou e caiu. E o sorriso de crueldade que ocupava a sua cara toda diminuiu, e agora era possível até ver o seu rosto. Não era um rosto cruel. Era um rosto triste.



Sasko não era um menino, nem era passarinho. Era essa mistura entre uma criatura de penas e pernas, que queria asas, mas que não sabia voar, que vivia grande como uma criança, mas morria pequeno como um passarinho.




Henrique Komatsu nasceu em Pereira Barreto, no Estado de São Paulo, uma cidadezinha cercada pelo Rio Tietê. Estudou filosofia na Universidade Federal do Paraná, trabalhou como cozinheiro num navio de cruzeiros, descascando batatas e fazendo peixes para os turistas comerem; foi atendente de telemarketing, ficava sentado na frente de um computador ouvindo no telefone os problemas das pessoas e tentando achar alguma solução; foi também professor de inglês no Rio de Janeiro, explicava para as crianças cariocas essa outra língua tão diferente do Português que diz que “livro” é “book”. Escreveu os livros infantis “A Menina que Viu Deus” (Confraria do Vento) e “Gangorra”. “O Pequeno Macedônio” é o seu terceiro livro infantil.

Fabio Quill nasceu em São Paulo, no extremo leste da cidade da garoa, foi lá, no bairro de São Mateus que viveu olhando para o céu com nuvens brancas e pipas que disputavam sua atenção e imaginação. É autor de hqs e contos, artista visual, muralista, e arte educador. Entre suas publicações estão: “Janela da Alma”, “Onírica” e “Amálgama”, o autor prepara seu novo livro “A Casa Baís”. Participou de eventos como Arte da Palavra (Sesc Nacional), Comvida (Sesc Nacional), CCXP, Feira Miolos, Banca de Quadrinistas - Itaú Cultural, Feira Ugra Zine Fest, Feira Tinta Fresca e foi selecionado pelo edital Rumos do Itaú Cultural. Ministrou oficinas de desenho, pintura, graffiti e histórias em quadrinhos no Instituto de Arquitetos do Brasil, PROler, Rede Sesc, Centro Cultural José Octávio Guizzo, MIS, Festival de Inverno de BonitoMS, Biblioteca Monteiro Lobato, etc. Em 2020 foi indicado ao prêmio HQMix.


“Na minha escola, um dia, chegou um menino da Macedônia. Eu não sabia que esse lugar existia… Macedônia, e nem sabia onde ficava. O nome dele era Sasko e ele falava uma língua estranha que ninguém na escola entendia.”


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