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APÊNDICE C

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COMUNICAÇÃO

COMUNICAÇÃO

1. Formação urbana de Belo Horizonte e seu ônus de classe

“Belo Horizonte tornou-se a primeira experiência de implementação de um modelo de cidade que, aqui, tinha por função simbólica expressar o ideário liberal positivista da então recente república brasileira: ordem e progresso. E esse ideário republicano se materializou nos largos espaços públicos das avenidas e edifícios monumentais da Nova Capital mineira, obedecendo a um traçado de rígida geometria, como também nos diversos sistemas de mesoestrutura que dão suporte à vida moderna, como: abastecimento de água, rede de esgoto, obras viárias (que incluem as canalizações de cursos d’água), iluminação e transporte. A imagem da nova capital deveria conotar modernidade, avanços técnicos e tecnológicos voltados para a salubridade e a higiene e para a circulação (de produtos, pessoas e águas). ” (BOTELHO, 2020, p. 26)

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A capital mineira foi projetada e construída pelo engenheiro Aarão Reis, entre os anos de 1894 e 1897, colocando Belo Horizonte como uma das primeiras cidades planejadas do Brasil. O projeto trazia elementos chaves do modernismo europeu e estadunidense, incluindo uma malha perpendicular de ruas cortadas por grandes avenidas, quarteirões de dimensões regulares e um anel rodoviário abrangendo todo seu perímetro (Avenida do Contorno), com destaque a semelhança da Av. Do Contorno e a Ringstrasse e a outras claras referências ao plano de Haussmann.

Figura 161 - Planta Geral da Cidade de Minas (Belo Horizonte). Comissão Construtora da Nova Capital, Aarão Reis, 1895 (Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB))

Responsável pelo projeto e sendo presidente da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), Aarão Reis foi responsável por estudos de cinco localidades pré-escolhidas pelo poder público como candidatas a abrigar a nova capital. Sendo elas: Várzea do Marçal, Paraúna, Barbacena, Juiz de Fora e o Arraial do Curral Del Rey. O Arraial Curral Del Rey foi o local escolhido, teve sua população expulsa do território para ser

“Se o arraial havia se instalado ao longo dos córregos que definiam o sítio, a cidade planejada ignorou-os, submetendo-os ao rígido traçado do plano do engenheiro Aarão Reis, responsável pelo projeto e primeiro chefe da Comissão

construída a nova capital, e as edificações que acompanhavam o curso do córrego foram substituídas pelo rígido traçado do urbanismo racionalista. Os operários que construíram a cidade junto aos moradores do Arraial não tinham lugar na nova capital, restando para essas pessoas construir sua morada para além da Avenida do Contorno, se afastando cada vez mais da centralidade que o plano representa.

Figura 162 - Mapa de estruturação urbana do Arraial Curral Del Rei (Fonte: Pereira Costa e Gimmler Netto, 2015; elaboração: Laboratório da Paisagem; adaptado de Planta Cadastral do Arraial do Belo Horizonte, 1894)

Construtora da Nova Capital (CCNC) do estado de Minas Gerais. ” (SILVA, 2013, p. 11) Vale salientar que, nos anos de 1920, 70% da população de Belo Horizonte já vivia em bairros fora dos limites da Avenida do Contorno. Com isso, a imagem de duas cidades se evidenciava: de um lado uma região com largas avenidas, áreas verdes, saneamento básico; de outro, um território rural povoado, sem serviços básicos, onde o esgotamento era lançado diretamente nas águas do Ribeirão Arrudas (único curso d´água considerado no planejamento da nova capital), fora dos limites da zona planejada.

Figura 163 - Canalização do Ribeirão Arrudas (Fonte: Notação: BH.ALB.06-116.)

Ainda no início da cidade, o córrego do Acaba Mundo, o Leitão e Serra atravessavam os lotes, pois o planejamento geométrico das ruas não considerava seus cursos. A resultante foi o início da canalização já na década de 1920. Ademais, as cabeceiras foram sendo desmatadas, passando a ser destino de esgoto, causando acumulo de lixo e mau cheiro. Com isso, os córregos passaram a ser mal vistos pela população, deixando de vê-los como parte de cidade, mas sim como um problema a ser solucionado pelos avanços da tecnologia da construção

“Os três córregos que cruzam a Zona Urbana – Leitão, Acaba Mundo e Serra – foram progressivamente retificados, canalizados e cobertos até meados da década de 1970. Com o crescimento da população em ritmo acelerado, eles tornaram-se redes de esgotos, pois os emissários existentes não suportavam o volume de contribuições. Além disso, seus leitos estavam assoreados pela crescente deposição de lixo doméstico e sedimentos. Como medida de combate simultâneo ao mau cheiro e às inundações frequentes, decidiu-se pelo fechamento dos trechos ainda mantidos em canal aberto. “ (SILVA, 2013, p. 13) Os tamponamentos destes córregos foram realizados em meio a muita propaganda política, com promessas de solução efetiva para todos os problemas ‘causados’ pelo curso d´água, como fica evidenciado nesta propaganda da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) na década de 70 sobre o tamponamento do córrego do Leitão.

“Hoje o (córrego) Leitão está por baixo desta nova e ampla avenida. Uma verdadeira passarela negra que vai ajudar a resolver nossos problemas de trânsito. Cenas de enchentes, você nunca mais verá”. (Trecho retirado de vídeo do Acervo PBH/MIS) O resultado aflora a cada forte chuva, como a que atingiu a cidade durante o fim de janeiro de 2020. Atingindo encostas e fundos de vale como no caso das ocupações da Izidora (Região Norte) e outras diversas localidades na região metropolitana que carecem de mesoestrutura de contenção (cidade informal). Como demonstração da ineficiência nas modificações do ciclo hidrológico, as regiões que contam com maior investimento público (cidade formal) e que passaram por diversas grandes obras urbanísticas, que visavam solucionar os problemas relacionados aos seus córregos com desvios, canalizações e tamponamentos, sofrem com a destruição causada pela força da água que corre nos corredores de concreto submersos. O que difere essas duas situações de destruição em períodos chuvosos (cidade formal x cidade informal) são as causas e as soluções para cada localização envolvida. De um lado, a cidade formal investe há décadas em diferentes soluções para controlar as águas e, após diferentes danos a cada forte chuva, reconstrói as vias e áreas próximas aos cursos d´águas de maneiras similares em tempo recorde. O recurso aparece rapidamente, como questão de urgência:

Figura 165 - Córrego do Leitão Canalizado entre as ruas Gonçalves Dias e Alvarenga Peixoto (Fonte: APM | http:// www.curraldelrey.com/) Figura 166 - Tamponamento do córrego do Leitão na Rua Padre Belchior (Fonte: APM | http://www.curraldelrey.com/) Figura 144 - Canalização do córrego Serra (Fonte: APM | http:// www.curraldelrey.com/)

1. Uma relação paradoxal com água

O modo como a cidade de Belo Horizonte foi construída e sua modificação ao longo dos anos demonstra uma relação paradoxal com a água. Por um lado, a relação com água torna-se alvo de caracterizações

a garantia da circulação. Em lado oposto, estão diversas áreas da cidade informal que convivem com riscos e a falta de investimentos para mesoestrutura. Apesar da destruição equivalente às encontradas na cidade formal, a velocidade na solução de problemas para essas populações é mais lenta, já que esta é secundarizada. As decisões tecnicistas expõem uma falsa neutralidade técnica, recheada de posturas autoritárias não só na constante modificação do ciclo hidrológico, como também em áreas que poderiam vir a serem preservadas junto aos moradores, áreas com cursos d´água aparente. As famílias que ocupam esses locais são resultantes do déficit habitacional, combinadas a quase inexistência histórica de políticas habitacionais no município. A solução pode estar na consolidação das residências próximas aos córregos, porém adotando alternativas que contribuam com a preservação do território com suas águas inclusas.

Figura 168 - Deslizamento na Ocupação Esperança (Fonte: APM | http://www.curraldelrey.com/) Figura 169 - Resgate na Vila Bernadete, região do Barreiro (Fonte: Estado de Minas, foto Ramon Lisboa/EM/D.A Press) Figura 170 - Avenida Tereza Cristina (Bairro Betânia) (Fonte: Jornal o Globo)

que remetem aos córregos como locais com mau cheiro e insalubridade, utilizando destas problemáticas para tamponar os rios e expulsar os moradores das proximidades.

“[...] a submissão progressiva dos cursos d’água que cruzam a cidade à racionalidade tecnocientífica moderna: à medida que os córregos vão sendo canalizados, os núcleos favelados eventualmente existentes são removidos parcial ou integralmente. ” (SILVA, 2013, p. 16) Em lado oposto, um bairro inteiro foi construído em torno da Represa da Pampulha (Lagoa da Pampulha), uma obra de grandes proporções afim de criar uma bacia de água artificial, com habitações extremamente valorizadas próximas ao espelho d´água. Localizada na bacia do ribeirão da Pampulha, composta pelos córregos Ressaca e Sarandi e outros pequenos afluentes. Tem como fonte de água mais de 500 nascentes, o reservatório foi pensado para ampliar o abastecimento de água na região norte, amortecer enchentes e criar um novo polo turístico na cidade. Por diversas décadas, foi a “querida” do mercado imobiliário. A Lagoa da Pampulha, desde os anos de 1980, passa pelo mesmo destino dos córregos que vieram a ser tamponados: viraram receptora de dejetos, com águas contaminadas e impróprias para consumo humano. Contaminação essa vinculada ao processo de poluição dos córregos que alimentam a lagoa, chegando a atual situação em que diversas áreas da lagoa estão asso-

Figura 171 - Construção da barragem da Pampulha no final da década de 1930 (Fonte: APM | http://www.curraldelrey.com/) Figura 172 - Iate Clube (Fonte: Acervo IBGE |http://www.curraldelrey.com/) Figura 173 - Poluição na Lagoa da Pampulha (Fonte: CBH Rio das Velhas – Tanto Expresso/ Fernando Piancastelli)

readas e a estação de tratamento de água precisou ser desativada, vista a impossibilidade de tratar a água vinda da lagoa. A solução socioambiental para a problemática que acomete o lago artificial localizado na Pampulha poderá receber tratamento diferenciado dos córregos que cortam Belo Horizonte e região metropolitana, já que se trata de uma obra com valor além do imobiliário, o turístico – um cartão postal –, diferente do tratamento dado aos cursos naturais das águas – escondidos ou modificados com base em decisões tecnocráticas recheadas de uma falsa neutralidade técnica. Em cada programa de urbanização ao longo da história de Belo Horizonte, segue-se a mesma essência do plano original da cidade, com sua idealização da modernidade, racionalismo e higienismo. Essência solucionada apenas na caneta ou no software, mas raramente pensada na perspectiva da recuperação ambiental com participação da sociedade civil na equação.

“O primeiro ponto seria admitir que o ecossistema urbano está operando acima de suas capacidades de regeneração e assimilação e que justamente as áreas que escaparam à ação urbanizadora moderna – favelas em cabeceiras – são as mais indicadas para aliviar seus pontos de saturação. Em contraposição aos programas de urbanização em curso, propõe-se um processo de recuperação socioambiental urbana a partir de microunidades territoriais autônomas, resguardando esses territórios e construindo coletivamente novas relações de intercâmbio entre o homem urbano e a natureza. ” (SILVA, 2013, p. 25)

Escondendo os cursos d´água ao longo de décadas em diversos pontos da cidade ao mesmo tempo em que investia em obras que colocavam a água em evidência, como no caso da lagoa da Pampulha.

“O modelo de cidade representado por Belo Horizonte - cidade da produção industrial na periferia do capitalismo - vai se generalizar em todo o país e segue sendo implantado, apesar dos avanços teóricos na questão ambiental urbana, desde meados do século XX. Passados 120 anos da inauguração de Belo Horizonte, cremos que as críticas direcionadas ao projeto de Aarão Reis, ‘producto directo e legitimo da theoria dominante’ (FREIRE, 1914, p.347) à época, não procedem como tal. Tais críticas deveriam ser estendidas à manutenção desse modelo e das práticas de canalizações, retificações e tamponamentos de cursos d’água, que são implementadas até os dias hoje. ” (BOTELHO; ESTAQUIO, 2019, p. 21) A ruptura com este modelo de gestão de cidade perpassa por construções de metodologias de trabalho que insiram os moradores que ainda possuem contato com córregos, nascentes e pequenos afluentes como partes na solução da proteção dessas áreas fundamentais. Apenas retirar as populações das proximidades desses córregos com argumentos vinculados a proteção de áreas ambientais é “um tiro no próprio pé”, à medida que não haverá subsídios para realocar essas famílias. Resta para esses moradores ocuparem outra área de proteção por um motivo: ser a única terra capaz de ser disputada. E assim o ciclo se repete.

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