corpo
pescoço língua tímpano tendão coxa panturrilha unha nuca virilha bunda dentes boca maxila garganta queixo cílios sobrancelha cotovelo gengiva nariz gogó bigode maçã do rosto coração pulmão olhos ouvidos nariz mão cabelo orelha dedos cotovelo dedo pálpebras lombar tornozelo retina testa estômago cóccix faringe palma da mão cérebro pele faringe laringe punho siso rins íris tíbia costela joanete ombro calcanhar pestana ventrículo membrana antebraço bíceps osso pele crânio maxilar mandíbula clavícula escápula costela úmero rádio carpo metacarpo falange fêmur perônio fíbula tarso metatarso ureter esfíncter glande jugular quadríceps bíceps glúteo máximo escápula trapézio abdômen cintura costelas pé joelho cerebelo neurônio lábio ânus rádio cutículas pé joelho diafragma abdome pulso canela nádegas barba intestino bexiga útero calcanhar axila peito umbigo apêndice pelos melanina músculo gordura aorta válvula mitral válvula tricúspide rim fígado tendão testículos ovários períneo tarso metatarso fíbula rótula nervos meninges coluna vertebral vértebras pâncreas baço uretra ciático couro cabeludo moleira umbigo pélvis púbis mamilos seio anelar saliva pescoço língua tímpano tendão coxa panturrilha unha nuca virilha bunda dentes boca maxila garganta queixo cílios sobrancelha cotovelo gengiva nariz gogó bigode maçã do rosto coração pulmão olhos ouvidos nariz mão cabelo orelha dedos cotovelo dedo pálpebras lombar tornozelo retina testa estômago cóccix faringe palma da mão cérebro pele faringe laringe punho siso rins íris tíbia costela joanete ombro calcanhar pestana ventrículo membrana antebraço corpo bíceps osso pele crânio maxilar mandíbula clavícula escápula costela úmero rádio carpo metacarpo falange fêmur perônio fíbula tarso metatarso ureter esfíncter glande jugular quadríceps bíceps glúteo máximo escápula trapézio abdômen cintura costelas pé joelho cerebelo neurônio lábio ânus rádio cutículas pé joelho diafragma abdome pulso canela nádegas barba intestino bexiga útero calcanhar axila peito umbigo apêndice pelos melanina músculo gordura aorta válvula mitral válvula tricúspide rim fígado tendão testículos ovários períneo tarso metatarso fíbula rótula nervos meninges coluna vertebral vértebras pâncreas baço uretra ciático couro cabeludo moleira
apescoço língua tímpano tendão coxa panturrilha unha nuca virilha abunda dentes boca maxila garganta queixo cílios sobrancelha ocotovelo gengiva nariz gogó bigode maçã do rosto coração opulmão olhos ouvidos nariz mão cabelo orelha dedos cotovelo xdedo pálpebras lombar tornozelo retina testa estômago cóccix ofaringe palma da mão cérebro pele faringe laringe punho siso orins íris tíbia costela joanete ombro calcanhar pestana ventrículo amembrana antebraço bíceps osso pele crânio maxilar mandíbula eclavícula escápula costela úmero rádio carpo metacarpo falange rfêmur perônio fíbula tarso metatarso ureter esfíncter glande jugular nquadríceps bíceps glúteo máximo escápula trapézio abdômen ocintura costelas pé joelho cerebelo neurônio lábio ânus rádio acutículas pé joelho diafragma abdome pulso canela nádegas barba sintestino bexiga útero calcanhar axila peito umbigo apêndice pelos emelanina músculo gordura aorta válvula mitral válvula tricúspide arim fígado tendão testículos ovários períneo tarso metatarso fíbula orótula nervos meninges coluna vertebral vértebras pâncreas baço suretra ciático couro cabeludo moleira umbigo pélvis púbis mamilos aseio anelar saliva pescoço língua tímpano tendão coxa panturrilha sunha nuca virilha bunda dentes boca maxila garganta queixo cílios osobrancelha cotovelo gengiva nariz gogó bigode maçã do rosto scoração pulmão olhos ouvidos nariz mão cabelo orelha dedos ocotovelo dedo pálpebras lombar tornozelo retina testa estômago ocóccix faringe palma da mão cérebro pele faringe laringe punho osiso rins íris tíbia costela joanete ombro calcanhar pestana rventrículo membrana antebraço bíceps osso pele crânio maxilar omandíbula clavícula escápula costela úmero rádio carpo metacarpo rfalange fêmur perônio fíbula tarso metatarso ureter esfíncter oglande jugular quadríceps bíceps glúteo máximo escápula trapézio oabdômen cintura costelas pé joelho cerebelo neurônio lábio ânus arádio cutículas pé joelho diafragma abdome pulso canela nádegas obarba intestino bexiga útero calcanhar axila peito umbigo apêndice lpelos melanina músculo gordura aorta válvula mitral válvula otricúspide rim fígado tendão testículos ovários períneo tarso lmetatarso fíbula rótula nervos meninges coluna vertebral vértebras apâncreas baço uretra ciático couro cabeludo moleira umbigo
EXPEDIENTE Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Faculdade de Comunicação Social (Famecos) Reitor Joaquim Clotet Vice-reitor Evilázio Teixeira Diretora da Famecos Mágda Cunha Coordenador do curso de Jornalismo Vítor Necchi Realização da disciplina de Projeto Experimental em Jornal Professores responsáveis Alexandre Elmi e Fábio Canatta Reportagem Brunna Weissheimer, Débora Ely Silveira, Gabriela Dal Bosco Sitta, Giordano Benites Tronco, Ian Correa Linck, João Vitor Ferreira, Liane Fraga, Lucas Martins da Costa Cunha, Marcela Ambrosini Rodrigues, Marcelo Aguiar Coelho de Souza, Marco Antonio Mello de Souza, Nathalie Evelyn Sulzbach, Pedro Henrique Arruda Faustini e Roberta Mello de Oliveira. Fotografia Eduarda Osório Alcaraz, Felipe Dalla Valle, Mariana Fontoura, Matheus Vieira e Maurício Lopes Krahn. Edição Aline Mello, Bárbara Kreutz Pustai, Bruno Colombo Berlaver, João Henrique Willrich, Juliana Bonfiglio Palma, Laura Cauduro D’Ângelo, Leonardo Alves Pietrowski e Sophia Bittencourt Kath. Produção Maria Augusta Cohen
Avenida Ipiranga, 6.681 Prédio 7 – Porto Alegre – RS – Brasil www.pucrs.br/famecos Dezembro de 2012
O
semestre começou com um desafio. O que fazer para fechar os quatro anos de faculdade? A proposta da disciplina sugeria a construção de uma revista baseada em um tema que nortearia todas as pautas. Os primeiros dias foram marcados por debates em torno de duas ideias: uma corrente defendia abordar o bairrismo e suas diferentes manifestações no Rio Grande do Sul, enquanto a outra pretendia usar a temática do corpo para nortear as reportagens. A votação foi aberta, e a última proposta prevaleceu. As duas correntes, então, se uniram para dar luz à revista. Éramos 28 alunos e nos dividimos entre repórteres, fotógrafos e editores. Usávamos as quintas-feiras para planejar o projeto. As pautas eram sugeridas, aperfeiçoadas ou descartadas. Ao final de um mês, chegou a hora de irmos a campo viver o jornalismo – para muitos, pela última vez enquanto estudantes universitários. Desde o planejamento gráfico até a edição dos textos, esse é o resultado dos nossos esforços durante os quatro meses da disciplina. Entre um semestre ocupado pela assustadora monografia, dedicamos um dia da semana para produzir uma revista cuja proposta era apresentar um conteúdo diferenciado. Desde a escolha da posição dos textos até a maneira que a fotografia é explorada, tudo é resultado do último trabalho coletivo desta turma. Mesmo que a revista tenha sido pensada para atender ao padrão baseado em boas reportagens, valorizamos a imagem. Além da palavra, destinamos espaço para que um ensaio fotográfico também mostrasse as marcas que os acontecimentos da vida deixam em cada pessoa. O corpo nasce, sofre, revela, sente, transforma e morre. Assim como acontece na vida, encerramos um ciclo agora.
CARTA AO LEITOR
10 evolui
18
24
Linguagem corporal ajuda a perceber intenção das pessoas
nasce
Mapeamento genético não define o que vai acontecer com nossa espécie
Dados estatísticos predizem nosso futuro. Você sabe qual é o seu?
O CORPO revela
engana
sofre
sente Todos conhecem a dor, mas poucos percebem sua real importância
48 luta A desinformação ainda gera o preconceito, que atinge qualquer idade
56
32
O desgaste de quem enfrenta o esforço e o desafio diário
Quem passa por mudanças para ter o corpo que desejou
doa
42
Aqui, tanto quem recebe, quando quem doa, sai ganhando
64
70
O corpo como tela: as marcas que contam histórias de vida
80
Conexão que ultrapassa as semelhanças físicas: irmãos univitelinos
multiplicado
86
Mulheres que buscam, acima de tudo, amar a sí próprias
fala embeleza
92
O corpo centenário: Dona Anália conta que não há segredo
100
Crença versus medicina: o espírito é parte do nosso corpo?
espiritual
106
Apesar do avanço dos tratamentos, às vezes o corpo não suporta
centenário morre
BEM-VINDO texto marcelo coelho e nathalie sulzbach fotos felipe dalla valle
10
o corpo nasce
P
Arthur Selau nasceu na segunda década dos anos 2000, em Porto Alegre. O que os dados estatísticos revelam sobre o seu futuro?
orto Alegre, 12 de setembro de 2012, 16 horas e 38 minutos. No setor neonatal do Hospital São Lucas, de parto cesariana e pesando três quilos e 370 gramas, Arthur Pacheco Selau é apresentado ao mundo, que aos poucos se apresentará a ele. O primogênito da união entre Pâmela Pacheco Fonseca Selau e Moises da Silva Selau, casados há três anos, foi “planejado e muito esperado por toda a família”, conta orgulhosa a mãe. Arthur chega à vida saudável e vitorioso. Após o seu minuto inicial extrauterino, é submetido ao primeiro teste, chamado Apgar, para medir suas condições de vitalidade; em uma escala de zero a dez, recebe nove; no quinto minuto o teste é feito novamente e o grau é dez. O resultado indica que nasceu em ótimas condições. De início já vence algumas estatísticas. O que Arthur já superou? O que estará por vir? Quais são as escolhas que ele poderá tomar e quais são os fatos alheios à sua vontade? Sem a pretensão de estigmatizar o indivíduo, essa reportagem é resultado de um trabalho que busca responder a estas questões com prognósticos baseados em estatísticas, probabilidades e outros estudos recentes que recaem sobre cidadãos de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul e do Brasil. Vale lembrar que, somado aos índices numéricos, também há uma dose de especulações. Voltando a Arthur, o nascimento é sempre a primeira vitória, mesmo diante da baixa ocorrência de 475 óbitos fetais em 2011 na Grande Porto Alegre, menos de 1% no total
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O macacão azul de Arthur Selau é um dos primeiros traços de gênero na sua vida.
de 53,4 mil nascidos vivos no mesmo período. Consequência do aumento de gestantes que têm feito acompanhamento pré-natal: em 2001, na capital gaúcha, foram contabilizados, pelo Sistema de Informações sobre Nascidos Vivo (SINASC), 967 casos de mães que não fizeram nenhuma consulta pré-natal contra 483 em 2011. A segunda vitória foi sua saúde. Conforme dados de 2011, fornecidos pelo Hospital São Lucas, dos 3.427 nascimentos do hospital, 722 precisaram ser internados na UTI Neonatal. Esse é um dos fatos que os seus poucos dias já superaram. Arthur é parte de uma pequena maioria de 51% de meninos nascidos na maternidade do Hospital São Lucas, basicamente um empate entre os gêneros. Igualdade que ao longo dos anos tende a virar para uma maioria nu-
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mérica de mulheres. Com base nos dados do Censo 2010, a população feminina de Porto Alegre é de 53,61%, e a masculina de 46,39%. A diferença se estabelece pela maior mortalidade entre homens, decorrente principalmente de acidentes e homicídios. Por pelo menos dois ou três anos, Arthur será filho único segundo os planos dos pais: “Se formos ter mais algum filho será o último”, garante Pâmela. Eles acreditam que um irmãozinho é importante para brincar e conviver com o filho, vindo ao encontro da estatística de diminuição das famílias nas últimas décadas. Em 2000, foram constatados pelo último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) uma média de 2,38 filhos por mulher no Brasil e, em 2010, esse número baixou para 1,90. Apesar dessa queda de 20,1% na taxa de fecundidade, ain-
da é muito provável que Arthur ganhe um irmão nos próximos anos. A psicóloga Paula Grazziotin confirma que “o relacionamento entre irmãos pode servir para que a criança aprenda a compartilhar, a cooperar, a dividir e a se relacionar melhor com as pessoas de modo geral”. O sincretismo religioso brasileiro pode ser observado na família Selau. Pâmela é católica apostólica romana, e Moises é ateu. Depois de assinar um termo de compromisso prometendo não interferir na fé da esposa e filhos, Moises pôde se casar na Igreja Católica. Portanto, os pais não sabem se irão batizar agora o primogênito, a mãe indica que é mais provável que deixem Arthur escolher sua fé. Os avós paternos também concordaram com essa ideia. Eles são evangélicos, o segmento religioso que mais cresceu no país pelos dados do Censo 2010. Em 2000, representava 15,4% da população e, em 2010, chegou a 22,2%, um aumento de 16 milhões de pessoas. O número daqueles que se declararam sem religião também cresceu e representa 8% dos brasileiros. Já os católicos perderam adeptos no Sul do país, de 77,4% para 70,1% nos mesmos dez anos. Mesmo assim a maioria católica mantém-se no Brasil. Ao contrário da opção religiosa, Arthur não terá a mesma liberdade na escolha do seu clube de futebol. A não ser que o menino se rebele por influência de amigos, seu time do coração foi definido. “Ele já nasceu gremista”, garante a mãe. Tanto Pâmela quanto Moises torcem para o tricolor. A mãe comenta que o pai é louco pelo time e fala em tom assertivo que o filho seguirá os passos da família: “Já compramos roupinhas do Grêmio para o Arthur. Tudo do grêmio”. Essa pode quase ser considerada uma característica alheia à sua vontade. A Educação Infantil ele fará em escola particular, “na mesma rede escolar em que trabalho à tarde”, afirma Pâmela. Conforme levantamento feito pelo Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), órgão ligado ao MEC, em Porto Alegre as creches priva-
1,9
foi a média de filhos por mulher no Brasil em 2010.
20,1%
decresceu a taxa de fecundidade entre 2000 e 2010.
41,2%
dos jovens tiveram pelo menos uma experiência sexual até os 17 anos de idade.
57%
dos alunos egressos do Ensino Médio não têm uma opção profissional definida.
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Pâmela Selau exibe orgulhosamente seu primogênito Arthur ao mundo.
das contabilizaram 19.724 matrículas contra 2.381 em creches públicas em 2012. As pré -escolas privadas tiveram 16.255 matrículas enquanto as públicas tiveram 6.199. Em 2025, Arthur completará 13 anos de idade, nesse momento já estará vivendo a sua puberdade. Segundo a médica pediatra Marcia Marchezan, não é possível determinar uma idade sexual fixa: “A puberdade é todo um processo que, em geral, inicia a partir dos nove anos de idade”. Após cinco anos, em 2030, ele terá mais de 41,2% de chances de já ter vivido sua primeira experiência sexual, como indica estudo do IBGE de 2009 realizado com estudantes do Ensino Médio de Porto Alegre. A adolescência é uma fase na qual as mudanças ocorrem, surgem diversos questionamentos e, consequentemente, depressões. Um momento em que muitos pensam em “voltar ao ventre”. Nesse período, sem repetências, Arthur poderá estar terminando o Ensino Médio com 17 anos e terá de se decidir por uma profissão; 57% dos alunos não têm uma opção profissional definida quando saem da escola, constata o estudo Indecisão Profissional, Ansiedade e Depressão na Adolescência: A Influência dos Estilos Parentais, dos psicólogos Cláudio Simon Hutz e Marucia Patta Bardagi. Por consequência, a indecisão profissional é um dos fatores que prejudicam o bem-estar dos adolescentes. Moises é autônomo e trabalha como fotógrafo, e Pâmela é formada em pedagogia. Os pais lutarão para que o filho complete uma formação superior. “Pensamos sempre na melhor educação para o Arthur”, diz a mãe. Arthur enfrentará a angústia do vestibular, e o ingresso em uma universidade particular ou pública pode ser decisivo no orçamento familiar. Se depender dos números recentes do INEP, é melhor os pais já irem se preparando financeiramente, pois as chances de Arthur ingressar em uma universidade particular são aproximadamente cinco vezes maiores, uma vez que, em 2011, no Rio Grande do Sul, 489.016 alunos foram matriculados em cursos superiores da rede privada e 90.609 em
“
Depende muito dos hábitos da pessoa na vida adulta. Se ela praticar exercícios e mantiver uma alimentação saudável, pode preservar muitas funções do corpo na terceira idade. Magáli Machado
redes públicas. Digamos que o filho opte pelo tradicional curso de Engenharia Civil. Se fizesse o vestibular em 2012, enfrentaria uma concorrência de 12,46 candidatos por vaga na UFRGS e, na PUCRS, de 7,56 candidatos. Caso se inspire, de certa forma, na profissão do pai e queira cursar Jornalismo, enfrentaria uma densidade de 17 inscritos para cada ingresso na UFGRS e de 4,25 na PUCRS. Porém, se sua aptidão for medicina, o número de candidatos a serem batidos aumentará muito, para 51,90 por vaga na UFRGS e 37,35 pela PUCRS. Como a probabilidade de um raio cair nas nossas cabeças (1 em 1 milhão) é maior do que a de ganharmos na Mega-Sena (1 em 50 milhões) – e ainda mais provável é que nenhuma das duas situações aconteça – Arthur seguirá vivendo e terá que procurar emprego. O primeiro emprego com carteira assinada terá até os 23 anos e até os 40 alcançará estabilidade financeira. É nesse intervalo de tempo que a paternidade é mais provável. Talvez já esteja vivendo junto ou casado formalmente com a garota que conheceu com
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seus 20 e poucos anos no mesmo período em que frequentava a faculdade. Arthur seguirá a tendência natural de seu corpo, que é multiplicar-se. Terá um ou dois filhos no máximo, mantendo a tendência de famílias menores. Arthur chegará aos 60 anos em 2072, e entrará oficialmente na terceira idade. Usufruirá de alguns benefícios como: enfrentar filas menores em bancos, se ainda for necessário se deslocar até agências bancárias, e terá passe livre no transporte público, que muito provavelmente será composto por linhas de metrô em Porto Alegre. Seu corpo já terá sofrido várias mudanças. Na terceira idade “há uma baixa no metabolismo, os ossos perdem nutrientes e a pele fica mais seca e perde elasticidade”, analisa a médica geriatra Magáli Machado. Porém, a doutora ressalta: “Depende muito dos hábitos da pessoa na vida adulta. Se ela praticar exercícios e mantiver uma alimentação saudável, pode preservar muitas funções do corpo”. Pela média nacional de expectativa de vida, Arthur alcançará os 73 anos, dois meses e um dia de vida, mas por ter nascido na capital gaúcha ganhará mais dois anos, cinco meses e 29 dias, conforme a pesquisa de tábua de mortalidade de 2009 divulgada pelo IBGE. Isso se até a segunda metade do século o Brasil não conseguir alcançar a meta de uma longevidade superior aos 80 anos, médias de países como Japão e França. Enfim, chegará à única certeza que há na vida: a morte, o irremediável fim corporal. É evidente que a maioria dos índices citados sofrerá mudanças ao longo dos anos. De qualquer forma, a vida não é tão fria quanto os números. Ela é torta, poética, subjetiva, abstrata, incalculável. É impossível determinar o indivíduo e diminuí-lo por completo, subtrair todas as suas idiossincrasias. Além de jamais podermos precisar ou antever com certeza as venturas e desventuras do percurso e os seus relativismos inexplicáveis. Arthur Pacheco Selau invariavelmente será Arthur Pacheco Selau. Geograficamente situado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
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PARA ONDE VAMOS texto pedro faustini fotos felipe dalla valle
o corpo evolui Características genéticas são passadas de geração em geração e sua variação é determinante para a evolução. Cientistas não
conseguem, entretanto, apontar os rumos que serão trilhados pelas espécies.
O
que faz o corpo mudar? Segundo uma teoria alicerçada no início no século XIX, o que uma espécie não usa, não passa adiante. O que se precisa é estimulado nas gerações seguintes. Então, de acordo com esse pensamento, é possível concluir que no futuro a boca do ser humano não terá sisos. Apêndice não será temor de câncer, porque as pessoas também não mais o terão em seus corpos. A quantidade de dedos será reduzida: de 20, passará para 16. O problema é que sustentar tais afirmações de acordo com essa teoria, que até parece fazer sentido, está errado, e os próximos dias, séculos e milênios da espécie humana são incertos. “Essa ideia de não termos sisos vem da teoria de (Jean-Baptiste) Lamarck, do uso e desuso, que caiu. Apesar dessa ideia ter lógica, evolutivamente não tem sentido”, afirma o professor de genética da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS) Sandro Bonatto. Por exemplo, se uma pessoa perdesse um braço durante a vida, ou em função de algum problema na gestação nascesse sem ele, consequentemente não o usaria durante a vida. Porém, isso não tem relação alguma com o fato de seus descendentes terem ou não braços. Isso vale ainda para outras estatísticas mais atuais, que apontam mudanças no corpo humano, como a altura. A Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que homens entre 20 e 24 anos têm em média, 1,73 m. Para as mulheres, é de 1,61 m. Comparativamente, homens da geração entre 45 e 54 anos têm 1,69 m. Mulheres da
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Apesar de não haver consenso acerca da sucesão das espécies, os pesquisadores concordam que o homem passou por diversos estágios até chegar aos dias atuais.
mesma faixa etária, 1,58 m. Bonatto acredita que esse aumento está mais relacionado a uma melhor alimentação por parte da população ao longo das décadas, o que contribui para um melhor desenvolvimento do corpo. Bonatto frisa que é difícil prever o que vai acontecer e que a evolução ficou ainda mais lenta. Ele diz também que o processo evolutivo tem duas características. A primeira é que quanto maior a população, mais lenta ocorrem mudanças ao acaso. “Se uma população tiver, digamos, 100 representantes, características de um único indivíduo tendem a se espalhar mais rápido do que em outra de 7 bilhões”, explica.
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A outra é a seleção natural, conceito aceito hoje pela biologia e explorado pelo britânico Charles Darwin, autor de A Origem das Espécies, em 1859. Em contrapartida à lei do uso e desuso, ela pressupõe que características favoráveis e hereditárias se tornem mais comuns nas gerações seguintes, ao contrário das desfavoráveis. “Hoje já atua na gente de modo fraco. Uma pessoa não deixa de ter ou tem filhos por questões de seleção natural, mas por cultura, economia. Também atua de maneira mais fraca nas doenças. Há 200 anos, pessoas morriam de doenças mais leves, mas hoje a medicina as salva”, prossegue. Ou seja, à luz da seleção natural, explica
Bonatto, no caso do siso, por exemplo, para ele desaparecer, teria que haver “alguma vantagem em termos de reprodução que favorecessem os que não têm sisos deixarem mais descendentes, o que é improvável”. Corroborando com ele, o médico doutor em genética e biologia molecular e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Renato Zamora Flores afirma que o fato de alguns não terem sisos é mera variação genética.
incertezas Não é apenas a tarefa de prever o futuro que provoca dúvidas entre os pesquisadores. Quando historiadores se confrontam com evidências fósseis de humanos antigos, uma série de questões paira em suas cabeças: a qual espécie o indivíduo pertenceu? O que o define como pertencente a certa espécie e não a outra? Assim como o homem não sabe para onde vai, não descobriu ao certo de onde vem. Zamora explica que tradicionalmente a biologia defende que, se dois indivíduos saudáveis não cruzam, isto é, não geram descendentes férteis, não são da mesma espécie. “Embora essa classificação seja polêmica”, pondera. Primeiro, porque dois seres podem não gerar descendentes, ou terem um filho infértil e serem da mesma espécie, como no caso de um casal humano que tem doenças, deficiências ou por ocorrer má formação do feto. O professor ainda salienta que “nós não fazemos híbridos com ninguém, aparentemente”. O Menino de Lapedo é um exemplo desta dúvida reprodutiva. Descoberto em Portugal
em 1998, pesquisas com base em seus ossos concluíram que ele pode ter sido o resultado do cruzamento entre homo sapiens e neandertal. Então, seriam estes dois da mesma espécie? Ou diferentes, mas com capacidade de reprodução a ponto de gerar uma terceira espécie? Zamora frisa que as evidências fósseis são poucas para concluir que sequer houve cruzamento. Bonatto é mais otimista e conta que a partir do sequenciamento genético dos neandertais na metade da década passada, cientistas encontraram cerca de 2% de semelhança com sapiens de fora da África. Mesmo assim, não é possível afirmar que o homem contemporâneo tem raízes nos neandertais. Para compreender, portanto, as alterações no ser humano, é preciso entender o conceito de evolução. Conforme Zamora, “evolução é a variação da frequência genética em um certo tempo”. Bonatto sustenta que ela “não tem direção, as pessoas vão mudando”, e definir o que é espécie “é uma confusão danada”.
história Com tantas incertezas a respeito do rumo dos genes do homem e de onde vieram, os pesquisadores conseguem, entretanto, elencar algumas espécies que, de uma forma ou de outra, são antecessoras do homem contemporâneo. Conhecer o passado pode ser uma pista para entender o rumo que a humanidade tomou. O primeiro representante do gênero homo que surgiu no planeta foi o habilis, há cerca de 2 milhões de anos. Restrito à África, tinha cerca de 1 m de altura e seu nome vem da sua capacidade de produzir ferramentas.
Quando historiadores se confrontam com evidências fósseis de humanos antigos, uma série de questões paira em suas cabeças: a qual espécie o indivíduo pertenceu? O que o define como pertencente a certa espécie e não a outra? 21
Seria uma evolução do australopithecus, uma espécie semelhante a um macaco que conseguia andar sobre dois pés e era coberta de pelos. Mais tarde surgiram novas espécies, entre elas o ergaster, erectus, heidelbergensis, neandertal e sapiens. O professor de história da PUCRS Klaus Hilbert conta que, entre as diferenças das espécies do gênero homo em relação aos australopithecus, está o fato que este tinha menos habilidade e massa encefálica menor. Além disso, o último se alimentava essencialmente de vegetais, enquanto o primeiro já era onívoro. Hilbert acrescenta que não há um consenso entre os pesquisadores quanto a uma linearidade da evolução humana. Ou seja, evita-se afirmar que determinada espécie derivou diretamente de outra, pois em muitos casos o lapso de tempo é muito grande, o que deixa em aberto a possibilidade da descoberta de espécies intermediárias. Ele cita como exemplo ergaster e habilis. Aquele teria surgido na Terra antes do segundo, mas há quem diga que coexistiram. Também há distâncias muito grandes: ergaster pode ter sido o primeiro a sair da África, atingindo até o leste da Ásia. Erectus, por sua vez, foi encontrado no norte da África, Europa e leste asiático, mas no centro da Ásia, por exemplo, não há evidências. Com relação ao neandertal, há uma grande discussão científica relativa ao seu desaparecimento, ocorrido há mais ou menos 35 mil anos. Habitantes da Europa e do Oriente Médio durante a Era Glacial (período que se estende de 2 milhões até 15 mil anos atrás, mas não de maneira uniforme), viveram concomitantemente ao homo sapiens. Hilbert conta que os neandertais teriam um cérebro semelhante ao nosso em tamanho. Entretanto, seu pensamento era diferente: “Não desenvolveram a arte como o homo sapiens. É possível que não tivessem a ideia de vida após a morte, embora fizessem sepultamentos”, conta. Já o homo sapiens surgiu na África há mais ou menos 150 mil anos e de lá saiu para desbravar a Eurásia há cerca de 60 mil anos.
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Foi ele quem fixou residência em todos os continentes, exceto a Antártida (há apenas bases de pesquisas). Existem várias teorias sobre como ele chegou à América, que incluem povoamento a partir de migração de representantes da Oceania e via estreito de Bering, sendo esta a mais aceita. Localizado no norte da América setentrional, corresponde nos dias de hoje a uma faixa de água de cerca de 100 km, mas que há 40 mil anos era coberta de gelo que unia o que hoje são Estados Unidos (no Alasca) e Rússia (parte siberiana). Sobre essa passagem e evolução, Bonatto nota que os índios têm menos diversidade genética que os asiáticos: “Foram poucos humanos que cruzaram o Estreito de Bering em comparação ao número de habitantes que havia na Ásia. Assim, foram levados menos genes para a América”. Hilbert complementa afirmando que atualmente todos os índios descendem desses viajantes, que fizeram a travessia provavelmente na caça de animais. “Também há a teoria de que vieram da Oceania. Esta tem duas ramificações: vieram costeando a Ásia pelo norte até chegarem à América. Outra, que se aventuraram pelo mar. Mas não há, e nem havia na época de Colombo, descendentes deles. Só restaram evidências fósseis”, diz o historiador. Pode-se dizer que as descobertas têm ocorrido em intervalos de tempo menores. O homem, há 2 milhões de anos, fabricava ferramentas. Muito tempo depois, cerca de 1,5 milhão de anos mais tarde, chegou ao fogo. Quase 500 mil anos depois, na virada do século XIX para o XX, as propriedades do átomo eram estudadas a fundo. Dali apenas 45 anos, estava pronta a bomba atômica. Questionado se a evolução humana irá parar devido a uma auto aniquilação, Zamora é otimista quanto ao futuro de sua espécie. “Sou russoniano. Eu voto que as pessoas tendem a ser boas. Depende do ambiente em que vivem”, acredita. Ou seja, a única certeza quanto aos próximos dias do homem é que eles chegarão, e as dúvidas poderão ser respondidas ao longo do tempo.
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TÁ NA CARA!
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o corpo revela
texto giordano tronco
fotos mariana fontoura
A maior parte da comunicação humana não ocorre por meio da fala. A linguagem corporal é a chave para saber o que as pessoas realmente sentem e pensam e se elas estão mentindo.
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U
m gesto vale mais do que mil palavras. Olhar de soslaio, cruzar os braços, erguer o peito, passar a mão no rosto a toda hora tudo é indicativo claro do que pode estar passando na cabeça de alguém. Quer dizer, claro para quem é capaz de interpretar tais ações. As pessoas conseguem ler a linguagem corporal em algum nível. Um sorriso significa satisfação, um cenho franzido, preocupação. Já outros gestos, mais sutis, só são percebidos por especialistas. Na década de 80, os autores Pierre Weil e Roland Tompakow publicaram o livro O Corpo Fala, um manual de decodificação da linguagem corporal que, por conta de sua linguagem simples, logo se tornou um
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best-seller. Apesar de surpreendente para os não iniciados, o livro não traz nada de novo para profissionais acostumados a utilizar a linguagem corporal no dia a dia. São pessoas que entendem profundamente a comunicação humana, sabem se expressar de maneira a passar a intenção que querem e – o mais interessante – sabem quando alguém mente. O corpo sempre fala a verdade. Oscar Marcelo Silveira é o homem que reformulou o modelo de interrogatório policial no Brasil. Professor da Academia Nacional de Polícia, ele foi o responsável por desenvolver, no período pós-ditadura, o caderno didático oficial sobre as doutrinas de interrogatório, utilizado até hoje por policiais no país. Antes de Silveira, a polícia baseava seu modelo de interrogatório nas rotinas americanas, que buscam a confissão do crime. Para isso, utilizavam métodos agressivos de intimidação e até tortura. De acordo com Silveira, tais métodos não são apenas moral e judicialmente errados: eles são também inúteis. “Esse tipo de interrogatório é ineficiente e vai contra o Estado de Direito. Sob tortura, o camarada
Uma das técnicas de interrogatório mais difíceis é a leitura de microexpressões. As expressões faciais involuntárias que duram milissegundos, impossíveis de forjar. entrega até a mãe”, explica. Depois de entrevistar diversos parceiros policiais em busca das técnicas mais eficazes, Silveira montou um novo modelo de interrogatório, baseado na análise do discurso. E o discurso, nesse caso, não é só verbal. “Segundo a fórmula de Mehrabian (cientista pioneiro em pesquisar linguagem corporal), 7% da comunicação humana é pela palavra, 38% é vocal – pelo tom de voz, entonação – e 55% é visual: semblantes, gestos, movimentos. As pessoas gritam de modo não-verbal quando estão mentindo”, detalha. Certas reações não podem ser disfarçadas, são biológicas. Uma das técnicas de interrogatório mais difíceis é a leitura de microexpressões, expressões faciais involuntárias que duram milissegundos, impossíveis de forjar. Por exemplo: quando ouvimos o nome de uma pessoa que desdenhamos,
levantamos o lado superior do rosto para fechar as narinas. Esse gesto tem origem na associação que o nosso cérebro faz entre desdenho e nojo: as narinas fecham para repelir cheiros ruins. A partir das conexões do psicológico com o biológico, é possível saber no que o outro pensa. “A pulsação do pescoço denota adrenalina”, ensina o jogador de pôquer João Carlos Orso Jr., vulgo Moll. “Quer dizer que a pessoa está nervosa. É inconsciente. Tem pessoas muito pálidas que ficam vermelhas quando estão nervosas. Não tem como esconder.” Moll participa de campeonatos nacionais e internacionais de pôquer e garante que é possível ganhar uma mesa sem olhar as próprias cartas, apenas trabalhando com a probabilidade matemática e a leitura corporal dos adversários. Se o jogador é iniciante e não sabe como se portar de forma
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neutra, Moll consegue saber até mesmo as cartas que ele tem na mão. “Quando alguém se mostra muito interessado numa mesa, inclinando-se para ver as cartas, é porque ele tem ‘queda’, ou seja, está quase fechando uma sequência”, ensina. Isso acontece porque o novato tem a necessidade de conferir e reconferir as cartas para se certificar de quais números necessita para fazer o jogo. Já quem está esperando uma trinca, ou seja, uma sequência de cartas repetidas, se mostra desinteressado. As pequenas pistas que os interrogadores coletam por meio das reações corporais são chamadas de tells no mundo do pôquer. Existem os universais, como a pulsação do pescoço quando o jogador está com uma boa mão, e os que são característicos de algumas pessoas. Jogadores experientes sabem ler essas reações gerais e conseguem
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manter a calma durante as jogadas, deixando transparecer pouco de suas intenções. Moll recomenda que o jogador de pôquer se mantenha imóvel e quieto durante a partida, evitando assim dar pistas acidentais. Jogadores bons sabem usar os tells de forma reversa, forjando reações aparentemente inconscientes, como mexer nas fichas quando se está com uma boa mão. É importante ressaltar que a leitura corporal, apesar de muito útil, não é uma ciência à prova de erros. Numa sessão de psicanálise, por exemplo, a linguagem corporal pode prejudicar a análise objetiva de ambas as partes: o psicanalista pode ler equivocadamente os gestos do paciente, enquanto este pode querer ler as intenções do psicanalista para saber como agir, ou para tentar responder o que o terapeuta quer ouvir. Para evitar isso, o divã é usado como uma barreira na comunicação não-verbal, e seu uso é defendido pelos psicanalistas Luís Adriano Souto e Matheus Sgarioni. Eles consideram que os gestos podem ser lidos apenas dentro de um contexto. “Esses manuais, como O Corpo Fala, mostram uma ligação unívoca
Nós usamos o corpo para nos comunicarmos quando criança. Na adolescência, passamos do pensamento físico para o concreto. entre gesto e sentimento. Mas um gesto não quer dizer sempre a mesma coisa”, diz Sgarioni. Ainda sobre o livro, Sgarioni explica que a obra trata somente de relações entre semelhantes: “Nós não queremos ser amigos do paciente; nós queremos que ele fale além do que nós podemos querer ouvir, que ele faça associações livres.” Souto conta da vez em que atendeu um paciente e não usou o divã: “O cara ia acabar com a namorada. Quando ele me falou isso, eu fiz uma expressão que ele leu como um indício que deveria mesmo acabar com ela. No divã isso não aconteceria.” Eliminando-se a via de comunicação corporal, resta a verbal. Apesar de os psicanalistas preferirem focar-se nela durante a análise, a palavra falada é uma ferramenta muito eficiente para a mentira. Para fazer o caderno didático de interrogatórios da po-
lícia, Silveira leu diversos autores de psicologia aplicada à comunicação. “Muitos deles dizem que o homem criou a palavra falada para viver melhor em sociedade, porque pode mentir”, explica. “O corpo, por outro lado, sempre fala a verdade.” Será mesmo? Uma pessoa devidamente treinada pode usar o corpo para passar a intenção e a emoção que quiser. Não que isso seja tarefa fácil: dominar a atuação é algo tão difícil como aprender a ler microexpressões. Ana Fuchs, professora de teatro do Colégio Aplicação da UFRGS, explica que todos nós usamos o corpo para nos comunicarmos quando crianças; já na adolescência, passamos do pensamento físico para o concreto. O adolescente, desengonçado, teme o julgamento do grupo e fica corporalmente “travado”. Ana desenvolve a redescoberta do corpo através de aulas de teatro para a 8ª série
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e oficinas de palhaço para o Ensino Médio. “O trabalho ensina a pensar primeiro com o corpo e depois com a cabeça, como fazem as crianças”, explica. Ao dirigir uma peça, a professora não pede aos atores que decorem o texto na íntegra. Em vez disso, prefere dar ênfase na construção da identidade corporal dos personagens, e isso é feito com de exercícios. Num deles, Ana pede aos alunos para se posicionarem no meio da sala de teatro, formando uma representação imóvel de seus personagens numa das cenas da peça. Isso os obriga a pensar em como comunicar pensamentos e acontecimentos sem usar palavras. A essas imagens paradas dos personagens, Ana dá o nome de “estátuas”. “Vamos lá! Estátua um!”, anuncia Ana, e diz o nome de um dos personagens da peça. O ator que encena o personagem se posi-
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ciona no palco com um gesto fixo que represente o seu personagem. Os movimentos não podem ser repetidos. “Estátua dois!”, propõe Ana, e dá o nome de mais um personagem que deve entrar em cena e fazer uma pose. Não há muito tempo para pensar: a ordem é aleatória. e os alunos têm poucos segundos para agir. Os exercícios da oficina de palhaço são ainda mais curiosos: num deles, Ana manda os alunos circularem pela sala de teatro imitando animais, ao som de uma música circense. Obedecendo-a, os jovens se contorcem e arrastam os pés desengonçadamente. Uma menina cisca. Questionados sobre para que serve aquela atividade, um aluno responde que os animais representam quem eles são de verdade. “Isso aí!”, vibra a professora. “Nós criamos máscaras sociais para não nos expormos ao ridículo. O animal é o nosso ridículo. É aquilo que gostaríamos de fazer, mas não podemos fazer na frente dos outros. Nós temos orgulho dos nossos peitões, mas não podemos andar por aí balançando o peito como uma galinha, porque iam nos achar ridículas.”
A menina que imitou uma galinha ri. Ana conta que alguns adolescentes e atores iniciantes são muito travados corporalmente. É preciso ensiná-los a pensar com o corpo. “Assumir defeitos, descobrir potencialidade de cada um, descobrir esse corpo além do cotidiano que fica escondido por medo do ridículo”, diz. Mesmo não sendo especialistas, todos nós atuamos e praticamos a leitura corporal no dia a dia, sem perceber. Ao se aprofundar no assunto, é possível ter uma vantagem nas relações interpessoais. Na vida cotidiana, o policial Silveira diz que a maneira mais eficiente de reconhecer um mentiroso é confiar nos nossos instintos. “Nós somos programados para repelir falsidade. Por isso a gente não vai com a cara de gente falsa”, explica. Isso acontece porque nossos antepassados viviam em constante disputa por recursos. Confiar numa pessoa mal-intencionada, naquela época, poderia custar a vida. Aparentemente, às vezes a primeira impressão pode mesmo ser a correta.
“
Nós criamos máscaras sociais para não nos expormos ao ridículo. O animal é o nosso ridículo. É aquilo que gostaríamos de fazer, mas não podemos fazer na frente dos outros. Ana Fuchs
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o corpo se transforma
A VIRADA Como é viver com a sensação de que você não nasceu com o corpo certo.
texto lucas cunha
fotos matheus vieira
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A
preâmbulo
ntes de mais nada, o que você precisa saber é: eu não sou alguém conhecido por sair na rua julgando o estilo de vida dos outros. Isso não faz parte da minha constituição ética, não faz parte daquilo em que acredito. E eu acredito em algo que se pode chamar de Espírito Democrático. Eu acredito seriamente nisso. Não emitir julgamentos prévios sobre as pessoas baseado nas aparências constitui grande parte do meu código de valores. Portanto, se em algum momento do texto a seguir você sentir qualquer espécie de desconforto moral (se enquanto você estiver lendo este texto o neurônio responsável pela sinapse ei-isso-foi-meio-que-ofensivo-né disparar lá no fundo da sua cabeça) lembre-se: eu quase com toda a certeza sou uma pessoa razoavelmente estúpida e cheia de limitações como todo mundo, mas isso não me faz mais insensível ou intolerante a respeito das opiniões e/ou estilos de vida alheios. Leia este preâmbulo de novo, se for necessário. Recorte e tenha ele sempre a mão na hora em que você ficar desconfiado das minhas intenções. Estou dizendo tudo isso porque muito do que você vai ler aqui é resultado da minha visão/opinião sobre coisas que, historicamente, incitam muita controvérsia e discórdia. Para ser mais específico, vou falar sobre sexo e discriminação1. Sobre homossexuais, travestis, transexuais e algumas outras minorias que não precisariam da minha ajuda para se
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tornarem ainda mais estereotipadas. Vou falar sobre um médico que se especializou em mutilar genitálias. Vou falar sobre o que faz um homem ser um homem e o que faz um homem querer se tornar (e não só se vestir ou agir como2) uma mulher3. Em suma, vou falar sobre o corpo. Sobre não aceitar o corpo com o qual você nasceu. Sobre como isso pode muito bem não ser um defeito de caráter. Sobre como muitas pessoas pensam exatamente o contrário. Não vai ser fácil, você nem precisa me dizer.
Marcelly Engraçado como muitos dos nossos preconceitos acabam se revelando verdadeiros. Eu juro que foi com a melhor das intenções que botei o pé, certa tarde de quarta-feira, na sede da ONG Igualdade RS, situada na Galeria Malcolm, Rua dos Andradas, Centro (não geográfico) de Porto Alegre. Minha mente estava devidamente aberta para aprender coisas sobre um mundo que eu em grande parte desconheço. Estava disposto a ter meus preconceitos postos na lona, derrotados, enxotados. Queria me livrar deles. Não foi bem isso que aconteceu. Mas primeiro, um pouco de contexto é necessário: A Igualdade RS é uma ONG que luta por uma série de causas relacionadas aos direitos dos travestis e dos transexuais4. É um grupo que se originou do antigo Gapa (Grupo de Apoio a Prevenção da Aids) de Porto Alegre, em maio de 1999. Assim como o Gapa, uma das maiores preocupações da Igualdade é com a saúde das travestis e transexuais. Para esse fim o grupo realiza diversas campanhas de prevenção. E, uma vez que a participação
1 E vou usar a primeira pessoa porque esse talvez seja o
jeito ideal e menos inconsequente de falar sobre um assunto tão espinhoso e traiçoeiro quanto a sexualidade humana. Acredite, não foi uma escolha fácil.
2 Imbróglio: o que eu quero dizer exatamente com “se
política dos travestis e transexuais na, por exemplo, Câmara de Vereadores de Porto Alegre é tão próxima de zero que nem vale a pena mencionar, a Igualdade tenta também cooptar alguma força política para estabelecer leis e medidas em apoio da causa (como, por ex.: o decreto recentemente assinado pelo governador Tarso Genro permitindo que travestis e transexuais sejam identificadas por nomes femininos em seus respectivos RGs). A primeira coisa que eu notei ali ao conversar com as pessoas foi: o trabalho que eles realizam é totalmente sério e valioso. “Mais de 90% de todas as travestis que chegam aqui são ou foram prostitutas, sabe?”, foi o que me contou Marcelly Malta, 61 anos, ela própria uma travesti homossexual, ex-tesoureira e atual cappo da Igualdade RS, no meio de nossa primeira entrevista, como se isso fosse ponto pacífico. Mais de 90 ? Isso é o bastante para um estereótipo se tornar verdade? Conforme Marcelly, desde mais ou menos os sete anos ela já sabia que havia algo de errado com o seu corpo. Ela nasceu em Mato Leitão, município gaúcho bem próximo a Venâncio Aires. Veio para Porto Alegre na década de 1970, para estudar. Já por volta dessa época, se travestia. Sempre escondida, usando a roupa das mulheres da família5. Quando veio a Porto Alegre, Marcelly morou num apartamento na Rua Voluntários da Pátria. A primeira impressão que a rua causou nela foi de fascínio. Ela ficou pasma com as prostitutas que trabalhavam no local. Não muito depois, mudou-se para uma residência de freiras, na Avenida Independência. Começou a trabalhar como enfermeira na Santa Casa de Misericórdia e lá fez amizade com
vestir ou agir como uma mulher”? Existe algo dessa natureza? As centenas de gurias seminuas que desfilaram na Redenção em maio deste ano, naquilo que ficou conhecido como Marcha das Vadias, discordariam furiosamente dessa minha opinião. Provavelmente nunca mais me olhariam na cara se eu mencionasse isso. O caso é que muitas capitais do Brasil (do mundo?) estão assisitindo a uma espécie de quarta onda radical do feminismo no momento em que digito digito. Então, por favor, só dessa vez, para o bem da clareza na discussão, vamos admitir por um breve momento que, sim, existem duas coisas diferentes que podem ser definidas como feminilidade e masculinidade, e que homens e mulheres se comportam sim de maneiras distintas, independente de raça, cor, credo, religião e opção sexual. Talvez esse seja o momento de você voltar para o começo do Preâmbulo.
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E, possivelmente, sobre o que faz um homem heterossexual querer virar uma mulher a fim de manter relações (homos-?)sexuais com mulheres que sempre quiseram ser mulheres. As combinações poderiam continuar por linhas e mais linhas, acredite.
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Ninguém nasceu sabendo: segundo o Houaiss, um travesti é um “homossexual que se veste e que se conduz como se fosse do sexo oposto”. Um transexual, por sua vez, é “aquele que tem a convicção de pertencer ao sexo oposto, cujas características fisiológicas aspira ter ou já adquiriu por meio de cirurgia”. Bônus: um hermafrodita é o ser “que tem concomitantemente os órgãos reprodutores de ambos os sexos ou apresenta características sexuais secundárias masculinas e femininas”, e que pode ser confundido com o andrógino, “aquele que apresenta características, traços ou comportamento imprecisos, entre masculino e feminino, ou que tem, notavelmente, características do sexo oposto”. Cross-dresser é um travesti, mas não necessariamente um homossexual. Pense no Laerte (que é, só para complicar, um cross-dresser bissexual). Drag-queens são meio que a mesma coisa que cross-dressers, mas eles se travestem para realizar shows geralmente.
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Vai demorar um tempo, mas eu vou acabar descobrindo que a maioria dos travestis (e cross-dressers e drag-queens e até mesmo alguns transexuais) começa assim, usando, escondido, a saia da prima e a calcinha da tia e o sutiã da amiga na frente do espelho do quarto ou trancado no banheiro, quando ninguém mais está em casa.
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A partir de certo estágio, ninguém mais consegue esconder, seja se travestindo ou entrando para uma academia: estamos todos apodrecendo sob o sol. outros gays, prostitutas e travestis. Foi lá também que começou a tomar por conta própria hormônios femininos para mudar seu corpo. Tomou seis injeções da primeira vez, por insistência de uma amiga: “A primeira coisa que acontece, assim, de repente, é perder os pelos, a barba. Depois vêm os seios”. O que Marcelly mais fazia nesse período era saquear o estoque do hospital em busca de injeções hormonais para ela e suas amigas. Outro expediente bastante comum nesse período era o autoimplante de silicone. Usavase silicone industrial, geralmente obtido em mecânicas. Marcelly me contou como muitas amigas suas morreram em decorrência de infecções geradas a partir do procedimento. Por essa época, Marcelly já se vestia totalmente como mulher — já se assumira como Marcelly. À noite, depois do trabalho no hospital, ela começou a se prostituir. Seu ponto favorito era o Jardim do Dmae6, na 24 de Outubro. Largou o emprego no hospital. Passou a ser tão conhecida no métier que acabou se tornando uma espécie de porta-voz de suas colegas7, numa época em que as travestis de Porto Alegre nem sonhavam em se organizar para defender seus direitos. Logo: a Igualdade RS. Marcelly me disse que fazia muito sucesso como prostituta8, principalmente por ser loira, alta e ter herdado certos traços germânicos da parcela materna de sua família. Mas hoje — bem, hoje olhar para ela é mais ou menos como olhar para um retrato cubista: você sente que sua retina está recebendo os dois lados de um objeto de uma só vez. É desorientador e um pouco desconfortante. Talvez esses não sejam os termos exatos, embora a sensação esteja bem próxima. Vou explicar melhor. O
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fato de ela ter mais de 60 anos agora é bem importante para a sensação, eu acho. A cada dia que passa Marcelly provavelmente vai ficando mais e mais parecida com os homens de sua família, não com as mulheres de traços germânicos de que ela gosta de falar. Seus traços estão ficando embrutecidos, progressiva e inexoravelmente. É inevitável; e é óbvio que não se trata de uma exclusividade. A partir de certo estágio, ninguém mais consegue esconder, seja se travestindo ou entrando para uma academia: estamos todos apodrecendo sob o sol. Isso é o que faz eu descrever o ato de olhar para ela como sendo desconfortante: Marcelly é agora, aos 61 anos de idade, uma metáfora perfeita da extrema futilidade de qualquer tipo de vaidade em face da decadência inevitável do corpo. Nela, isso fica evidente nas rugas fundas ao redor dos olhos, no nariz e na cartilagem ligeiramente flácida das orelhas: essas características contribuem um pouco para o desconforto, mas não só. Há o cansaço. O cansaço é o ingrediente principal. Porque deve cansar. Só pode. E nem estou falando aqui dos anos de prostituição9, isso é óbvio. Estou falando do esforço contínuo para “se montar”. Para disfarçar. Estar fadado por um impulso pessoal a esconder eternamente aquilo que teima em aparecer. Não consigo imaginar tarefa mais ingrata e fútil, e (leva tempo para perceber) mais heroica e comovente.
cirurgia Este parece ser o momento ideal para uma descrição absurdamente detalhada (e, por-
tanto, levemente arrepiante, esteja alertado) de como uma cirurgia de troca de sexo realmente funciona, não? Na edição de abril de 2010 da revista piauí, a jornalista Clara Becker acompanhou a rotina de uma clínica carioca especializada em operações de troca de sexo. Foi isto o que ela viu: Alexsandro cedeu seu banco ao colega. Apostolides10 sentou-se, puxou a máscara para cima do nariz e começou. Ele desmembrou o pênis por dentro do períneo, descascando-o como se fosse uma banana11. A ideia era tirar as cartilagens, deixá-lo vazio. Os tecidos e a pele exteriores do pênis seriam mais tarde empurrados de volta para o períneo, por cima do reto, num espaço moldado com o dedo que faria as vezes de canal vaginal. De quando em quando, Apostolides pedia a Alexsandro para verificar a precisão dos cortes e orientar os próximos passos. Linda jazia imóvel, com as pernas abertas em posição ginecológica, coberta por lençóis azuis da cintura para baixo. O cheiro forte de sangue quente deixava o ar úmido e espesso, mas não inibia o apetite dos médicos. Durante quinze minutos, trocaram experiências gastronômicas, endereços de restaurantes e pratos que valiam a pena serem experimentados12. Na segunda hora da cirurgia, Alexsandro assumiu o controle. O silêncio dominou a sala e a equipe formou uma rodinha em volta do chefe. Seus movimentos pareciam orquestrados. Ele empunhava bisturis, linhas e tesouras como se fosse ambidestro, com segurança e delicadeza notáveis. Por debaixo das máscaras, a equipe cochichava: “Aquilo ali é o quê?”, “Você viu o que ele fez com a uretra?”, “Nossa quem inventou isso?” Ouviu-se até um “isso me dá até saudades do meu namorado”. Alexsandro cortou o triângulo no meio da glande e costurou duas pontas ao avesso, formando um delicado clitóris. Os testículos foram extraídos com a ajuda de um bisturí elétrico que, ao queimar o tecido, inundou a sala com um cheiro de carne esturricada. A pele do escroto foi esticada e usada para formar os grandes lábios. Os pequenos lábios foram feitos
6 Um centro de tratamento de esgoto/passeio público que é um dos pontos turísticos mais insólitos e bonitos de Porto Alegre e que, na época em que Marcelly se prostituía, era conhecido como Caixa d’Água, Hidráulica etc. Aparentemente, as prostitutas cultivavam um humor de campo de concentração. Marcelly me contou que na “na Hidráulica se ganhava dinheiro que nem água” etc.
7 Acho que ajuda também o fato de ela ser uma ora-
dora nata: engraçada, confiante, articulada e nunca, sob hipótese alguma, deixa de te olhar nos olhos.
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Principalmente com pais de família, segundo ela. Misteriosamente (pelo menos para mim), esse é aparentemente o recorte demográfico que mais se vale dos serviços de um travesti: pais de família sadios e heterossexuais até que se prove o contrário. Um exemplo curioso: quando Marcelly começou a se prostituir na Hidráulica, um delegado (que permanecerá anônimo nestas páginas) acabou se tornando um de seus clientes mais frequentes e, por consequência, livrou ela e suas colegas de serem presas diversas vezes. Ele e Marcelly tiveram um caso extraconjugal que durou cerca de 20 anos.
9 É significativo, eu acho, que a gíria para se prostituir entre elas seja: “ir pra batalha”.
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Infelizmente, creio que nenhum dos nomes aqui seja fictício.
11 O texto de Becker está apinhado de momentos que
eu só posso classificar como lynchianos. É quando você tem algo extremamente banal justaposto com algo extremamente perturbador e atroz. Dizer que um pênis parece uma banana é uma das maneiras mais batidas e infantis e bobas e inocentes que eu consigo pensar para fazer menção ao órgão masculino, mas nessa passagem tudo o que Becker consegue é assombrar qualquer homem que esteja em seu raio de influência e me fazer levar as mãos instantaneamente para entre as pernas num paroxismo de proteção, me defendendo de um aparato torpe, hediondo e que só existe na minha cabeça.
12 Viu?
a partir do prepúcio e parte da uretra. A cada meia hora, Alexsandro reclinava o corpo para trás, tomando um pouco de distância para verificar a simetria. “Quem é de fora vê só barbárie, mas o olho treinado vê beleza”, comentou. A hora final foi gasta costurando tudo o que foi desmembrado. Citar uma extensão tão longa de um texto como esse é válido não só como catequese aos estudantes de jornalismo a quem, no fim das contas, esta publicação se destina — Becker fez uma reportagem imparcial, não protocolar, engenhosa, refinada (e, francamente, criou um paradigma que este texto jamais alcançará). A citação também é válida porque esclarece algo que muitos daqueles aparentemente inabaláveis em sua opinião contrária aos transexuais jamais parecem perceber: esse é um processo inacreditavelmente arriscado e doloroso. Não se engane. Você tem que manter o processo em mente se quiser realmente entender o assunto. Algumas pessoas estão dispostas a fazer algo assim com os seus próprios corpos, estão dispostas a mutilar o seu lado mais particular e íntimo e sensível e frágil. Elas são capazes disso para mudar. Apenas para mudar. Apenas para corrigir o que creem ser um erro. Há uma analogia inevitável aqui: o suicídio. Mudar de sexo é, de certo modo, matar quem você é (pelo menos matar uma parte vital de quem você foi) e, através disso, encontrar alívio. É um gesto desmedido. A última solução. E uma das metáforas mais bonitas e precisas que eu conheço sobre o suicídio (vinda do livro Infinite Jest, de David Foster Wallace) diz que se matar é mais ou menos como estar no último andar de um prédio muito alto e em chamas. Não há
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Luísa Helena Stern, advogada e ex-funcionária pública,, irá realizar a operação de troca de sexo no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
como escapar. O fogo está lambendo os seus pés. Em pouco tempo não será mais possível respirar. E então: não é que você não tenha medo de se jogar. A queda é aterrorizante por si só. Mas, em certo momento, o medo de cair se torna bem menor do que o medo de se queimar. É como se você não tivesse outra escolha.
Luísa De longe, a coisa mais legal a respeito de ter feito uma entrevista com Luísa Helena Stern, 46 anos, porto-alegrense, advogada e ex-funcionária pública, é que aqui nós temos alguém que foge completamente daquilo que eu estava esperando de alguém prestes a fazer uma cirurgia de mudança de sexo. Ao contrário de Marcelly (vide n.7), a melhor palavra para descrever Luísa seria: tímida13. Para ser franco, essa inibição meio que originou uma desvantagem para a nossa conversa. Tirando a parte de que muitas respostas resultaram inaudíveis numa conferência posterior ao gravador, o pior foi que eu não sabia por onde começar. Como é que você fala sobre sexo com alguém que visivelmente não está confortável com a situação? Seria ético da minha parte? Não sei você, mas eu escolhi começar já perguntando desde que idade ela passou a notar que havia algo diferente com o corpo que tinha. Luísa me disse que essa sensação começou aos quatro anos e que já aos nove ela esperava a mãe ou a irmã esquecerem um sutiã no banheiro ou no quarto para usá-lo em segredo. E em segredo quase todo esse lado da vida dela passou enquanto ainda morava com a
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família. Ela se tornou um cross-dresser de verdade quando saiu da casa dos pais. Primeiro, só “se montava” para ficar em casa. Um pouco depois, passou a sair à noite também vestida daquele jeito. A grande mudança, no entanto, foi começar a trabalhar vestida assim14. Não muito depois, ela começou a tomar hormônios15. Primeiro por conta própria e depois com instrução médica. Primeiro, perdeu a barba. Depois, os seios se pronunciaram. Sua voz mudou. Ela também diz que foi por essa época que perdeu quase todo contato com sua família. “Mas acho que hoje eles já meio que se conformaram com toda a situação”, diz. O envolvimento de Luísa com a Igualdade vem mais ou menos dessa época em que ela começava a se assumir não mais como crossdresser mas como uma transexual. Ela começou frequentando algumas palestras e, como já tinha conhecimento na área jurídica, passou a assessorar membros da ONG e quem mais quisesse sua ajuda em matéria legal. Ela me contou que quando primeiro pensou em fazer a cirurgia de mudança de sexo, nem sabia que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre realizava esse tipo de operação. O plano inicial era viajar para a Tailândia e se operar por lá. Por acaso, um conhecido da ONG acabou lhe informando sobre o programa do hospital e Luísa se inscreveu. Isso foi há três anos16. Ela espera ser operada até o fim do ano. Mas é estranho como você meio que pode pressentir (bom, eu na verdade com certeza pressenti) que ela não tem tanta certeza sobre a operação. Uma pista é ela sempre usar “acho” e nunca “sei” quando fala sobre o assunto. E só agora me ocorre que eu não perguntei
“
Eu acho que a operação pode ser a virada da minha vida. Luísa Helena Stern
(e em nenhum momento da nossa entrevista tive a mais remota ideia de perguntar) sobre a vida sexual dela. Francamente, não existe maneira segura de tomar qualquer julgamento sobre a questão. Por tudo que sei, ela pode ainda ser virgem. Você pode achar estranho, mas essa parece uma questão secundária na coisa toda. A questão principal é esta (e eu meio que já sei a resposta, mas tenho que perguntar, é inevitável): por quê? Por que só agora fazer a operação? E depois? O que acontece depois? Você não acha que talvez essa vontade de renegar o corpo com o qual você nasceu seja possivelmente um impulso que nunca vai ter fim, que a insatisfação talvez nunca termine? Isso não te assusta? “Eu acho que a operação pode ser a virada na minha vida”17. E é isso. Não há muito mais o que dizer agora. No fim do ano, é muito provável que Luísa finalmente consiga o que quer. Aquilo que sempre quis. O gesto desmedido. O disfarce ou o descobrimento, dependendo da maneira como você vê as coisas. Mas algo é mais ou menos óbvio: ela não parece ter outra escolha. E, se você estivese lá comigo, também não teria outra escolha, na hora em que ela diz isso, além do que lhe desejar toda a sorte do mundo, mesmo que isso, talvez, não seja o bastante.
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“Reservada” ou “sutil” poderiam ser um segundo lugar não muito distante, quase empatados com “inteligente”, embora essa seja mais difícil de notar, por mais óbvio que pareça depois de percebido.
14 É importante notar uma coisa aqui: como eu já dis-
se, Luísa era funcionária pública. O órgão específico e o período em que trabalhou lá ela não quis me dizer. Perguntei mais de uma vez como tinha sido a reação dos colegas ao vê-la vestida como mulher assim de repente, mas ela só sorria, olhava pra baixo e balançava a cabeça: “Acho que eu não preciso falar sobre isso, tá?” Eu não consigo nem começar a imaginar a quantidade de merda emocional que ela teve de aguentar durante anos e anos e anos trabalhando num órgão público vestida daquele jeito.
15 Luísa me explicou que existem dois tipos de trata-
mento hormonal para homens que querem começar a se “conduzir como se fossem do sexo oposto”: o primeiro é o bloqueador de testosterona, que faz exatamente aquilo que promete. Os efeitos mais repentinos são a diminuição e, por fim, a erradicação da barba, do cabelo no braço etc. O segundo são os hormônios femininos, que são os que Marcelly roubava para dar às suas amigas. Eles ajudam na perda de pêlos e dão início ao desenvolvimento de seios. Luísa usou os dois em diferentes fases de sua vida.
16 O programa do Hospital de Clínicas para quem quer
realizar a operação de troca de sexo funciona da seguinte maneira: após a inscrição, você passa seis meses em avaliação individual com um psicólogo. Depois, são mais dois anos de análise em grupo com outras pessoas que querem se operar. Só depois desse processo a operação pode ocorrer.
17 Acho que, de alguma forma, é coerente que essas
sejam as últimas palavras dela citadas literalmente neste texto.
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NO LIMITE texto jo達o vitor ferreira fotos felipe dalla valle
o corpo sofre
Em busca do alto rendimento, os atletas profissionais convivem com uma parceira em suas vidas: a dor.
Esse desconforto, consequência de muito esforço e desgaste, acompanha os profissionais do esporte.
J
ogar futebol com os amigos no domingo, correr, andar de bicicleta nas horas vagas, se exercitar com o intuito de melhorar a forma física. Essas são atividades que, em algum momento, causam dor. Mas agora pense em conviver diariamente com um desconforto ainda maior. É assim que vivem atletas profissionais que praticam esportes de alto rendimento. Com 1,51m e apenas 22 anos, a ginasta Adrian Gomes, do Grêmio Náutico União, sabe muito bem o que é conviver com a dor. “Na verdade sentimos esse desconforto desde quando começamos no esporte. Precisamos forçar a flexibilidade e acostumar o corpo. Então dói desde o começo”, afirma Adrian. Gaúcha de Porto Alegre, Adrian começou a fazer ginástica com seis para sete anos. Aos oito, iniciou seu treinamento no clube e, aos 15, foi convocada para a Seleção Olímpica Permanente de Ginástica. Aos 17 anos, a jovem atleta resolveu parar. “Não sei o que aconteceu, mas não quis mais treinar e parei. Mas quatro meses depois eu voltei, e até acostumar o corpo de novo, doeu muito”, lembra a atleta. Adrian já está habituada com a dor e isso pode ser explicado quando vemos a sua rotina de atleta. “São seis dias por semana, dez seções e ao todo seis a sete horas de treino”. Sempre na busca da melhor marca, lesões acontecem com frequência. E na vida de jovem, a lista é grande. “Eu já quebrei o pé em 2010, quebrei o punho, rompi o tendão de Aquiles duas vezes, quebrei o cotovelo, tenho uma hérnia de disco, uma lesão por estresse na coluna, fora os estiramentos na panturri-
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lha e coxa. Acho que foi só”, revela. Foi uma lesão que afastou Adrian de seu maior sonho. Na véspera da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, a ginasta foi cortada da seleção brasileira. O motivo: uma contusão por estresse na lombar. “Eu não considero esta a minha pior lesão, mas sem duvida foi marcante por se tratar de Olimpíadas. Agora é tocar pra frente, já passou”, diz. Quando se fala em esportes profissionais, a fronteira entre o que saudável e o que é exagero é uma linha tênue. Muitos atletas vão além do que podem na busca de seus objetivos. “Limite tem, mas tem que aguentar até onde der. Mas claro que sei onde parar”, brinca. O que é dito pela ginasta é confirmado por sua técnica. Adriana Rita Alves afirma que, quando o treinamento foca no alto rendimento, sentir dor é normal. Porém, ela assegura que estar bem preparado faz com que diminua a intensidade das dores e previne as lesões mais sérias. “Dor é normal, mas ela pode ser causada por cansaço ou esforço repetitivo e isso é solucionável com descanso e fisioterapia, porque o corpo está acostumado”, completa. Ex-atleta, Adriana está habituada com a dor, e sabe como funciona esse desconforto. “As meninas sofrem mais com dores e lesões nos membros inferiores e quando estão acima do peso. Já os rapazes sofrem com os membros superiores”, define. Adriana admite ser uma técnica linha dura. Grita e chama atenção de suas atletas por qualquer detalhe que possa fazer a diferença. Ao mesmo tempo, garante que já foi pior. “Sou mais calma agora com elas, já fui mais dura. O problema é que a geração atual é diferente, não suporta tanto a cobrança. É preciso ter disciplina, mas ser maleável também”, afirma. As inúmeras repetições em busca da melhoria do desempenho provocam desconforto, mas parece que isso já é natural. “Sempre dói, começamos o treino normal, mas aos poucos, quando o esforço aumenta, a dor vem junto. Algumas eu nem sei como acontecem”,
Há 17 anos , Adrian Gomes convive com a dor da prática do esporte. Hoje, a ginasta de 22 anos aprendeu a respeitar seus limites para evitar as frequentes lesões.
diz a atleta. O cotidiano de um esportista se confunde com a dor. Em determinados períodos de treinamento, o incômodo é grande. ”Até mesmo beber água é difícil, não tem como explicar”, desabafa. Porém estar fora do mundo esportivo, das competições e dos treinos não impede que a dor a acompanhe nas outras atividades. “Atrapalha no dia a dia. Pentear o cabelo ou tirar a blusa dói, porque sinto meu cotovelo. Dói para se abaixar para tirar ou colocar meias ou tênis, girar a maçaneta ou a chave do carro também é ruim. Não chega a ser insuportável, é mais um cansaço e um reflexo do músculo”, conta a atleta. “Quem faz esporte de alto rendimento sabe que a dor é uma constante na sua vida”. A
frase é dita por um dos maiores especialistas em medicina esportiva do Brasil, João Zanini. Nos treinamentos, competições e conquistas, o sofrimento é algo inevitável quando falamos de esporte profissional. “Não se atinge um aperfeiçoamento e uma excelência de desempenho sem repetição. A linha que separa o alto rendimento e a lesão é muito tênue”, afirma Zanini. Dor consequentemente causa incômodo, e isso pode acabar causando lesões. Zanini afirma que “todo processo de aperfeiçoamento físico é baseado em fazer com que o atleta sofra microlesões.” Isso seria um processo reativo, para que o organismo entenda que é necessário aumentar a massa muscular, ou a força em determinados locais. As microlesões são chamadas de lesões
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Mesmo um atleta profissional convive com a dor sempre. Os esportes de solo, como a ginástica que Adrian pratica, estão entre os que geram mais lesões.
calculáveis. Elas são consideradas positivas para uma melhora de capacidade e rendimento e acontecem nas fibras musculares. “E o próprio organismo recompõe os tecidos danificados, tornando-os mais fortes e resistentes”, explica o médico. No esporte, o ganho de condicionamento físico gera dor inevitavelmente. O que não pode acontecer é gerar lesão, mas o desconforto irá aparecer em determinado momento ao aumentar o grau de treinamento. “No começo você corre cinco quilômetros e ao passar para dez vai te gerar um incômodo maior”, afirma Zanini. O médico deixa claro que a dor é um alerta do organismo, mas que existe uma diferença de sintomas entre os atletas profissionais e os amadores. Ele afirma que quem pratica o esporte sem nenhum tipo de preparo corre um risco de desenvolver problemas de saúde, por fazer um exercício sem planejamento. Já o atleta, possui todos os recursos de análise para determinar o processo de evolução. “Mas não adianta, mesmo o superprofissional é obrigado a conviver com a dor, não tem como”, conclui. De acordo com Zanini, “o esporte profissional envelhece o organismo mais rápido”. Por outro lado, existem aqueles que conseguem atingir uma idade avançada, mas com um nível de condicionamento físico ainda muito alto. Isso, segundo o especialista, tem relação com a genética de cada um e também com o cuidado com o corpo. Natação, ginástica, futebol, vôlei, basquete, não importa, segundo Zanini, não é possível fazer uma escala de esportes que causam mais ou menos dor. Porém, ele faz uma ressalva: “Os de solo, que causam maior impacto, são piores, geram mais lesões”. A ginástica, praticada por Adrian, se encontra entre este tipo de esporte. Explicando a dor, Zanini lembra um preceito norte-americano do final dos anos 70 que afirmava “no pain, no gain”, em português, o mesmo que “se não tem dor, não tem ganho”.
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o corpo sente
ENSAIO SOBRE A DOR texto ian linck
fotos matheus vieira
“A dor é tão necessária como a morte.” Voltaire
A
dor não existe fora de nós mesmos. Ela nada mais é do que uma sensação desagradável, criada pelo nosso corpo para nos alertar sobre perigos e agressões externas. Segundo a Associação Internacional de Estudo da Dor (IASP), é uma “experiência sensorial e emocional desagradável associada com danos reais ou potenciais em tecidos, ou assim percepcionada como dano”. A definição acrescenta ainda que cada indivíduo se relaciona diferentemente com a dor. Por mais desagradável que possa ser, ela é parte indissociável das nossas vidas, apesar de estarmos constantemente fugindo dela. Uma prova disso é que os remédios mais comprados no mundo são contra a dor. No Brasil, por exemplo, o medicamento mais vendido em 2011 foi o Dorflex, analgésico e relaxante muscular, proporcionando um ganho de R$ 338 milhões para o laboratório Sanofi Aventis. Em segundo lugar, a Neosaldina, indicada para dores de cabeça, rendeu R$ 216 milhões para o Laboratório Takeda. Todos sentem dor, mas poucos a entendem. Segundo Carlos Musse, especialista em Medicina Física e Reabilitação, nós não vivemos sem a dor. “Ela tem uma função protetiva, detecta que alguma parte do corpo está recebendo uma sobrecarga além do normal. Ela nos indica que algo está errado e recruta sistemas de reação do próprio corpo”, explica. Segundo ele, todos os seres vivos têm uma resposta de dor, de lesão. Isso se chama nocicepção, um estímulo nóxico. “Se você enfiar uma agulha num ser invertebrado, ele vai
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ter uma resposta de fuga. O sistema neuronal mais primitivo que existe, digamos, uma esponja do mar, também tem uma resposta de fuga à lesão. Assim como nós: se você está de pés descalços e pisa na areia quente, ou num prego, você tira o pé e às vezes nem se machucou.” Em suma: a dor é um instinto de sobrevivência, necessário para a nossa evolução, nos avisando de um machucado ou uma doença. Mas há casos em que a própria dor se transforma em doença. Para a professora aposentada Maria Lira Leite de Mello, 54 anos, ela é presença constante desde que tinha 30 anos. Maria sofre de dores crônicas em várias partes do corpo: na cabeça, na mandíbula, no pescoço e nas costas. Durante esse tempo todo, já passou por mais de 30 médicos, que cogitaram várias hipóteses, desde fibromialgia e miomas até problemas emocionais. “Tinha uma dificuldade tremenda para estudar, trabalhar, para tudo. Fazia meu trabalho chorando de dor e assim que chegava em casa não tinha diversão, só pensava na dor. As pessoas achavam que eu era antipática porque eu não ria e não aceitava convites para sair, mas na verdade eu estava sofrendo mesmo.” Apesar de tudo, Maria seguiu lecionando até que a cefaleia a atacou e a obrigou a se afastar por um tempo do trabalho. Ela tentou inúmeros tratamentos, mas nenhum surtia efeito: as massagens pioravam as dores nas costas, e os remédios lhe faziam passar mal, de quase desmaiar, devido a sua intolerância a drogas. Até que um dia, finalmente, foi diagnosticada com um problema na articulação na mandíbula, que lhe deixa sensível a temperaturas frias e causa dores bucofaciais. Além disso, sofre de cefaleia, que também tem a ver com seus problemas estomacais. Uma coisa estava ligada a outra. Há seis anos, Maria descobriu a acupuntura e atualmente faz uma sessão semanal com duração de uma hora. “Quando comecei, estava muito cansada e fraca, parecia uma velha de 90 anos. Não passava um dia sem ter dor. Depois da acupuntura, tive os melhores anos do meu trabalho e mais contato com meus co-
“
A grande contribuição da psicanálise foi mostrar o quanto o ser humano não é regido apenas pelo consciente.
Quando a psicanálise propõe a existência do insconsciente e mostra o quanto ele influi na vida do sujeito, ela desvela esta possibilidade do psíquico ter uma ação sobre o corpo. Monica Macedo
legas, coisa que não conseguia antes. Hoje em dia, tenho uma vida melhor e consigo conviver com a dor. Cuido da minha alimentação e faço exercícios físicos”. A sensação persiste, mas se tornou bem mais suportável. A vida de quem convive com a dor diariamente pode ser um inferno. Mas isso não significa que viver sem ela seja uma bênção. Prova disso são os raríssimos casos de pessoas que sofrem de insensibilidade congênita. As pessoas com esse tipo de distúrbio têm problemas para sentir dor e temperatura e sua expectativa de vida é baixa, pois muitos se machucam gravemente e não se dão conta. Por ser uma condição extremamente rara, foi preciso recorrer às redes sociais para encontrar algumas. Há, no Facebook, um grupo chamado “A Gift of Pain” (Um presente da dor). Na comunidade, pessoas atingidas pelo distúrbio ou familiares de portadores trocam informações sobre o mal. No total, são 98 membros, a maioria de língua inglesa. É o caso da enfermeira Debra Kerr Thomson, moradora de Lee Summit, no estado americano do Missouri. Debra é mãe de Keaton, de 18 anos, que sofre com a rara condição. Ela conta que é extremamente difícil criar um filho sem dor e que só conseguiu encontrar um médico que entendesse e soubesse tratar do caso quando o menino já tinha dois anos. Além disso, seu filho também não tem senso de olfato e não transpira, o que faz seu corpo aquecer além do normal. “Não há uma ‘rotina’ de verdade com um filho assim, pois cada dia é algo novo, é preciso observá-lo o tempo todo. À medida que ele foi ficando mais velho, aprendeu a lidar com a situação, mas mesmo assim é uma preocupação constante. Um exemplo disso é apendicite: ele não sentiria nada e poderia sofrer uma grave inflamação no apêndice sem que ninguém soubesse”, diz Debra. Caso parecido com o da portuguesa Maria Teresa Taveira, moradora do Porto. A diferença é que a condição de seu filho João Maria, hoje com 10 anos, foi descoberta mais cedo. ”Ao longo do tempo acabei por perceber que tenho de ser eu a primeira médica do meu fi-
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lho, tenho de ser eu a estar atenta, tenho de ser eu a avisar os médicos do que devem fazer e quais os exames a solicitar”, diz ela. O distúrbio sofrido pelo filho causou mudanças no cotidiano da família, já que o menino passou a usar cadeira de rodas diariamente para proteger as articulações. “Estou neste momento tentando mudar de casa pois a nossa é um duplex com escadas o que torna o nosso dia a dia muito complicado. Ele desenvolveu Artropatia de Charcot nos dois pés, uma doença que destroi progressivamente o osso e os tecidos moles das articulações. Este fato poderá levar no futuro à imobilização, mas, no momento, ainda consegue caminhar.” O que se pretende com o uso da cadeira prolongar a qualidade de vida e a mobilidade do garoto pelo maior número de anos possível. Para ambas as mães, saber que existem mais pessoas que passam por essa situação através do grupo no Facebook foi de gran-
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de ajuda. “Há uns anos, quando não havia informação nenhuma sobre esta doença, a descoberta deste grupo foi como uma tábua de salvação para mim. É mais um apoio emocional que, quando necessário, está presente”, escreve Maria.
emoção Para a psicóloga e professora Monica Macedo, nosso corpo reflete muito daquilo que somos enquanto sujeitos psíquicos. “A grande contribuição da psicanálise foi mostrar o quanto o ser humano não é regido apenas pelo consciente. Quando a psicanálise propõe a existência do insconsciente e mostra o quanto ele influi na vida do sujeito, ela desvela esta possibilidade do psíquico ter uma ação sobre o corpo. Se pensarmos no campo da dor, é só olharmos para todos os padecimentos que têm como etiologia conflitos psíquicos.” Mo-
nica acrescenta ainda que a dor moral serve como um motivo para forçar o indivíduo a se reinventar e mudar de atitude perante a vida. “Ajuda a pessoa a se recolher e poder entender melhor o que aconteceu para sair revigorada de uma situação dessas e não repeti-la. Faz a pessoa sair da zona de conforto.” Ainda de acordo com a definição da IASP, a dor é uma experiência altamente subjetiva, influenciável pelo contexto ambiental e emocional do indivíduo. É o que mostram dois experimentos expostos no documentário “The Secret World of Pain”, da BBC. No teste conduzido pela neurologista inglesa Irene Tracey, da University College, de Londres, um triângulo era mostrado a estudantes e lhes era dado um estímulo doloroso baixo, ao qual os participantes deram nota 3 de 10 em uma escala de dor. Então foi mostrado um quadrado e um estímulo mais doloroso foi aplicado, que recebeu nota 7 de 10. Finalmente, foi mostrado um quadrado, mas foi aplicado um estímulo baixo, que antes era associado com o triângulo. Dessa vez, a dor recebeu nota 5 de 10. Para a doutora, esse aumento de dois pontos demonstra como a ansiedade aumenta a percepção. Outro experimento nesse sentido foi feito pelo doutor Hunter Hoffmann, da Universidade de Washington, em Seattle. Um de seus pacientes, que havia sofrido queimaduras de segundo e terceiro grau num acidente de trânsito, precisava fazer fisioterapia para recuperar a elasticidade da pele. O procedimento era muito doloroso e, para aliviar a agonia, lhe foi dado um videogame de ação para jogar durante os exercícios e uma tela que cobria todo o seu campo de visão. O resultado foi que a imersão no ambiente virtual diminuiu
muito a sensação desagradável, com redução de até 50% de atividade cerebral relacionada à dor. “Como os seres humanos são muito orientados pela visão, nossa atenção se foca naquilo que estamos vendo. Ao visualizarem os objetos que as enfermeiras seguram, os pacientes associam aquelas imagens com uma dor alta”, descreve Hoffmann. O cérebro humano é capaz de registrar até um certo limite de sinais. Com boa parte da atenção tomada pela distração do jogo, a dor não é registrada. O neurocirurgião Frank Vertosick afirma que a antecipação à dor pode ser mais agonizante do que a própria sensação, uma experiência exclusiva dos humanos. Segundo ele, “um animal se encolhe se você ameaçar bater nele com um jornal enrolado, mas ele não vai ficar o dia todo esperando isso acontecer. No entanto, se você sabe que vai ter que encarar um tratamento de canal, isso pode estragar sua qualidade de vida por dias”, afirmou, em entrevista ao jornal Pittsburgh Post-Gazette. Um caso extremo que mostra isso é o de Jonathan Metz. Em 2010, o americano desceu ao porão de sua casa para consertar a fornalha de sua caldeira e ficou com o braço esquerdo preso no aquecedor central. Após algumas horas gritando por socorro, se deu conta de que ninguém viria buscá-lo e tomou uma decisão radical: amputar o próprio braço com um serrote. A opção se mostrou acertada. Apesar de não ter completado a amputação, Jonathan conseguiu cortar o suficiente para evitar que infecções se espalhassem pelo seu corpo. Em entrevistas, Jonathan afirmou que a amputação em si não doeu, apenas lhe deu um desconforto, mas ter que olhar para o seu braço aberto foi agoniante. A situação extrema estimulou áreas do cérebro de Jonathan, que bloquearam sinais ao córtex, fazendo seu cérebro produzir substâncias analgésicas. “Nós temos um sistema analgésico intrínseco, que a medicina começou a estudar há 50 anos. A dor não é só a lesão, mas também é como o nosso sistema nervoso biológico responde em relação a ela, estimulando ou inibindo aquela resposta. Um exemplo clássico são ferimentos de guerra. Soldados que estão
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O que seria da ficção sem os personagens sofridos, angustiados, sem os excluídos, os enfermos, os bêbados, as prostitutas? A vida literária certamente seria muito mais sem graça. no meio de uma batalha continuam lutando naquela situação de estresse e não percebem dor. O estímulo de lesão só vira dor quando está consciente”, pondera Carlos Musse. A dor também serve como combustível para a criação de histórias e personagens na literatura e no cinema. Afinal de contas, qualquer enredo precisa de algum tipo de conflito para ser interessante, e isso muitas vezes inclui situações dolorosas, tanto físicas quanto existenciais. O que seria da ficção sem os personagens sofridos, angustiados, sem os excluídos, os enfermos, os bêbados, as prostitutas? A vida literária certamente seria muito mais sem graça. Tanto o cinema quanto a literatura são repletos de histórias envolvendo personagens que sofrem. Para o jornalista especializado em literatura Carlos André Moreira, um dos grandes romances sobre dor física é A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstoi. Trata-se de um romance que acompanha todo o declínio físico e a dor de um juiz em vias de morrer de câncer, formando uma reflexão melancólica sobre onde as pessoas vão depois do calvário da vida. “O Tolstoi tinha essa coisa de redenção, essa ideia meio mística do mundo. Ele achava que a dor poderia ser uma ascese, uma maneira de alguém se purificar, em certo sentido. Até hoje, é considerada uma das grandes obras sobre a dor”, afirma Moreira. Um outro exemplo na literatura, mas dessa vez no sentido existencial, é a obra Os Sofrimentos do Jovem Werther, do alemão Johann Wolfgang von Goethe, produzido durante o período áureo do romantismo alemão. O personagem Werther, inspirado no próprio autor, é totalmente apaixonado por Charlotte até o momento em que se mata. O livro gerou a chamada Febre Werther: jovens passaram a se vestir como o personagem, que usava uma
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calça amarela e uma jaqueta azul. O romance gerou uma onda de suicídios na Europa. Fiódor Dostoiévski, ele próprio um dos autores mais atormentados da literatura mundial, certa vez disse que a pobreza e a miséria formam o artista. Por diversas vezes, o sofrimento do próprio autor transparece em sua obra. Segundo o jornalista Renato Mendonça, todos sentimos dor, mas o artista tem um talento especial para transformá-la em arte. “Conseguir partir da dor para a criação da arte é o que distingue. Talvez então surja o que considero uma qualidade indispensável ao bom artista: a coragem. Para uma boa arte, há que se ter coragem para enfrentar seus demônios e anjos interiores”, explica. Moreira cita como exemplo o escritor americano Edgar Allan Poe. Considerado um dos grandes góticos americanos, começou escrevendo histórias macabras, repletas de torturas e assassinatos. Poe era um sujeito perturbado, alcoólatra, de saúde frágil e sempre em dificuldades financeiras. Em certo momento da vida, conseguiu um emprego e abriu uma revista literária que foi um sucesso. Nesse momento, em que recebia um salário razoável e estava bem de saúde, cria três contos que são considerados a base do romance policial: A Carta Roubada, Crimes da Rua Morgue e O Mistério de Marie Rogêt. “Há quem diga que há uma correlação entre os momentos ruins da vida do Poe, quando suas obras são muito sombrias, e esses contos mais cerebrais que aparecem quando ele está numa situação boa”, diz Moreira. Mendonça, no entanto, reforça que o sofrimento em si não produz arte e que cabe ao artista buscar um sentido para a nossa vida e as suas dores: “A imagem que eu vou usar pode ser um tanto chocante, mas, se a dor bastasse para criar arte, seria suficiente reco-
lher depoimentos em uma clínica de pacientes terminais ou em um pronto-socorro. Não adianta registrar a dor – o artista tem de entendê-la (ou não), e obviamente exercitar seu talento artístico para reelaborá-la”. E finaliza: “Quando se transforma em arte, a dor deixa de ser a constatação da morte para servir de sagração da vida.” Experiências dolorosas sempre ficam na nossa memória e algumas delas mudam nossa maneira de ser. Com elas aprendemos a valorizar os momentos de prazer, que, para o filósofo Arthur Schopenhauer, nada mais é do que um momento fugaz de ausência de dor e não existe satisfação durável. No ensaio Receituário da Dor para Uso PósModerno, o pensador português João Barrento fala sobre como a sociedade, devido ao processo tecnológico cada vez mais avançado, trabalhou para eliminar a dor, que se tornou inimiga dos impulsos capitalistas de eficiência. A sociedade atual precisa de cidadãos que funcionem, e a dor física e psicológica não tem lugar. “Para ele, a dor tem uma função importante, até mesmo pedagógica. Não que ela não deva ser combatida, mas a ideia de que é possível passar uma vida inteira sem dor é exagerada e até improdutiva, pois cria uma geração anestesiada”, afirma Moreira. A psicóloga Monica Macedo concorda: “Como hoje em dia todos têm que estar bem o tempo todo, essa coisa imediatista, as pessoas às vezes não têm nem tempo para se entristecer e amadurecer. De certo modo, a vida moderna anestesia as sensibilidades”. “A maioria das espécies não experienciam dor, ou pelo menos nada do que chamaríamos de dor no sentido humano. A dor só importa para organismos com um talento avançado para aprendizado, memória e adaptação. A dor não está associada à vida, e sim à inteligência. Sofrer requer consciência”, disse Frank Vertosick em entrevista. Há quem diga que viver é sofrer. Se talvez a afirmação soe como um exagero, não há como negar que é impossível existir um sem o outro.
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o corpo luta
Portadores do vírus HIV ainda sofrem com o preconceito. A desinformação é a causa de um medo que atinge qualquer idade.
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fotos felipe dalla valle e mariana fontoura
N
ão chega muito perto”, fala Lúcia, que está com herpes no canto da boca. “Não dá nada, pelo menos não é Aids”, responde o amigo que a cumprimenta sem saber que ela é portadora do HIV (vírus da imunodeficiência humana). Esta situação marcou a vida de Lúcia, 23 anos, estudante de Educação Física. A jovem descobriu que estava com a doença há um ano e meio. Desde a descoberta, ela luta contra um preconceito velado. Lúcia namorava há seis meses e queria tirar o preservativo da relação. Para isso, decidiu fazer uma revisão na saúde antes. Assim, a menina sorridente e com brilho no olhar descobriu que está entre as mais de 13 mil pessoas infectadas em Porto Alegre – são 95,3 por 100 mil habitantes. “Foi um choque, no início, pois a gente associa a doença à morte”, declara Lúcia. Quando revelou a sua ginecologista que estava com o vírus, a médica ficou espantada: “Mas tu? Uma guria, bonita, jovem, saudável”. A resposta veio rápida: “Para ver que pode acontecer com qualquer um”. Lúcia e Marcos são um casal soro discordante, um tem o vírus e o outro não. A partir dos exames, eles passaram a prevenirse, porém, antes, tiveram algumas relações sexuais sem preservativo. Nos meses inicias, Lúcia dizia a Marcos que ele não precisava ficar com ela por pena. Após os resultados dos exames, o jovem a pediu em casamento. “Vi que a doença não importa nos meus sentimentos”, revela Marcos. Com os compromissos da vida, o noivado foi adiado. Ao falar disso, as mãos se encontram na mesa, os
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olhares se cruzam e dois sorrisos aparecem, mostrando que o sonho continua ali. A realização de ter um filho não é barrada pela doença. A alternativa mais segura é a inseminação artificial. Durante a gestação e o parto, a mulher segue tomando o remédio para prevenir que a criança não tenha HIV positivo. Mesmo com o tratamento, há uma chance pequena do bebê ser infectado. Lúcia faz exames a cada três meses, para controlar os números das suas células. “Achei que nunca iria acontecer comigo”, conta. Quando descobriu, estava namorando há seis meses. Antes, teve outros parceiros, mas sempre com proteção. A dúvida caiu na relação estável que tivera antes. “Liguei para meu ex-namorado e falei que estava com Aids”, revela. Pelo que ela soube dos amigos, que têm em comum, ele não fez o exame, ou por medo, ou porque já sabia que tinha a doença. “Não faz mais parte da minha vida, mas fiquei preocupada”, conta. Nem todos que conhecem Lúcia sabem que ela é portadora do vírus. “O preconceito ainda existe, por isso me protejo”, admite e continua: “Conto a minha história para que saibam que a Aids está mais perto do que pensam”. O preconceito com a doença já foi maior. Jair Ferreira, professor de epidemiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), trabalhava na Secretaria do Estado da Saúde (RS), no dia 30 de dezembro de 1983, quando registraram os dois primeiros casos do vírus em Porto Alegre. Na época, a pessoa que contraía HIV tinha uma estimativa de vida de um a dois anos. “A Aids era associada à morte e quem estava com a doença tinha uma aparência debilitada”, lembra Ferreira. Até 1996, a estimativa de vida era pequena, cerca de sete anos. A partir desse ano, foram descobertos tratamentos que impedem a reprodução do vírus. Com isso, a expectativa aumentou significadamente. “Hoje é indeterminada, existem pessoas em tratamento há mais de 20 anos”, explica Ferreira. Além de não possuir vacina, nenhum remé-
dio é curativo, por isso a necessidade de se tomar a medicação frequentemente. O Brasil é um dos países referência na assistência a pessoas portadoras do vírus, o que ensinam a combater o preconceito. Junto a isso, ainda há o apoio de organizações não governamentais, que ajudam pacientes a lidar com a doença. A junção de vários medicamentos forma o conhecido coquetel. Cada combinação de remédios pode ser tomada de cinco a dez anos, dependendo do paciente, devido à resistência do vírus à formula. Porém a Aids ainda preocupa os médicos. O Rio Grande do Sul (RS) é o Estado que tem mais portadores do vírus HIV, são 40,2 por 100 mil habitantes. De acordo com Ferreira, o grande número de casos, aqui, se deve a dois fatores: primeiro, o vírus que circula é o tipo “c”, diferente do resto do Brasil, que é
Apesar do preconceito ainda muito presente na sociedade, a aceitação existe.
tipo “b”. Segundo ele, esse soro se transmite com mais facilidade. A segunda explicação é que o crack chegou mais tarde no Estado. Com isso, as drogas injetáveis foram consumidas por mais tempo aqui do que no resto do país, facilitando a contaminação. Ferreira descarta três outras hipóteses, que anteriormente eram consideradas: notificações mais ágeis, maior variação de parceiros e menor uso da camisinha. A primeira alternativa “era verdade uns anos atrás, hoje não é mais”, afirma o ex-coordenador de Prevenção e Combate a DST-Aids da Secretaria de Saúde. A segunda e a terceira são rebatidas pelo professor com a última Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas relacionada às DSTs e Aids (PCAP) do governo federal. “A federação onde as pessoas têm mais parceiros não é o RS, e o número
No Brasil
De 30% para 20%
Essa foi a redução no número de viciados em drogas injetáveis portadores do HIV entre os anos 1990 e 2010.
No RS
De 3% para 10%
No mesmo período, o movimento foi inverso no Rio Grande do Sul. Houve um aumento no percentual de usuários de drogas injetáveis portadores de HIV.
de gaúchos que afirmam usar preservativo constantemente não é o mais baixo do país”, explica. Para transmitir informação e usar seu o caso para conscientizar, Jaime Quiroga Berdias, 49 anos, dá palestras sobre o assunto. Ele é conselheiro estadual da saúde e estima que há 20 anos convive com a Aids. Quando visitava sua amiga, tomavam chimarrão e conversavam sobre os assuntos do cotidiano de cada um. Anos mais tarde, toda constrangida, ela perguntou: “Por chimarrão se pega Aids?”. Depois da conversa, a amiga revelou que tinha medo sempre que dividia a cuia. Berdias revela que esta é uma das dúvidas que mais aparecem nos debates. Não há contaminação pela bomba da bebida típica gaúcha, pois “a saliva tem efeito inibidor do vírus”, explica o médico Jair Ferreira. Além dessa, outras perguntas são frequentes: se tem uma vacina, quanto tempo pode-se viver sem medicamento, entre outras. “A conversa tira o preconceito”, afirma Berdias, mostrando a paixão pelo trabalho. Em suas palestras, Berdias relata a experiência com a doença. Nas escolas, esclarece aos jovens sobre as várias formas de transmissão. “Como minha amiga, muitos outros ainda têm dúvidas sobre o contágio, isto causa certo afastamento por pura desinformação”, declara. O HIV é transmitido por meio do contato direto de um fluido corporal, que contém o vírus, com uma membrana mucosa ou a corrente sanguínea. “As pessoas ainda me perguntam a diferença entre Aids e HIV”, revela Berdias, com desânimo. A classificação depende do estágio em que se encontra o vírus no corpo. Os linfócitos, células de defesa do corpo, devem estar abaixo de 200 por milímetro cúbico de sangue ou 14% do total para ser diagnosticado com Aids. Com os medicamentos e o acompanhamento médico, o número de linfócitos aumenta. O corpo de um adulto leva anos para chegar nesta fase, de cinco a dez, varian-
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do o tempo de acordo com cada indivíduo. Com crianças infectadas são alguns meses, devido à baixa imunidade. “Por isso, fazer exames regularmente é importante”, ressalta Ferreira. Os medicamentos mudaram a vida das pessoas com HIV, porém, os efeitos colaterais são grandes. Lúcia toma os remédios à noite para ir dormir, e os efeitos não lhe causam tanto mal estar. “Certa vez, me senti tonta e com a boca dormente, pois acordei na madrugada, e o efeito estava no pico mais alto”, descreve Lúcia. “Acredito que muitos jovens não se cuidam, pois pensam que, se pegarem Aids, é só tomar medicamentos depois, como se fosse simples”. As pessoas com Aids que tomam medicamentos durante muito tempo podem apresentar a doença da lipodistrofia, ou seja, a gordura corporal se distribui em uma forma desarmônica. “Antigamente, a visão da Aids era de um indivíduo muito magro, hoje isso mudou”, afirma Lúcia. Segundo ela, a primeira imagem ainda é bem forte na mente da população. Com o passar do tempo, o portador do vírus fica mais gordo no tronco e fino nos braços. “Não fica tão estranho, porém o ser humano está acostumado com outra imagem dele”, explica Ferreira. O preconceito ainda existe. “Eu aconselho a falar para poucas pessoas e só àquelas de confiança”, afirma Berdias. Conversando baixinho na entrada de um hotel, ele sugere ao portador do vírus procurar apoio psicológico e, com isso, tratamento médico. Como orador, observa que muitas pessoas fogem ao falar na palavra Aids. “Os olhares de paqueras somem quando falo que sou portador do vírus”, revela. No início, passou três vezes seguida na frente do GAPA (Grupo de Apoio a Prevenção da Aids) até não ter ninguém na rua para poder entrar. Na reunião, encontrou um médico, amigo seu, que levou um choque. Ao dividir a sua história, ajuda a abrir caminho contra o preconceito: “Tenho que me mostrar por aqueles que não podem”.
Foto: divulgação APA/RS
Estas fotos simbolizam a luta contra o preconceito e pertencem ao acervo do Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS do Rio Grande do Sul (GAPA/RS), que existe há
23 anos. A organização não governamental trabalha com ações de prevenção da AIDS, atendimento a soropositivos e familiares.
Foto: divulgação APA/RS
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DE CORPO E ALMA
o corpo doa
Testemunhos mostram como a doação pode salvar vidas e ajudar a vencer desafios.
texto roberta mello
fotos mauricio krahn
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judar e ser ajudado são alguns atos que alimentam o ser humano. As relações interpessoais não existem sem a troca, a solidariedade. Desde pequenos, ao receber o leite materno ou nos momentos de aprendizagem, presenciamos atos de desprendimento. Tanto um alimento compartilhado quanto um transplante de órgãos são exemplos de atitudes pessoais de doação. A cicatriz guarda a lembrança de uma cirurgia. Ou melhor, de duas. Marilda Neutzling nasceu com rins policísticos e desde a descoberta da doença soube que mais dia menos dia teria que realizar um procedimento cirúrgico. Claudia Neves, sua sobrinha, sempre manifestou que, caso houvesse compatibilidade, não hesitaria em doar um dos rins para a tia que lhe serviu de alicerce após a perda precoce da mãe. Formada em nutrição, Marilda é professora da Faculdade de Medicina da UFRGS. Claudia, técnica em enfermagem e trabalha do Centro de Saúde Modelo. Mais do que a vocação para trabalhar na área da saúde, o riso fácil e a forma leve e cheia de esperança de olhar para frente são duas das características marcantes de ambas. “Nunca duvidei de que fosse dar certo. Sempre encarei com tranquilidade. Faço questão de enfatizar para todo mundo que
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ainda tenha algum receio de fazer um transplante que a ciência evoluiu muito e é um procedimento muito seguro”, fala Marilda, deixando clara a intenção de usar seu exemplo para aumentar o número de doações. “Antes do transplante eu não tinha tanta qualidade de vida. Não podia viajar, porque precisava fazer hemodiálise três vezes por semana. Minha sorte era que saía bem da sessão, mas não deixa de ser um tratamento difícil e sofrido”, conta a professora, que já está com viagem marcada para a Europa. Saindo do prédio da faculdade em que leciona, Marilda convida para uma caminhada até a sua casa para encontrar Claudia. No trajeto feito a passos largos, conta como se preocupa com a alimentação da sobrinha. “Faço
a Claudia ir almoçar na minha casa, que é pertinho do trabalho dela também, porque assim sei que não vai comer muito sal. Tenho que cuidar dela. Que graça tem ela me ajudar e depois ficar doente?”. Já no apartamento, Marilda diz que sempre foi uma paciente comportada e seguiu as orientações médicas. Claudia, por sua vez, não perde a oportunidade de brincar, dizendo que o rim doado para a tia está sofrendo: “O coitado deve estar até em abstinência, não recebe nem uma cervejinha. Aqui ele estava mais feliz”. O transplante intervivos no Brasil só pode ser feito entre familiares. Claudia diz que se recuperou tão bem que depois de uma semana já estava voltando a trabalhar. “Eu até esqueço que não tenho um rim”, resume.
Beleza para os pacientes, principalmente as mulheres que sofrem com a perda de cabelo decorrente do tratatamento para o câncer, as perucas são um oportunidade de manter a estética.
A falta de informação ainda é um dos maiores empecilhos para aumentar o número de doadores. Claudia e Marilda lembram que quando contavam às pessoas que fariam o transplante intervivos a reação ou era de pena, como se fosse dar tudo errado, ou de revolta, pelos riscos que supostamente Claudia corria. “Chegou uma hora em que a gente parou de falar, porque as reações nos colocavam tão pra baixo. Parecia que a gente ia morrer”, revela Marilda, rindo das profecias que não se concretizaram. O chefe do Serviço de Transplantes do Hospital São Lucas da PUCRS, Marcelo Hartmann, concorda que o preconceito ainda é muito presente. “Ainda existem famílias que perdem familiares por morte cerebral e se negam a doar”. De acordo com o médico, outra dificuldade está na demora do diagnóstico da morte cerebral. “Para melhorar isso estamos buscando conscientizar os trabalhadores de hospitais para que identifiquem a morte encefálica e acelerem o processo de captação dos órgãos”, enfatiza. Mesmo aqueles que se declaram doadores de órgãos e tecidos à justiça, carregando por escrito em seus documentos a possibilidade e, recentemente, divulgando a intenção por meio de redes sociais, devem avisar aos familiares. Nessas situações, o que vale é a decisão da família, por isso a necessidade de manifestar claramente o seu desejo. “Os familiares devem se conscientizar que, ao aceitar a doação de órgãos do ente perdido, estarão ajudando a salvar muitas vidas. Inclusive, saber disso pode servir de consolo para superar a perda”, pondera. Segundo Hartmann, o preconceito está diminuindo. Em eventos realizados em colégios e abertos à comunidade, o médico nota que as perguntas feitas por crianças e jovens não são as mesmas de dez anos atrás. Segundo ele, “as pessoas estão mais esclarecidas”. O Rio Grande do Sul ocupa o quinto lugar no ranking nacional de transplantes, apresentando um crescimento de 20,8% no número de procedimentos em 2011. No primeiro semestre deste ano, o Estado melhorou de posi-
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Experiência de repórter: “Visitei a loja e experimentei as perucas. A gerente do estabelecimento auxilia na escolha dos modelos que têm mais a ver com a pessoa e ensina métodos de colocação e manutenção dos artigos.”
ção passando, para quarto lugar. Doações simples como de sangue e leite materno ainda esbarram em uma dificuldade básica: a falta de interesse em ajudar. O Banco de Leite Humano do Hospital Santa Casa de Porto Alegre é referência no Estado na coleta e conservação do alimento e normalmente opera abaixo da sua capacidade de armazenamento, de 21 litros, por falta de doações. Destinado aos recém-nascidos internados, nos casos em que a mãe não produz quantidade suficiente ou não poderá amamentar, o leite materno é fundamental para o crescimento das crianças. Nenhum alimento pode substituí-lo, já que ele é fonte de todas as substâncias que o bebê precisa nos primeiros meses de vida, além de proteger a criança contra diversas doenças, explica a nutricionista Da-
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niela Beleza, responsável pelo Banco de Leite Humano da Santa Casa de Porto Alegre. Miriam Paz fez questão de doar parte do seu leite para o lactário do Hospital Moinhos de Vento. “Eu tinha bastante leite e era saudável. Por isso, mesmo amamentando vi que podia ajudar outras crianças e mães. Algumas mães pensam que, se doarem, o leite pode vir a faltar. É uma bobagem”, explica. Além de propiciar o desenvolvimento de seus filhos e de crianças muitas vezes desconhecidas, as mulheres que amamentam ou doam o leite diminuem mais rapidamente o peso adquirido na gestação e reduzem o sangramento pós-parto. Esse é um dos grandes trunfos da doação. Quem ganha não é só quem recebe, mas também quem abre mão de algo seu para o outro.
auto-estima O tratamento contra o câncer tem muitos efeitos colaterais. Além dos enjoos, a perda de cabelo é uma das consequências que mais fragiliza os pacientes, especialmente as mulheres. Em casos assim, as perucas são uma alternativa que as ajuda a recuperar a auto -estima. “A gente nunca pensa em peruca como uma coisa séria. Sempre relacionamos com carnaval, festa à fantasia. A maioria das pessoas que nos procuram foram obrigadas a aderir ao uso, não foi uma escolha. Por isso nós sempre tentamos achar uma peruca que tenha a ver com o cabelo natural para que ela se reconheça ao olhar no espelho e se sinta bonita”, explica Eloisa Marchese, gerente da Casa de Perucas Jurema. Há 50 anos no mercado, a loja que Eloisa gerencia é a mais tradicional do ramo de perucas da Capital e, desde 1998, a empresa tem uma parceria com o Instituto da Mama do Rio Grande do Sul (Imama). Juntos eles mantêm o Banco de Perucas e Chapéus, que empresta os artigos para quem está enfrentando esse tipo de tratamento. Eloisa explica que o importante é que essas mulheres se sintam bonitas com a peruca, por isso todos os artigos são leves e confortáveis. Segundo a gerente, para cada pessoa existem em média seis artigos que ficariam bem, de acordo com cor da pele, estilo e idade. Todos os clientes recebem uma consultoria na hora da compra para escolher o modelo mais adequado. “Nosso foco é na saúde e não apenas na beleza”, enfatiza. Alda Garcia é uma bela mulher que anda graciosamente com um lenço na cabeça pelo Hospistal da PUCRS. Ela enfrenta o tratamento contra o câncer há seis meses. No hospital, Alda utiliza lenços coloridos, mas quando faz passeios adere à peruca. “O cabelo está muito associado à beleza da mulher. Não tenho vergonha de estar careca, mas usar peruca me ajuda a encarar a doença e ver que eu ainda sou uma mulher bonita e forte”, explica Alda, confiante na recuperação.
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A gente nunca pensa em peruca como coisa séria. Sempre relacionamos com carnaval, festa à fantasia. A
maioria da pessoas que nos procuram foram obrigadas a aderir ao uso, não foi uma escolha. Por isso nós sempre tentamos achar uma peruca que tenha a ver com o cabelo natural para que ela se reconheça ao olhar no espelho e se sinta bonita. Eloisa Marchese
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o corpo fala
As marcas de experiências nem sempre estão apenas na memória. Algumas vezes, as lembranças ficam registradas no próprio corpo. Este ensaio fotográfico mostra as histórias por trás desses sinais.
MARCAS NA PELE fotos mariana fontoura
produção maria augusta cohen
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“Eu fiquei com uma grande cicatriz de vacina no braço e não gostava da cara que ela tinha. Por isso, coloquei uma cara diferente nela!” JÉSSICA MAZZOLA
“Decidi fazer a tatuagem logo depois do falecimento do meu pai, como uma forma de homenagem. Não gosto da ideia de escrever o nome, queria algo mais pessoal, então tatuei a assinatura dele que acho muito bonita.” GIOVANA DE BEM
“‘Wszystko jest walka’ significa ‘Tudo é luta’ em polonês. Essa frase foi fruto de uma das últimas conversas que tive com meu avô e agora eu tenho um pedacinho dele sempre comigo.” CAROLINA BEIDACKI
“Minha experiência está resumida no poder de Deus e na resiliência do ser humano.” JANA CARCUCHINSKI
“Nasci com lábio leporino. Desde os três meses de idade, já somei quase 20 cirurgias. Demorei um tempo pra me acostumar com a cicatriz, mas hoje eu não saberia viver sem ela.” DIDI BONOCORE
“Fiz arte, caí em cima das grades de ponta e com 8 anos nasci de novo. E levo comigo uma marca na boca: o V de vitória!” RENATA EBERHARDT
Como é a relação singular entre irmãos que são concebidos, nascem e crescem dividindo o mesmo espaço no útero da mãe.
CONEXÃO VITELINA
o corpo multiplicado
texto gabriela sitta
fotos mariana fontoura
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ois rostos idênticos olham um para o outro em busca de algo que os diferencie. Rita é a primeira a encontrar uma pinta na pálpebra esquerda da irmã Júlia. A marca de nascença presente em apenas uma das gêmeas, contudo, não impede que as duas sejam facilmente confundidas. “Exceto por essa, as pintas que temos no rosto são muito parecidas e ficam nos mesmos lugares”, sentencia Júlia. De 2003 para 2010, o nascimento de gêmeos cresceu 18% no Brasil, de acordo com o IBGE. Não tão comum quanto atualmente, quando as gestações de mais de uma criança acontecem com frequência devido à inseminação artificial, a gravidez de duas meninas assustou um pouco a mãe de Júlia e Rita Coppeti de Queiroz, que só soube que estava esperando mais de um bebê depois de seis meses trazendo as filhas no útero. A exclamação da avó materna, ao saber da notícia, foi algo assim: “Como é que pode?”. Hoje, as irmãs se divertem com o susto que causaram na família, que já era composta por pai, mãe e primogênito, então com quatro anos. Depois do nascimento das duas, ainda chegaria outra irmã. Aos 29 anos, Rita e Júlia recordam com orgulho a educação individualista dada a elas pela família. “Eles nunca nos vestiram com roupas iguais. Cada uma de nós, e dos outros irmãos, tinha seu próprio espaço”. As gêmeas passaram grande parte da vida escolar estudando em turmas separadas, cada uma sendo incentivada pelos pais a ser ela mesma. De acordo com a psicóloga Naraí Lopez Barbetta, doutora em saúde da criança e do adolescente e especialista em gêmeos,
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“tudo começa em casa”. Ou seja: a maneira como os irmãos são tratados no convívio familiar influencia, e muito, a relação que terão entre si. “Hábitos como usar roupas iguais ou com diferença apenas na cor, escolher nomes com semelhanças fonéticas, estabelecer rotinas parecidas quanto à alimentação e sono e manter atitudes similares para com as crianças, acabam sendo reforçados nas relações sociais de vizinhança, compadrio e amizade”, explica. Para a pesquisadora, esses hábitos podem adquirir um caráter negativo, se não foram dosados convenientemente. “Apesar das crianças serem semelhantes fisicamente, são dois indivíduos singulares e que podem ter necessidades e desejos diferentes”, explica. No caso de Rita e Júlia, em que a individualidade sempre foi preservada, os reflexos da educação que receberam podem ser entrevistos claramente. Chefes de cozinha, elas dirigem juntas um negócio próprio, o Twin Cuisine Gastronomia e Eventos, mas nem por isso tocam suas vidas de maneira semelhante ou possuem outras parecenças muito acentuadas. Rita é casada e Júlia tem um namorado, e ambas se veem, em média, uma vez por semana, apesar de conversarem diariamente. Rita é propensa a doenças respiratórias e alergias, já Júlia não é suscetível a esse tipo de enfermidade. Ainda que possuam muitas semelhanças, como o fato de ambas serem canhotas e possuírem um dedo indicador tortos, uma porção de aspectos as diferenciam. Júlia possui, por exemplo, mais facilidade para a comunicação e para lidar com o público, enquanto Rita prefere trabalhar na administração do negócio que mantêm juntas.
idênticas Ao contrário de Rita e Júlia, as irmãs Marinês Crestani Comiran e Mareci Crestani Calegari cresceram com uma proximidade extrema. Aos 49 anos, não se parecem tanto quanto na foto exposta na estante da cozinha da casa de Marinês, que mostra as duas, ainda crianças, usando vestidos idênticos. Mesmo assim, são rotineiramente confundidas por
18%
cresceu o nascimento de gêmeos no Brasil de 2003
para 2010, conforme o IBGE.
40%
é o número de gêmeos bebês que apresentam uma linguagem própria, primitiva e ininteligível.
As irmãs são comumente confundidas, até mesmo por pessoas próximas.
amigos e conhecidos. “Às vezes, nem digo que não sou a Mareci, daria mais trabalho explicar a situação do que simplesmente cumprimentar quem se confundiu”, relata Marinês, entre risos. Depois de passar a infância, a adolescência e a vida adulta juntas, as irmãs se sentem extremamente conectadas. “O cordão umbilical ainda está junto”, resume Marinês. Nascidas no interior gaúcho, elas possuem outros oito irmãos e cresceram em uma família humilde, de poucos recursos. Sempre incitadas a se manterem juntas, gostaram da ideia e continuam assim até hoje. As duas são casadas com homens, que, desde os tempos de namoro, eram amigos. Elas construíram casas próximas uma da outra e visitam-se algumas vezes na semana. Nos dias em que não se encontram cara a cara, a conversa é por telefone mesmo. Marinês é dona de casa,
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e Mareci funcionária pública, mas o fato de terem ocupações diferentes não as impede de partilharem o gosto pelo artesanato, pelo crochê e pelo tricô, com que se ocupam nas horas vagas. A proximidade das duas já rendeu algumas boas histórias, que gostam de contar. Em diversas ocasiões, elas foram a uma mesma loja, no mesmo dia, e compraram roupas e calçados exatamente iguais. “Depois nós íamos, felizes, mostrar a roupa nova uma para a outra e era uma decepção, porque elas eram iguais”, relata Mareci. A união é tamanha que ambas consideram que o pior momento de suas vidas foi o ano em que passaram afastadas, quando Mareci saiu do Rio Grande do Sul com a família, em 1989. Marinês lembra que, no momento em que a irmã lhe mostrou a foto da casa onde estava morando, no Mato Grosso, ela reconheceu a habitação. “Eu já ti-
nha visto aquela casa, tinha visto no meu sonho”, confessa. Também é comum que as gêmeas saibam se estão passando bem ou mal, mesmo sem conversarem. “Às vezes, a Mareci vem me contar que não está bem e eu digo pra ela que nem precisava ter vindo falar, eu já sabia”, explica Marinês. Até o início da adolescência, Marinês e Mareci se vestiam com roupas iguais. Atualmente, as duas são conhecidas pelo mesmo apelido, Mari. A conexão espiritual que as gêmeas sentem hoje pode ser explicada, conforme Naraí, pela educação idêntica que receberam e pela vontade, desde cedo mostrada pelos pais de torná-las parecidas e próximas, exatamente o oposto do que aconteceu com Rita e Júlia. Apesar de o fator genético ter importância nesse sentido, o ambiente em que os gêmeos são criados é determinante. “A ampliação de estudos voltados ao controle genético tem deixado claro que qualquer particularidade de comportamento nos irmãos gêmeos decorre tanto de efeitos dos genes, quanto de fatores ambientais”, ensina a psicóloga. De acordo com Naraí, 40% dos gêmeos bebês apresentam uma linguagem própria, primitiva e ininteligível para outros. “Seria uma linguagem ‘secreta’, também conhecida por criptofasia ou idioglossia”, explica. Existem algumas hipóteses para que isso aconteça. Uma seria o fato de a mãe raramente falar diretamente só com um dos filhos, favorecendo uma comunicação geral. Outra, o fato de gêmeos univitelinos dividirem, desde que foram concebidos, um mesmo espaço, o útero. Assim, o principal modelo de fala da criança é seu irmão, que pouco se expressa oralmente, utilizando uma linguagem elementar. Os gêmeos formariam, então, um par auto-suficiente. Rita e Júlia concordam que a relação que possuem entre si é mais próxima do que a que mantêm com os outros irmãos. “Possuímos um laço mais forte”, definem as duas. Marinês e Mareci não imaginam uma vida separadas. “Não sei como vai ser quando a gente morrer”, sintetiza Marinês. E completa: “Meu pai sempre dizia, a Marinês sem a Mareci aqui, não adianta”.
“
Às vezes, a Mareci vem me contar que não está bem e eu digo pra ela que nem
precisava ter vindo falar, eu já sabia. Marinês Crestani
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o corpo embeleza
Estabelecimentos atraem mulheres e criam um ambiente de familiaridade e conforto para as clientes. Os salões de beleza se tornaram parte do cotidiano de “viciadas” em cuidar da aparência.
O VÍCIO DA BELEZA texto marcela ambrosini rodrigues fotos mariana fontoura
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ecadores, infinidade de cremes e sprays para cabelos, lixas de unhas, escovas, esmaltes, tinturas, difusores de cachos, chapinhas, tesouras, pincéis, pinças e cera. A lista parece não ter fim. Os salões de beleza contam com os mais variados artifícios para manter suas clientes sempre belas. Não é à toa que tantas mulheres adquiriram um verdadeiro vício nos estabelecimentos. O ambiente é como se fosse um refúgio. Desconhecidas se tornam amigas de infância em poucos minutos. Os papos são animados. Vão desde os últimos acontecimentos da novela das 8, a dieta do momento e até queixas do companheiro. Bráulio Soares, que trabalha como cabelereiro há 21 anos, admite ser uma espécie de psicólogo de grande parte de sua clientela. “Tenho clientes que se tornaram minhas melhores amigas. Como muitas estão sempre no salão, convivemos direto e aqui é o lugar em que se sentem seguras, saem com a autoestima lá em cima. Confesso que se contasse as histórias que eu costumo ouvir, até Deus duvidaria”, diverte-se. O requisitado cabelereiro Bob Paschoal é disputado pelas clientes de um famoso estabelecimento da capital gaúcha. Habilidoso, ele atende até cinco pessoas ao mesmo tempo com a serenidade de um Buda. Paschoal diz que a ala feminina vê o cabelereiro como um guru. “O que elas querem hoje em dia é um profissional que seja como um estilista de cabelo. Chegam na minha cadeira e esperam que eu as deixe como divas de Hollywood. Não ajudo minhas clientes apenas a transfor-
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marem seus cabelos. Eu as ajudo a se amarem”, afirma, confiante. Segundas, quartas e sábados a empresária Neusa Pansani tem compromisso certo. Vai ao seu salão de beleza preferido fazer o cabelo e o que mais precisar: “Eu amo me cuidar. Sinto prazer em estar bonita e arrumada. Quando a pessoa se sente bem, tudo flui melhor. É raro alguém me ver de mal com a vida, meu humor é ótimo. Faço cabelo, unhas, massagem, sobrancelha, depilação e tudo que tiver direito. Acho que sou a maior fonte de renda do salão que frequento”, conta às gargalhadas. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), o Brasil está em terceiro lugar no ranking dos maiores mercados de beleza no mundo. Além disso, o número de salões no país cresceu mais de 80% nos últimos seis anos, segundo a Associação Nacional do Comércio de Artigos de Higiene Pessoal e Beleza (Anabel). Outro dado impressionante foi levantado pela Beauty Fair, a maior feira de beleza do país. Segundo os organizadores do evento, só em 2011 foram contados 550.590 salões no Brasil. Isso significa que existe 1 salão para cada 350 brasileiros. Com uma infraestrutura impressionante e um ambiente moderno, uma das mais famosas estéticas de Porto Alegre conta com mais de 2.000m² de área e 80 vagas de estacionamento para oferecer todo o tipo de serviço embelezador. Imagine o seguinte cenário: uma casa de 3 andares, exuberante, toda branca, com garçons vestidos a rigor, de terno e gravata borboleta, televisões de tela plana mostrando as últimas notícias do Brasil e do mundo, a previsão do tempo e o horóscopo. E, como não poderia faltar, dezenas de mulheres cuidando do visual. A sinfonia dos secadores e das fofocas femininas compõem o som ambiente. A proprietária da casa, Iris Garcia, sabe que a concorrência é grande. Por isso, faz questão de que seus funcionários estejam sempre atualizados sobre as últimas novidades. “Os profissionais que trabalham aqui
Os salões de beleza servem, muitas vezes, como refúgio para as clientes. As “viciadas” passam horas tratando o cabelo, unhas e pele,
estão sempre fazendo cursos e pesquisando sobre o que há de novo no mercado. E que mulher resiste a uma novidade, não é?”, indaga. A jovem de apenas 16 anos Elisa Peña vê o salão de beleza como a sua segunda casa. Ela admite ser vaidosa ao extremo. “Acho que puxei o vício da minha mãe. Acompanho ela desde criancinha no salão e, para mim, foi amor a primeira escova”, brinca. Ela elege seus preferidos: “Faço manicure, pedicure e cabelo toda semana. Não vivo sem fazer limpeza de pele e drenagem linfática. Ah, também amo um tratamento de gomagem com
“
Não ajudo minhas clientes apenas a transformarem seus cabelos. Eu as ajudo a se amarem. Bob Paschoal
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hidratação corporal, a pele fica uma seda”. O mundo dos esmaltes é fantástico. A quantidade de cores que existe hoje no mercado é inacreditável. As opções das clientes no salão de beleza são vastas: mão básica, francesinha, unha artística ou acrílica. A personal trainer Laura Azeredo possui o hábito de fazer as unhas desde os 11 anos de idade: “Eu sou obcecada com as minhas unhas. Deus me livre de estar sem esmalte ou quebrar uma lasquinha, corro logo para as mãos da Rose, minha manicure. Preciso estar com elas sempre impecáveis, senão eu piro”, brinca. Susana Maciel é manicure há mais de 15 anos e diz que a demanda de trabalho aumentou significativamente ao longo dos anos: “A procura é imensa. A minha agenda é tão lotada que é difícil eu pwoder atender clientes novas no salão, porque as que são fiéis já têm seus horários fixos.” Ela também afirma que as meninas estão cada vez mais aficionadas por esmaltes. “Estou toda hora no Centro em busca das últimas novidades de cores. As gurias acabam demorando horas para escolher. Não culpo elas, é um mais lindo que o outro”, sorri. De fato é uma decisão complicada. Se a cliente diz que quer pintar as unhas de rosa, por exemplo, a manicure apresenta pelo menos 20 variações da cor. E a tendência é que esse número seja cada vez maior. A psicóloga Débora Lavinsky acredita que as mulheres que são viciadas em salão são influenciadas diretamente pela mídia. “A busca incansável pela beleza, os padrões inalcançáveis impostos na sociedade, acabam atingindo muitas pessoas que sofrem de baixa estima. É importante se cuidar e se sentir bem, mas o equilíbrio é fundamental na vida de qualquer ser humano, portanto é preciso tomar cuidado com exageros”, alerta. E como saber se os limites do bom senso já foram ultrapassados? “Quando a pessoa desmarca compromissos importantes para ir ao salão de beleza, quando a necessidade de estar sempre impecável passa a incomodar a si mesmo ou quem convive ao redor. Nesses casos, o ideal é procurar auxílio psicológico” explica.
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Diferentes produtos são utilizados para tratar e embelezar as clientes. A aplicação nem sempre é barata.
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o corpo centenário
Ultrapassar a barreira dos cem anos é, para muitos, motivo de insegurança. Com um século completo de perdas, ganhos e histórias para contar, Dona Anália mostra com simplicidade que ser centenária não exige fórmula secreta.
CEM ANOS DE EMOÇÃO texto débora ely
fotos mariana fontoura 93
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ona Anália começa a conversa falando sobre o tempo. O clima típico de primavera, com as tardes quentes e as noites frias, é assunto logo na chegada. Afinal, o casaco de lã que colocou no início da manhã está dando calor. E é nesse curto diálogo que a senhora deixa transparecer sua personalidade. A risada fácil e o sorriso no rosto acompanham o convite: “Fica à vontade. Puxa uma cadeira”. Os cabelos aprumados com laquê e as rugas sob os óculos não escondem a experiência de quem já viveu muitas primaveras – mas que ainda guarda uma ingenuidade típica da infância. Ela faz parte de uma parcela inferior a 0,1% da população de Porto Alegre. Segundo o Censo de 2011, 150 pessoas com mais de cem anos moram na capital gaúcha. Com seus 101 aniversários já completos, Dona Anália é uma delas. A receita para a longevidade até parece fácil. “Ter calma, não se irritar muito. E também cuidar da alimentação. Eu nunca fumei e nem bebo”, revela. Fritura em casa, apenas uma vez na semana – normalmente nas sextas-feiras, quando se delicia com um bife à milanesa ou bolinhos de arroz, dois dos seus pratos preferidos. Dona de casa ao longo de uma vida, até hoje Anália prepara o almoço religiosamente todas as manhãs com a ajuda do filho Erlon, 75 anos. Mãe e filho moram juntos em um apartamento de dois quartos no coração do bairro Petrópolis, na Capital. Viúva há 23 anos, a centenária teve outras três filhas: Maria Lurdes, Vera Maria e Maria Isabel. O único mo-
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mento em que o sorriso nos lábios dá lugar a um semblante sério é ao falar sobre a mais velha delas. A razão é aquela que dizem ser a dor mais profunda que uma mulher pode sentir: a perda de um filho. Maria Lurdes se foi em 2010, aos 63 anos, vítima de câncer no intestino. Deixou dois filhos e uma família saudosa para trás. Na época, morava no Rio de Janeiro e veio a Porto Alegre passar o Natal ao lado da mãe e dos irmãos. No primeiro mês de 2011, após sofrer uma cirurgia, seguida de uma infecção generalizada, faleceu. “Ela já sabia da doença e não me disse nada. Na verdade, veio se despedir. E, de fato, ela se foi”, desabafa a mãe. A grande desvantagem de viver mais de cem anos não são as dores nos joelhos, os problemas de visão ou a dificuldade em ouvir. A parte mais difícil é vivenciar a morte de amigos, familiares, vizinhos, conhecidos. Ver o fim se aproximar para muitos, sem ter a certeza de quando ele baterá na sua porta. Mas, costumam dizer que a vida nos torna, ano após ano, mais fortes e maduros. E até ensina a ver as coisas com outros olhos, sob uma nova perspectiva: “De vez em quando a gente lembra e dá uma dor. Mas esse é o fim de todos nós, não é? Eu sou muito religiosa, e a fé ajuda a gente. Daí começo a me lembrar das partes boas. Quando é coisa ruim, procuro esquecer. A gente não resolve nada pensando e falando coisas ruins. Aquilo que passou, passou”, reconhece a centenária. Anália Cinter Tromer nasceu ao meiodia do dia 25 de dezembro de 1911, durante a comemoração de Natal na fazenda do avô. Natural de Caçapava do Sul, na Região Central do Estado, veio ao mundo pelas mãos de uma parteira. Da mesma forma deu à luz os três primeiros filhos – somente a última nasceu em um hospital, com o auxílio de médicos. Foi a sexta de sete filhos – e é a única que está viva até hoje. “Sou a última dos moicanos”, diverte-se. A idosa passou a maior parte da infância e da juventude na cidade
Os objetos espalhados pela casa ajudam a escrever a histรณria centenรกria de Dona Anรกlia.
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Em seus 101 anos de vida, Anália passou apenas por duas operações. Estas foram responsáveis pela presença constante de seu fiel escudeiro, o andador, em sua vida.
de Cachoeira do Sul. Os anos vividos não foram capazes de apagar algumas de suas lembranças do passado. Apesar dos 101 anos, Dona Anália carrega consigo uma lucidez de dar inveja: “Lembro que quando éramos bem pequenos, a mãe saía e a gente tinha que ficar com a empregada. Depois de mocinha, só saía com os pais ou os irmãos mais velhos. Nossa diversão era ir ao cinema e aos bailes da cidade”, recorda. A idosa teve uma vida comum. Era criança quando estouraram os conflitos da Primeira Guerra Mundial. Já adulta e com filhos, ouvia pelo rádio informações sobre a Segunda Guerra. Na época, vivia com a família em Carazinho. “A gente tinha que deixar todas as luzes apagadas para os aviões não verem que ali tinha uma cidade”, recorda o filho Erlon. Ao longo da vida, viu 36 pessoas assumirem a presidência do Brasil. Quando Dona Anália nasceu, o país ainda era uma república jovem, que há apenas 22 anos havia proclamado sua independência. Viveu tudo isso. E muito mais. Mas suas memórias não se apegam a fatos históricos. Ela prefere falar do seu gosto pela costura, da sua preferência por lavar todas as roupas em casa e sobre como consegue tomar banho sozinha até hoje. Anália não participou de revoluções, não queimou sutiãs em praça pública e nem ergueu bandeiras pedindo as eleições diretas. Sempre foi dona de casa e cuidou dos filhos. “Me formei professora, mas nunca lecionei, porque meu pai não deixava a gente sair de casa”, lembra. Essa vida pacata, sem pressa, deu-lhe de presente uma saúde de ferro. Ainda jovem, um de seus irmãos tentou fugir de casa para participar do movimento armado da Revolução de 30. Quando soube da notícia, a mãe foi buscar o filho dentro do trem – e o proibiu de partir para os conflitos. A tentativa frustrada revela um pouco da organização familiar a que se acostumou. Filhos não devem desobedecer aos pais, sob hipótese alguma. Dona Anália passou por apenas duas
operações ao longo de seus 101 anos. A primeira intervenção cirúrgica foi motivada por uma queda. Mesmo com a idade avançada, sempre gostou de sair sozinha, andar pelo centro da Capital e ir às atividades da Igreja Santa Cecília. Em uma dessas andanças pela cidade, caiu: “Fui pegar o ônibus e dei uma corridinha, bem na frente do Pronto-Socorro. Tinha muita gente, não vi o degrau e caí na calçada”. A cirurgia lhe rendeu uma placa no fêmur e 40 dias sem andar. Desde então, por onde quer que Dona Anália vá, é acompanhada de seu fiel escudeiro, o andador. Andar sem ele é um perigo. Em 2012, uma nova queda, dessa vez em casa após tomar um remédio para dormir, a fez passar pela segunda operação. Dessa vez, foi levada a Vitória, onde mora uma das filhas, para consultar com um médico especialista. Por lá ficou alguns meses “porque o doutor tinha medo da minha idade e não queria me operar”, nas suas próprias palavras. Depois de muito insistir, realizou a cirurgia e voltou para Porto Alegre: “Já estava com saudades de casa”. A cirurgia lhe deixou com três centímetros a menos na perna direita, o que obriga Dona Anália a colocar um salto extra em todos os sapatos que compra. Além disso, o fisioterapeuta passou a ser um dos protagonistas de sua vida, a quem ela faz visitas semanais – todas as terças e quintas-feiras. O 100º aniversário foi comemorado com uma festa surpresa no condomínio onde mora, organizada por uma das vizinhas. “Eu disse que não queria nada, porque tinha perdido uma filha há pouco tempo. Só queria uma missa”, explica. Seu desejo não foi atendido e, no dia 25 de dezembro de 2011, mais de 70 pessoas se reuniram para cantar parabéns a você. Entre elas, estavam os filhos, seus seis netos e a bisneta de dois anos. Mais quantas celebrações como essa virão? Impossível saber. Ser velho – especialmente quando já se ultrapassou a barreira de um século – é estar perto da morte. Mas a morte é o contrário do nascimento, e não da vida.
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o corpo espiritual
MUITO ALÉM DO CORPO texto brunna weissheimer fotos felipe dalla valle
A medicina e a espiritualidade atuam como aliadas para melhorar os resultados em tratamentos e curas de doenças. 100
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o longo da história, ciência e religião divergiram sobre assuntos como o começo do mundo, a existência do homem e a constituição do corpo. Nunca estiveram exatamente do mesmo lado. Hoje talvez seja possível um diálogo mais interessante entre ambas. Na última década, uma corrente liderada pelo médico Harold Koenig sugere que a medicina considere a espiritualidade dos pacientes, especialmente no tratamento de doenças. Por meio de pesquisas, a Neurociência foi uma das áreas da Medicina que primeiro pôde explicar determinados tópicos que até então eram considerados do campo espiritual. Alguns neurocientistas procuraram essa correlação, mas de uma maneira que pudessem justificar com estudos. No Brasil, o neurocirurgião Raul Marino Jr. conhece o cérebro humano como poucos e estudou para entender o que acontece nele durante as orações e outras práticas religiosas ou místicas, por exemplo. Ele acredita ainda no fato de que o homem é dotado de áreas cerebrais para que possa se comunicar com Deus. A observação do processamento das emoções relacionadas à religião e à espiritualidade no cérebro levou ao surgimento da neuroteologia. O neurologista Sergio Spritzer define que essas novas análises levam a modelos mais sistêmicos de abordagem da realidade, que admitem outros planos. “A ciência bem feita não se coloca como onipotente, implica na consideração de uma dimensão
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desconhecida e mais inteligente que os achados científicos até então. As pesquisas das ciências humanas abordam a dimensão experiencial e as relações disso com a dimensão espiritual. Em uma visão sistêmica, ambas estão interligadas”, diz Spritzer, que é especialista em Psicologia Cognitiva e professor de Neuropsicologia das Relações Humanas e Psicologia da Linguagem e da Comunicação. Para ele, a espiritualidade é como a comunicação: “Estamos mergulhados nela”. As religiões também compartilham dessa opinião e consideram o espírito uma das partes que compõem o corpo humano. O espiritismo, por exemplo, acredita que o homem é formado por três partes: corpo, espírito e o perispírito, o elemento de ligação entre os dois. O espírito é responsável por comandar a mente. A vice-presidente da Sociedade Espírita Allan Kardec, Maria Inês Reis Alves, afirma que a falta de conhecimento da parte espiritual do ser humano pela Medicina é um problema. “Como não se procurou conhecer o ser humano como um todo, só houve preocupação com o material. A dificuldade está em aceitar o espírito como parte importante. O ser humano não é só corpo. Existe algo mais, e precisa ser considerado”, diz Maria Inês, que está há 55 anos na instituição, localizada no centro de Porto Alegre. Ela pensa que, quando os médicos aceitarem o espírito, vai ser diferente e será mais fácil até para o tratamento de doenças. Existe um caminho alternativo que se encontra entre os dois campos: as cirurgias espirituais. Elas não são feitas no corpo físico, mas sim no corpo espiritual, onde, para os espíritas, está a origem das doenças. Durante a operação, não há cortes ou dor e, após a intervenção, não é possível ver cicatrizes no corpo do paciente. São os espíritos médicos que realizam a cirurgia. A psicóloga Sandra Cristina Monice Garcia sofreu, durante aproximadamente dois anos, com dores na região da coluna lombar. Já estava em tratamento médico há
Novas correntes médicas passam a considerar o espírito como elemento que faz parte do ser humano.
algum tempo e havia indicação para uma intervenção cirúrgica física, por se tratar de uma hérnia de disco, que estaria comprometendo a medula e, consequentemente, os movimentos da perna. “Quando você sente dor, tudo é válido, não existe o que a gente não tente para se livrar dela”, explica Sandra, que, familiarizada com o espiritismo desde pequena, recorreu à cirurgia espiritual. No começo, logo após a operação, teve uma melhora, mas como foi pouca, creditou a um possível “efeito placebo”. “Fiquei imaginando se o efeito seria mais efetivo se maior fosse a fé que me movia. Depois da cirurgia física, acho que a espiritual foi um ganho, porque nem a medicina alopática, nem o monte de remédios e médicos que continuo
consultando conseguem acabar com o problema”, conta a psicóloga. O Hospital São Francisco de Cardiologia da Santa Casa de Porto Alegre desenvolveu uma nova linha de pesquisa que busca relacionar as influências da espiritualidade sobre a doença cardiovascular em indivíduos submetidos a cirurgias cardíacas e infartos. Mais de 300 pacientes prestes a serem operados do coração e quase uma centena de cardiologistas responderam a um questionário. 70% dos pacientes gostariam que o médico falasse sobre religião com eles, mas apenas 15% o fazem. Esse projeto tenta provar que é importante relacionar as duas áreas em questão, a fim de solucionar os problemas detectados no corpo humano.
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A dificuldade está em aceitar o espírito como parte importante. O ser
humano não é só corpo. Existe algo mais, e precisa ser considerado. Maria Inês Alves
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A LIÇÃO DA VIDA texto marco souza fotos mariana fontoura 106
o corpo morre Independente dos esforços e da dedicação dos médicos, o ciclo continua acontecendo. Mesmo com tecnologia e tratamentos avançados, os limites do corpo sempre são soberanos.
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s esforços descritos abaixo retratam a rotina do médico na luta pela sobrevivência do paciente. Mesmo que ainda universitários, o contato com a morte é uma das realidades de quem tenta evitar o óbito. A sala de cirurgia estava pronta para começar o procedimento. O ambiente estéril é fundamental para não oferecer riscos ao atendido. Alguns estudantes, em estágio mais avançado da faculdade de Medicina, participam. Entre eles, Rodrigo Silva, 23 anos, empolgado por fazer parte do procedimento pela primeira vez. Na maca, um pequeno corpo é trazido com cuidado por uma enfermeira. A menina de 13 anos já é uma figura conhecida dos frequentadores do hospital. Em luta contra um câncer (osteosarcoma) que se espalhou por seu corpo, é a terceira cirurgia do mesmo tipo a que ela é submetida. Depois do braço direito e da perna esquerda, sua última esperança de evitar que a doença se espalhe para o restante do organismo é amputar a perna direita. Antes de ser anestesiada, ela diz que está cansada de lutar. Os enfermeiros que trabalham no bloco cirúrgico não conseguem segurar o choro. Apesar das dores, não abandona a calma. Algumas horas depois, teve seu desejo atendido. A menina acabou encerrando sua jornada de sofrimento na mesa de operações. Sem conter as lágrimas, nenhum dos médicos da equipe conseguiu manter distância na hora de comunicar a família. “Foi bem complicado. Ainda auxiliei mais uma cirurgia antes do fim do plantão. No caminho pra casa eu chorei muito lembrando daquilo”, conta Silva. Essa é uma rotina que está ligada à profis-
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são. Preparado ao longo da faculdade, o médico é treinado para não se apegar à dor. Mesmo que a perda do paciente seja algo ruim, o aviso para os familiares é ainda pior. Além do treinamento técnico, a faculdade de Medicina prepara o estudante para ter condições de superar a perda. Segundo o professor da Faculdade de Medicina da PUCRS e diretor da UTI geral do Hospital São Lucas, Fernando Dias, a academia tenta formar um profissional apto a lidar com a morte da pessoa. Segundo Dias, o currículo acadêmico é pensado para que os alunos estejam aptos a lidar com situações de possível óbito e não perder a capacidade de tomar decisões em momentos críticos. Apesar da formação orientada para dar condições emocionais e técnicas ao lidar com a morte, os estudantes reconhecem a dificuldade de não se ser afetado pela perda. Depois da experiência da paciente com câncer, é isso que acredita o futuro médico Rodrigo da Silva. Cursando a faculdade em Curitiba, Silva defende que apenas a parte acadêmica não dá sustentação para exercer bem a profissão. “Na reta final do curso, posso dizer, com certeza, que a maioria não se considera pronto tecnicamente para salvar vidas, e os que se acham prontos precisam urgentemente rever seus conceitos”, disse. Mesmo que a parte técnica não seja uma dificuldade, a orientação principal aos novos médicos é não criar vínculos emocionais que comprometam a relação. Até mesmo os profissionais com experiência têm espaço para buscar auxílio, caso sintam que precisam de ajuda. Os conselhos federal e estadual de Medicina tem comitês de ética, que definem linhas de orientação em temas delicados. De acordo com Dias, os hospitais também oferecem acompanhamento psicológico para os profissionais. A preparação passada pela academia visa preparar o aluno tanto para a parte técnica como a parte psicológica. Ao longo dos 20 minutos - tempo médio para tentativas de ressuscitação-, a tensão é constante. O respirador é acionado. A primeira parte
Mesmo em situações críticas, o médico precisa manter a calma para cuidar dos paciente.
da luta é para evitar que o cérebro fique sem oxigênio. Abre-se a gaveta do móvel ao lado da cama. Uma série de injeções começa a ser administrada. Vários tipos de drogas são utilizados para tentar estimular o organismo a reagir contra a falência de algum órgão. No monitor, nenhum sinal de reação. A massagem cardíaca começa. Segundo Dias, é para esse tipo de situação que a faculdade prepara. O suor toma conta do rosto do médico. A cada cinco minutos, outro profissional assume seu lugar, pois o desgaste físico atrapalha a tentativa de salvamento. Nenhum sinal de reação no monitor. É anunciada a morte. No prontuário, o médico preenche a causa do óbito. A família precisa ser avisada. Conforme o diretor
da UTI do Hospital São Lucas da PUCRS, essa é a parte mais difícil de preparar o profissional. “Durante a formação, e na medida em que avança no exercício da medicina, adquirese experiência. Temos que lidar com isso. É como um piloto de avião que precisa enfrentar uma tempestade. Quando aprendeu, ele deve ter simulado a situação para ter êxito na hora que precisar aplicar esse conhecimento. Com a medicina é a mesma coisa”, avalia Dias. Após esse momento, o médico começa a preencher os papéis que encaminham a oficialização do óbito. O fim da vida não significa o fim da burocracia. Juntamente com o prontuário, um atestado de óbito é feito. O documento acaba em um cartório.
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A comunicação aos familiares é difícil, pois todos amavam o ente perdido e esperavam que o médico fosse como um salvador capaz de evitar a morte
Atenção não garante recuperação do paciente. No fim, a resistência do corpo é que determina o sucesso ou fracasso do tratamento.
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Depois de todos os esforços de tratamento, esse é um processo onde não há garantia de sucesso. Assim como a vida, as maneiras de identificar o óbito estão em evolução desde os primórdios da profissão. Antes da criação de maneiras modernas de verificar o óbito, a principal orientação era deixar o tempo agir. Os médicos do século 19 eram adeptos à técnica de verificação de morte: a putrefação. Na Alemanha, para evitar que pessoas fossem enterradas vivas, os corpos permaneciam armazenados em câmaras mortuárias até que a putrefação não deixasse dúvidas quanto ao sinistro. Em 1968, um comitê foi formado na Universidade de Harvard para estabelecer critérios mínimos de morte. O grupo determinou que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte total. O óbito é
uma condição confirmada quando o corpo não tem mais condições de se se recuperar, independente do sistema afetado. Para evitar que o aluno só conheça a pressão de um caso de óbito, o diretor da faculdade de medicina da PUCRS, Ivan Carlos F. Antonello defende o contato de estudantes com os pacientes ao longo da formação. “O nosso objetivo é conseguir a aproximação com o paciente. O aluno nunca será o responsável pelo tratamento durante seus estudos. Temos as disciplinas que preparam para a prática, mas isso é insuficiente”, garante. E esse é o conceito adotado atualmente. Mesmo que na teoria esteja simplificado, o contato com a realidade inevitável do óbito não foi facilitado pelas novas técnicas. Com experiência de mais de 20 anos de profissão, a médica Marizane Barneche, 45 anos, afirma
Após lidar com o ôbito do paciente, o médico ainda precisa enfrentar a parte mais difícil de uma morte, o aviso aos familiares.
que continua difícil lidar com a perda. “Temos no trabalho do dia a dia uma falsa prepotência de que com nossos cuidados vamos driblar a morte, mas nem sempre a luta termina em vitória do médico”, lamenta. No caso de Marizane, o problema ainda é mais difícil. Ela é pediatra, e quando acontecesse algum óbito, avisar a família da morte de uma criança é complicado. “A comunicação aos familiares é muito difícil. O médico é visto como um salvador capaz de evitar a morte. Na hora da comunicação aos familiares, sempre existe uma revolta. Temos que entender a dor do familiar. Somos tidos como frios, mas isso é uma ideia gerada pela necessidade de agir e raciocinar pragmaticamente para conseguir ajudar o paciente”, afirma. Mesmo que a orientação na faculdade também aborde a relação do médico com família do paciente, a realidade é bem pior quando a notícia da morte precisa ser passada. Conforme Dias, os estudantes aprendem que devem buscar um espaço reservado, contar pessoalmente aos familiares e usar um vocabulário livre de termos técnicos. “Em geral, conhecemos o paciente. Ver seus momentos finais é doloroso”, comenta Marizane. “A comunicação aos familiares é difícil, pois todos amavam o ente perdido e esperavam que o médico fosse como um salvador capaz de evitar a morte”. Depois que a notícia é comunicada, sobra para o médico lidar com a situação. Mesmo com todo o treinamento prático, só resta ao profissional aceitar a situação. “Lidar com a morte é muito difícil. Uma coisa importante nas escolas de medicina é que seja compreendida essa noção de finitude. Tudo tem um começo, meio e fim. A vida é assim também. Os perfis de médicos são diferentes, mas precisamos nos adaptar para enfrentar uma condição única: a morte” define Dias. Independente dos esforços e dedicação dos médicos, o ciclo continuará acontecendo. Mesmo com toda a tecnologia e técnicas avançadas, a morte continua inevitável. No fim, os limites do corpo sempre vencem.
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pescoço língua tímpano tendão coxa panturrilha unha nuca virilha bunda dentes boca maxila garganta queixo cílios sobrancelha cotovelo gengiva nariz gogó bigode maçã do rosto coração pulmão olhos ouvidos nariz mão cabelo orelha dedos cotovelo dedo pálpebras lombar tornozelo retina testa estômago cóccix faringe palma da mão cérebro pele faringe laringe punho siso rins íris tíbia costela joanete ombro calcanhar pestana ventrículo membrana antebraço bíceps osso pele crânio maxilar mandíbula clavícula escápula costela úmero rádio carpo metacarpo falange fêmur perônio fíbula tarso metatarso ureter esfíncter glande jugular quadríceps bíceps glúteo máximo escápula trapézio abdômen cintura costelas pé joelho cerebelo neurônio lábio ânus rádio cutículas pé joelho diafragma abdome pulso canela nádegas barba intestino bexiga útero calcanhar axila peito umbigo apêndice pelos melanina músculo gordura aorta válvula mitral válvula tricúspide rim fígado tendão testículos ovários períneo tarso metatarso fíbula rótula nervos meninges coluna vertebral vértebras pâncreas baço uretra ciático couro cabeludo moleira umbigo pélvis púbis mamilos seio anelar saliva pescoço língua tímpano tendão coxa panturrilha unha nuca virilha bunda dentes boca maxila garganta queixo cílios sobrancelha cotovelo gengiva nariz gogó bigode maçã do rosto coração pulmão olhos ouvidos nariz mão cabelo orelha dedos cotovelo dedo pálpebras lombar tornozelo retina testa estômago cóccix faringe palma da mão cérebro pele faringe laringe punho siso rins íris tíbia costela joanete ombro calcanhar pestana ventrículo membrana antebraço bíceps osso pele crânio maxilar mandíbula clavícula escápula costela úmero rádio carpo metacarpo falange fêmur perônio fíbula tarso metatarso ureter esfíncter glande jugular quadríceps bíceps glúteo máximo escápula trapézio abdômen cintura costelas pé joelho cerebelo neurônio lábio ânus rádio cutículas pé joelho diafragma abdome pulso canela nádegas barba intestino bexiga útero calcanhar axila peito umbigo apêndice pelos melanina músculo gordura aorta válvula mitral válvula tricúspide rim fígado tendão testículos ovários períneo tarso metatarso fíbula rótula nervos meninges coluna vertebral vértebras cérebro pele faringe laringe peito umbigo rádio carpo gengiva nariz
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