"Na periferia da periferia do império" - diário estelar (Porto, 1996)

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1996, Porto, Na Periferia da Periferia do Império Diário Estelar

Sábado, Setembro 22

Chego ao abrigo. No atendedor a luz pisca. Alguém me ligou. Ligo o aparelho e sou aconselhado a ir ver o "Já" onde poderei ser informado do dia em que irei falar em Cascais. Antigamente era costume ser-se avisado por carta ou por telefone. Deve ser a influência dos anúncios de Whisky que nos lembram que a tradição já não é o que era.

Ao que parece os maus augúrios que tinham surgido nas anteriores semanas com um mar de problemas quanto aos convidados e com a edição de uma antologia com autores da capital do Império, directamente envolvidos na organização, demonstrando uma completa falta de ética, e como se não bastasse assumindo-se como a antologia dos melhores autores portugueses, estavam a confirmar-se.

Um barulho soa. É o telefone. Do centro do Império, na periferia da Galáxia, uma funcionária da organização, em pânico busca o fax de um convidado inglês, a Bridget Wilkinson. Nem uma palavra sobre a palestra.

Realmente o jornal dizia que iria apresentar a comunicação pelas 9.30 horas de quinta-feira. Será que irei? A "falta de chá" não tem limites. A confirmação de ter sido transformado num membro fantasma da organização acabara de chegar.

Uma desgraça nunca vem só, já é tempo de os jornais arranjarem gente capaz para fazer os trabalhos que pretendam publicar. Aquela grelha sobre a FC é um desastre total e apenas por incúria, um pouco de atenção ou mero trabalho de cópia da "The Visual Encyclopedia of Science Fiction" ou da recentemente saída "Science Fiction, The Illustrate Encyclopedia" teria resolvido o problema e não obrigado as obras a viajar para décadas diferentes.

Quarta-feira, Setembro 25

Três horas e meia depois de largar do Porto lá chegamos a Cascais.


Cheguei ao secretariado e nenhuma das "figuras de proa" presente, nem mesmo os representantes da Câmara. Alguns minutos após a chegada lá apareceu alguém para nos dar umas dicas e nada mais.

Já à saída soubemos que estava a decorrer um jantar para o qual os participantes e convidados estrangeiros não estavam convidados e reservado exclusivamente aqueles que a Arthur Anderson decidiu. Estranho não serem convidadas as pessoas ligadas aos Encontros, mas apenas da política e alta finança que nem sabem que a ficção científica existe.

Quinta-feira, Setembro 26

Por muito que se queira encarar suavemente as coisas o que aconteceu é indesculpável. Pelas 9.10 passei em frente ao Gil Vicente e deparei com a porta fechada. Fui tomar o pequeno-almoço e fazer horas. Pelas 9.30 em ponto lá estava a olhar para a porta fechada, desta feita acompanhado pelo três conferencistas: José Manuel Morais, Mário Amado Alves, Leonid Kouritz (Ucrânia) e José Anes, para além de várias pessoas interessadas em assistir às palestras, entre elas Jaroslav Osla (República Checa) e Neyir Gokçe (Turquia), Luís Marcos e Gerson Lodi-Ribeiro (Brasil), Charles Brown (USA) e Elia Barceló (Espanhã/Austrira). Após 1 hora de espera perante as portas fechadas decidimos ir tomar café: o Morais, o Luís, o Lodi e eu. Pelas 11.30 regressamos e pelo caminho encontramos as outras pessoas que se tinham também dividido em grupos e que tomavam o pequeno-almoço pelas esplanadas, esperançados que as portas acabariam por abrir.

Pelas 11.40 chegamos e as portas a abrir. Claro que ninguém estava presente a não ser o António de Macedo acabado de chegar. O ambiente estava calmo apesar do acontecido. Um atraso daquele tamanho parecia coisa sem importância. E melhor os conferencistas presentes foram convidados a arregaçar as mangas e desembrulhar a mesa e cadeiras do palco, para depois puderem ver-lhes concedida a benesse da apresentação das suas comunicações. Comovido vim para a rua chorar.

A manhã foi salva pela imensa boa vontade de José Manuel Morais, José Anes e Carlos Fiolhais que apesar do atraso e da sala quase vazia devido à debandada geral provocada pela total irresponsabilidade da organização.

E por falar em membros da organização neste dia apenas foram vistos três deles: Macedo, Tércio e Maria Menezes. Mais tarde soubesse que o João Barreiros e o Filipe Silva apenas apareceriam para o lançamento da sua antologia e livro e no caso do João para se sentar ao lado do Brian


Aldiss, Joe Haldeman e Christopher Priest, numa tentativa de passar a imagem de "como sou intimo" destes grandes senhores, ignorando tudo e todos.

O almoço correu bem e de tarde pudemos assistir às palestras de Luís Miranda, Neyir Gokçe e David Pringle. Devido à confusão da manhã e atraso consequente não foi possível assistir a todo o debate sobre "A Fantasia no Feminino".

Os meus amigos catalães, espanhóis e andorranos chegaram de tarde e o reencontro fez-me relegar para segundo plano as desgraças da manhã.

Ao jantar relembramos outras convenções e falamos de amigos comuns. A Bridget estava já presente e as conversas fluíram nas várias línguas a tal ponto que era difícil distinguir a nacionalidade dos presentes. Um dos temas como não poderia deixar de estar na mesa, o da Sociedade Europeia de Ficção Científica, dada a presença do seu secretário-geral, de um secretário e de delegados nacionais de 7 países.

Sexta-feira, Setembro 27

Pelas 9.30 lá estávamos todos prontos para ouvir a conferência do Pedro Romero que veio das Canárias para nos falar da "máquina do tempo" em dois autores. A sala infelizmente não estava grande coisa. O trauma provocado na manhã anterior continuava a produzir os seus efeitos. É preciso não esquecer que a organização não pediu desculpas pelo acontecido, apenas se limitando a dizer que tinha sido aborrecido. Pierre Brouillard falou a seguir, tendo logo de seguida decorrido um debate sobre a Ficção Científica Europeia protagonizado por Elia Barceló, Pierre Brouillard, Renato Prestiniero, Bridget Wilkinson e eu, sendo a mesa moderada por António Macedo. O romeno Aurel Manole agendado para falar a seguir não pode vir aos Encontros por estar doente e assim a manhã terminou com a anestesiante comunicação de Carlos Martins.

O almoço foi uma grande festa e quem sofreu as consequências foi Fernando Mascarenhas que teve de falar das Fundações de Asimov para um escasso público.

Como Jean-Pierre Moumon não deu ares da sua graça, ficando por França, lá consegui falar sobre a Ficção Científica Portuguesa. Não fosse esta ausência e a apresentação teria sido relegada para a eterna bruma e não aconteceria e assim mais uma vez se não falaria da FC Portuguesa, como se esta não fosse importante ou não existisse e não fosse Portugal o local onde se estavam a realizar os Encontros. Assistimos logo de seguida à palestra de Renato Pestriniero que nos falou do Homem, da FC e da Escola. Álvaro Pina, professor universitário que não teme a ligação à ficção


científica, tomando uma posição diferente da Academia, analisou de um dos maiores clássicos da literatura de FC, "Fahrenheit 451" de Ray Bradbury. A tarde terminou com as conferências de Maria do Rosário Monteiro que falou da sua paixão de sempre, Ursula Le Guin, logo secundada por Christopher Priest que nos falou da sua obra e do que é ser um escritor profissional.

Após o jantar fomos brindados pelo brilhante show de Brian Aldiss que falou da sua obra e apenas dela com a elegância e segurança de um autor que sabe o que vale, do crítico que é e do facto de o número ter sido mais uma vez repetido. O resultado foi obviamente espectacular.

Sábado, Setembro 28

O Morais continua a não aparecer o que muito me entristece. Tinha falado dele aos meus amigos e não foi assim possível falarmos. Mas realmente é difícil esquecer a brincadeira de mau gosto de quinta-feira. Soube também que o João Barreiros ao fim de 15 anos tinha deixado de me reconhecer. Talvez tivesse os olhos atingidos por problemas de visão derivados da excessiva proximidade das vedetas com quem tinha estado sentado das duas vezes que tinha estado no Teatro Gil Vicente.

A organização ainda não satisfeita logo de manhã promoveu um debate entre autores no qual estiveram presentes os anglo-saxónicos e Elia Barceló, como se não estivessem autores de vários países presentes e quanto a mim o mais grave sem a presença de nenhum português.

APESAR DE TUDO SE OS ENCONTROS NÃO SE TIVESSEM REALIZADO TERIA SIDO BEM PIOR.


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