Um ensaio na periferia e no tempo
A exposição Uma outra cidade, um outro tempo traz ao público um fino recorte da obra do fotógrafo Iatã Cannabrava. Com imagens captadas entre os anos 1980 e 2010, o curador Rubens Fernandes Junior e o autor revisitaram seu arquivo pessoal selecionando um expressivo conjunto de fotografias das regiões periféricas da América Latina, com especial foco em São Paulo, num momento em que registros como esses eram raros. Tempo em que essas regiões ainda estavam à margem da documentação fotográfica – até mesmo por parte de seus moradores – e que só recentemente passaram a ser incorporadas como lugar de fala às narrativas da cidade.
Representante de uma geração de fotógrafos que se formaram sob o peso do autoritarismo dos anos da ditadura militar, Cannabrava construiu um trabalho que tem um caráter precursor na resistência ao apagamento e ao silêncio da cultura da periferia. É com essa conotação histórica que
por Marcos Cartum DiretorMuseu da Cidade de São Paulo Departamento dos Museus Municipais
a mostra ganha especial importância ao revelar o modo de viver em bairros como Capão Redondo e Itaquera, registrados durante sua expansão.
Uma outra cidade, um outro tempo insere-se nas pesquisas que estruturam, nos últimos anos, o conjunto de ações do Museu da Cidade de São Paulo, voltado à descentralização da experiência de olhar para o território e para a sociedade, assim como às trocas simbólicas de vivência, conhecimento e memória. Com esse propósito, previu-se para 2022 a exibição das fotografias que participaram de editais e curadorias sobre as intersecções culturais da periferia. Também sob essa perspectiva, o Museu revisitou a memória de suas próprias atividades nas últimas décadas, em especial a partir dos projetos de História Oral e do Museu de Rua – importantes instrumentos de coleta e devolutivas de conhecimento sobre a cidade e de seus acervos institucionais para os habitantes.
Uma outra cidade, um outro tempo
Hoje, passados mais de 25 anos, o distanciamento histórico evidencia a relevância sociocultural e política das fotografias de Uma outra cidade –uma produção marcada pela diversidade territorial, assim como pela unidade cromática e pelas aproximações de ordem estética. Iatã Cannabrava soube articular as diferenças e complexidades de cada espaço fotografado em busca de estímulos que ajudassem sua construção poética e proporcionassem uma reflexão singular sobre os espaços periféricos das grandes metrópoles.
Um pouco do tempo
Filho de exilados políticos pelo golpe militar de 1964, Iatã saiu do Brasil aos 8 anos de idade, em 1970. Ele lembra que, um ano depois, em La Paz, na Bolívia, escondendo-se no porta-malas de um carro para escapar de um tiroteio em meio a outro golpe militar, chegou ao aeroporto no bairro de El Alto e viu pela primeira vez uma “vilinha” em torno da cidade.1
Dando um salto no tempo, ao retornar ao Brasil em março de 1980, enquanto sobrevoava São Paulo para desembarcar no Aeroporto Internacional de Congonhas, ficou perplexo com a dimensão da periferia e suas nítidas fronteiras com o centro urbano da megalópole.
Esses dois momentos, imagens fortes gravadas na memória, foram fundamentais no processo de criação do ensaio fotográfico revisitado agora na edição Um outro tempo – um conjunto imagético que concentra distintas temporalidades em diferentes espaços e transforma universos privados em documentos públicos agora compartilhados.
Com 15 anos de idade, Iatã ganhou sua primeira câmera, soviética, de lente fixa e corpo de plástico, quando vivia
em Cuba, na Isla de la Juventud.2 No ano seguinte, em 1978, foi visitar os pais no Panamá para celebrar seu aniversário. Quando os amigos da família perguntaram o que ele fazia, surpreendeu a todos com arrogância juvenil: “Sou curioso e sou fotógrafo”. Acabou ficando no Panamá. Um dos presentes nesse encontro era Pedro Rivera, diretor do Centro Experimental de Cinema da Universidade do Panamá, que fez um convite irrecusável –ser assistente do laboratorista da instituição. Nos dias seguintes, já trabalhando na função, Iatã leu diversos livros de química e física da biblioteca buscando entender com mais profundidade a ação do revelador e do fixador no processamento laboratorial. Uma verdadeira imersão no mundo da fotografia analógica. Desde então, a fotografia se faz presente em sua trajetória de quase 50 anos, boa parte deles à frente do Estúdio e Editora Madalena, onde organizou e publicou livros importantes na última década, e conduziu a curadoria e a liderança de festivais, encontros e associações, como o Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo e o Seminário Pensamento e Reflexão na Fotografia; os festivais do Valongo, em Santos, e Paraty em Foco, no litoral fluminense; e a Rede de Produtores Culturais da Fotografia no Brasil e a União dos Fotógrafos de São Paulo, entre outras atividades inscritas na história recente da fotografia no Brasil e no exterior.
Uma outra cidade, um outro tempo, produção exposta na Casa da Imagem/ Museu da Cidade de São Paulo, ganha importância ao explicitar um percurso singular na documentação da impermanência que caracteriza o desenvolvimento do que se entende por periferia urbana. Essas fotografias, produzidas em várias cidades
Não adianta querer, tem que ser, tem que pá
O mundo é diferente da ponte pra cá Não adianta querer ser, tem que ter pra trocar
O mundo é diferente da ponte pra cá. Racionais MC’s, “Da Ponte pra Cá”
brasileiras e da América Latina, “escancaram a contraparte da modernização das metrópoles e do projeto de emancipação sociocultural sonhado pelo ideário republicano”, avalia Iatã. A síntese é um conjunto expressivo de um profissional que jamais deixou de acreditar na força documental da fotografia.
Relatos da experiência, o tempo
Em suas primeiras idas a campo, em 1997, Iatã aproveitou o círculo a sua volta. Foi ao aniversário da filha do amigo e funcionário Waldema, na zona sul de São Paulo, e ao encontro de lideranças comunitárias do Jardim Kagohara, indicadas por sua mãe Beatriz Cannabrava, atuante na ONG Rede Mulher. Nesses registros iniciais, ainda em preto e branco, seu equipamento se restringia ao formato de 135 mm, particularmente centrado em uma câmera Nikon equipada com uma lente de 20 mm, que o acompanhava desde 1984, e uma teleobjetiva de 200 mm, que havia usado em uma ou duas oportunidades. Semanas depois, ao ter uma noção melhor do lugar em que se colocara e do que estava fazendo, já tinha montado seu novo aparato: uma câmera Hasselblad, de formato médio 6 × 6 cm, acoplada com uma lente SWC fixa, uma grande angular absoluta. Ele lembra que abriu mão do snapshot (shooting) à distância para estar dentro do assunto.
O novo conjunto técnico levou a uma transformação radical em seu processo de trabalho. Em vez de se esconder atrás da câmera, como vinha acontecendo, o visor da Hasselblad exigia outra postura: o corpo inclinado como em uma saudação oriental agradecendo
o registro que produziria. Iatã passou também a observar mais, a conversar mais, e só fotografar a partir do momento em que todos os elementos – fotógrafo, equipamento, ambiente, retratado – estivessem absolutamente à vontade. Outra mudança sensível em seu trabalho foi a troca do filme preto e branco pelo colorido. Ao optar pela cor, Iatã sentiu que “estava retratando um lugar construído a partir da criatividade das pessoas que ali habitavam”, o que foi muito importante para entender que a cor não é apenas uma qualidade descritiva, mas um elemento constitutivo. Ele se negou a ver o território como a paisagem trágica sugerida pela pobreza e pela desesperança para buscar um recorte que intensificasse as contradições do sistema em que estamos inseridos. Não queria uma série de fotografias desconexas, mas sim um conjunto imagético capaz de revelar e despertar consciências ao iluminar o olhar do espectador. De forma perspicaz, Iatã elaborou uma resposta simples e direta para quem tivesse dúvidas sobre sua presença e sua atuação: “Estou documentando o lugar, o cotidiano e as pessoas para criar uma memória. Uma memória do lado de cá”. Na verdade, sua percepção era de que o “lado de lá nunca esteve do lado de cá”, com exceção de fotojornalistas que eventualmente circulavam para cobrir algum evento, quase sempre violento, ou registrar a atuação das ONGs em projetos de interesse da comunidade. Em suas andanças em diversas cidades da América Latina, o autor aprendeu desde muito jovem a respeitar a comunicação em toda e qualquer situação. Para os primeiros contatos, chegava em um botequim,
por exemplo, pedia um café ou uma cachaça, dependendo da hora, um ovo cozido (roxo) para acompanhar e estabelecia uma conversação quase imediata com as figuras presentes, invariavelmente com algum reconhecimento na comunidade. Foi através dessa convivência que articulou sua rede de conhecidos e contadores de história.
no desenvolvimento do projeto, não importando a cidade, se São Paulo, Buenos Aires, Belém, Recife ou La Paz. Para o fotógrafo, “somos uma sociedade 100% classista, hierarquizada, cega a tudo que está fora do nosso alcance, fora da nossa bolha de convivência”. O trabalho adquire maior importância quando se entende que sua fotografia –e não só as imagens deste ensaio –é também um ato político ao explicitar feridas sociais.
personagens, seus rostos e a paisagem experimentam um imperioso “agora”. Não há espaço para excentricidades, mas sim o registro de inquietações que afetam nossa sensibilidade de maneira a perceber que ali, naquele labirinto de muitos acessos e poucas saídas, a vida acontece.
Documento e fotografia
Fotografar é só começar
No começo dos anos 2000, Iatã encontraria os limites naturais de seu projeto ao tentar trazer jovens fotógrafos de classe média para a realização do workshop Paisagem da Exclusão, no Capão Redondo. A baixa adesão se repetiria mesmo ao incorporar a própria comunidade no processo de documentação das transformações que a afetavam e a definiam. Nada que o abalasse. Para o autor, o importante é que “durante todos estes anos fiz grandes amigos e construí pontes” essenciais para que pudesse frequentar cada vez mais essas “outras cidades” –territórios onde há uma confluência de energia e de saberes, com pessoas sintonizadas para transformar o contexto sendo protagonistas do processo. Construir esses espaços de circulação é um ato cultural de extrema relevância. Iatã entendeu que seu projeto se formatava dentro da ideia de que “é o tempo que faz o documento”. Sim, olhando retrospectivamente, esse potente conjunto fotográfico é, sem dúvida, um dos melhores inventários da periferia latino-americana, em especial da periferia paulistana. As questões iniciais – que cidade é essa, quem a desenhou, quem passa os fios, quem determina os caminhos – foram decisivas
O geógrafo Milton Santos afirma que “a cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e seu meio, um resultado obtido através do próprio processo de viver”.3 Diante dessa afirmação, entende-se que a riqueza periférica e suas múltiplas expressões culturais implicam movimentos de convivência que criam os modelos e a experiência de viver em comunidade. Pensar fora dos padrões institucionalizados sempre foi uma atitude assumida por Iatã Cannabrava. Os cartões postais das metrópoles não contemplam as periferias, daí seu movimento em retratar lugares e pessoas que estavam fora do radar sistêmico, desalinhados com o projeto de poder, longe dos privilégios que inviabilizam toda e qualquer sociedade. Ele soube se aproximar das pessoas e registrar como elas vivem, como elas se vestem, como elas se divertem –o território como organismo vivo, com seus fluxos de vida. Ao deixar de lado eventuais exageros e atos de violência, evidencia que, na aparente objetividade da linguagem fotográfica, sua preferência é pelo registro do afeto entre as pessoas. O resultado dá uma ideia do lugar onde se manifestam eventos essenciais, onde a vida de seus
Uma outra cidade talvez seja um dos poucos projetos com 25 anos de estrada que tratam do tema –as comunidades periféricas –, e expressam as contradições e os paradoxos gerados pela economia capitalista, baseada na desigualdade e na prepotência. Iatã, com seu pensamento crítico independente, interpreta e aponta algumas fissuras desse modelo. A fotografia, como nos lembra a filósofa estadunidense Susan Sontag,4 contribui muito para aumentar o repúdio de algumas barbaridades cometidas pelo homem. Ordenar, arquivar, fragmentar, unificar, modernizar os saberes, entre outras atribuições, segundo André Rouillé,5 é função daquilo que ele denomina “fotografia-documento”. Mas não se pode circunscrever a fotografia apenas no âmbito documental. Ela também explicita uma atitude estética, independente do desejo do fotógrafo. Iatã costuma dizer que, assim como a água se apresenta em estado líquido, sólido ou gasoso, a arte, o documento e a denúncia são estados da matéria fotográfica, que se alteram conforme as condições de temperatura e pressão.
São estados circunstanciais, que conectam tempo, espaço e autoria.
No texto que produziu para o livro Uma outra cidade, com o título
“Introdução ao caos”, o escritor Ferrez diz que o caos é a palavra mais próxima ao criador. Iatã reforça a afirmação com imagens. Procurou registrar o que julgou importante como documento, pois “a sociedade que não tem documento está fadada ao esquecimento”. Para ele, uma única imagem tem quase sempre dezenas de histórias, e o artista conclui: “Gosto muito da ideia de que essas fotografias reunidas formam um inventário do período em que vivi”.
A empatia construída com essas comunidades persiste. Para o autor, ver mais uma vez essas fotografias é desencadear uma série de processos complexos, é recuperar a emoção da experiência singularizada nas imagens, mas também há certa frustração em ver que o Brasil em que elas se inserem está hoje em uma situação pior do que estava naquela época. Todavia Iatã confia plenamente que tanto o jovem do lado de cá quanto o jovem do lado de lá traçarão outras pontes para outros territórios.
1 El Alto é hoje o maior bairro de La Paz, na Bolívia, com cerca de 1 milhão de habitantes. Foi o destino da última viagem de Iatã, em 2009, para o projeto Uma outra cidade
2 De meados de 1976 a meados de 1978, Iatã estudou numa Escuela Secundaria Básica en el Campo (ESBEC) da Isla de la Juventud, em Cuba. As ESBEC faziam parte de um projeto educacional, em regime de internato, que ministrava atividades educacionais e laborativas em um processo de formação conjugado.
3 Santos M. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1993, p. 61.
4 Sontag S. Ensaios sobre a Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 28.
5 Rouillé A. A fotografia – entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Editora Senac, 2009, p. 97.
Exposição realizada de 27/08/2022 a 23/10/2022 na Casa da Imagem/ Museu da Cidade de São Paulo
Museu da Cidade de São Paulo Núcleo de Curadoria
Prefeitura de São Paulo Ricardo Nunes
Secretaria Municipal de Cultura Aline Torres
Secretária Adjunta Antônia Soares André de Souza
Chefe de Gabinete Danillo Nunes
Departamento dos Museus Municipais Marcos Cartum
Administração
Danilo Montingelli
Eliane Aparecida de Oliveira (coordenação)
Fernando Luiz de Camargo George Paulo de Oliveira Marfísia Lancellotti
Acervo Arquitetônico
Lannes Galil Moura
Regina Helena Vieira Santos
Ricardo Aguillar da Silva Roberto de Souza (coordenação) Paulo Henrique Franca Maciel (estagiário)
Centro de Documentação
Fabiana Miwa
Fernanda Mendes Queiroz Camila Rocha (estagiária)
Curadoria
Felipe Garofalo Cavalcanti
Gabriela Rios
Henrique Siqueira (coordenação)
Monica Caldiron
Paulo Vinicio de Brito
Sofia Castilho David Queiroz (estagiário)
Educativo
Adelaide de Estorvo
Emília Maria de Sá Nádia Bosquê (coordenação)
Museologia e Acervos
Brenda Alves Marques Elton Bueno
Evaldo Piccino João de Pontes Junior
Mariza Melo Moraes
Paula Talib Assad (coordenação)
Shirley Silva Vera Toledo Piza Gabriela Mesquita de Carvalho (estagiária) Giulia Nascimento (estagiária)
Produção
Tereza Cristina Ribeiro Lacerda (coordenação)
Programa Jovem Monitor Cultural Lucas Moreira Gomes Dias Maria Vitória do Nascimento (criatividade) Rayanny Ellen da Silva Salgado Valéria Ferro
Equipes Terceirizadas
Arteducação Produções – AEP (educadores)
MRO (manutenção predial) MRS São Paulo (segurança patrimonial) Paineiras (limpeza)
Curadoria Rubens Fernandes Junior
Produção executiva NU Projetos de Arte –Nathalia Ungarelli
Coordenação de produção Heloisa Leite Produção Ana Luiza Romanetti
Projeto gráfico Ekaterina Kholmogorova
Projeto expográfico Estúdio Gru – Jeanine Menezes
Iluminação MMV Montagens Audiovisuais
Impressão Fine Art MR Estúdio Digital Sinalização Water Vision Montagem Fina Install Editor de texto Tato Coutinho
Revisão Renata Lopes Del Nero
www.museudacidade.prefeitura.sp.gov.br
Agradeço a todas as comunidades que abriram seus espaços para que possamos nos ver melhor. E em especial às instituições e pessoas que, ao término do projeto, continuaram a me apoiar. Waldema, Ione Dias, Paulo Magrão, Waltinho, Templo de Umbanda Sr. Ogum e Martim Pescador, Associação Capão Cidadão, Horta Cores e Sabores do Capão Redondo, Instituto Fundão.
Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica
C224u
CANNABRAVA, Iatã
Uma outra cidade, um outro tempo / Iatã Cannabrava ; textos de Rubens Fernandes Junior e Marcos Cartum. - São Paulo, 2022. 109 p. ; il. col. : 30 cm.
Museu da Cidade de São Paulo
Edição em português.
ISBN: 978-65-998875-0-5
1. Artes Visuais – Fotografia – Periferias - São Paulo – América Latina. I. Título. II Autor.
CDD: 779
Em atenção à lei 9.610/1998, todos os esforços foram feitos para contactar as pessoas que aparecem nas fotografias aqui expostas, mas nem sempre com sucesso. Em caso de reconhecer-se nas fotos pedimos por gentileza que entrem em contato para regularizarmos o uso de direito de imagem.
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