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O fresco

Pu Songling

valgando nuvens e brumas: tinha entrado no fresco!

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A profusão de salas e pavilhões fê-lo compreender que já não se encontrava no mundo dos homens. Do alto de uma plataforma, rodeado de inúmeros religiosos de ombro direito descoberto, um velho monge pregava a Lei de Buda. Zhu estava de pé misturado na multidão. Passado um momento, sentindo-se discretamente puxado pela manga, voltou-se: era a rapariga de cabeleira escorrida que lhe sorria! A rapariga afastou-se. Ele seguiu-a de perto ao longo de sinuosas galerias até uma casinha na qual, hesitante, Zhu não ousava entrar. Ela voltou a cabeça, elevou a flor que segurava e, agitando-a, fez-lhe sinal que se aproximasse.

Não havia ninguém na sala; tudo estava calmo – de imediato a tomou nos braços sem que ela oferecesse especial resistência. E a rapariga prodigalizou-lhe os mais íntimos favores. Satisfeita, levantou-se para cerrar as janelas e, instando-o a permanecer silencioso, prometeu que regressaria quando caísse a noite. Assim foi durante dois dias seguidos, até que as suas companheiras se aperceberam e descobriram o homem pondo-se logo a gozá-la: “Com um homemzinho a crescer-te no ventre, como podes tu armar-te em virgem com esse cabelo despenteado!”

E levaram-lhe pentes e molas para que armasse o cabelo, mas a rapariga, envergonhada, não dizia uma palavra. “Irmãs – exclamou uma delas – não nos demoremos aqui pois corremos o risco de desagradar a quem vocês sabem!”.

NATURAL DO JIANGXI, Meng Longtan estava alojado na capital acompanhado do licenciado Zhu. O acaso de um passeio fê-los passar por um mosteiro de edifícios e celas de modestas dimensões e deserto, à excepção de um velho monge itinerante que ali havia pendurado o seu hábito1 Vendo chegar visitantes, o monge compôs as suas vestes, saiu para os acolher e propor guiá-los a seu bel-prazer. O edifício principal albergava uma estátua do mestre Zhi, um monge eminente da escola Chan. As paredes laterais estavam cobertas de frescos de um detalhe tão maravilhoso que as figuras representadas pareciam vivas. Numa parede à direita, no lado leste, estava representada, entre ninfas celestes espalhando pétalas, uma jovem rapariga de cabelo pendente2, segurando uma flor, de sorriso doce nos lábios carmim prestes a entreabrir-se, com olhos deixando escapar um olhar convidativo.

De tanto a contemplar, Zhu tinha o coração em sobressalto e o espírito deleitado sem disso se dar conta. Com todos os pensamentos cristalizados naquele objecto o seu estado era próximo da estupefacção. De repente, sentiu-se flutuar como que ca-

E desapareceram, envoltas em risos. O rapaz contemplava agora a sua amada, com um alto penteado de volutas vaporosas, encimado por uma fénix reclinada e muito mais excitante que os cabelos soltos. Como não se visse vivalma, rapidamente se perderam em privacidades fogosas, excitados pelos aromas de almíscar e orquídea. De súbito, antes mesmo que chegassem ao fim do prazer, fizeram-se ouvir brutais passadas de botas e o som de correntes, seguido de um sonoro vociferar. A rapariga vestiu-se em sobressalto e ambos trocaram um olhar furtivo: tratava-se de um emissário em armadura de ouro, de rosto mais negro que laca, de escudo e massa e rodeado de todo o bando de raparigas.

- Estais todas aqui?

- Sim ! respondiam elas.

- Se algumas de vós dissimular alguém, que se denuncie já se desejar evitar amargos dissabores!

- Não há ninguém, responderam em uníssono.

O emissário voltou-se e, com o seu olhar de águia, parecia estar prestes a vasculhar o esconderijo. Morta de medo, a rapariga estava mais pálida que cinzas frias. Em pânico, pode apenas sussurrar a Zhu: “Esconde-te debaixo da cama!” E, abrindo

Tradução de Rui Cascais uma pequena porta na parede, lançou-se nela precipitadamente.

Prostrado, o jovem não ousava respirar. De seguida, o barulho das botas penetrou no quarto e, pouco após, saiu.

Como o clamor do tumulto se começava a afastar, sentiu-se um pouco melhor, embora à porta as discussões e as idas e vindas não parassem. Encolhido durante tanto tempo, sentia os ouvidos zunir e os olhos arder. A posição tornava-se insustentável. Só lhe restava esperar pacientemente pela rapariga, sem pensar no que o tinha levado a tais circunstâncias.

Tendo permanecido todo este tempo na sala, Meng Longtan procurava Zhu com olhar mas não o conseguia encontrar. Na dúvida, perguntou ao velho monge pelo amigo e este respondeu-lhe rindo: “Foi escutar um sermão”.

- Onde?

- Não muito longe.

Daí a um momento, começou a chamá-lo tamborilando com um dedo na parede: “Caro doador3, é tempo de voltar, porque prolongas tanto a tua visita!

E logo apareceu, sobre o fresco, a imagem de Zhu, de orelha à escuta, como se ouvisse mal.

“Já há um pedaço que o teu companheiro te espera”, disse o monge.

Zhu desprendeu-se subitamente da parede e, flutuando, desceu, estupefacto, de olhar fixo e pernas bambas.

Alarmado, Meng interrogava-o sem obter resposta: escondido sob a cama, explicava Zhu, tinha sido interpelado por uma voz portentosa e tinha abandonado o quarto para ver o que se passava. Contemplavam ambos a jovem que segurava uma flor: em vez da cabeleira pendente de outrora, tinha agora um penteado em espiral. Confundido, Zhu saudava de mãos postas o monge e perguntava-lhe o motivo.

O monge respondeu-lhe a rir: “O ilusório nasce do espírito humano. Que outra explicação vos poderia oferecer este vosso humilde servidor?”

Zhu mantinha um ar contrariado e mal humorado, enquanto que Meng, de espírito abalado, suspirava desconcertado. E assim desceram os degraus em direcção à saída.

O cronista do estranho acrescenta:

Que o ilusório seja criação do homem parece profundamente sensato. De um espírito libidinoso nascem situações escabrosas e de um espírito escabroso nasce o horrível. Quando um bodhisattva faz a instrução de um noviço ignorante, mil ilusões se formam, todas postas em movimento pela mente. Neste caso o mestre havia dito “amor de mãe”: pena é que ao escutar estas palavras o outro não tenha atingido a iluminação radical que lhe teria permitido entrar na montanha, de cabelos ao vento.

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