Realengo

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Não à violência do coração, não à violência da palavra, não à violência do punho. [Martin Luther King Jr]


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De vez em quando, ao acompanharmos as notícias do dia, somos tomados pela sensação de que o inferno abriu suas portas e soltou seus demônios mais cruéis. Foi o que aconteceu no fatídico 7 de abril de 2011, quando Wellinghton de Oliveira usou um revólver Taurus calibre 38 para matar 12 crianças na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, Rio de Janeiro. AS FACES DA VIOLÊNCIA A história da humanidade é marcada pela violência. Apenas para falar dos horrores mais recentes, podemos lembrar o significativo texto de José Saramago, curiosamente entitulado O fator Deus: “Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá ‘ver’ cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançamse contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo.


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Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruandade-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar”. A morte de Osama Bin Laden recentemente anunciada e grotescamente celebrada pelos norteamericanos e seus simpatizantes, foi justificada pelo Presidente dos Estados Unidos Barak Obama como “ato de justiça” e esclarecida como “a vitória do bem sobre o mal”, num maniqueísmo simplista que faz corar de vergonha qualquer pessoa com bom senso suficiente para saber que nos conflitos internacionais estão imbricados fatores geopolíticos, econômicos, ideológicos e religiosos, que não permitem separar o joio do trigo. A luta pela hegemonia imperialista e fundamentalista, tanto de orientação ocidental cristã quanto oriental islâmica, não comporta uma interpretação dualista nas categorias de mocinho e bandido. Todo mundo é mocinho e bandido ao mesmo tempo, cada um com suas razões, e ninguém é inocente. No cenário dos grandes conflitos internacionais, na esteira de duas guerras mundiais e centenas e milhares de outras guerras regionais, ocorrem todos os dias ao nosso redor eventos não menos trágicos. No Brasil, além desta última tragédia de Realengo, registramos fatos horrendos como os assassinatos coletivos de detendos nos presídios, as conhecidas chacinas do Carandirú em outubro de 1992 e a de Porto Velho em janeiro de 2002; os massacres da Candelária, em julho de 1993 e a matança dos moradores da Favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, em agosto de 1993; a morte de quatro funcionários do Ministério do Trabalho, que verificavam denúncias contra trabalho escravo em Unaí, Minas Gerais, em janeiro de 2004; além das mortes causadas pela guerra do tráfico, as chacinas efetuadas pelos grupos de extermínio, os assassinatos de autoridades do judiciário e das polícias civil e militar, todos esses, eventos que mancham de sangue o cotiaidano de um país que tem na segurança pública um dos seus maiores desafios. A violência desmedida dos crimes brutais corre solta também nas ruas, e afeta aleatoriamente o cidadão brasileiro, especialmente nos grandes centros urbanos. Das vítimas da violência, os jovens entre 15 e 24 anos, que representam


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18,3% do total dos 189,6 milhões da população brasileira, estão entre os que mais sofrem. Enquanto na década de 1980 as principais ameaças às vidas dos jovens brasileiros eram epidemias e doenças infecciosas, atualmente as chamadas “causas externas”: acidentes de trânsito e homicídios, representam a maior ameaça: 62,8% das mortes de jovens em todo o país ocorreram por homicídios, acidentes de transportes e suicídios.1 Também a violência contra a mulher é alarmante. Mesmo com as mudanças na legislação e com a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM) e da Lei Maria da Penha, de agosto de 2006, os casos de agressão não apenas não diminuíram como aumentaram. Nas regiões mais pobre do país, a taxa de mulheres assassinadas entre 1998 e 2008 cresceu 59,6%. No período compreendido entre 1998 e 2008, foram mortas 41.968 mulheres no Brasil. Os casos mais freqüentes são os de violência doméstica, os crimes passionais, que ocorrem dentro de casa.2 A violência contra a criança e o adolescente representa, atualmente, um grave problema de saúde pública que sempre esteve presente nas sociedades, mas só passou a ter representatividade no Brasil a partir da década de 80, quando foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente. É inacreditável, mas “de acordo com o Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde (CLAVES), a violência contra crianças e adolescentes constitui hoje a primeira causa de morte na faixa etária de 5 a 19 anos e a segunda causa de morte entre as crianças de 1 a 4 anos no Brasil. Os atos violentos às crianças e adolescentes acontecem, em sua maioria, no âmbito familiar, e são praticados não apenas pelos pais e familiares, mas também pelos agregados, empregados e visitantes esporádicos do domicílio. A violência contra a criança pode ser classificada em três categorias: física, psicológica e sexual.3 Cerca de 40% de todas as ocorrências registradas por mês nas delegacias do Estado do Rio de Janeiro são de agressão infantil. Apesar de alto, esse número está longe de ser a realidade. De acordo com a a Delegacia de Proteção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (Decav), muitos casos não são denunciados.4 A violência atinge também as chamadas minorias. O Grupo Gay da Bahia (GGB) informou em seu Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais de 2010 que “foram documentados 260 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil no ano, 62 a mais que em 2009 (198 mortes), um aumento 113% nos últimos cinco anos (122 em 2007). Dentre os mortos, 140 gays (54%), 110 travestis (42%) e 10 lésbicas (4%). O Brasil confirma sua posição de campeão mundial de 1- http://blog.planalto.gov.br/mapa-da-violencia-2011. 2- http://www.pco.org.br/conoticias. 3- http://www.webartigos.com/violencia-contra-a-criança 4- http://diganaoaerotizacaoinfantil.wordpress.com/2007/08/16/violencia-contra-crianca


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assassinatos de homossexuais: nos Estados Unidos, com 100 milhões a mais de habitantes que nosso país, foram registrados 14 assassinatos de travestis em 2010, enquanto no Brasil, foram 110 homicídios. O risco de um homossexual ser assassinado no Brasil é 785% maior que nos Estados Unidos”.5 É bem verdade que os anos de 1997 a 2007 constituem uma década atípica na história recente da violência do país. Pela primeira vez desde que foram disponibilizados os primeiros dados de mortalidade pelo Ministério da Saúde, em 1979, é possível observar uma queda nos índices de homicídio do país. É provável que o Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2003, que tornou mais rígidas as penas por porte e ou posse de armas de fogo, a Campanha do Desarmamento, desde 2004, que retirou muitas armas de circulação, e o relativo sucesso de políticas públicas em uns poucos estados do País, explicam parte desse declínio nas mortes por homicídio. Mas ainda assim convivemos com a indigesta marca de 25,4 homicídios por 100 mil habitantes no ano de 1997, contra 25,2 homicídios por 100 mil habitantes em 2007. É muito interessante notar que as taxas de mortalidade por homicídio cresceram mais de 30% nas faixas etárias entre 15 e 16 anos de idade, menos de 20% nas faixas de 17 e 18 anos, e cai para menos de 20%. Acima dos 20 anos de idade, praticamente não se observam grandes mudanças na década analisada. Isso pode estar relacionado com a imputabilidade etária estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente. O fato é que sem escrúpulos o crime organizado arregimenta jovens para a morte. A violência também anda sobre rodas. Acidentes de trânsito provocaram a morte de 1.357 pessoas nas ruas de São Paulo no ano de 2010. Quase 70% das vítimas eram jovens entre 20 e 29 anos e 478 morreram em acidentes de motocicletas, um aumento de 11,2% em comparação a 2009.6 No Brasil, mais de 40 mil pessoas morrem por ano vítimas da violência no trânsito, metade delas em decorrência de acidentes causados por embriaguez.7 O Brasil “registra anualmente 1,5 milhão de acidentes de trânsito por ano. A quantidade de pessoas feridas por ano é de 400 mil pessoas. Essa quantidade de acidentes resulta na morte de 35 mil pessoas ao ano. Aproximadamente 7.5 milhão de pessoas se envolvem de alguma forma em acidentes de trânsito no período de um ano. A cada minuto 14 pessoas sofrem acidentes de trânsito, 3 acidentes acontecem e uma pessoa é ferida. A cada 15 minutos, uma pessoa morre [...] O principal fator da violência no trânsito no Brasil é humano. Condutores, motociclistas, ciclistas e, até mesmo pedestres são incapazes de cumprir as mais 5- http://coletivobrasil3000.blogspot.com/2011/04/epidemia-do-odio-260-homossexuais-foram.html 6- http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110430 7- http://jornaldedebates.uol.com.br/debate/como-diminuir-violencia-no-transito


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elementares regras de circulação. A falta de regras e o seu descumprimento invariavelmente leva a um cenário de violência sem precedentes. Culturalmente, no Brasil, o acidente de trânsito é tido como uma fatalidade. É um acontecimento fortuito e não previsto. Em tese, as pessoas não saem às ruas para, deliberadamente, matar ou ferir pessoas com seus veículos. Embora não pratiquem a violência de forma deliberada, incorrem em ato violento por imprudência, imperícia ou negligência. Essas formas de violência recebem um tratamento de crime culposo e não doloso tornando menor a indignação das pessoas e elevando o fator de risco no trânsito. Dessa forma, pode-se concluir que a violência no trânsito é uma conjugação de fatores que se interagem e resultam em uma fórmula tão ou mais explosiva que uma bomba atômica: risco, aventura, displicência, desconhecimento, desobediência, impunidade. Os resultados observamos estampados nas páginas de jornais não raramente em matérias intituladas de tragédias. Ressaltese que os acidentes de trânsito são tão ligados ao conceito de violência que seus registros são tratados e elaborados, na maioria das vezes, pelos órgãos policiais”. 8 Muito embora todas as manifestações de violência sejam inaceitáveis, é razoável a afirmação de que a mais intolerável é a que se pretende justificar por motivação religiosa. Tem razão Saramago quando diz que das formas de matar, “a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus”. A atual polarização entre ocidente cristão e oriente islâmico coloca nos jornais a cada dia as mais vergonhosas páginas a respeito da violência em todos os níveis. Na noite de domingo 20 de março de 2011 o pastor evangélico Terry Jones queimou um exemplar do Alcorão, o livro sagrado da religião islâmica. A retaliação islâmica foi imediata: na cidade afegã de Mazar-iSharif, um ataque a funcionários da ONU provocou 7 vítimas, e em Candahar, mais 9, sem falar de incontáveis feridos, destruição de lojas, escolas e carros. Os fatos estão relacionados não apenas entre si, mas evidentemente aos atentados perpretados por terroristas fanáticos fundamentalistas islâmicos ao World Trade Center em 2001. Ainda que seja verdadeiro que em sua essência tanto o islamismo quanto o cristianismo sejam religiões de paz, que os muçulmanos e cristãos não sejam todos fundamentalistas terroristas, e que extremistas e fanáticos existem em todos os credos, não se pode negar que as principais imagens da violência religiosa no mundo contemprâneo têm sido pintadas por adeptos das religiões judaica, cristã e islâmica, e erroneamente justificadas em nome do “fator Deus” que a cada uma é correspondente.

8- http://www.estradas.com.br/sosestradas/articulistas/nivaldino.


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A ORIGEM DA VIOLÊNCIA Assustados com toda ordem de violência, corremos a perguntar a respeito de sua origem. As respostas para a pergunta são as mais diversas. Atravessam um espectro que vai desde a crença num determinismo biológico (Charles Darwin) em que o homem não é bom nem mau, apenas se esforça para se perpetuar, não havendo, portanto, critério moral exceto a sobrevivência, passando pelo determinismo social moderno: “o homem é bom por natureza, a sociedade é que o corrompe” (Jean-Jacques Rousseau), chegando às profundezas da interioridade e complexidade da alma humana, tomada por pulsões autodestrutivas (Sigmund Freud). O fato é que independentemente dos fatores sociais e culturais determinantes da violência, a história apresenta o ser humano dotado de uma maldade que mantém os mais otimistas com um nó na garganta. As notícias dos jornais cospem diariamente uma dimensão de bestialidade humana para a qual biólogos, antropólogos, cientistas sociais, psicólogos, psicanalistas e profissionais de todos os ramos das ciências humanas não encontram explicação. Genocidas não se explicam apenas por traumas na infância ou por contextos de famílias disfuncionais ou com figura paterna fraca. Não é razoável que se acredite que o bullying seja a explicação para a existência de assassinos seriais. Utilizar o argumento cultural e social para explicar a crueldade dos criminosos é uma ofensa a milhares e milhares de moradores dos bolsões de pobreza dos grandes centros urbanos. Sabemos que os crimes mais hediondos não são cometidos nas calçadas das cidades por bandidinhos que querem um tênis novo ou viciados que precisam de mais uma reserva de sua droga, mas aqueles protagonizados pelos que constróem as macro-estruturas de injustiça baseadas em interesses políticoideológicos e econômico-financeiros. Os homens de boa família e bem educados cometem tantos crimes hediondos em nome de suas ideologias e seu amor ao poder e ao dinheiro quanto a bandidagem que ocupa as carceragens do país. As teorias que pretendem explicar e justificar a violência e a maldade humanas acabarão sempre por esbarrar na parede que foi erguida pela tradição judaico-cristã. O ser humano, justamente por ter sido criado por Deus à sua imagem e semelhança, carrega em si o desejo de ocupar o lugar de Deus. A afirmação do seu próprio ego sobre todos os egos que convivem no mesmo espaço é a inclinação natural de todo ser humano. Somos criaturas que amam mais a si mesmas do que a qualquer outro ser, seja humano ou mesmo divino. Ganância, inveja e cobiça habitam o coração de todo ser humano, independentemente de seu contexto social, cultural, classe econômica, raça, gênero e também religião. A Bíblia Sagrada esclarece: De onde vêm as guerras e pelejas entre vós? Porventura não vêm disto, a saber, dos vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam? Cobiçais, e nada tendes; matais, e sois invejosos, e nada podeis alcançar; combateis e guerreais,


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e nada tendes, porque não pedis. Pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para o gastardes em vossos deleites. Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus.9

O ser humano quando se conhece por gente já está mastigando essa ambição de ser igual a Deus. O nome disso é orgulho, que São Tomás de Aquino chamava de vanglória e considerava o pai de todos os pecados. Vanglória é a glória daquilo que é vão ou a glória em vão, própria da natureza de tudo quanto não tem substância, não tem permanência, e não têm consistência. Essa é a compreensão cristã profunda a respeito do ser humano. O ser humano não tem substância em si mesmo, não é auto-existente: “Por que te glorias? Quem te faz diferente? E que tens tu, que não tenhas recebido? E se o recebeste, porque te glorias como se não houveras recebido?”,10 pergunta oi apóstolo Paulo. O ser humano também não tem permanência. É efêmero, transitório. Tiago, apóstolo, compara a vida humana à pequenina flor, que nasce pela manhã e é despetalada pela brisa do entardecer. Diz que a vida “é um vapor que aparece por um pouco e depois se desvanece”.11 Sem substância ou permanência, falta ao ser humano também a consistência: não consegue realizar o fim a que se propõe. Besteira é a crença de que “querer é poder”. Novamente o apóstolo Paulo enxerga melhor. Grita desesperado: “Eu quero, mas descubro que não posso. Não consigo realizar o fim a que me proponho. Eu quero fazer o bem e não quero fazer o mal, mas o bem que eu quero não faço. O mal que eu não quero, esse eu faço”.12 O teólogo irlandês C.S. Lewis afirma que o orgulho é o supremo mal. Para ele, é o maior de todos os pecados. Diz que “o orgulho é o mais completo estado de alma anti-Deus”. Daí vem a compreensão na teologia cristã de que o orgulho é o pecado luciferiano por excelência. É o mal de Lúcifer. Lewis diz que é o pecado que Lúcifer ensinou à raça humana. E não poucos teólogos o consideram o verdadeiro pecado original, que não é apenas de Adão e Eva, mas inerente a todo ser humano. Conforme observou o filósofo Luiz Felipe Pondé, “se René Descartes, filósofo francês do século 17, disse que a razão foi dada a todos os homens em “quantidades iguais”, deveríamos acrescentar, mais ao modo de outro filósofo francês do século 17, Blaise Pascal, que o pecado, sim, foi dado a todos em “quantidades iguais”. E também: “Nunca acreditei muito no ser humano: considero o otimismo, principalmente hoje em dia, um desvio de caráter. Santo Agostinho e Pascal, cristãos pessimistas, me ensinaram que o cristianismo é uma história 9- Tiago 4.1-4 10- 1Coríntios 4.7 11- Tiago 4.14 12- Romanos 7


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do homem combatendo ingloriamente (e cotidianamente) sua natureza afogada no mais sofisticado orgulho e na mais profunda inveja (de Deus). Quando me perguntam qualquer coisa sobre o ser humano, antes de tudo, penso como um medieval: os sete pecados capitais estão quase sempre certos. Somos pó que fecha os olhos diante do vento”. RESPOSTAS PALIATIVAS Quando o debate a respeito da violência trata das possibilidades de contenção da maldade humana, as opiniões se dividem entre os que acreditam na necessidade de legislações e punições severas e os que acreditam na necessidade de maior ênfase nas políticas públicas que possibilitem ao cidadãos suprirem suas necessidades e anseios e desejos. A lógica de que a violência e a criminalidade crescem quando as leis são frouxas e existe impunidade parece razoável. É correto desejar que a sociedade desenvolva mecanismos judiciais e correcionais que contemplem a adoção de penas mais severas, polícia melhor treinada e equipada, além de melhor remunerada, processos judiciais agilizados e aplicações mais severas da lei. Também é justo esperar que as sociedades se organizem de forma a viabilizar mais oportunidades para que cada pessoa possa satisfazer suas necessidades de maneira honesta e perseguir seus sonhos, e que os governos se ocupem em oferecer aos seus cidadãos políticas públicas de emprego, distribuição de renda, sistemas de habitação, saúde e educação, incluindo a arte, o esporte e o lazer. Mas tais medidas, ainda que imprescindíveis e justas, não atendem à demanda de violência e crueldade que estampa o horor nas ruas das cidades. Desde Foucault se sabe que vigiar e punir não é a solução. E as sociedades ricas estão aí como exemplos de que o desenvolvimento científico, tecnológico e a generalização da riqueza não resultam em maior felicidade coletiva, de modo a estancar o mal que faz do ser humano um competidor cruel e um predador insaciável. CONVITE AO ARREPENDIMENTO A Bíblia Sagrada conta a história de um homem violento que morava na cidade de Gadara, uma das dez cidades situadas a sudeste do Mar da Galiléia habitadas predominantemente por gentios (não judeus) na época de Jesus. Eis a narrativa do evangelista Marcos: Eles (Jesus e os seus discípulos) atravessaram o mar e foram para a região dos gerasenos (ou gadarenos). Quando Jesus desembarcou, um homem com um espírito imundo veio dos sepulcros ao seu encontro. Esse homem vivia nos sepulcros, e ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com correntes; pois muitas vezes lhe haviam sido acorrentados pés e mãos, mas ele arrebentara as correntes e quebrara os ferros de seus pés. Ninguém


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era suficientemente forte para dominá-lo. Noite e dia ele andava gritando e cortando-se com pedras entre os sepulcros e nas colinas. Quando ele viu Jesus de longe, correu e prostrou-se diante dele, e gritou em alta voz: “Que queres comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Rogo-te por Deus que não me atormentes!” Pois Jesus lhe tinha dito: “Saia deste homem, espírito imundo!” Então Jesus lhe perguntou: “Qual é o seu nome? “ “Meu nome é Legião”, respondeu ele, “porque somos muitos” (a legião romana era composta em média por 3.000 soldados). E implorava a Jesus, com insistência, que não os mandasse sair daquela região. Uma grande manada de porcos estava pastando numa colina próxima. Os demônios imploraram a Jesus: “Manda-nos para os porcos, para que entremos neles”. Ele lhes deu permissão, e os espíritos imundos saíram e entraram nos porcos. A manada de cerca de dois mil porcos atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e nele se afogou. Os que cuidavam dos porcos fugiram e contaram esses fatos na cidade e nos campos, e o povo foi ver o que havia acontecido. Quando se aproximaram de Jesus, viram ali o homem que fora possesso da legião de demônios, assentado, vestido e em perfeito juízo; e ficaram com medo. Os que o tinham visto contaram ao povo o que acontecera ao endemoninhado, e falaram também sobre os porcos. Então o povo começou a suplicar a Jesus que saísse do território deles. Quando Jesus estava entrando no barco, o homem que estivera endemoninhado suplicava-lhe que o deixasse ir com ele. Jesus não o permitiu, mas disse: “Vá para casa, para a sua família e anuncie-lhes quanto o Senhor fez por você e como teve misericórdia de você”. Então, aquele homem se foi e começou a anunciar em Decápolis quanto Jesus tinha feito por ele. Todos ficavam admirados.13

O curioso dessa história não se restringe à afirmação da possibilidade de que espíritos malignos atuem sobre seres humanos, nem tampouco a absoluta autoridade de Jesus sobre tais entidades espirituais, mas o fato de que os moradores da cidade não gostaram da libertação e transformação do homem louco-demonizado e violento. Considere algumas explicações para o desgoto dos habitantes de Gadara. Por exemplo, o fato de que viviam numa cultura que valorizava mais os porcos (recursos, posses e riquezas) do que as pessoas. Ou quem sabe porque estava ficando evidente que deveriam transferir a lealdade que dedicavam a César e Roma, simbolizados na legião de demônios opressores, para Jesus, o legítimo Messias de Israel. Mas é também possível que os habitantes de gadara não tenham ficado atisfeitos com a perda de seu “bode expiatório”. O louco-demonizado gadareno simbolizava o mal encarnado em uma pessoa, isto é, o mal encarnado em apenas uma pessoa. Aquela única pessoa era a explicação e justificativa de todos os males e perturbações que acometiam a cidade, e 13- Marcos 5.1-20


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funcionava como ponto focal de toda a maldade da região. Enquanto o louco-demonizado gadareno estava lá, o mal tinha seu lugar, e isso dava a todos os habitantes da cidade a sensação de sua bondade: comparados ao louco-demonizado, o mais malvado dos gadarenos era um anjo. Esse é o mecanismo de projeção da maldade, ou como sugeriu Sartre, a maneira como nos convencemos de que “o inferno são os outros”. A libertação do louco-demonizado efetuada por Jesus teve dupla significação. A primeira foi explícita: resgatar um ser humano dos domínios da maldade. A segunda, mais sutil, confrontar todos os circunstantes com sua própria maldade. A realidade da violência e da maldade que destróem vidas, famílias e minam a base de uma sociedade que deseja se constiruir em justiça e paz, somente será enfrentada quando todos e cada um dos “habitantes de gadara” se compreenderem ao mesmo tempo vítimas do mesmo impulso mal e capazes de protagonizar as mesmas maldades e crueldades feitas pelos loucos-demonizados. Jesus de Nazaré nos coloca diante de um espelho e nos convida a admitir que também dentro de cada um de nós mora um gadareno. Mas também e principalmente Jesus nos oferece sua autoridade redentora como porta de saída dos mecanismos autodestrutivos e vitimários. O Evangelho é uma chamada à libertação e redenção, não apenas para pessoas individuais, como também para famílias e sociedades, pois se é verdade que habitamos um mundo povoados por espíritos tenebrosos, também é verdade que sobre eles e nós reina o Príncipe da Paz.

TEXTO

INTEGRANTE

C R I S TÃ O TODOS © 2 0 1 1

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R E N É

K I V I T Z


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