You primeiro capítulo

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Tradução Henrique Guerra

são paulo, 2017

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You Copyright © 2013 by Austin Grossman This edition published by arrangement with Little, Brown and Company, New York, New York, USA. All rights reserved Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial Vitor Donofrio

gerente de aquisições Renata de Mello do Vale

editorial Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda tradução Henrique Guerra

revisão Daniela Georgetto

preparação de texto João Paulo Putini

capa Vitor Donofrio

p. gráfico/diagramação Vitor Donofrio Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Grossman, Austin You Austin Grossman; [tradução Henrique Guerra]. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017. Título original: You 1. Ficção norte­‑americana 2. Videogames – Ficção I. Título II. Guerra, Henrique 17­‑0074

cdd­‑813.6

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção norte­‑americana 813.6

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Para todos os que produzem jogos digitais.

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Pois alguém até pode fingir esses gestos, Mas algo em meu âmago excede as aparências. – William Shakespeare Hamlet

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ESPADA NUMA DAS MÃOS, PISTOLA BLASTER NA OUTRA! REINOS DOURADOS é o máximo em entretenimento interativo computa‑ dorizado, trazido a você por seus amigos da BLACK ARTS STUDIOS! ACOMPANHE as aventuras de QUATRO HERÓIS ETERNOS através de MUNDOS INFINITOS na maior experiência INTERATIVA já elaborada. Na FANTÁSTICA ENDÓRIA, VIVA a luta para reconstruir o mundo após a GUERRA ESTILHAÇANTE, enquanto a TERCEIRA ERA do mundo chega ao fim. Na GUERRA FRIA DO SÉCULO XX, enfrente o intelecto da espiã CAROL no emocionante mundo de CLANDESTÍNIA. No FUTURO DISTANTE, forje o destino da raça humana numa GUERRA pela GALÁXIA nos IMPÉRIOS SOLARES. • Efeitos gráficos de tirar o fôlego, em Tempo Real e Três Dimensões. • Escolha um dos quatro personagens: Guerreiro, Mago, Ladrão ou Princesa. • Inovadora tecnologia de simulação cria um mundo real como nunca antes. • VOCÊ define a história! VOCÊ escolhe seu próprio Destino!

DOMINE OS REINOS DOURADOS! Anúncio da Black Arts Studios Revista Gamelords, maio de 1992

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pARTE 1 O JOGO SUPREMO You_MIOLO_revisado.indd 13

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*1 – Mas então qual é o seu jogo supremo? Ele fez a pergunta soar completamente normal, e acho que nesse contexto era mesmo. Minha longa tarde de entrevistas culminou com esses dois excên‑ tricos. Um cara alto, jovial, com rosto anguloso e cabelos grisalhos puxados para trás em um rabo de cavalo, que pronunciava tudo com muita exatidão, como se estivesse falando para um sensível programa de reconhecimento de voz. O outro não tinha mais de 1,55 m, com cabelos negros compridos e ondulados que lembravam os de Jesus e uma camiseta preta desbotada em que se lia Cthulhu para Presidente: DOS MALES, O MENOR. Referia­‑se à eleição de 1988. – Certo – engoli em seco. – Pode definir isso melhor? Nenhuma das questões era o que eu esperava. A maioria delas consistia em exercícios de pensamento esotérico, do tipo “Como você transformaria Or­ gulho e preconceito em videogame?” e “Se você adicionasse um botão no Pac­ ‑Man, qual seria a função desse botão?”. Ou charadas como “Quando o Mario pula, por que ele consegue dar meia­‑volta em pleno ar?”. E agora, esta. – Sabe, o jogo que você faria se pudesse fazer qualquer jogo – explicou o designer de cabelos compridos. – Esqueça o orçamento – acrescentou o baixinho. – Você está no coman‑ do. Simplesmente faça qualquer coisa! O melhor jogo de todos os tempos! Abri minha boca para responder e então parei. Estava na cara que não passava de conversa para boi dormir, um jeito de acabar a tarde com um toque divertido. E então foi esquisito ter me dado um branco exatamente na pergunta que eu deveria saber a resposta, já que eu estava sendo entrevistado para um emprego de designer de videogames. u Eu passara as últimas horas num estado de suave choque de cultura. Eu havia chegado com 40 minutos de antecedência ao endereço que a assistente administrativa me passou pelo telefone, um anônimo complexo empresarial no 15

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limite extremo da Linha Vermelha, depois das praças Harvard e Porter, onde a cidade de Cambridge se diluía inteiramente, transformando­‑se em terrenos baldios e restaurantes no lado errado da via expressa Alewife, e depois em pân‑ tanos, águas salobras e espécies protegidas como cálamos e aguapés. Além dos pântanos ficavam as colinas arborizadas e os subúrbios de Arlington, Belmont e Newton, onde cresci. A Alewife foi construída para ser o ponto de intercâmbio entre Cambridge e os verdadeiros subúrbios. Também abrigava imensos espaços empresariais procurados por firmas de alta tecnologia com raízes na pesquisa acadêmica e financiadas pelo Ministério da Defesa, escolas de formação em TI, gabinetes de recursos humanos, imobiliárias e ad‑ vogados tributários. Voltar ali me dava a impressão de ter vencido na cidade grande e agora estar à beira de me enfurnar novamente no meio do nada. Era ali que a Black Arts Studios havia se estabelecido. Este prédio em particular aparentava ter sido projetado no início dos anos oitenta, enquanto o Ministério da Defesa ainda financiava empresas de pesqui‑ sa básica. As pesadas portas de vidro conduziam a um saguão de três andares e a um pátio com fonte, azulejos mediterrâneos em tom pastel e incongruentes folhagens latifoliadas falsamente tropicais. Um cheiro de umidade de estufa impregnava o ar, mesmo na estranhamente gelada primavera de 1997; pelas claraboias foscas penetrava uma perpétua meia­‑luz. Cerca de metade das salas comerciais parecia vazia. A Black Arts ficava no terceiro andar. Não havia placa nem número na porta, por isso perambulei para lá e para cá na sacada até avistar uma folha de papel com Black Arts escrito em canetinha preta fixada na parte interna de uma janela de vidro reforçado com tela de galinheiro. Não havia campainha. Pelo quadrado de vidro, vislumbrei uma recepção vazia e, atrás dela, uma porta aberta que conduzia a uma sala mal iluminada. Eu não me sentia lá muito confortável numa entrevista de emprego, e o que piorava as coisas era o fato de eu já conhecer esse pessoal – muito bem, na verdade. A gente se conhecia do ensino médio, há 14 anos. Agora eu estava pe‑ dindo emprego para eles, na empresa que os dois começaram. Darren e Simon eram os cofundadores. Até onde as pessoas se lembravam, os dois sempre foram amigos. Eu recordava de Simon como pequeno e moreno, o rosto redondo, a pele olivácea que parecia nunca ver a luz do sol. Ele usava camisetas e calças xadrez e nunca parecia ter se adaptado ao corpo adulto – aos 15 anos, aparen‑ tava 12. Ele era considerado inteligente, mas, por algum motivo, nunca cursou nenhum seminário avançado. Patético, mas tão desastrado a ponto de quase se tornar ameaçador. Corria o boato de que ele fazia bombas caseiras e que uma 16

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vez ele tinha hackeado as notas de um garoto no computador da escola. Os outros caçoavam dele, mas pelas costas. Darren era mais alto, com cara de cavalo e razoavelmente atlético. Até chegou a participar da equipe de atletismo durante um ano, mas ao entrar no ensino médio deixou o cabelo crescer, abandonou o atletismo e os cursos avan‑ çados, descolou uma velha jaqueta de exército e a usava o tempo todo. Eles faziam uma dupla carimbada, o baixinho e o altão, dois sabores di‑ ferentes de perdedor. Todos os dias, a gente os via indo para casa a pé, Simon gesticulando com as mãos no ar. Sobre o que eles conversavam? Histórias em quadrinhos, filmes, piadas internas cultivadas desde a quarta série? Outra ami‑ zade adolescente, outro minúsculo e misterioso universo. Eu os conheci numa turma de introdução à programação e, seis anos mais tarde, eles eram lendas, os dois garotos entediados que fundaram uma empresa de jogos digitais e enriqueceram. Mas até mesmo a grana não era tão fascinante quanto a ideia de que eles haviam transformado os videogames em um trabalho rentável, isso antes mesmo de qualquer pessoa adivinhar que os jogos iam se tornar uma indústria, uma mídia de entretenimento tão importante quanto os filmes – até mais importante, a levar em conta algumas pessoas. Em essência, Simon e Darren ganhavam dinheiro por serem… incríveis. Don e Lisa foram com eles, também – ficaram ricos, perseveraram, ven‑ ceram. Nesse meio­‑tempo, eu me graduei em Inglês, cursei um ano de Direi‑ to, estagiei num malfadado jornal em Dallas e aluguei quartos em Queens, Cambridge, Somerville, São Francisco (um recomeço!), Austin, Madison e, em breve, em lugar nenhum. Simon nunca se formou na faculdade. Morreu há quatro anos, num aci‑ dente ridículo que resultou na colocação de câmeras de segurança dentro de todos os poços de elevadores de todos os edifícios naquele campus em particu‑ lar. Ele nem era aluno lá. As pessoas já começavam a falar dele como um gênio em pé de igualdade com Bill Gates e Steve Jobs, e sobre o que ele poderia ter realizado, não fosse a morte precoce. O software que ele deixou para trás ainda era o suprassumo sob certos prismas, embora ele o tivesse escrito lá nos anos 80, antes de existirem videogames 3­‑D, antes dos drives de CD e antes dos efeitos gráficos fotorrealis‑ tas. Era chamado de motor WAFFLE, mágica fusão de robusta simulação de universo com geração procedimental de conteúdo, o fator crítico que impul‑ sionou a Black Arts, primeiro ao sucesso, depois à lucratividade, e, por fim, a um fenômeno incontrolável. Continuava ainda a ser a base de todos os jogos produzidos por eles; nisso havia um fator x de estranheza e genialidade; o motor nunca havia sido superado nem mesmo duplicado. Antes de Simon morrer, ele 17

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estava trabalhando num projeto que seria, em suas palavras, a próxima geração da tecnologia. Ele usou a palavra suprema mais de uma vez – na verdade, bem ali no título da sua proposta (cujo objetivo era finalmente obter o BA no MIT; eles até lhe haviam oferecido a oportunidade, mas ele nunca a aproveitou): “O jogo supremo: um robusto esquema para narrativas de geração procedimental”. Houve uma conferência de imprensa, mas nenhuma cópia da proposta jamais foi encontrada. A ideia – o derradeiro teorema de Fermat da tecnologia de vi‑ deogames – persistia na Black Arts. É melhor que se diga: as pessoas ficaram com a impressão de que Simon havia se suicidado, ou senão havia morrido como parte de um jogo. Foi esse o modo que a maioria dos jornais relatou o ocorrido. “Campus abalado com mor­ te de gamer”, como se essa expressão existisse. Não faltaram professorezinhos de psicologia tecendo comentários do tipo: “Não é raro que esses autodenomi‑ nados ‘gamers’ percam a capacidade de distinguir entre o que é um jogo (…) e o que é realidade”. Em primeiro lugar, esse ponto de vista é escancaradamente estúpido. As pessoas que jogam videogames não morrem nem enlouquecem com mais frequência do que as outras. Só que o pessoal chama atenção para quando isso acontece. Em segundo lugar, Simon era um sujeito com vocação, um dos raros sujeitos que já conheci a quem esse rótulo se encaixa perfeitamente. Ele não estava fora da realidade, ele simplesmente era contrário a ela. Em terceiro lugar, a realidade que se exploda. Se Simon não gostava do mundo em que cresceu, ele conta com meu apoio irrestrito. Fui ao funeral dele, jun‑ to com seus muitos amigos. Eles não eram nenhum tipo de minoria fanática de gamers; por incrível que pareça, um cara de saiote escocês que se intitula “Griffin” pode estar honesta e normativamente chateado porque seu amigo morreu num acidente ridículo. Quando soube da morte de Simon, tentei encontrar um sentimento apro‑ priado. O que eu realmente sentia não era lisonjeiro. Nossa amizade ficou para trás, lá no início dos anos 80. Eu ainda era jovem o suficiente para encarar a morte de alguém conhecido como novidade. Como se fosse mais um aspecto da excentricidade de Simon, ou de sua genialidade. Mais um lugar que Simon alcançava antes de todos nós. Fiquei chateado por termos perdido contato, cha‑ teado porque juntos juramos fazer o impossível, e essa foi a única vez que fiz um juramento na vida, mas eu não o cumprira, e Simon – bem, esse é o ponto. Eu estava ali, em parte, porque queria saber exatamente o que tinha aconteci‑ do. Até onde Simon tinha ido. u 18

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Entrei. Senti cheiro de tinta fresca; escutei uma risada. – Olá? – chamei na escuridão. Um adolescente de camiseta preta espiou para fora. Ele tinha uma com‑ pleição de casa de espelhos – minha altura, mas o dobro de minha largura, uma criança gorda com os braços e o peito de um zagueiro central. – Opa, e aí? Você é o Russell? – Sim, sou eu – respondi, aliviado. – Sou o Matt. Só um minutinho. – Ele se virou e gritou ao fundo do cor‑ redor. – Ele está aqui! Com um aceno, convidou­‑me para entrar numa sala que se revelou ter quase metade do terceiro andar do edifício. Era uma caverna sombria, mantida na penumbra por venezianas. Pelo que notei, a maior parte era espaço aberto. Latas de refrigerante e sacos de pipoca de tamanho industrial acumulavam­‑se nos cantos, junto com uma bola de ioga, pilhas de manuais com ilustrações coloridas, e o que aparentava ser uma arma medieval (uma besta) em plenas condições de uso. Parecia o rescaldo de uma festa de fim de semana promo‑ vida por um grupinho de meninos de dez anos implausivelmente ricos. Na verdade, aninhado embaixo de uma mesa, um homem ressonava num saco de dormir azul bufante. Sentada contra a parede, uma jovem de vestido tingido e sandálias que digitava num laptop me ignorou solenemente, o cabelo loiro em tranças elaboradas. Enquanto eu esperava Matt voltar, corri os olhos pela parede repleta de capas de revistas e prêmios de “Jogo do Ano”. Eu me aproximei de um dos computadores. À primeira vista, pensei se tratar de um filme de animação sobre batalhas espaciais, mas quando toquei no mouse, a câmera abriu uma pano‑ râmica no cenário, e notei que era um jogo digital em funcionamento, um ambiente completamente imaginado navegável nas três dimensões. Há alguns anos eu não prestava muita atenção aos videogames, desde que eu havia con‑ cluído a faculdade. Será que eles tinham se transformado em algo totalmente diferente enquanto eu não estava olhando? Nasci em 1969, época perfeita para tudo relacionado a videogames. Ou seja, eu tinha oito anos quando o console do Atari 2600 foi lançado; 11 quando surgiu Pac­‑Man; e 17, A lenda de Zelda. Os computadores pessoais estavam sen‑ do introduzidos bem na época em que nossos cérebros fermentavam naquele primeiro salto de desenvolvimento cognitivo, bem a tempo de nos marcar para sempre. Em 1978, os alunos começaram a ser chamados para fora da sala de aula no meio da manhã. Uma mulher do gabinete da direção (cujo nome nun‑ ca decorei) silenciosamente acenava para que saíssemos, de dois em dois, em ordem alfabética, e nos trazia de volta 15 minutos mais tarde. Quando chegou 19

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a nossa vez, fui junto com um garoto chamado Shane. Eu estava um pouco trêmulo, em razão da excepcionalidade do momento, da interrupção da rotina. Fomos conduzidos ao fundo do corredor e convidados a sentar num canto da sala da secretária, diante de um aparelho quadradão que no final das contas não passava de um computador. Era novo, um computador Commodore PET. A carcaça do PET era uma só, com monitor e teclado e uma unidade de fita cassete embutida formando uma pirâmide gnômica e arredondada. Era algo alienígena, caríssimo e incrivelmente futurista numa sala que cheirava a mimeógrafo usado para imprimir folhetos em cor única, um roxo pálido – má‑ quina operada a manivela, exatamente da mesma maneira desde que foi criada, na década de 1890. A senhora nos fez sentar e calmamente se afastou. Shane e eu nos entreo‑ lhamos. Não sei o que ele sentiu, mas no meu íntimo tive uma sensação de reconhecimento. Eles não sabiam o que era a máquina. Eles a haviam recebido de presente, mas não sabiam como usá­‑la. Não fazia muita coisa. Não entendia palavrões nem inglês regular. Jogava um par de jogos, Snake e Lunar Lander. 15 minutos depois, ela nos levou de volta à sala de aula e trouxe as próximas duas crianças, que também iriam digitar palavrões nele. Mas foi provavelmente o gesto mais generoso e humilde que eu recebi de um adulto em todos os meus 16 anos de estudos. A mulher estava simplesmente nos deixando a sós com nosso futuro, o futuro do qual ela não participaria. Ela não sabia como fazê­‑lo nem o que era, mas estava tentando entregá­‑lo a nós. Enquanto crescíamos, a mídia cresceu. Os jogos de fliperama explodiram no final dos anos setenta e ao longo dos oitenta, originando os próprios estabe‑ lecimentos de fliperamas, construídos em sofisticadas lojas de departamentos e nichos com vitrine, arrecadando moedas de 25 centavos, montes de fichas aquecidas com calor corporal adolescente. Esses eram os primos mais legais e mais burros do quieto e trabalhador PET. Os videogames tinham o molejo das ruas e o charmoso espalhafato das máquinas de pinball refratados através da aparentemente inerradicável nerdice da alta tecnologia digital. Eu era mais velho quando comecei a frequentar fliperamas – aos 11, talvez. Eu relaxava na escuridão tépida e estrondosa do fliperama, a parede sonora, o ar cálido, o cheiro de suor, em meio a meninos adolescentes e componentes eletrônicos. A escuridão só rompida por faixas de néon, bolas de discoteca es‑ pelhadas e a iluminada cabine das fichas. Olhando em volta, o fliperama era como assistir a 30 desenhos animados da Warner Bros. ao mesmo tempo, repro‑ duzidos com ultrabrilho e no fast­‑forward. Com a tecnologia da época, os personagens eram desenhados em grades de 8­‑por­‑12 pixels, escala estranhamente potente e primitiva. Cães, carteiros e 20

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robôs se tornavam luminosos pictóglifos pairando no escuro. A sensação super‑ ficial e rabiscada das histórias parecia ter aberto um filão de vívidos devaneios na mente dos programadores e engenheiros dessa primeira onda. As mesmas limitações arremessavam os jogos em espaços bizarros, sem perspectiva. Jogos como Berzerk e Wizard of Wor aconteciam na mágica perspectiva espacial do artista gráfico Maurits Escher, com sobreposição das vistas superior e laterais. E a lógica onírica dos enredos! Mundos onde tocar qualquer coisa resul‑ tava em morte instantânea; onde cogumelos são amigos e tartarugas, inimigas. Em cada mundo desses, eu sentia a presença de uma lógica profunda pulsando logo ali fora da tela, cada qual uma pintura brilhante, contando uma história não­‑muito­‑bem­‑explicada: por que sou um encanador disputando uma prince‑ sa com um gorila? Por que estou ali, um triângulo solitário, lutando contra um pelotão de quadrados? Quem decidiu isso? E os adultos odiavam estar lá. Sentiam dor de cabeça e ficavam com cara de bobo, quando todos nós sabíamos como jogar e o que fazer porque crescía‑ mos junto com uma tecnologia cujas regras arraigadas faziam sentido para nós. No torvelinho primordial de crianças e adolescentes, hormônios e tecnologia se mesclavam para formar uma nova ideia cultural. Numa época, depois da escola, eu passava até três horas por dia no fliperama, vagamente ciente de que éramos as primeiras pessoas, em todos os tempos, a fazer essas coisas. Sentíamos algo que eles nunca tiveram – um vínculo físico com o mundo fictício – desde os músculos do braço, passando pelo joystick e culminando com o ser minúscu‑ lo na tela, um ser num mundo imaginário. Era tosco, mas real. Tínhamos for‑ mado um posto avançado no mundo hostil e inacessível da imaginação, como quem balança numa batisfera na esmagadora escuridão do oceano profundo, um reino até então inacessível para a humanidade. É isso que os jogos tinham se tornado. Os computadores tiveram sua origem na criptografia militar – em certo sentido, cada jogo de computador representa o recrutamento de um apa‑ relho de quebra de código militar para fins da expressão humana. Tínhamos feito isso, tomado essa ideia e a transformado numa coisa que seus criadores nunca imaginaram: nossa própria e incandescente mitologia. Num verão durante o ensino médio enfim ganhei um Apple IIe, uma cunha bege de plástico com CPU e teclado integrados, junto com o seu ex‑ clusivo monitor monocromático de nove polegadas. Descobri a emoção de‑ linquente de usar programas como Locksmith para duplicar jogos protegidos contra cópia em disquetes de 5,25 polegadas e de transformar o disco em face dupla com o estratagema de recortar uma meia­‑lua do disco com um alicate perfurador. 21

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A ideia de simular um mundo alternativo havia dominado milhares de mentes antes promissoras. Foi o programa Apollo de nossa geração, ou talvez o projeto Manhattan fosse uma analogia melhor. Porque todo mundo queria realizá­‑lo, e a cada ano ficava melhor e mais rápido. Eu podia senti­‑la, a opor‑ tunidade, a sorte geracional de ter nascido junto com uma nova forma artística, como Orson Welles nasceu na hora certa para fazer Cidadão Kane e definir a grandeza de uma mídia. A oportunidade de dominar a revolução artística de nosso tempo, como Jane Austen dominou a do tempo dela e D. W. Griffith, a do tempo dele. Quando eu rodava um jogo, a tela inicial dava o nome do hacker que o havia crackeado, nomes como Mr. Xerox, Time Lord, Mr. Krac­‑Man. Quem eram essas pessoas que crackeavam jogos? Quem os fazia, por sinal? Como cargas d’água alguém conseguia esse emprego? u Era a hora de descobrir. A hora de dizer alguma coisa. Agora eu tinha uma plateia de quatro ou cinco pessoas. O pessoal ficou entrando e saindo da sala de reuniões o dia inteiro, para ouvir ou fazer algumas perguntas. Só homens; bem, isso até Lisa, a terceira fundadora da Black Arts, entrar. Ela parecia, pelo que eu me lembro… pálida, com uma testa ampla que a deixava parecida com um alienígena de desenho animado. Ela dispensara os vestidinhos floridos em troca de uma camiseta preta de grandes dimensões, que mais parecia uma barraca. Eu me lembrava dela do ensino médio, das caronas para casa às 2h ou 3h da madrugada. No inverno, ela dirigia com o vidro da porta abaixado e o aqueci‑ mento a todo vapor. – O jogo supremo – repeti. – Eu poderia fazer mesmo… qualquer coisa? Assentiram com acenos de cabeça. Senti­‑me ridículo. O jogo supremo se‑ ria aquele em que eu cavalgava um rinoceronte cor­‑de­‑rosa de 30 metros de altura pelas ruas, perseguindo meus inimigos? Aquele onde as peças de xadrez ganham vida e conversam numa estranha poesia? Ou apenas o jogo que eu sempre ganho? – Relaxa, cara – disse o baixinho. – É só o que você curte. O seu jogo. Era difícil dizer o que havia de tão particularmente bizarro naqueles dois. Talvez fosse o fato de que, embora tudo em relação a eles gritasse “perdedor”, eles pareciam nem ligar. Na verdade, consideravam­‑se reis trajando camisetas. – Se é assim… ok, ok. Você está jogando xadrez, tá certo, mas todas as peças são monstros reais e quando você pega uma você tem de… realmente lutar… contra elas? 22

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Por que estavam olhando para mim daquele jeito? – Quer dizer que nem em Archon? Para o C64? – Humm. Certo. Lisa franziu a testa um pouco mais. Lá no fundo, um cara barbudo revirou os olhos, como se não acreditasse que eu fosse um perdedor tão consumado; ele usava um chapéu de bobo da corte. A tarde culminou nisso. u Eu quis dizer, mas não pude: o que eu realmente queria dizer era a sen‑ sação de sair do carro naquela fria manhã de setembro, no primeiro dia em Dartmouth, o primeiro dia em que tive a chance de me tornar uma nova pessoa e entrar nos eixos depois do inferno do ensino médio. Ah, como eu queria de volta aquele momento. Simon e Darren preferiram ser, bem, incríveis, e eu não; eu tinha sido um bom soldadinho e tentado ser adulto, e até hoje havia me esquecido daquela mulher e do computador PET e da sensação de me oferecerem o futuro. u Antes de ir embora, tive de falar com Don, o quarto fundador da empresa e atual diretor executivo. Ao contrário dos outros funcionários, ele tinha um escritório verdadeiro, uma sala lateral com janela panorâmica com vista para a sombria imensidão da área de trabalho. – É bom rever você – ele apertou minha mão com firmeza, um cumpri‑ mento de gente grande. – KidBits, não é? Como tem passado? Ele era mais alto do que eu me lembrava. Deixou crescer a barba, e isso combinava com ele. – Bem, bem. O Darren está por aí? – perguntei. – Ainda no Nepal. É o mesmo cara de sempre. Então você realmente quer trabalhar aqui? – indagou. Esse era o momento que eu mais havia ensaiado, inclusive diante do espe‑ lho. Olhos desviados, simulei um falso tom casual. – Acho que sim, Don. O Direito está ficando um pouco chato… Estou pronto para mudar de ramo, sabe? – Design? Programação? Produtor assistente? – Design, eu acho. Ou produção. Não tenho certeza. A minha programa‑ ção continua uma droga, como sempre foi. – Jared fez a pergunta sobre o jogo supremo? 23

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– A­‑ham. Foi uma boa pergunta. – É mesmo, não é? Acho que vamos ligar para você. – Valeu, cara. Apertamos as mãos de novo. Na saída, Lisa passou por mim, aparentemente voltando da máquina de lanches. – Boa essa – comentou ela. – Archon. Eles não usavam termos como síndrome de Asperger na década de oitenta; provavelmente ela teria sido diagnosticada. – Obrigado – respondi. – Até mais. u Eu queria ficar e dar mais uma olhada nos jogos, mas não havia nenhum pretexto para isso, então saí no entardecer gelado. Lá fora, continuei pensando sobre o jogo, o jogo que seria aquele se a minha vida fosse um jogo. O jogo mais esfarrapado de todos os tempos. Você está parado num estacionamento semideserto ao lado de um edifício empresarial no subúrbio de Massachusetts. A entrevista chegou ao fim, e o sol está se pondo. O que você faz em seguida? OLHE Você enxerga os carros acendendo os faróis à medida que eles sobem a colina da Rota Dois e começam a mergulhar lentamente em direção a Cambridge, para depois se empilharem no trevo com a autoestrada Alewife. Está esfriando. Você não tem para onde ir. INVENTÁRIO Carteira de couro puído. Itinerário para chegar ao escritório, escrito no verso de um panfleto para um sarau de poesia. Blazer azul­‑marinho. O tempo todo, você esteve incrivelmente bem vestido. OESTE Você caminha pela ciclovia. Passa atrás do restaurante de frutos do mar. A maior parte do terreno em torno do estacionamento nunca foi 24

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loteada. Lilases, pequenos carvalhos e gramíneas altas crescem fora de controle ali. Onde exatamente você acha que vai? OESTE Você mal escuta a autoestrada atrás de si, e logo o barulho desaparece por completo. Você ainda avista o sol em meio aos galhos. Curiosamente, você encontra trilhos de ferrovia cruzando o caminho. Desde quando havia uma linha férrea aqui? Já não era usada há muito tempo, mas, seja como for, você a acompanha. A caminhada o mantém aquecido. Plântulas de carvalho crescem entre os dormentes. Em alguns pontos, você mal consegue enxergar os trilhos em meio à terra e às folhas. Mais cedo ou mais tarde, você vai fazer uma curva e se deparar com a Mass Avenue e pegar um ônibus de volta a Cambridge e é isso. Sei lá. Por que você acha, afinal, que teve de encarnar este personagem? OESTE OESTE OESTE Meu Deus, você andaria para sempre se achasse que isso lhe tiraria daqui. Os trilhos lhe conduzem colina acima, e então você avista, através de uma fileira de árvores, um balanço. É o pátio traseiro de uma escola primária. E é aí que a memória lhe vem, a coisa que estava lhe incomodando o tempo todo. Fazia muito tempo que você teve aquela ideia, mas ela volta cristalina, inalada como o cheiro de carpete queimado do carro em que Darren costumava lhe levar para passear.

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