Administração Pública e o Desafio do Investimento - Revista de Adm. Municipal - Edição 272 - IBAM

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Nº 272 Revista de Administração Municipal – MUNICÍPIOS IBAM

Outubro/Novembro/Dezembro 2009 Ano 55

A Administração Pública e o desafio do investimento

ARTIGOS

E MAIS

• INVESTIMENTO PÚBLICO • CHOQUE DE ORDEM • MODERNIZAÇÃO NAS CIDADES • ANÁLISE CADASTRAL • SUS

• FINANÇAS MUNICIPAIS • PERGUNTE AO IBAM • PARECERES E JURISPRUDÊNCIA • NOTÍCIAS MUNICIPAIS


Revista de Administração Municipal - MUNICÍPIOS - IBAM

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Revista Revista de de Administração Municipal - MUNICÍPIOS - IBAM

Investimento Público

do do respectivo número da publicação. Nesta edição, a Prefeitura de Fortaleza relata suas ações de investimento público. Para esclarecimentos adicionais, favor manter contato com o IBAM pelo endereço revista@ibam.org.br Em O MAPA DA MODERNIZAÇÃO NAS CIDADES BRASILEIRAS: GEOTECNOLOGIAS NA GESTÃO DO ESPAÇO URBANO, de Fernanda Lodi Trevisan e Lindon Fonseca Matias, os autores destacam a ausência de informações e conhecimento da realidade municipal como um dos traços marcantes de grande número de municípios brasileiros; fato que impacta, certamente, o planejamento municipal. Marcos Aurélio Pelegrina, Luiz Fernando Chulipa Moller, Lia C. Bastos e Norberto Hochheim escreveram sobre a IMPORTÂNCIA DA ANÁLISE DA CONSISTÊNCIA CADASTRAL APLICADA AO CADASTRO FISCAL, observando que, embora os municípios brasileiros tenham, por decisão constitucional, “a responsabilidade de gerenciar a tributação incidente sobre os imóveis urbanos”, o vazio normativo sobre critérios técnicos para a organização cadastral gera confusão de conceitos cadastrais. Andrea Gouvêa Vieira traz à tona o debate sobre a eficácia de instrumentos que favoreçam o planejamento futuro de uma cidade; o caso específico analisado é a Cidade do Rio de Janeiro, da qual é vereadora. CHOQUE DE ORDEM NA ORDEM argumenta que a cidade teve à disposição instrumentos considerados essenciais para o seu planejamento, mas o planejamento orçamentário jamais contemplou ações que possibilitassem a sua eficácia. Acrescentaríamos que esse fato também teve como efeito perverso a obsolescência de seu Plano Diretor, elaborado em 1992 e jamais implementado. Affonso de Aragão Peixoto Fortuna, procurador do Município de Joinville, escreve sobre AS RESPONSABILIDADES NO SUS. Pareceres e Jurisprudência, Finanças Municipais, Pergunte ao IBAM e Notícias Municipais, seções da Revista, complementam este número 272, da Revista de Administração Municipal. Boa leitura.

EDITORIAL

Dois artigos deste número da Revista de Administração Municipal, editada pelo IBAM e que completou 55 anos em junho passado, incitam à reflexão sobre a natureza e as características do investimento público no Brasil. Da oportunidade do tema por conta da crise financeira global atual, todos estamos cônscios. Reconhecimento que se torna particularmente desafiador quando se considera que o investimento público no Brasil tem características fortemente descentralizadoras, nem sempre consideradas nas análises predominantes do tema. APURAÇÃO DO INVESTIMENTO PÚBLICO NO PERÍODO PÓS LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL, de autoria de José Carlos Gerardo, analista de finanças e controle do Ministério da Fazenda, tem objetivos similares ao artigo citado abaixo na apuração dos “investimentos públicos para o período entre 2000 e 2008”. É o autor que esclarece que, ao agregar informações dos investimentos, foram apurados gastos pela “ótica contábil, para União, Estados e Municípios, pela perspectiva do financiador dos gastos, em que as despesas de investimentos financiadas por outras esferas de governo” foram subtraídas do total de investimentos efetuado pela esfera específica em análise. José Roberto Afonso e Gabriel Junqueira, economistas e consultores, ressaltam justamente essa característica do investimento público no Brasil ao afirmarem que o objetivo do artigo INVESTIMENTO PÚBLICO NO BRASIL É MAIS MUNICIPAL QUE FEDERAL é analisar o caráter federativo do gasto mais recente, especialmente o realizado com obras públicas. Baseiam-se em tabulações de balanços publicados pela Secretaria do Tesouro Nacional e concluem sobre a natureza particularmente municipal do investimento público no País. Ressalte-se que a similaridade de objetivos efetiva-se em artigos que adotam metodologias de análise diferentes. Leitores assíduos da Revista perceberão que foi dado um novo formato à seção de Reportagem. A partir deste número, Prefeituras e Câmaras Municipais serão convidadas a publicar matéria que registre suas iniciativas sobre o tema dos artigos de fun-

OS EDITORES

Missão da Revista A missão da Revista é ser um meio de difusão de informação, de estudos, de resultados de pesquisas inéditas e um fórum de debate sobre temas de interesse nacional e internacional relacionados ao federalismo, à descentralização, ao desenvolvimento da capacidade institucional dos Governos Municipais, à construção de uma sociedade democrática e à valorização da cidadania.

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ÍNDICE

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EXPEDIENTE A Revista de Administração Municipal – MUNICÍPIOS é uma publicação do Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM, de periodicidade trimestral, depositada na Reserva Legal da Biblioteca Nacional e no Catálogo Internacional de Periódicos sob o n.° BL ISSN 0034-7604. Registro Civil de Pessoas Jurídicas n.° 2.215. EDITORES Nilton Almeida Rocha – Editor Executivo Romay Garcia e Heraldo da Costa Reis – Editores Técnicos Sandra Mager – Produção Gráfica Heryka Cilaberry – Apoio Editorial

ARTIGOS E REPORTAGEM / ARTICLES AND REPORTAGE

05 Apuração do investimento público no período pós Lei de Responsabilidade Fiscal – Investigation of the public investment: from 2000 to 2008 José Carlos Gerardo

Conselho Editorial Ana Maria Brasileiro (UNIFEM/ONU/Washington/Estados Unidos), Celina Vargas do Amaral Peixoto (FGV/Rio de Janeiro/RJ), Emir Simão Sader (CLACSO/ Buenos Aires/ ARGENTINA), Fabrício Ricardo de Limas Tomio (UFPr/Curitiba/PR), Jorge Wilheim (Consultor em urbanismo, São Paulo/SP), Nilton Almeida Rocha (IBAM, Rio de Janeiro/RJ), Paulo du Pin Calmon (UNB/CEAG/Brasília/DF) e Rubem César Fernandes (VIVA RIO/Rio de Janeiro/RJ).

18 Investimento público no Brasil é mais municipal que federal – Public investments In Brazil are mostly municipal Gabriel Gdalevici Junqueira/José Roberto R. Afonso

Conselho Técnico

26 A Administração Pública e o desafio do investimento – Public administration and Investment Challenge Luizianne Lins

Alexandre Santos, Heraldo da Costa Reis, Marlene Fernandes e Nilton Almeida Rocha. Esta publicação consta do indexador internacional Lilacs – América Latina e Caribe. Consta nas seguintes páginas: • • • • • • • • • •

FEA/USP - Departamento de Administração FGV - Biblioteca Mário Henrique Simonsen UNB - Biblioteca Machado de Assis Biblioteca Nacional Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia Catálogo Coletivo Nacional (CCN) Association of Research Libraries Latin Americanist Research Resources Project Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine - Centre de Recherche et de Documentation sur l’Amérique Latine Facultad de Ciencias Juridicas y Politicas - Universidad Central de Venezuela HACER - Hispanic American Center for Economic Research

Filiação A Revista de Administração Municipal – MUNICÍPIOS é filiada à Associação Brasileira de Editores Científicos – ABEC. • (O selo da ABEC pode ser obtido no site: http://www.lncc.br/abec/) ASSINATURAS Tel.: (21) 2536-9711/ 2536-9712 • revista@ibam.org.br Valor da assinatura anual: R$ 45,00 Tiragem: 2 mil exemplares REDAÇÃO Coordenação Editorial Edição 1 – Comunicação & Serviços Ltda. • Telefax: (21) 2462-1933 Jornalista responsável: Mauricio S. Lima (MTb 20.776) Jornalismo: Ana Cristina Soares Revisora gramatical: Lucíola M. Brasil Programação visual: Virgilio Pinheiro Foto de Capa: Arquivo IBAM

29 Choque de ordem na ordem – Policy of zero tolerance Andrea Gouvêa Vieira 37 O mapa da modernização nas cidades brasileiras: geotecnologias na gestão do espaço urbano – The map of modernization in Brazilian cities: geotecnology in management of urban space Fernanda Lodi Trevisan/ Lindon Fonseca Matias 45 Importância da análise da consistência cadastral aplicada ao cadastro fiscal (tributário) – The importance of analysis of the cadastral consistency Marcos Aurélio Pelegrina 51 As responsabilidades no SUS – The responsibilities in SUS Affonso de Aragão Peixoto Fortuna

DEPARTAMENTO COMERCIAL Contato: (21) 2462-1933 Os artigos refletem a opinião de seus autores. É permitida a sua reprodução desde que citada a fonte. Colaboração: Tradução: Juana Yasnikowski Unidad de Fortalecimiento de Los Gobiernos Locales de la Universidad Nacional de Quilmes Saénz Peña 352 - (B 1876 BXD) Bernal. Provincia de Buenos Aires República Argentina. Tel./fax: +54 (011) 4365-7100 int. 206. www.municipios.unq.edu.ar IBAM – Edifício Diogo Lordello de Mello Largo IBAM, 1 – Humaitá – Rio de Janeiro, RJ CEP 22271-070 Tel.: (21) 2536-9797 www.ibam.org.br Conselho de Administração João Pessoa de Albuquerque – Presidente Álvaro Almerio de Azevedo Pessoa dos Santos, Celina Vargas do Amaral Peixoto, Luiz Antonio Santini Rodrigues da Silva, Mayr Godoy, Edson de Oliveira Nunes, Edvaldo Pereira de Brito, Henrique Brandão Cavalcanti, Maria Terezinha Tourinho Saraiva e Raymundo Tarcísio Delgado. Conselho Fiscal Aguinaldo Helcio Guimarães, Inéa Fonseca, Jorge Gustavo da Costa, Paulo Reis Vieira e Roberto Guimarães Boclin. Superintendência Geral Paulo Timm REPRESENTAÇÕES São Paulo Avenida Ceci, 2081 • Planalto Paulista, São Paulo • SP • CEP 04065-004 • Tel/Fax: (11) 5583-3388 • Ibamsp@ibam.org.br Santa Catarina Rua Hermann Hering, 813 • Bom Retiro • Blumenau • SC • CEP 89010-600 • Tel/Fax: (47) 3041-6262 • Ibamsc@ibam.org.br

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PARECERES E JURISPRUDÊNCIA

60 Competência Legislativa Municipal. Saúde Pública e Meio Ambiente Raquel Castilho da Silva 63 Processo Legislativo. Análise das correntes que se posicionam a favor e contra a afixação de símbolos religiosos em espaços públicos Ana Luiza Mello

SEÇÕES / SECTIONS

34 • FINANÇAS MUNICIPAIS / MUNICIPAL FINACES 50 • PERGUNTE AO IBAM / ASK TO IBAM 66 • NOTÍCIAS MUNICIPAIS / MUNICIPAL NEWS

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INVESTIMENTO PÚBLICO Revista de Administração Municipal - MUNICÍPIOS - IBAM

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Apuração do investimento público no período pós Lei de Responsabilidade Fiscal José Carlos Gerardo

RESUMO

Analista de Finanças e Controle – AFC/MF

O objetivo deste artigo é apurar os investimentos públicos para o período entre 2000 e 2008. Adicionalmente, apresentamos a diferença conceitual entre os quatro critérios de apuração (contábil, caixa, financeiro e econômico) das despesas de investimentos públicos, que podem ser adotados conforme a finalidade almejada pelo usuário das informações. Ademais, efetuaremos a apuração para o Governo Central pelas óticas contábil, financeira e econômica. Para agregar as informações dos investimentos, apuraremos os gastos pela ótica contábil para União, estados e municípios, pela perspectiva do financiador dos gastos e a do executor dos investimentos. Palavras-chave: Investimento público. Orçamento público. SIAFI.

INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é apurar os investimentos públicos para o período entre 2000 e 2008. Adicionalmente, apresenta-

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mos a diferença conceitual entre os quatro critérios de apuração (contábil, caixa, financeiro e econômico) das despesas de investimentos públicos, que são adotados conforme a finalidade alme-

jada pelo usuário das informações e efetuaremos o cálculo do investimento para o Governo Central pelas quatro óticas para identificar as diferenças. Para agregar as informações dos in-

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Os dados obtidos pela ótica financeira e pela ótica econômica mostram que os anos de 2008, 2002 e 1998 foram os anos de maior investimento. Se for considerado que os anos de 2002 e 1998 foram anos eleitorais, em que é comum níveis de investimentos mais elevados, o resultado obtido em 2008 é mais significativo ainda, o que cria uma perspectiva bastante otimista para os anos seguintes

vestimentos, apuraremos os gastos pela ótica contábil para União, estados e municípios, pela perspectiva do financiador dos gastos, em que as despesas de investimentos financiadas por outras esferas de governo serão subtraídas do total de investimentos efetuados pela esfera específica que estamos apurando e pela perspectiva do executor dos investimentos, em que analisaremos os dispêndios com investimentos conforme a modalidade de aplicação 90 – aplicações di-

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retas, independentemente do ente financiador do projeto. A ABRANGÊNCIA DO TERMO INVESTIMENTO PÚBLICO A princípio, pode-se afirmar que existe uma diferença de critério de apuração do que seja o Investimento Público, oriunda da Contabilidade Pública, e a mensuração efetuada pela Secretaria do Tesouro Nacional – STN, para efeito de cálculo do Resultado do

Tesouro1. Na Contabilidade Pública, o conceito representativo das despesas de Investimentos Públicos é o Grupo de Natureza de Despesa (GND) de número 4 – Investimentos, ao passo em que a STN utiliza o GND de números 4 e 5, estes últimos denominados Inversões Financeiras. No que diz respeito a essa diferença conceitual, cabe mencionar que, de acordo com o volume 24 da Série Relatórios Metodológicos do IBGE, a estrutura, os conceitos e a metodologia de estimação do Sistema de Contas Nacionais seguem as recomendações das Nações Unidas, expressas no Manual de Contas Nacionais de 1993. De modo genérico, a Formação Bruta de Capital Fixo (FBKF) é definida como “o valor dos bens duráveis adquiridos no mercado ou produzidos por conta própria e destinados ao uso, em unidades de produção, por período superior a um ano (IBGE, 2004). Do ponto de vista do setor público, a estimativa da FBKF baseia-se no levantamento das despesas de investimentos em construção civil, máquinas e equipamentos, que são realizadas pelas Administrações Públicas. Essas informações estão contempladas nos Balanços Orçamentários dos diversos níveis de governo. As receitas de alienações são deduzidas dos itens correspondentes da formação bruta de capital fixo. Na Contabilidade orçamentária do setor público, essa definição se aproxima das despesas classificadas como Investimento, que estão reunidas no GND de número 4, no Sistema Integrado de Administração Financeira – SIAFI2, embora a equivalência conceitual entre o conceito de FBKF

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INVESTIMENTO PÚBLICO

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das Contas Nacionais e Investimentos da Contabilidade Pública não seja perfeita, não sendo o objetivo deste artigo discutir a questão relativa a esta imperfeição3. No entanto, caberia mencionar que não parece existir suporte teórico para considerar o GND de número 5 como fonte para a mensuração das despesas de investimentos públicos. Em outras palavras, a Contabilidade Pública utiliza para mensurar os Investimentos Públicos uma metodologia que é a mais próxima da adotada pelo IBGE para a apuração da FBKF da economia. A CONTABILIDADE PÚBLICA E O INVESTIMENTO DO 4 GOVERNO CENTRAL Um dos principais objetos de análise da Contabilidade Pública é o acompanhamento da execução orçamentária. Desse modo, quando se busca aumentar a compreensão sobre a execução da programação financeira governamental, é essencial entender os conceitos e as variáveis da Contabilidade Pública. Segundo a Lei n.º 4.320/64, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, a despesa pública deve ser contabilizada sob o regime contábil de competência e percorre três estágios: empenho, liquidação e pagamento. De acordo com Pascoal (2004), o empenho é o ato que oficialmente reserva (destaca) uma parcela de uma dotação orçamentária para ser alocada a uma despesa específica. Por sua vez, quando o serviço

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(bem) que originou essa despesa já foi efetuado (entregue) e reconhecido pelo ordenador de despesas, ocorre o estágio referente à liquidação da despesa pública. Por fim, quando há o desembolso efetivo do dinheiro, ocorre o estágio referente ao pagamento. Dessa forma, um determinado bem (serviço) entregue (efetuado) ao governo em julho do ano x, mas pago em janeiro de x+1, somente afetará as disponibilidades financeiras em x+1. Nesse caso, no final do exercício financeiro de x, surgem os restos a pagar, que correspondem às despesas realizadas em determinado ano, com pagamentos postergados para o ano seguinte. Existem dois tipos de restos a pagar: os restos a pagar processados e aqueles não processados. Os do primeiro tipo correspondem a despesas que já foram liquidadas no exercício anterior, mas não foram pagas. Os do segundo tipo correspondem a despesas que foram empenhadas, mas não chegaram a ser liquidadas nem pagas no exercício anterior. Segundo Mota (2004), na Contabilidade Pública, o termo liquidação da despesa representa o momento de sua apropriação, o que equivale ao reconhecimento da despesa em um regime contábil de competência. Dessa maneira, somente cabe mencionar postergação de despesas no caso dos restos a pagar processados 5. Cabe destacar que o Governo Federal utiliza o critério de liquidar todos os empenhos que não tenham sido cancelados ao final de cada exercício financeiro, fato conhecido na literatura como liquidação forçada, e que podem resultar em valores dife-

rentes, segundo os critérios de apuração6. Neste artigo, é assumida a hipótese de que os entes subnacionais não utilizam de forma disseminada o artifício da liquidação forçada, pois os incentivos à acumulação de restos a pagar, nestas esferas de governo, visando cumprir meta de resultado primário 7, não resultam nos mesmos benefícios auferidos pela União, o que reduziria as distorções na apuração das despesas com investimentos. CRITÉRIOS PARA A AVALIAÇÃO DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS Existem quatro formas de apuração dos investimentos públicos: ótica contábil, de caixa, financeira e econômica. A ótica contábil é utilizada, geralmente, pelos órgãos de controle e tribunais de contas na análise dos balanços públicos; as informações sob a ótica de caixa são utilizadas pela Secretaria do Tesouro Nacional – STN/MF, na apuração do cálculo do resultado primário “acima da linha”; as informações sob a ótica financeira são utilizadas para avaliar a execução das despesas pagas (valores pagos e Restos a Pagar pagos) de forma que se avalie a execução da despesa contrapondo a dotação orçamentária e a programação financeira; e as informações sob a ótica econômica são utilizadas pelos analistas econômicos, pois refletem o gasto efetivo, no sentido de que, mesmo que o desembolso financeiro não tenha sido realizado, o bem ou o serviço, objeto daquele pagamento, já foi recebido e colocado à disposição do Poder

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Público, gerando efeitos multiplicadores na economia. Em termos analíticos, as quatro óticas de apuração dos investimentos públicos podem ser entendidas, tais como: 1) Ótica contábil – considera como valores de investimentos pertencentes a determinado exercício financeiro aqueles referentes a empenhos emitidos durante o exercício que foram: (a) liquidados e pagos no mesmo exercício, ou seja, percorreram todos os três estágios da despesa8 (empenho, liquidação e pagamento); (b) somente liquidados no mesmo exercício e, portanto, pendentes de pagamento; e (c) liquidados contabilmente, ao final do exercício, mesmo que não tenha ocorrido a liquidação efetiva do bem (correspondentes aos empenhos inscritos em restos a pagar não processados). Esse critério é utilizado para a elaboração do Balanço Geral da União – BGU e do Relatório Resumido da Execução Orçamentária – RREO. Esquematicamente, temos:

Invest (cont )t = I empt Onde: I empt equivale ao valor empenhado no ano t. 2) Ótica financeira – leva em consideração apenas os desembolsos efetuados em determinado exercício financeiro para o paga-

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mento de despesas. Esses desembolsos podem ser referentes a empenhos do próprio exercício ou de exercícios anteriores. Englobam os valores pagos, restos a pagar processados e não processados pagos, independentemente do exercício financeiro a que se referem. Esque-

pertencentes a determinado exercício financeiro despesas de investimento que foram efetivamente liquidadas, entendidas como aquelas que cumprem os requisitos do art. 63 da Lei n.º 4.320/19649, complementado pelo art. 36 do Decreto n.º 93.87210, de 23 de dezembro de

maticamente, temos no esquema 1 3) Ótica de caixa – leva em consideração apenas as ordens bancárias (OBs) emitidas – que impliquem variações na Conta Única do Tesouro Nacional – em determinado exercício financeiro para o pagamento de despesas. Esses desembolsos podem ser referentes a empenhos do próprio exercício ou de exercícios anteriores. Em outras palavras, correspondem aos saques na Conta Única do Tesouro Nacional referentes às despesas de investimento. Esquematicamente, temos no esquema 2 4) Ótica econômica – considera

1986. Isto significa que houve a correspondente verificação do direito adquirido pelo credor ou pela entidade beneficiária, tendo por base os títulos e os documentos comprobatórios do respectivo crédito. Na ótica econômica, exclui-se a liquidação oriunda da rotina contábil observada no ato de inscrição em restos a pagar não processados. Ademais, nessa ótica, o fator relevante é a liquidação efetiva da despesa. Os efeitos multiplicadores dos gastos na cadeia produtiva ocorrem independentemente do pagamento pelo setor público pelo bem adquirido. No caso dos investimentos, entende-se por liquidação efetiva aquela que gera efeitos econômicos na formação bruta de capital fixo, correspondente à entrega do bem pelo credor do empenho, atestada por documentos comprobatórios, pois, a partir da entrega do bem, conforme as especificações, este estará apto a ser colocado à disposição dos usuários desse bem. Es-

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quematicamente, temos no esquema 3 Neste artigo, apuramos o investimento segundo a ótica contábil, financeira e econômica. Optamos por não efetuar a apuração pela ótica de caixa, dado que o custo de se efetuar a avaliação dos investimentos pelo efetivo débito na Conta Única do Tesouro por meio das Ordens Bancárias (OBs) relativas aos investimentos (forma apropriada de se avaliar o investimento segundo esta ótica) extrapola os benefícios auferidos por tal análise. Ademais, os valores calculados pela ótica financeira se constituem em uma boa aproximação para este conceito.

pagar processados e não processados, por meio da transação CONSULTORC12. Na busca da apuração das despesas que foram postergadas em cada exercício financeiro, efetuou-se para os anos de 2002 a 2007 consulta dos restos a pagar cancelados por conta corrente para o GND = 4, de forma que se pudesse identificar exatamente a que ano referia-se o empenho cancelado. Em relação aos exercícios anteriores a 2002, dada a impossibilidade de identificar de forma precisa a que ano correspondiam os cancelamentos, assume-se que todos os empenhos cancelados referiam-se ao mesmo exercício financeiro do cancelamento. Os valores obtidos estão disponibilizados na tabela 1 e foram obtidos pela extração de dados no SIAFI operacional (1995/2001) e Siafi Gerencial (2002/2008). Ademais, o conceito de investimento utilizado é o GND 4, não incluindo, portanto, algumas modalidades de inversões financeiras tal como o faz a STN13. É importante observar que a ótica financeira apresenta valores próximos da ótica econômica, e que essas duas não apresentam correspondência com a ótica contábil.

FONTE DE INFORMAÇÃO DO INVESTIMENTO DO GOVERNO CENTRAL No intuito de descrever a apuração do Investimento do Governo Central, é importante descrever a forma e os meios utilizados para a essa apuração. Dois sistemas foram utilizados para essa apuração: o SIAFI operacional e o SIAFI gerencial. É importante destacar que o SIAFI operacional, em face das suas especificidades e, sobretudo, no que concerne às codificações e aos requerimentos para construção

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da consulta, é menos amigável que o segundo, o gerencial11. Em virtude da impossibilidade de consulta ao SIAFI gerencial em todo período analisado (19952008), pode-se afirmar que a apuração do Investimento público do Governo Central para esse período não é uma tarefa trivial. Foi possível obter informações por intermédio de consulta no SIAFI gerencial para o período de 2002 a 2008. Em relação aos períodos anteriores a 2002, não foi possível efetuar consultas por meio do SIAFI gerencial, pois, devido à contenção de custos, o SERPRO só disponibiliza informações para os cinco últimos exercícios financeiros. Assim, no período de 1995 a 2001, utilizou-se o SIAFI operacional para as consultas referentes às variáveis necessárias ao cálculo do investimento do Governo Central. Tanto no período de 1995 a 2001 quanto no período de 2002 a 2006, as consultas efetuadas discriminam o Grupo de Natureza de Despesa (GND) de investimentos (GND = 5 de 1995 a 1999 e GND 4 de 2000 a 2008). No que diz respeito ao período de 1995 a 2001, destaque-se que, nos anos 2000 e 2001, basicamente se executou a mesma pesquisa para apurar os investimentos como restos a

INVESTIMENTOS DO GOVERNO CENTRAL DE 1995 A 2008 Os dados obtidos pela ótica financeira e pela ótica econômica mostram que os anos de 2008, 2002 e 1998 foram os anos de maior investimento (tabela 1). Se for considerado que os anos de 2002 e 1998 foram anos eleitorais, em que é comum níveis de investimentos mais elevados, o resultado obtido em 2008 é mais significativo ainda, o que cria uma

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perspectiva bastante otimista para os anos seguintes. A apuração pela ótica financeira, conforme tabela 2, é efetuada pela soma dos valores pagos no exercício — identificado como Grupo de Natureza de Despesa (GND) 4 (Investimentos) no Siafi – acrescidos dos restos a pagar processados e não processados pagos no exercício financeiro, independentemente do período no qual ocorreu a liquidação da despesa. Pela ótica financeira, o ano de 1998 foi o ano de maior investimento seguido de muito perto pelo ano de 2008. Quanto à apuração pela ótica econômica, que consta da tabela 3, cabe observar que a mensuração do investimento sob a ótica econômica deve ser feita pela identificação ampla das liquidações realizadas em cada ano, mesmo que se refiram a orçamentos de anos anteriores (ou seja, restos a pagar que ainda não foram processados). Para efetuar a análise, devemos, portanto, romper com o princípio da anualidade do orçamento, já que, na prática, a execução dos investimentos perpassa vários orçamentos anuais,

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com as despesas de restos a pagar concorrendo com as do exercício corrente. Para efeito de cálculo da apuração do investimento pela ótica econômica, devemos computar os valores pagos (t) acrescido dos restos a pagar processados pagos (t+1) e dos restos a pagar não processados pagos (t). De acordo com os dados apresentados pela tabela 3, o ano de maior investimento foi o de 2008, seguido pelo ano de 2002 e 1998. Das metodologias utilizadas, pode-se concluir que os dados de investimento do Governo Central apresentam uma clara trajetória de crescimento, após a expressiva queda ocorrida em 2003, e que o patamar alcançado em 2008 é bastante elevado em comparação com a série histórica iniciada em 1995.

INVESTIMENTOS DOS GOVERNOS ESTADUAL E MUNICIPAL (2000-2008) A apuração dos Investimentos públicos 14 pode ser efetua-

da segundo duas perspectivas 15: 1) de acordo com a esfera de governo que financiou o investimento, neste caso, deve-se subtrair do total de investimentos o total financiado pelas demais esferas; ou 2) segundo a esfera de governo que executou os investimentos, representada pela modalidade de aplicação 90 – aplicações diretas. Caso as transferências para a execução de governo fossem feitas apenas entre as esferas de governo, o somatório deveria ser o mesmo, havendo apenas mudança na composição entre os entes da federação. No entanto, como existe a possibilidade de qualquer esfera de governo efetuar transferências a agentes privados para a execução dos investimentos, não ocorre esta igualdade na apuração dos investimentos, segundo estas duas perspectivas. Os investimentos públicos efetuados por estados e municípios, segundo a esfera de governo financiadora (tabela 4), indicam que o esforço para execução de investimentos com re-

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cursos, exclusive transferências intergovernamentais, foi em média de 1,11% do PIB, no período entre 2000 e 2004, e de 1,04%, no período de 2005 a 2008, alcançando 1,29% do PIB em 2008. O dispêndio efetuado pelos estados foi de cerca de dois terços do realizado pelos municípios. Segundo a perspectiva da aplicação direta de recursos, os investimentos efetuados pelos estados e municípios foram

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equivalentes a cerca de 1,6% do PIB em 2008, com os estados respondendo por cerca de R$ 24,6 bilhões (0,85% do PIB) e os municípios com R$ 27,5 bilhões (0,95% do PIB)–(veja tabela 5). A média de investimentos públicos de estados e municípios evoluiu de 1,35% do PIB, entre 2000 e 2004, para 1,45% no período entre 2005 e 2008. A principal contribuição para que ocorresse esta mudança de

patamar adveio dos municípios, que elevaram os seus investimentos em cerca de 0,09%, entre os dois períodos, enquanto os estados contribuíram com elevação de apenas 0,01%, passando de 0,73% para 0,74%, em média, nos dois períodos. Registra-se que 25 dos 27 estados assinaram com a União Programas de Reestruturação e Ajuste Fiscal que consiste em um documento por meio do

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qual um Estado se propõe a adotar ações que possibilitem alcançar metas ou compromissos relativos à relação entre a dívida financeira e a receita líquida real; resultado primário; despesas com funcionalismo público; receitas de arrecadação própria; reforma do Estado e/ou alienação de ativos; e despesas com investimento. Dados estes compromissos, os estados têm restrições quanto à execução de investimentos, o que não se aplica aos municípios, uma vez que não estão sujeitos a tais regras, sendo esta uma das razões pela qual a expansão dos investimentos dos municípios superou aquela observada nos estados. INVESTIMENTOS PÚBLICO DOS GOVERNOS FEDERAL, ESTADUAL E MUNICIPAL DE 2000 A 2008 A apuração do investimento público efetuado pela União 16 , pelos estados e pelos municípios segue a mesma ló-

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gica exposta na seção precedente, ou seja, apuramos as despesas pela perspectiva do financiamento do gasto e pela ótica da esfera de governo responsável pela execução da despesa. Pela perspectiva do financiador dos investimentos, exibida na tabela 6, observa-se uma importante alteração na composição das esferas de governo patrocinadoras dos investimentos. Enquanto no período de 2000 a 2004 os estados e a União investiam, em média, cerca de 0,7% do PIB, entre 2005 e 2008, a União foi responsável por cerca de 50% do total dos investimentos públicos, cabendo aos estados cerca de um terço do financiamento do total investido e, aos municípios, menos de um quarto do total (cerca de 18%). O investimento público efetuado diretamente pela União, pelos estados e pelos municípios, excetuadas as empresas estatais não dependentes (tabela 7), subiu da média de 1,76%, entre 2000 e 2004, para 1,99%

no período entre 2005 e 2008. Em 2008, o total do investimento público foi de R$ 70,1 bilhões, o equivalente a 2,42% do PIB. Avaliando-se o crescimento real do investimento público, conforme a esfera de governo financiadora, observam-se dois comportamentos distintos. Na média dos anos de 2000 a 2004, o crescimento real do investimento público consolidado para União, estados e municípios foi de apenas 1,5% (tabela 8). Nesse período, os municípios expandiram os investimentos, na média, em 50,7%, em termos reais, enquanto a União e os estados os ampliaram em 2,8% e 1,3%, respectivamente. Vale lembrar que, nesse período, a União cumpria programa de ajuste fiscal com o Fundo Monetário Internacional FMI, e os estados haviam assinado Programas de Ajuste Fiscal com a União. Já, no período entre 2005 e 2008, a média anual de expansão dos investimentos para o setor público consolidado, exclusive empresas estatais, foi de 16,6%. A União expandiu

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as despesas com financiamento aos investimentos em 31,4% e os estados em 18,5% dada melhoria da situação fiscal destes entes da federação. Os municípios também expandiram fortemente as despesas com investimentos em 25,4% (veja tabela 8). O mesmo padrão de comportamento é observado no tocante ao valor total investido diretamente, quando se consideram os valores totais do investimento. Os resultados mostram que os financiamentos a entidades privadas, efetuados pelas esferas de governo, consomem pequena parcela dos recursos totais destinados a investimentos, embora a dinâmica de crescimento entre as esferas de governo sejam substancialmente distintas quando comparam-se as tabelas 8 e 9. CONCLUSÃO Os dados sobre investimentos públicos apontam uma trajetória de crescimento, tanto

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como proporção do PIB como em termos reais. As despesas com investimentos da União apresentam crescimento pelas três óticas, contábil, financeira e econômica, embora o patamar de investimentos seja substancialmente menor quando avaliado pela ótica financeira ou econômica, comparativamente à ótica contábil. Quantos aos investimentos consolidados da União, dos estados e dos municípios, observam-se comportamentos diferentes nos subperíodos de 2000 a 2004 e de 2005 a 2008. N o q ui n q uê n i o d e 2 0 0 0 a 2004, tanto a União como os estados passavam por forte compressão fiscal, decorrente de programas de ajuste fiscal, o que se refletiu no baixo patamar do investimento público no período (1,83% do PIB sob perspectiva do financiador e 1,76% do PIB sob o enfoque do executor do investimento) e nas reduzidas taxas de expansão dos investimen-

tos em termos reais, com taxa de investimento público consolidado, alcançando apenas 1,5% ao ano. Já no quadriênio de 2005 a 2008, as taxas de investimentos consolidados para o setor público ampliaram-se para 2,09% do PIB sob a perspectiva do financiamento e 1,99% do PIB quando considerado a sua execução direta. As taxas de crescimento real atingiram cerca de 16,5% ao ano, patamar substancialmente superior ao do subperíodo antecedente, distribuindo-se entre União (27,1%), estados(16,0%) e municípios(19,6%). Registra-se que o incremento no total de investimentos como proporção do PIB, apurado no período de 2000 a 2008, deveu-se, em grande parte, à maior transferência de recursos do Governo Federal e Estadual para os municípios, embora tenha ocorrido elevação em cerca de 0,14% do PIB com as aplicações diretas do Governo Fede-

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ral, na comparação entre a média de 2000 a 2004 e o período entre 2005 e 2008. A despeito do patamar do investimento do setor público consolidado, exclusive empresas estatais, ter se elevado de 1,92% do PIB, em

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2000, para 2,53% do PIB, em 2008, este encontra-se aquém das necessidades em constituir uma infraestrutura que suporte um crescimento mais vigoroso da economia e promova o desenvolvimento econômico e social do País. A expansão dos

investimentos, no entanto, deve respeitar os limites estabelecidos pela situação fiscal de cada ente da federação, dado que o equilíbrio das contas públicas é um patrimônio que foi constituído com enorme sacrifício da sociedade.

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NOTAS 1 Segundo a metodologia adotada pela STN, “o cálculo das Necessidades de Financiamento Líquido para o Governo Central sob o critério “acima da linha” (receitas menos despesas) enfoca a realização do gasto pela ótica de caixa e abrange as operações de todas as entidades não financeiras da administração direta e indireta que compõem o Orçamento Geral da União (OGU).” 2 O SIAFI é o principal instrumento utilizado para registro, acompanhamento e controle da execução orçamentária, financeira e patrimonial do Governo Federal. 3 A este respeito, veja Gobetti (2006), especialmente p.p. 37-39. 4 As operações do Governo Central compreendem o Tesouro Nacional e a Previdência Social. O Resultado do Tesouro Nacional envolve a apuração dos seguintes componentes: receitas, despesas, resultado nominal, resultado primário e financiamento. Os dados são calculados em regime de caixa, e os juros são apresentados em regime de competência. 5 Existem pré-requisitos que normatizam a inscrição das despesas empenhadas em restos a pagar, veja Decreto n.º 93.872/86. 6 O termo liquidação forçada decorre de um procedimento que a STN adota no fechamento da execução orçamentária de cada ano: a liquidação automática, por parte do SIAFI, de todos os empenhos de despesa que, até aquele momento, não tenham sido liquidados ou cancelados. Devido a este procedimento, os valores de investimento realizado que constam dos balanços oficiais usados pelo IBGE apresentam um viés de superestimativa. A este respeito, veja Gobetti (2006). 7 Para uma discussão sobre os restos a pagar e a apuração do resultado primário, veja o artigo intitulado “Restos a Pagar: Implicações sobre a Sustentabilidade Fiscal e a Qualidade do Gasto Público” de autoria de Silva, Cândido Júnior e Gerardo (2008). 8 O primeiro estágio da despesa pública é o empenho, que corresponde à reserva de uma parcela da dotação orçamentária disponível para a consecução de um determinado gasto público. Após a sua emissão, o empenho pode ser cancelado e revertido à dotação disponível, liquidado ou inscrito em restos a pagar não processados. A liquidação, segundo estágio da despesa pública, consiste na verificação do direito adquirido pelo credor ou pela entidade beneficiária, tendo por base os títulos e os documentos comprobatórios do respectivo crédito ou da habilitação ao benefício. A liquidação de uma despesa com investimento, por exemplo, poderia seria caracterizada pelo recebimento parcial ou total de uma obra cujo valor tenha sido anteriormente empenhado e que será pago em um momento posterior. O pagamento representa o terceiro e o último estágio da despesa. 9 Lei n.º 4.320/64. “Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito. § 1° Essa verificação tem por fim apurar: I - a origem e o objeto do que se deve pagar; II – a importância exata a pagar; III - a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação. § 2º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base: I - o contrato, ajuste ou acordo respectivo; II - a nota de empenho; III - os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço.” 10 Decreto n.º 93.872/86. “Art. 36. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor ou entidade beneficiária, tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito ou da habilitação ao benefício. § 1º A verificação de que trata este artigo tem por fim apurar: a) a origem e o objeto do que se deve pagar; b) a importância exata a pagar; e c) a quem se deve pagar a importância para extinguir a obrigação. § 2º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos, obras executadas ou serviços prestados terá por base: a) o contrato, ajuste ou acordo respectivo; b) a Nota de Empenho; c) o documento fiscal pertinente; d) o termo circunstanciado do recebimento definitivo, no caso de obra ou serviço de valor superior a Cz$ 350.000,00 (trezentos e cinqüenta mil cruzados) e equipamento de grande vulto, ou o recibo, nos demais casos.” 11 O SIAFI é acessado para cada exercício financeiro, constituindo-se de módulos estanques. Com vistas a acessar informações para o ano de 2005, por exemplo, deve-se acessar o SIAFI2005, para ano de 2006, o SIAFI2006 e assim por diante. Em cada exercício financeiro, devem ser inseridas consultas relacionadas com o plano contábil, o que torna morosa a efetivação das consultas, na observação das contas contábeis que foram acessadas de forma que se mantenha a homogeneidade da série de dados. No caso do SIAFI gerencial, os resultados dessas consultas são fornecidas em planilhas eletrônicas. Por sua vez, o operacional apenas exibe o resultado de determinada consulta na tela do computador. Isso per se o torna menos amigável que o gerencial. 12 Utilizou-se, para fins de verificação, a transação CONOR e obteve-se os mesmos resultados. Porém, optou-se pela transação CONSULTORC por estar disponível para todo o período analisado (1995-2001), dado que relativamente aos anos de 1995 e 1996 a transação CONOR não se encontrar implementada no SIAFI 13 Os investimentos apurado pela STN que consta do Resultado do Tesouro Nacional incluem, além do GND 4 (Investimentos), as contas do GND 5 (inversões financeiras) excluída a conta do elemento de despesa n.° 66 – Concessão de Empréstimos e Financiamentos. Portanto, a apuração da STN tende a ser maior do que o valor apurado, segundo a ótica financeira calculado nesta nota, pois o conceito de investimento é mais abrangente do que aquele definido na Lei n.° 4.320/64. 14 A apuração dos investimentos efetuadas para os estados e municípios tiveram como fonte o Sistema de Coleta de Dados Contábeis – SISTN, que coleta as informações segundo a ótica contábil. O universo abrange todos os estados, o Distrito Federal e os municípios que prestaram informações à STN que abrangem pelo menos 85%, do total dos 5.564 municípios do País, para os anos de 2000 a 2008. 15 O critério utilizado para a mensuração dos investimentos públicos neste e na próxima seção incorporam a perspectiva do financiador e da aplicações diretas na apuração do investimentos, visando evitar dupla contagem de recursos alocados a estas despesas efetuado por uma esfera de governo com recursos transferido por outra esfera. 16 Ressalta-se que, para a União, utilizamos como critério a ótica contábil, compatível com a apuração efetuada para estados e municípios.

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ABSTRACT

Investigation of the public investment: from 2000 to 2008 The purpose of this paper is to investigate the public investment for the period between 2000 and 2008. Additionally we present the conceptual difference between the four criteria of assessment (accounting, cash, financial and economic) of the expenditures in public investments, which are adopted accordingly the objective aimed by the user of information. Furthermore, we will make the determination for the Central Government by accounting , financial and economic optical. To add the information we will refine its investment spending from the accounting perspective for the Union, states and municipalities by the prospect of financing the expenditures and the executor of the investments. Keywords: Public investment. Public budget. SIAFI.

RESUMEN

El examen de la inversión pública: de 2000 hasta 2008 El objetivo de este trabajo es examinar las inversiones públicas para el período comprendido entre 2000 y 2008. Además se presenta la diferencia conceptual entre los cuatro criterios de evaluación (contabilidad, tesorería, financiera y económica) los costes de las inversiones públicas, que se adopten según el objetivo deseado por la información del usuario. Además, se hará la determinación del Gobierno Central por el óptica contable, financiera y económica. Para agregar las informaciones acerca de las inversiones, apuraremos los gastos según la percepción contábil, de la Unión, estados y municipios,por la perspectiva de la financiación de los gastos y del ejecutor de las inversiones. Palabras claves: Inversión pública. Presupuesto público. SIAFI.

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Investimento público no Brasil é mais municipal que federal Gabriel Gdalevici Junqueira Arquiteto e urbanista pela Universidade do Brasil Chefe do Centro de Pesquisas Urbanas (CPU)–IBAM entre 1975 e 1988

José Roberto R. Afonso

RESUMO

Economista do BNDES Consultor do Senado Federal

O investimento público é a variável-chave de uma política fiscal anticíclica. O objetivo deste artigo é analisar a composição federativa do gasto no período recente, especialmente o realizado com obras públicas. Constatase que a esfera local é a que mais investe, marcando o caráter nitidamente descentralizado desse tipo de despesa no Brasil. Essa constatação coloca as administrações municipais no centro do debate sobre o padrão de execução mais adequado para uma política fiscal anticíclica. Palavras-chave: Investimento público. Obras públicas. Administração municipal. Descentralização. Prefeitura.

O investimento público se tornou uma variável-chave para enfrentar a crise financeira global, segundo recomenda a teoria e as experiências internacionais. Esse gasto sempre foi muito baixo no Brasil nos últimos tempos e tem outra característica que muitos

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ignoram: é muito descentralizado. O objetivo deste artigo é analisar o caráter federativo do gasto mais recente, especialmente o realizado com obras públicas. Para tanto, recorre-se aos balanços publicados pela Secretaria do Tesouro Nacional

(STN). Ela divulgou recentemente a chamada Consolidação das Contas Públicas de 2008 1 para as três esferas de governo – União, estados e municípios. As tabulações permitem desenvolver análises sobre a composição e a evolução dos gastos e das receitas dos governos bra-

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sileiros, inclusive para identificar o montante dos recursos movimentados por cada uma das três esferas federativas. A consolidação citada não cobre todas as Prefeituras brasileiras porque algumas não enviaram os balanços no tempo devido. De qualquer modo, a STN informa estar com uma cobertura de 85,8% dos 5.564 municípios brasileiros, que pode ser considerada bastante satisfatória. Além disso, ressalta-se o fato de que a maioria dos que não enviaram informações (789, ou 14,2% do total) é do interior e de pequeno porte, de modo que parece razoável supor que movimenta bem menos do que 14,2% dos recursos municipais. Chama-se a atenção, inicialmente, que, para a análise das despesas, é imperioso apartar as transferências intergovernamentais e concentrar o estudo nas chamadas aplicações diretas. É enfatizado tal cuidado no tratamento dessas contas porque a consolidação divulgada pela STN se limita a agregar todos os recursos, sem eliminar as transações entre os governos, o que gera dupla ou múltipla contagem nas agregações. Também é bom lembrar que tal fonte compreende apenas as administrações diretas. Se esta fonte estatística permite também estudar várias outras dimensões das contas públicas no País, vale atentar para dois aspectos metodológicos relevantes para o estudo dos investimentos. Primeiro, tais dados não contemplam os realizados pelas empresas estatais. Segundo, o gasto é medido pelo critério de competência, ou seja, nem tudo que é contratado em um ano acaba nele sendo pago. Essa diferença para o regime de

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A distribuição do investimento entre as esferas de governo é uma variável que muito deveria importar para a formulação e, principalmente, a execução da política fiscal brasileira

caixa tem sido muito grande e crescente, especialmente no caso dos investimentos públicos federais, como bem alerta Gobetti (2009). O anexo estatístico, no final do trabalho, reproduz os valores extraídos da consolidação da STN para o grupo de despesas relativo aos Investimentos por esfera de governo do exercício de 2008. Como já foi dito, a agregação simples de R$ 93,7 bilhões deve ser ignorada porque contempla múltiplas contagens. Para evitá-las, importa considerar o item Aplicações Diretas, que retrata as despesas efetivamente executadas por cada governo, totalizando exatos R$ 70 bilhões. De fato, esse valor é um pouco maior porque 14,2% das Prefeituras não tinham enviados os balanços, o que deve elevar o montante dessa esfera para perto dos R$ 30 bilhões, mas pouco altera os resultados da análise mais abrangente a ser aqui desenvolvida. Indicadores relativos aos investimentos governamentais realizados em 2008 são apresentados na tabela 1. A consolidação dos go-

vernos envolveu aplicações diretas de 2,42% do PIB. Para se aproximar da agregação das contas nacionais, é sugerido deixar de lado os gastos com materiais de consumo e outros que não são típicos (somam 0,24% do PIB), mas que a Contabilidade Pública aceita que sejam classificadas neste grupo. Optamos por denominar por formação bruta de capital a soma (2,19% do PIB) dos gastos realizados com obras e instalações (1,71% do PIB) e com equipamentos e material permanente (0,48% do PIB)2. Como era de se esperar no caso de investimentos por governos, o gasto com a realização de obras é mais do que o triplo do que a aquisição de equipamentos. A taxa de investimento governamental de 2,2% do PIB em 2008, embora deva superar a dos anos anteriores, é muito baixa diante das necessidades de capital do País e em relação a comparações internacionais. Chama-se a atenção que o Brasil, com os governos apresentando uma formação bruta de ca-

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pital de 1,69% do PIB em 2007, aparecia em penúltimo lugar (superando apenas o Turcomenistão) em um ranking de 135 países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, elaborado a partir de estatísticas prestadas pelos governos ao FMI 3. Mesmo com uma substancial melhora (+0,5 ponto do PIB em um ano), a taxa de 2,19% do PIB ora medida para 2008, na hipótese de que as taxas dos demais países continuassem a mesma, o grande avanço do investimento público teria sido suficiente para o País ganhar apenas uma posição (ultrapassando a República Dominicana) e ficar em antepenúltimo lugar entre 135 economias emergentes (cuja taxa média sim-

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ples era de 7,6% do PIB). Mas, nesta nota, o foco da análise é outro: a questão federativa. A distribuição do investimento entre as esferas de governo é uma variável que muito deveria importar para a formulação e, principalmente, a execução da política fiscal brasileira. A tabela 1 evidencia que, em suas diferentes facetas, a execução de tal despesa é extremamente descentralizada no Brasil. Considerado o agregado, chamado de formação bruta de capital, há um claro predomínio dos governos subnacionais nas aplicações diretas: os municípios lideram a divisão federativa ao responder por 40,3% do investido em 2008, seguidos pelos estados, que geram 35,4%, de modo que resta a União atender por me-

nos de um quarto do que é gasto no País. Mesmo excluindo o custeio associado ao investimento, a divisão federativa pouco mudaria. O grau de descentralização é muito maior nos investimentos do que nos gastos correntes, mesmo excluindo os juros da dívida. Não é novidade esse traço marcante do investimento público brasileiro, que já tinha sido demonstrado em outras análises do período imediatamente posterior à Constituinte de 19884. A novidade é esse quadro federativo não ter sido alterado mesmo depois de o Governo Federal lançar, no início de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), pelo qual anuncia que a prioridade de sua política fiscal passou a ser a reali-

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zação de um conjunto de obras, especialmente em infraestrutura. Se o PAC foi bem-sucedido em elevar os investimentos federais, que mal chegaram a 0,2% do PIB em 2003 (pior ano da série recente), por outro lado, foi insuficiente para recolocar o Governo Federal na liderança dos investimentos nacionais. É fato de que uma parcela dos investimentos locais é financiada por recursos aportados pelo Governo Federal por meio de convênios (algumas até contempladas no PAC), tendo crescido muito em 2008, a ponto de explicar metade do investimento total realizado pela União em 2008, segundo a tabela 1. Ainda assim, menos de 40% das aplicações por governos subnacionais podem ser explicadas por transferências concedidas pelo Governo Federal em 2008 – isto sem contar que o registro no balanço não corresponde à efetiva liberação financeira no mesmo ano. Como revelam os últimos indicadores da tabela 1, a razão entre as despesas da União com transferências para municípios e as aplicações diretas por eles realizadas foi de 33,6%, semelhante no caso dos estados. Porém, importa atentar que há uma grande diferença entre a despesa escriturada pelo governo concedente (regime de competência) e a receita contabilizada pelo governo que recebe (regime de caixa) – isto sem contar que nem todas Prefeituras enviaram balanços. Desta forma, na mesma consolidação publicada pela STN, a agregação das receitas municipais informa que as transferências de capital recebidas do Governo Federal, incluindo convênios, montam a R$ 5.053 milhões em 2008, reduzindo para 18,4% a parcela que custeiam das

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Como era de se esperar no caso de investimentos por governos, o gasto com a realização de obras é mais do que o triplo do que a aquisição de equipamentos

aplicações diretas em investimentos pelos governos locais (é enorme a diferença para os R$ 9,2 bilhões que a União contabilizou nas despesas de capital com investimentos, mas transferidas aos municípios). Tal diferença, expressiva, pode ser explicada pelo fato de que a União planeja investimentos de uma magnitude, mas, na prática, repassa valores inferiores. Assim, a discrepância se deve, principalmente, às divergências entre o que os municípios efetivamente recebem em seu caixa e o que a União informa ter transferido. Cabe destacar que os dados das receitas municipais são relativos à amostra das Prefeituras que encaminharam suas contas à STN, que não representam o total dos municípios. De qualquer forma, a amostra é representativa e não parece ser a principal causadora dessa distorção.

Considerando os valores divulgados pelos municípios, as receitas de transferências de capital explicam apenas 18,4% do investimento diretamente executado pelas Prefeituras, muito abaixo dos 33,6% que resultam dos dados informados pela União. Vale focar a análise no componente mais estruturante do investimento governamental: as despesas na rubrica Obras e Instalações, apresentadas na tabela 1. A escolha desse item se baseia na importância que ganhou no período recente, seja por motivos macroeconômicos (já que é considerado o melhor instrumento de política anticíclica) ou por questões político-eleitorais (uma vez que está no centro do discurso das prioridades do Governo Federal). Os governos aplicaram diretamente R$ 49,4 bilhões em obras no ano de 2008, o equivalente a 1,71% do PIB. Desses, apenas 22% (ou 10,7 bilhões de reais) foram

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aplicados diretamente pelo Governo Federal, enquanto que estados e municípios responderam, respectivamente, por 34% e 44% (R$ 16,8 bi e R$ 22 bi) do montante destinado a obras. No item mais relevante do investimento, o grau de descentralização é ainda mais acentuado. Esses números mostram que, mesmo com a prioridade que o Governo Federal confere ao PAC em seus discursos, são as administrações subnacionais que destinam os montantes mais significativos de recursos para a realização de obras. Somente as Prefeituras investiram em 2008 mais que o dobro da União. Por outro lado, isto significa que obras de infraestrutura de grande porte e com alcance nacional continuam em segundo plano no cenário fiscal brasileiro, em que predominam as obras de menor porte e com benefícios localizados (o que não significa dizer desnecessárias). Atentar para a peculiaridade federativa do investimento público brasileiro seria uma lição crucial se houvesse a opção por uma política fiscal anticíclica clássica (que priorizasse formação bruta de capital no lugar de gastos correntes) e, o principal, com resposta rápida (que atenuasse ou mesmo compensasse a retração do investimen-

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to e da demanda privada)5. O caminho mais adequado para uma estratégia anticíclica eficaz e eficiente seria apoiar financeiramente e fomentar os investimentos estaduais e municipais, que já executam algo como 80% das obras públicas do País. Aparentemente, este fato foi ignorado ou menosprezado quando da formulação e da execução das medidas fiscais adotadas pelo Governo Federal em resposta à crise financeira global. Pior é que a conjuntura fiscal mais recente aponta no sentido inverso. Depois da crise, as receitas municipais foram fortemente afetadas, especialmente nas Prefeituras que mais dependem do Fundo de Participação dos Municípios – cuja arrecadação registrou queda de 9,1%, em termos reais (dados da STN, com valores atualizados pelo IPCA), entre o acumulado no primeiro semestre de 2009 e o mesmo período de 2008. Ocorre que, com a inevitável deterioração dos resultados fiscais, os da União decresceram de modo mais acentuado do que os estaduais e os municipais (até porque não podem gerar deficit primário, mesmo que aqueles quisessem, não tendo sido alterados os compromissos da rolagem da dívida federalizada)6.

Além disso, especificamente no caso dos investimentos e do PAC, a parcela transferida foi reduzida em relação ao total investido. Talvez a estratégia de cunho políticoeleitoral esteja se sobrepondo a macroeconômica. Esse fato pode ser observado com o auxílio das tabulações levantadas por Gobetti (2009)7 dos pagamentos mensalmente realizados pela União de investimentos (ao contrário das anteriores, por regime de competência). Os dados permitem avaliar a evolução até o primeiro semestre de 2009, inclusive distinguindo entre transferido e executado diretamente – veja tabela 2, que se refere aos valores acumulados no semestre. Na avaliação anual8, é possível inferir uma mudança marcante de comportamento dos investimentos da União depois de 2003. Mais da metade do total pago de investimento foi transferido, basicamente, para outros governos, em 2001 e 2002. Coincidentemente, os únicos anos em que o grau de descentralização se aproximou dos 52,5% de 2002 foram exatamente aqueles de eleições municipais – 2004 e 20089. Mesmo assim, a inconstância desse indicador e os valores de 30,2% em 2007 e 47,8% em 2008 mostram que,

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O investimento federal aumentou em 0,1 pontos do PIB entre os primeiros semestres de 2008 e 2009

se houve alguma estratégia no tocante aos investimentos, essa não foi de descentralizá-los10. Observando os dados acumulados para os primeiros semestres de 2001 a 2009 (tabela 2), é possível reforçar a tendência apontada anteriormente pela forte mudança no padrão de gasto na primeira metade de 2009. Se, no primeiro semestre de 2008, cerca de 48% do investimento pago pela União foi objeto de transferência, um ano depois, essa parcela recuara para menos de 39%, isto é, depois de eclodir a crise financeira global, a reação do Governo Federal foi como esperado e desejado: expandiu os pagamentos de investimentos (14% superiores no primeiro semestre de 2009 a igual período de 2008), mas o resultado foi pífio comparado ao tamanho da economia (incremento de 0.1 pontos do PIB), pois o PAC

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continua com baixa execução11. Porém, de forma intencional ou não, o fez de forma bem diferenciada no padrão de execução – ampliou fortemente os gastos diretos (34%) e cortou as transferências (-8%) – segundo cálculos de Gobetti (2009), apresentados na tabela 2. Esses números indicam que a reação pós-crise da União na realização dos investimentos governamentais foi retomar a tendência à recentralização de sua execução manifesta desde 2003. O mais preocupante é que tal opção se apresenta de forma relevante justamente no momento em que é mais necessário ampliar investimentos públicos, enquanto as evidências mostram que as administrações estaduais e municipais são mais capazes e ágeis na sua realização 12.

Enfim, constata-se que a esfera local é a que mais investe, marcando o caráter nitidamente descentralizado desse tipo de despesa na federação brasileira. Essa constatação coloca as administrações municipais no centro do debate sobre o padrão de execução mais adequado para uma política fiscal anticíclica. De fato, o investimento federal aumentou em 0,1 pontos do PIB entre os primeiros semestres de 2008 e 2009, registrando o melhor resultado para o período desde o início da década. O resultado é importante, mas não aponta para uma mudança significativa na política fiscal, pois é muito pouco para que seja considerada uma política anticíclica de combate à recessão. Além disso, sua relevância também parece muito pequena diante da propaganda dispensada ao PAC. No que se refere à execução dos investimentos, os números indicam que, embora os investimentos em 2009 sejam maiores do que os observados para período semelhante em 2008, o montante transferido para os governos subnacionais foi reduzido. Isso mostra que o aumento dos investimentos foi feito com uma tentativa de recentralizar a execução. Tal movimento parece seguir o mesmo processo operado na receita tributária disponível, em grande parte como reação ao processo de descentralização ocorrido na esteira da redemocratização. O que é fundamental destacar para um debate mais técnico e aprofundado sobre o tema é que essa estratégia pode constituir um equívoco para quem, supostamente, deveria ter urgência em realizar obras para tentar impactar a demanda no momento em que a economia mais precisa.

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ANEXO ESTATÍSTICO

NOTAS As opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva dos autores e não das instituições a que estão vinculados. O trabalho reproduz argumentos e até alguns trechos de outros documentos dos autores. Elaborado com base em informações disponíveis até 31/07/2009. 1 A Consolidação das Contas Públicas de 2000 a 2008, realizada pela STN, está disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/contabilidade_governamental/execucao_orcamentaria_do_GF/ Consolidacao_Contas_Publicas.xls 2 Gobetti (2009) estimou os mesmos investimentos em 2,33% do PIB, que significa uma diferença muito pequena em relação ao total ora mensurado. Recordando que o autor não computou restos a pagar não processados no cálculo do montante gasto diretamente pela União (R$ 14 bilhões), que ficou muito próximo ao reportado pela STN na consolidação dos balanços como obras e equipamentos. 3 Veja análise de Afonso e Junqueira (2009). 4 Veja, por exemplo, Serra e Afonso (1999). 5 A mobilização de governos locais como instrumento para alavancar investimentos públicos é utilizada por outras economias emergentes, inclusive pelas mais bem-sucedida nesse quesito – a China. O seu caso foi mencionado por Sérgio Leo, em sua coluna no jornal Valor (13/7/09), ao ilustrar as recomendações feitas pela UNCTAD sobre como fugir de soluções padronizadas para ampliar investimentos em infraestrutura e serviços públicos, citando o papel dos governos subnacionais naquele país: “... aponta, por exemplo, o modelo chinês de investimentos em infraestrutura, baseado em poupança doméstica, da população, estatais e governos locais, como uma fonte de boas ideias, entre elas a de privatização ou concessão de ativos públicos para financiamento dos investimentos necessários. No caso chinês, as autoridades regionais fizeram do aluguel de terras públicas uma im-

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INVESTIMENTO PÚBLICO

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portante fonte de financiamento. Essa experiência não é reproduzível em outros países, mas mostra que os governos devem buscar suas próprias fontes de recursos privados a partir de ativos públicos, sugere a Unctad.” O colunista cita também o caso australiano como outro inovador. A notícia se refere a seminário organizado pela UNCTAD e pelo BNDES sobre o papel dos investimentos públicos na crise, cujos trabalhos estão disponíveis em: http://www.investimentopublico.mre.gov.br/apresentacoes 6 Os indicadores da NFSP até junho de 2009, divulgados pelo BACEN, mostram que o superavit primário do setor público, em relação ao primeiro semestre de 2008, sofreu um decréscimo nominal de 57% ou uma redução de 3,42 pontos do PIB (caiu de 5,86 para 2,44% do PIB). Dessa piora, 85% foram explicados pelo governo central: seu resultado primário neste ano foi dois terços inferior ao de igual período do ano passado, significando uma queda de 2,9 pontos do PIB. Por outro lado, o mesmo decréscimo foi de apenas 18% para os Estados e 40% para os municípios, bem aquém da taxa federal, de modo que o superavit primário dessas duas esferas de governo encolheu em apenas 0,32 pontos do PIB (de 1,38 para 1,06% do produto), entre o acumulado até junho de 2008 e de 2009. Os números oficiais, portanto, não deixam dúvidas sobre o melhor comportamento das contas destes governos do que o federal, apesar da crise financeira também afetar a receita deles. 7 Com base na metodologia elaborada por Gobetti (2006) para calcular a “real taxa de investimento” do Governo Federal. 8 A tabela com os dados referentes ao acumulado por ano é apresentada no anexo estatístico. 9 É interessante comentar o desempenho do PAC em 2008 com base nos dados extraídos do SIAFI/STN e disponibilizados para consulta aberta pela ONG Contas Abertas. Foram considerados apenas os pagamentos de valores investidos pela União e considerados integrantes daquele programa. Entre 2007 e 2008, houve um forte crescimento nos pagamentos: +55%, em termos nominais. Quando os mesmos são abertos por modalidade de aplicação, surgiu um quadro bem dispare do mesmo incremento nominal: apenas 6% da execução direta contra 204% dos repasses para estados e 583% para municípios. Estas transferências passaram a responder por 26% e 18%, respectivamente, do total pago pelo PAC em 2008. 10 A União, para atender seus investimentos, realiza também transferências para instituições sem fins lucrativos e mesmo para o exterior, mas 96% de tudo que transferiu a essa conta de gasto em 2008 foram para estados e municípios, e até mesmo instituições multigovernamentais. 11 Não custa mencionar que o levantamento da ONG Contas Abertas sobre o PAC divulgado em 04/08/09: “... revela que 827 projetos foram concluídos após dois anos e três meses do lançamento do programa – incluindoos três eixos: infraestruturas logística, energética e social-urbana. O número representa 7% de um total de 11.990 empreendimentos previstos nos 27 livretos estaduais do PAC para o período 2007-2010 e pós 2010. Cerca de 64%, que equivalem a 7.721 projetos, ainda não saíram do papel, ou seja, estão em fase de “contratação”, “ação preparatória” (estudo e licenciamento) ou “licitação” (desde o edital até o início do projeto). Outras 3.442 ações (29%) estão em andamento. Em 19 estados, o percentual de obras concluídas não ultrapassa o índice de 10%.” 12 Sobre as dificuldades do Governo Federal para deslanchar de forma mais contundente os investimentos, menciona-se recente análise de Mansueto Almeida (no prelo), do IPEA, que parte do paradoxo entre a dotação orçamentária e os pagamentos no mesmo ano das despesas realizadas em tal orçamento (em 2007, por exemplo, a distância foi de R$ 49 bilhões e R$ 6,9 bilhões, respectivamente). Recorreu à pesquisa sobre os problemas que afetam os investimentos na visão dos responsáveis pelos projetos prioritários. Mansueto concluiu que não está ligado a um ou dois problemas, mas sim a um conjunto deles. Ao contrário do reclamado por muitas autoridades, a questão ambiental e as exigências da lei de licitações não seriam os principais gargalos, mas sim problemas relacionados às questões administrativas, ou seja, defende melhor capacitação dos funcionários públicos e coordenação da máquina pública, incluindo uma gestão mais eficiente dos convênios com órgãos estaduais e municipais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, J. R.; JUNQUEIRA, G. A Baixa Taxa de Investimento Público Brasileira Comparada a dos Demais Países em Desenvolvimento. Rio de Janeiro, jul. 2009. Disponível em: <http://www.joserobertoafonso.ecn.br/site/aspx/AcervoPessoal.aspx?Tip=2&Num=0&numPagina=2&ordenacao=1>. Acesso em: 31/07/2009. ALMEIDA, M. Paradoxo do investimento público no Brasil. No prelo. COSTA, A.; JÚNIOR, M. PAC: Após dois anos e três meses, apenas 7% das obras foram concluídas. Contas Abertas, 4 ago. 2009. Disponível em: <http:// contasabertas.uol.com.br/noticias/detalhes_noticias.asp?auto=2766>. Acesso em: 05/08/2009. DANTAS, F. Em 5 anos, Estados duplicam investimentos. O Estado de São Paulo, São Paulo, 2 ago. 2009. GOBETTI, S. Qual é a real taxa de investimento público no Brasil?. Brasília, mar. 2009. Disponível em: <http://www.joserobertoafonso.ecn.br/site/aspx/ AcervoPessoal.aspx?Tip=3&Num=0&numPagina=3&ordenacao=1>. Acesso em: 31/07/2009. GOBETTI, S. Estimativa dos investimentos públicos. Um novo modelo de análise da execução orçamentária aplicado às contas nacionais. Monografia premiada em 1º lugar no XI Prêmio Tesouro Nacional – 2006; Tema 3 – Tributação, Orçamentos e Sistemas de Informação sobre a Administração Financeira Pública. Outubro de 2006. LÉO, S. A questão do investimento público. Valor Econômico, São Paulo, 13 jul. 2009. SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. A Consolidação das Contas Públicas de 2000 a 2008. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/ contabilidade_governamental/execucao_orcamentaria_do_GF/Consolidacao_Contas_Publicas.xls>. Acesso em: 31/07/2009. SERRA, J.; AFONSO, J. R. Federalismo Fiscal à Brasileira: Algumas Reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 6, n.º 12, p. 3-30. Dezembro de 1999. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev1201.pdf>. Acesso em: 31/07/2009.

ABSTRACT

Public investments in Brazil are mostly municipal Public investment is the key variable of a countercyclical fiscal policy. This article aims to analyze the federative composition of spending in the recent period, especially that made with public works. It identifies that the local level is the one that most invests, clearly marking the decentralized nature of such expense in Brazil. This finding puts the municipal administrations in the center of the debate on the most apropriate standard of execution for a countercyclical fiscal policy. Keywords: Public investment. Public works. Municipal administration. Decentralization. City Hall.

RESUMEN

Inversión pública en Brasil es más Municipal que federal La inversión pública es la variable clave de la política fiscal contra-cíclica. Este artículo tiene por objeto analizar la composición federativa del gasto en el período reciente, en especial aquel hizo con obras públicas. El nivel local es el que más invierte, marcando el carácter claramente descentralizado de este tipo de gastos en Brasil. Esto coloca las administraciones municipales en el centro del debate sobre el padrón de ejecución más adecuado para una política fiscal contra-cíclica. Palabras clave: Inversión pública. Obras públicas. Administración municipal. Descentralización. Ayuntamiento.

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A EXPERIÊNCIA DE FORTALEZA

A Administração Pública e o desafio do investimento Luizianne Lins Prefeita da cidade de Fortaleza-Ceará entre 2005 e 2008.

Vários são os desafios impostos à gestão de esquerda em uma metrópole como Fortaleza, uma cidade que, em menos de vinte anos, saltou de uma população de 1,7 milhão de habitantes – número registrado em 1990 – para cerca de 2,4 milhões em 2008. Esse rápido crescimento demográfico agigantou demandas e trouxe consigo inúmeros problemas de habitação, infraestrutura básica e assistência social. Para apresentar as bases da estratégia de investimento para Fortaleza no período de 2005 a 2008, parto de algumas premissas básicas. A primeira é a de que a participação popular é fundamental para o diagnóstico e a definição da cidade desejada, ao que denominamos de “Construção da Fortaleza Bela”. A segunda é que a meta do desenvolvimento urbano mais justo é alcançada por meio de um planejamento estratégico que rompe com a lógica dos gastos públicos municipais atrelados ao ciclo político-eleitoral. Ressalte-se que a gestão teve a preocupação em compatibilizar os instrumentos de planejamento urbano com os investimentos necessários e previstos nas demais estratégias da gestão financeira municipal, tais como: o Plano

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Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e o Orçamento Anual. É assim que deve ser compreendido o esforço de investimento e captação de recursos para o Plano de Metas de Fortaleza (Plamefor), um conjunto de investimentos em projetos estratégicos, visando dotar a cidade de equipamentos vitais para o seu desenvolvimento socioambiental. Vale ilustrar algumas intervenções exemplares para atingir os objetivos do Plano, tais como: a Política de Juventude articulada aos Cucas (Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte) e a política de atenção à saúde da mulher por meio do Hospital da Mulher. Tratam-se de ações articuladas de investimentos públicos materializadas nesses projetos e obras especiais. O esboço de nossa estratégia de investimentos nasceu bem antes de assumirmos a Prefeitura de Fortaleza, durante inúmeros debates com as comunidades e os setores sociais que construíram um detalhado diagnóstico das necessidades da cidade contido no Plano de Governo, apresentado durante o embate eleitoral. O envolvimento das pessoas com o projeto de de-

Entre 2005 e 2008, o Programa Saúde da Família (PSF) aumentou seu atendimento em três vezes

senvolvimento urbano mostrou-se crucial tanto na sua elaboração como em sua posterior execução. No exercício da administração municipal, a implantação do Orçamento Participativo (OP) como etapa necessária ao ciclo orçamentário acrescentou robustez e transparência ao diálogo permanente entre Administração Pública e população, rompendo assim com a tradição clientelista na definição dos investimentos. O tempo de governo é exíguo e exige novas iniciativas para reali-

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A EXPERIÊNCIA DE FORTALEZA

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zar os projetos desejados pela população. Rompemos com a fórmula conservadora de pensar os investimentos públicos, que tem se mostrado ultrapassada. Em geral, as administrações conservadoras sugerem pesados cortes no início da gestão para fazer reservas de caixa com vistas às despesas futuras. Nossa administração optou por inverter essa lógica, procurando ampliar o volume e o próprio conceito de investimento. Superando o conceito contábil, ampliamos o gasto em áreas cruciais, como saúde, educação e transporte público, entendendo que isso significa cuidar das pessoas. É claro que o nível de investimento no sentido estrito também foi ampliado. Em nosso governo, o Programa Saúde da Família (PSF) aumentou seu atendimento em três vezes, a infraestrutura das escolas, a alimentação escolar e os salários dos professores foram melhorados, realizamos o maior progra-

A continuidade de tais iniciativas requer novos aportes de recursos para os municípios brasileiros, que, como é o caso de Fortaleza, arcam com o maior peso de materializar os projetos estratégicos necessários a melhoria da qualidade de vida da população

ma de habitação da história da cidade, congelamos a passagem de ônibus por mais de quatro anos e implantamos a tarifa social (mais

Em geral, as administrações conservadoras sugerem pesados cortes no início da gestão para fazer reservas de caixa com vistas às despesas futuras. Nossa administração optou por inverter essa lógica, procurando ampliar o volume e o próprio conceito de investimento

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baixa) aos domingos. O resultado agregado destas políticas foi o aumento do emprego, a redução da mortalidade materna e infantil e uma maior mobilidade social da população de Fortaleza. O aumento das receitas tributárias – decorrente da percepção positiva dos cidadãos em relação à administração municipal e do esforço de educação fiscal – teve importante papel nos primeiros anos de governo que, somando-se ao ciclo de crescimento econômico do período de 2005 a 2008, permitiu o incremento dos gastos de investimento em seu sentido mais amplo. A possibilidade de interrupção deste ciclo virtuoso em 2009, decorrente dos impactos locais da crise financeira internacional, poderia trazer problemas objetivos para manter o ritmo de investimento programado. Contudo, mesmo adotando uma atitude prudente quanto às receitas, o planejamento orçamentário foi adequado para assegurar a manu-

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Especificamente dois dos investimentos de grande porte já mencionados – Cuca e Hospital da Mulher – foram financiados em sua totalidade com recursos do tesouro. Não se trata de uma opção, mas de uma necessidade diante das dificuldades de financiamento

tenção dos investimentos por meio de melhoria da qualidade do gasto de manutenção da máquina pública. Em 2009, tomando como base os grandes grupos de despesa por fonte de recurso do Município de Fortaleza, foi planejado um montante de 736 milhões em investimentos, no sentido estrito, para um orçamento anual de 3,4 bilhões. Deste montante de investimentos uma parcela substancial, 176 milhões, tem origem em fonte do tesouro municipal, sendo o restante financiado por outras fontes. Especificamente dois dos investimentos de grande porte já mencionados – Cuca e Hospital da Mulher – foram financiados em sua totalidade com recursos do tesouro. Não se trata de uma opção, mas de uma necessidade diante das dificuldades de financiamento. Portanto, apesar dos obstáculos surgidos em 2009, mantivemos elevado o nível de investimento, que inclusive vem funcionando

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com mecanismo anticrise em nível local, reforçando a demanda agregada na economia municipal. Por fim, cabe ressaltar que buscar elevados níveis de investimento mesmo diante do quadro de constrangimentos que atingem os municípios brasileiros, do qual Fortaleza não constitui exceção, exige uma opção estratégica. Essa opção se articula com a reorientação do gasto de investimento com vistas à população mais carente, promovendo distribuição de renda por meio do fundo público e constituindo, assim, o conceito de propriedade social necessária ao

nosso tempo presente. Também é evidente que a continuidade de tais iniciativas requer novos aportes de recursos para os municípios brasileiros, que, como é o caso de Fortaleza, arcam com o maior peso de materializar os projetos estratégicos necessários à melhoria da qualidade de vida da população. Deste modo, permanece sempre oportuno levantar recorrente questão da pequena receita tributária em descompasso com as pesadas atribuições dos municípios. A repartição do bolo tributário nacional com ênfase para os municípios é um pressuposto para garantir níveis de investimento que efetivamente mudam a vida das pessoas e constroem a cidadania.

Luizianne Lins foi prefeita da cidade de Fortaleza entre 2005 e 2008, sendo reeleita em 2008, no primeiro turno, para novamente governar a cidade de 2009 a 2012

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CHOQUE DE ORDEM

CHOQUE DE ORDEM

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Choque de ordem na ordem Andrea Gouvêa Vieira

RESUMO

Jornalista Vereadora do Município do Rio de Janeiro

O artigo analisa a política de ordem urbana que vigora no Rio de Janeiro, desde o início da gestão do atual prefeito da cidade, Eduardo Paes. A partir dos bons resultados obtidos em Nova Iorque, Londres e Barcelona, com a instalação da política de Tolerância Zero, são traçadas vantagens e desvantagens para o uso do método coercivo na cidade brasileira. O conceito de mobilidade, estabelecido por Burkhalter e Manuel Castells, também é abordado no estudo. Palavras-chave: Choque de ordem. Administração municipal. Cidades-modelo. Mobilidade. Participação popular.

Nos últimos 16 anos, a cidade do Rio de Janeiro teve à disposição instrumentos considerados essenciais para planejar seu futuro. Além de um Plano Diretor, aprovado em 1992, a cidade desenvolveu dois Planos Estratégicos, em 1995 e 2004, e levantou indicadores de renda, educação e expectativa de vida – o Índice de Desenvolvimento Humano – de cada bairro e até mesmo dos mais importantes

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complexos de favelas da Cidade. No entanto, ações efetivas para o cumprimento das diretrizes traçadas nunca foram integradas ao planejamento orçamentário. A aprovação, pelo Congresso Nacional, do Estatuto da Cidade, em 2001, fornecendo as ferramentas que faltavam à execução do Plano Diretor, tampouco mobilizou a autoridade municipal. Sete anos se passaram, e o Rio

de Janeiro não fez a revisão decenal da legislação que deveria indicar os rumos do seu desenvolvimento. Na verdade, todos os planos e os indicadores ficaram nas prateleiras. E, sem traçar seu futuro, o Rio de Janeiro ficou, também, sem o presente. Para quem observou a Administração municipal nos últimos anos, fica claro que a paralisia no ordenamento da Cidade se deveu

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ao completo abandono dos instrumentos de planejamento, à falta de transparência nas relações da autoridade com os cidadãos e ao descumprimento das posturas municipais. O poder discricionário e as soluções urbanísticas pontuais prevaleceram sobre as regras e o planejamento global.

mento local... A Cidade não cumpre suas naturais funções de propiciar trabalho e lazer – a bagunça maltrata sua população e afasta investimentos”. Não foi por acaso, portanto, que o tema da desordem urbana dominou a campanha eleitoral de 2008. A Teoria da Vidraça Quebrada foi usada pelos dois principais candida-

zero é no imaginário popular a palavra mágica que transformou Nova Iorque – uma das cidades mais violentas do mundo até o início da década de 90 – em uma Cidade próspera e segura. Portanto, não causa surpresa a ênfase que o atual prefeito da Cidade vem dando, desde o pri-

A CPI DA DESORDEM URBANA A indignação da população com o abandono da Cidade ficou registrada, em 2007, no Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da Desordem Urbana da Câmara Municipal do Rio1. Em uma síntese das centenas de depoimentos de cidadãos de bairros e favelas, o relatório da Comissão constatou que “a Prefeitura trata o espaço destinado a todos ora como terra de ninguém, ora como meio de arrecadação de recursos. O quadro que resulta dessa dinâmica: camelôs, mesas e cadeiras de bares e restaurantes, quiosques de plantas, cabinas de chaveiros, trailers de venda de alimentos e bebidas, tudo isso aliado a mobiliários urbanos em péssimo estado de conservação, calçadas esburacadas, falta de sinalização, falta de banheiros públicos, má conservação dos pontos turísticos e outras tantas mazelas decorrentes da omissão, conivência ou da ação deliberada da Prefeitura”. O Relatório concluiu: “Há o lixo, muito lixo, e há a urina e as fezes depositadas livremente, como se tenhamos perdido qualquer noção de civilidade. A violência que assola o Estado de forma tão intensa já acarreta um natural recolhimento da população, que deixa de sair à noite e de frequentar cada vez mais áreas da cidade, o que reduz a atividade econômica e o desenvolvi-

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Como a cidade do Rio de Janeiro se colocará diante desse novo paradigma? A legislação atual, até hoje parcialmente ignorada pelo administrador municipal, é suficiente para criar a cidade sustentável do século XXI? São questões sem resposta na Cidade, que ainda vive desordenada e com medo

tos para responder às aflitas indagações de como se poderia restabelecer a ordem na casa. Desenvolvida na década de 80 por dois intelectuais americanos, James Wilson e George Kelling, para abordar a questão do policiamento comunitário, o conceito se originou da observação de que ignorar os sinais, mesmo que triviais, de desordem é abrir caminho para a ocorrência de crimes mais graves. Deixar o vidro de uma janela quebrado por algum tempo, argumentam os acadêmicos, levará à destruição da janela vizinha. A política de tolerância zero é o resultado prático desse conceito. E tolerância

meiro dia de seu governo, ao chamado choque de ordem, termo adotado no lugar de política de tolerância zero, que induz ao compromisso de combater todo o tipo de crime, fora do alcance do Município. A atuação da nova Secretaria Especial da Ordem Pública tem monopolizado a atenção sobre a nova Administração. O CHOQUE DE ORDEM NA ORDEM DO DIA Apesar das críticas a ações consideradas exageradas, ou do

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CHOQUE DE ORDEM

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ceticismo de muitos sobre a capacidade da Prefeitura de manter a “tropa” na rua indefinidamente, a resposta rápida do prefeito na retomada do controle do espaço público é responsável pela avaliação positiva do início de seu Governo. Em um debate recente sobre o tema “Depois do choque, o quê?”, o secretário Rodrigo Bethlem voltou a se referir ao exemplo de Nova Iorque, afirmando que a ideia do choque de ordem não é ser transitório, mas intenso e permanente. Apresentou também minucioso balanço sobre as ações a favor da ordem. De maneira geral, elas correspondem aos anseios relatados pela CPI da Desordem Urbana. É preciso, no entanto, mais informações para que se possam avaliar os critérios usados para o planejamento dessas ações e fornecer à população de cada bairro a possibilidade de avaliar os progressos, por meio de metas a serem estabelecidas pela Prefeitura. As estatísticas apresentadas já indicam problemas que não serão resolvidos com ações esporádicas de repressão. São, entre outros: • multas no trânsito não corrigem as falhas do sistema de transporte, que exige profunda e corajosa reformulação, o que implica enfrentar o crime organizado em torno do transporte alternativo e a rede de interesses que envolve o Legislativo e as empresas de ônibus; • a existência de moradores de rua depende da escolha de políticas públicas e não será resolvida com choque de ordem; • a multiplicação de ambulantes e camelôs precisa ser melhor estudada para separar o que é pro-

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A proposta da nova Cidade é centrada na mobilidade: “Mover as pessoas, economizar energia, limpar o ar: o sistema de transporte multimodal do século 21

visório do que é definitivo e organizar os espaços destinados à atividade. Como solução de longo prazo, repensar a vocação econômica da Cidade, criando efetivas condições de empregabilidade; e • a repressão à ocupação irregular de calçadas e à construção ilegal será imensamente facilitada se houver prazo determinado para a concessão das autorizações. E prazos são coisas que parecem não existir na Prefeitura. Em outras palavras, é preciso dar um choque de ordem também na ordem. Planejar, estabelecer prioridades com a população, usar indicadores para que se possam medir objetivamente os resultados das políticas públicas, reorganizar a máquina administrativa de modo que se possa trabalhar para fora, atendendo aos cidadãos, e não voltada para dentro, sem compromisso com o sucesso da cidade. É um compromisso de mão dupla, que envolve deveres e direitos de ambos os lados, o Estado e a sociedade, e deve ser estabelecido com trans-

parência, integrando o planejamento público. O CHOQUE NO CHOQUE DE ORDEM O sucesso atribuído à política de tolerância zero em cidades como Nova Iorque, que fez, na verdade, uma profunda reforma política e administrativa, não tem evitado uma onda crescente de críticas a excessos. A rigidez não permite levar em consideração circunstâncias mitigatórias ou situações individuais, causando, muitas vezes, danos irreversíveis a pessoas, desproporcionais à gravidade da transgressão. Tendo como parâmetro a noção de que liberdade inclui segurança e proteção para que o cidadão possa usar os espaços públicos livremente sem ser atacado ou roubado, o debate aponta vantagens e desvantagens da política de tolerância zero. Dentre as vantagens, citem-se: • pode ser efetiva em determinada circunstância, contra delitos específicos, por determinado tempo,

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como um gesto simbólico para dar conforto e percepção de segurança à população. Exemplo: áreas no centro de Londres onde, nos fins de semana, o excesso do consumo de bebidas alcóolicas resulta em barulho, sujeira na rua e comportamentos antissociais, como urinar na rua; e • accountability. Clareza dos objetivos por parte dos policiais de rua; responsabilização pelos resultados das ações por parte dos oficiais; impacto direto na redução de determinados delitos. Exemplo: Nova Iorque. Dentre as desvantagens, citem-se: • restrição à liberdade de manifestações coletivas públicas diante de exigências draconianas para autorização policial, tirando da cidade sua função de acolher as manifestações dos cidadãos; • riscos para os grupos minoritários, vistos como fonte primária de ameaça pública e, portanto, alvos principais das ações preventivas; • ineficácia na solução de problemas que demandam políticas públicas contínuas, de longo prazo. E não ações de curto prazo; • risco de comprometimento das relações entre polícia e grupos juvenis, principalmente de setores em desvantagem socioeconômica, diante do forte caráter de confronto da tolerância zero; e • substituição do medo pelo temor à autoridade, tornando as cidadesdesertas. Necessário, mas insuficiente, o choque de ordem certamente não será o instrumento para superar os maiores desafios da Cidade. A começar por falar em ordem em uma cidade que tem um terço de seu território em poder de grupos arma-

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Multas no trânsito não corrigem as falhas do sistema de transporte, que exige profunda e corajosa reformulação

dos que distribuem a Justiça a mais de um milhão de pessoas, ao arrepio da norma constitucional. Retomar esses territórios para a legalidade é, evidentemente, condição sine qua non para a reinvenção da Cidade. Apesar de suas especificidades, como a presença de um poder paralelo, muitos dos problemas do Rio de Janeiro assemelham-se aos de outras grandes metrópoles. Algumas, como Nova Iorque, Londres e Barcelona, conseguiram se reinventar e descobriram novas vocações econômicas e já caminham rumo a 2030. Outras, como Bogotá e Medellin, com características próximas às do Rio, ainda buscam saídas para impasses institucionais que ultrapassam as questões urbanas, mas já comemoram progressos. OS DESAFIOS DAS CIDADES-METRÓPOLES As Cidades-Metrópoles deparam-se com desafios adicionais que

vão exigir novos instrumentos, muita tecnologia e, acima de tudo, criatividade para repensar a ocupação do espaço público, diante das ameaças de sobrevivência do próprio planeta. Mudou a dimensão da crise urbana no século XXI. Em um artigo escrito com emoção e ousadia, dois especialistas, Laura Burkhalter (arquiteta residente na Califórnia) e Manuel Castells (professor de Planejamento Urbano da Universidade da Califórnia) 2 , afirmam que, embora não seja o fim do mundo, haverá um novo começo na vida das cidades, “que serão pensadas a partir das necessidades e interesse das pessoas e não planejadas para atender ao lucro das corporações e para facilitar a vida dos burocratas”. A proposta da nova Cidade é centrada na mobilidade: “Mover as pessoas, economizar energia, limpar o ar: o sistema de transporte multimodal do século 21”. Ainda segundo esses autores,

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CHOQUE DE ORDEM

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“a prosperidade econômica de uma região é diretamente proporcional ao movimento eficiente e pontual das pessoas, da informação, de bens e serviços. Serão necessárias drásticas intervenções no espaço urbano para integrar regiões metropolitanas destruídas pela imobilidade, pela poluição e ineficiência dos transportes”. Os dois especialistas prevêem um novo paradigma urbanístico. Em vez de planejar via zoneamento, como se faz hoje, as novas diretrizes urbanísticas levarão em conta quatro parâmetros: perfor-

mance ecológica, performance econômica, segurança social para a comunidade local e valor estético e artístico. Como a cidade do Rio de Janeiro se colocará diante desse novo paradigma? A legislação atual, até hoje parcialmente ignorada pelo administrador municipal, é suficiente para criar a cidade sustentável do século XXI? São questões sem resposta na Cidade, que ainda vive desordenada e com medo. Independentemente do mérito ou da viabilidade das propos-

tas de Burkhalter e Castells, existe, para eles, um pré-requisito fundamental para a transformação: “As pessoas têm que acreditar, praticar e, finalmente, pressionar os políticos para adotar as políticas urbanas que responderão às suas necessidades e desejos”. Ou seja, a participação popular é essencial, por meio dos canais disponíveis que, diga-se de passagem, com o advento da Internet e seus infinitos instrumentos, nunca estiveram tão abertos.

ABSTRACT

Policy of zero tolerance The article analyzes the politics of urban order in effect in Rio de Janeiro, since the beginning of the management of the current mayor, Eduardo Paes. From the good results achieved in New York, London and Barcelona, with the installation of the policy of Zero Tolerance, are outlined advantages and disadvantages to the use of the method of coercion in the Brazilian city. The concept of mobility, established by Burkhalter and Manuel Castells, is also addressed in the study. Keywords: Shock of order. Municipal administration. Model cities. Mobility. Participation.

RESUMEN

Política de tolerancia cero El artículo analiza la política de orden urbano, en efecto, en Río de Janeiro, desde el inicio de la gestión del actual alcalde, Eduardo Paes. De los buenos resultados alcanzados en Nueva York, Londres y Barcelona, con la instalación de la política de tolerancia cero, se describen las ventajas y desventajas para el uso del método de coacción en la ciudad brasileña. El concepto de movilidad, establecido por los estudiosos Burkhalter y Manuel Castells, también se aborda en el estudio. Palabras clave: Choque de orden. Administración municipal. Ciudades modelo. Movilidad. Participación.

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• FINANÇAS MUNICIPAIS •

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Heraldo da Costa Reis

heraldo@ibam.org.br

Professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinares de Finanças Municipais ENSUR/IBAM

As mudanças na LC n.° 101/2000 A LC n.º 131, promulgada em 29 de maio de 2009, introduziu algumas mudanças na LC n.º 101/ 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal, mais conhecida pela alcunha LRF que, sem qualquer dúvida, aprimoram à qualidade de controles e de informações contábeis relativos à execução orçamentária e financeira na Administração Pública. As mudanças dizem respeito à participação da população ou do cidadão em decisões que devem se refletir nas peças integrantes do sistema de planejamento governamental; na divulgação dos gastos governamentais; e nos procedimentos de reconhecimentos de receitas governamentais a serem adotados em definitivo pela administração e pela Contabilidade a fim de que sejam refletidas nas demonstrações contábeis das entidades governamentais. Analisemos, pois, as mudanças. I O art. 1º da Lei introduz algumas novidades na estrutura do art. 48 da LC n.º 101/2.000, como veremos a seguir. Art. 48 O artigo, original, em tela, trata dos chamados instrumentos de transparência de gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público, tais como: o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento anual, as prestações de contas e o respectivo parecer prévio, os relatórios de execução orçamentária e de gestão fiscal.

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Em realidade, o parágrafo único do art. em epígrafe foi segmentado em três incisos, dos quais o primeiro é a repetição daquele parágrafo, o que, entretanto, não acontece com os demais, cujas determinações são as seguintes: O inciso II determina liberação em tempo real, para conhecimento e acompanhamento da sociedade, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira em meios eletrônicos de acesso público. Significa afirmar que as demonstrações sobre a execução orçamentária, ou seja, os balancetes da receita e da despesa, acompanhados do balanço financeiro, referentes ao período serão divulgados eletrônica e simultaneamente. Isto melhora a participação do cidadão? É possível, desde que se pense em melhorar a qualidade da informação, tornando-a mais digerível, ou seja, fazendo com que as classificações utilizadas para a identificação das receitas e das despesas sejam claras, de tal modo que não deixem margem a dúvidas. O inciso III estabelece a adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A, desta Lei. A redação deste inciso propicia o seguinte questionamento: Por que o padrão mínimo de qualidade tem de ser estabelecido apenas pelo Poder Executivo da União? Por que não pelos demais Poderes, já que tratamos de integração da administração financeira integrada e de controle? E por que, exclusivamente, a União? E as demais esferas governamentais não participam? Penso que aqui está havendo

uma interferência nas operações dos demais Poderes e das outras esferas governamentais, que contraria o estabelecido pela Constituição Federal em seu art. 74, fazendo-se necessária, portanto, uma análise do conteúdo do inciso à luz da determinação constitucional. II O art. 2º da Lei introduz na LC n.º 101/2000 os artigos 48-A, 73A, 73-B e 73-C, os quais serão comentados como seguem: Art. 48-A O artigo em epígrafe dispõe que os entes da Federação porão à disposição de qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes à despesa e à receita. a) – Inciso I: No que se refere à despesa, cuja determinação inicial está contida no inciso II do art. 48, a liberação em tempo real das informações para conhecimento e acompanhamento da sociedade diz respeito a todos os atos praticados pelas unidades gestoras (administração central e descentralizada) no decorrer da sua execução, no momento da sua realização, e relacionados ao número correspondente do processo, ao bem fornecido, ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica credora e, quando for o caso, ao procedimento licitatório. Observe o leitor que a lei emprega a expressão realização da despesa, aquela decorrente de contrato de vigência anual ou plu-

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rianual, o que nos leva a entender que a informação a ser posta à disposição do cidadão refere-se à despesa, cujo procedimento de reconhecimento deu-se no regime de competência financeira, ou seja, o que está preceituado no artigo 60 da Lei n.º 4.320/64, e que se refere ao cumprimento do implemento de condição, à ratificação da entrega do bem, da execução da obra ou da prestação do serviço, ou mesmo como consequência do consumo de ativos para a concretização dos objetivos previamente determinados. Observe, também, que o mencionado dispositivo deve ser complementado com o estudo e a análise do disposto no inciso II do art. 50 da Lei Complementar n.º 101/2.000, que dispõe que a despesa e a assunção de compromisso serão registradas segundo o regime de competência, apurando-se, em caráter complementar, o resultado dos fluxos financeiros pelo regime de caixa. A despesa em processamento, decorrente de contrato de execução plurianual, poderá vir a lume após a respectiva adjudicação do contrato e do seu empenhamento para que o cidadão tome conhecimento de que no futuro existirão obrigações de pagamento desde que os respectivos implementos de condição tenham sido cumpridos no exercício para o qual foram transferidos. b) – Inciso II: No que se refere à receita, a obrigatoriedade do seu lançamento prévio se faz refletir no inciso II do artigo em epígrafe, vindo, pois, ao encontro da necessidade de tornar mais clara a informação sobre a receita, que, a partir de agora, deve ser contabilizada no financeiro no regime de competência financeira, conforme determinam os artigos 39, 52 e 53, respectivos parágrafos e incisos da Lei n.º 4.320/ 54, procedimento que já vínhamos defendendo há algum tempo, con-

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forme fica evidenciado nos escritos já publicados na Revista de Administração Municipal – Municípios, IBAM e no nosso livro A Lei 4.320 Comentada, já na sua 32a edição. (ver referências). Assim, sujeitam-se à regra estabelecida na Lei Complementar n.º 131/2009 as receitas que refletem direitos sobre valores recebíveis, sejam créditos de natureza tributária, sejam de natureza não tributária, geridos pelos órgãos da administração central e descentralizada, os quais podem-se enumerar a seguir: • tributos de lançamentos direto, por homologação e os por declaração (veja Código Tributário Nacional); • contratos geradores de receitas (e de despesas) (veja lei de licitações e contratos); • transferências constitucionais, negociadas (convênios) e voluntárias; • outras. O procedimento de lançamento prévio das receitas pode ser definido como segue: • Administrativo: o ato da administração de reconhecer os direitos recebíveis, sejam de natureza tributária, sejam de natureza não tributária, conforme dispõem as normas de direito financeiro e de finanças públicas em vigor; • Contábil: o ato da Contabilidade de ratificar, por meio de procedimento próprio, o reconhecimento prévio dos direitos recebíveis e dos seus efeitos no patrimônio financeiro da organização governamental. Na Contabilidade, sugere-se a utilização da conta Créditos a Receber, segregada pelas contas Tributárias e Não Tributárias. Com o procedimento do lançamento prévio da receita, que, antes era feito apenas no subsistema orçamentário, os balanços governamentais passam a informar os efei-

tos de caráter financeiro no patrimônio da entidade governamental (princípio da evidenciação), cumprindo desta forma com a sua finalidade na organização que é o de evidenciar todos os efeitos financeiros e não financeiros dos atos praticados pelo gestores governamentais. Com a adoção do regime de competência na contabilização das receitas governamentais, o enfoque do controle recai efetivamente sobre os devedores da fazenda pública, fato que não era evidenciado com a adoção do chamado regime de caixa para as receitas. As demonstrações contábeis, balanço patrimonial e balanço financeiro, principalmente este, tornam-se mais claros e precisos. Para se ter uma ideia, veja-se o efeito da alocação na coluna da despesa do balanço financeiro do saldo dos créditos recebíveis, que nos indicará que contribuintes devedores da fazenda pública continuam tendo financiamentos dos benefícios que são gerados pelos serviços postos à sua disposição (veja Mod. de Balanço Financeiro no regime de competência in: O superávit Financeiro nas Finanças Governamentais, REIS, Heraldo da Costa, Revista de Administração Municipal-Município Rio de Janeiro: IBAM, n.º 268, out/dez 2008). Evidentemente, a adoção do lançamento prévio das receitas e, consequentemente, do regime de competência, como se vem afirmando, exige uma reorganização das rotinas administrativas e contábeis atualmente em vigor, posto que o que realmente existe é a relação contabilidade/tesouraria, e a lei amplia o relacionamento da Contabilidade com outros setores da administração dentre os quais destaca-se o da receita, da qual receberá informações para pôr em prática o lançamento prévio da receita (in: Razões e Condições para a Adoção do Regime de Competência na Contabilidade Governamental, REIS, Heraldo da Costa, Revista de Administração Municipal,

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Rio de Janeiro: IBAM, n.º 270/2009). Entretanto, há de se lembrar que os lançamentos prévios das receitas, dentre as quais as de natureza tributária, com efeitos financeiros no patrimônio financeiro da entidade, deverão ser precedidos de análise das respectivas fontes, a fim de que os reconhecimentos da receita sejam feitos no momento em que os direitos às cobranças e aos recebimentos forem constatados. Daí a necessidade de planejamento com acerto de rotinas e de relatórios específicos para cada espécie de operação, no sentido de evitar a perda da informação que indicará a situação financeira da entidade e daqueles que realmente estão em débito com ela. O cumprimento da exigência do lançamento prévio implica a necessidade de refletir sobre alguns procedimentos obrigatórios de gestão financeira, tais como: • o cálculo do total da despesa do Poder Legislativo municipal e o da folha de pagamento, os quais devem ser feitos com base nas receitas arrecadadas; • as destinações de receitas às áreas da educação e da saúde, as quais devem ser calculadas com base nas receitas em regime de competência; • o cálculo da receita corrente líquida para fins de identificação dos totais das despesas de pessoal de todos os Poderes constituídos e da Reserva de Contingência, o qual deve ser feito com base nas receitas arrecadadas ou a serem arrecadadas;

• os cálculos do excesso de arrecadação e do superavit financeiro, com base nas receitas arrecadadas. Como vê o leitor, o problema é complexo, o qual exigirá uma Contabilidade bem organizada e pessoal devidamente capacitado para executar proficientemente as atividades mencionadas e que forem requeridas àquele setor. Cumpre informar que a conta Dívida Ativa – Cobrança Judicial passa a existir, para o registro da inscrição formal dos devedores da Fazenda Pública para a cobrança judicial, no subagrupamento Realizável, já que se trata de elemento financeiro. III Art. 73-A O dispositivo acima dispõe que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas e ao órgão competente do Ministério Público e descumprimento das prescrições estabelecidas nesta Lei Complementar. Em realidade, a determinação já se encontra formalizada na Constituição da República e na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, o que nos leva a admitir ser desnecessário qualquer comentário a respeito. IV Art. 73-B O dispositivo trata de estabelecer os prazos necessários para que as uni-

dades da federação, a União, os estados, os municípios, o Distrito Federal e as respectivas unidades gestoras descentralizadas, as autarquias e as fundações, que se sujeitam às regras do Direito Público Interno e de Finanças Públicas, se organizem e sejam adequadas às regras estabelecidas, dentre as quais a da receita lançada previamente, como afirmado nos comentários ao art. 48.A. Os prazos estabelecidos serão contados a partir da data da publicação da LC n.º 131/2009, ou seja, de 29 de maio de 2009. Assim: 1. a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios com mais de 100.000 habitantes têm um ano; 2. os municípios com população entre 50.000 e 100.000 habitantes têm dois anos; 3. os municípios com população até 50.000 habitantes terão quatro anos. V Art. 73-C O dispositivo trata de estabelecer a sanção que se encontra no inciso I do parágrafo 3º, do art. 23, quando o descumprimento das determinações contidas na lei, mais precisamente nos incisos II e III do parágrafo único do art. 48 e dos incisos do I e II do art. 48-A, qual seja a de não receber transferências voluntárias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS REIS, Heraldo da Costa. Razões e Condições para a adoção do regime de competência na Contabilidade Governamental. Revista de Administração MunicipalMunicípios, Rio de Janeiro: IBAM, Ano 54 – n.º 270, abril/junho 2009, p. 41-42. ———.O superavit financeiro nas finanças governamentais. Revista de Administração Municipal-Municípios. Rio de Janeiro: IBAM, v.54, n.º 268, p. 40-55, out./ dez. 2008. ———. Efeitos das operações previstas no art. 44 da LRF nas finanças do município. Revista de Administração Municipal- Municípios. Rio de Janeiro: IBAM, v.53, n.º 266, p.48, abr./jun. 2008. MACHADO JR., J. Teixeira & REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4320 Comentada. 32ª ed. Rio de Janeiro: IBAM. 2008. REIS, Heraldo da Costa. Regime de caixa ou de competência: eis a questão. Revista de Administração Municipal-Municípios. Rio de Janeiro: IBAM. n.º 260, p. 31-48, out/dez 2006. ———, Contabilidade e Gestão Governamental: estudos especiais. Rio de Janeiro: IBAM, 2004.

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MODERNIZAÇÃO NAS CIDADES

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O mapa da modernização nas cidades brasileiras: geotecnologias na gestão do espaço urbano1 Fernanda Lodi Trevisan Aluna do curso de Mestrado em Geografia, no Instituto de Geociência (IGE), na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, SP

Lindon Fonseca Matias

RESUMO

Professor do Instituto de Geociências (IGE) da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, SP

Este trabalho tem por objetivo abordar a tendência de implementação de geotecnologias nas administrações municipais e apresentar sua viabilização dentro dos programas nacionais para a modernização da gestão administrativa e tributária, o PMAT e o PNAFM. Para a gestão do espaço urbano, as geotecnologias podem trazer grandes benefícios, pois permitem aos gestores uma visão espacializada dos dados sobre o território, além de possibilitar a realização de análises espaciais e simulações sobre uma série de temas que compõem o quadro do desenvolvimento urbano. Foi elaborado um cartograma com a espacialização dos recursos recebidos do PMAT e do PNAFM em território nacional. A visualização dessa distribuição permite que sejam levantadas questões sobre as diferenças entre os municípios e as regiões e auxilia o direcionamento de políticas públicas de redução dessas diferenças. Palavras-chave: Geotecnologias. Administração municipal. Modernização. Políticas públicas.

INTRODUÇÃO A ausência de informações e conhecimento sobre a realidade municipal é uma das características de um grande núme-

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ro de municípios brasileiros. Frequentemente administradores municipais desconhecem porções do território ou não possuem os dados ou as representações espaciais da configu-

ração urbana, resultando, muitas vezes, em políticas públicas pouco efetivas. Devido a esses problemas, a informação espacial ou geográfica, em seu sentido mais amplo, atualmente, é

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o foco das novas práticas gerenciais urbanas. Para se promover o planejamento e a gestão urbana, é indispensável que os gestores tenham informações espaciais e descritivas acerca do espaço geográfico no qual se quer intervir, e o Poder Público necessita tomar decisões que estejam baseadas em critérios transparentes e em informações confiáveis. Neste sentido, pode-se dizer que as tecnologias da informação e da comunicação têm

logias por facilitarem a captura, a manipulação e a manutenção de informações georreferenciadas. A crescente divulgação de casos de implantação do geoprocessamento em Administrações Públicas em revistas e artigos científicos especializados nos dá indícios sobre a tendência de uso do geoprocessamento como um instrumento de modernização das atividades de planejamento e gestão urbana. É importante ressaltar que o geoprocessamento não é propri-

A falta de profissionais qualificados também é um fator de grande risco para a inviabilização de um projeto

revolucionado o conhecimento sobre a realidade territorial, assim como tem propiciado mais qualidade na capacidade de planejar o futuro desejável para nossas cidades. As geotecnologias são instrumentos que foram desenvolvidos e aperfeiçoados para auxiliar a nossa capacidade de conhecer o espaço geográfico e produzir representações computacionais do mesmo. As atividades de compreensão, análise e representação do espaço são beneficiadas pelas geotecno-

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amente um instrumento de planejamento, mas sim o suporte tecnológico modernizador do trabalho de planejamento e gestão, já é considerado uma parte integrante do processo de decisão sobre o espaço municipal, pois influencia o contexto em que esta é tomada. Um fator limitante na incorporação do geoprocessamento, comum na grande maioria das Prefeituras brasileiras, é a falta de recursos disponíveis para serem aplicados nesse instrumental. Deste modo, muitas Prefeituras recor-

rem ao financiamento pelos Programas de Modernização Administrativa disponíveis para esse fim, a saber, o PMAT e o PNAFM. Este artigo objetiva ressaltar a importância do geoprocessamento como um instrumento de modernização da Administração Pública e apresentar um cartograma com a espacialização dos recursos recebidos do PMAT e do PNAFM em território nacional. A visualização dessa distribuição permite que sejam levantadas questões sobre as diferenças entre os municípios e as regiões e auxilia o direcionamento de políticas públicas de redução dessas diferenças. IMPLICAÇÕES DO GEOPROCESSAMENTO EM PREFEITURAS As geotecnologias são a cartografia digital, o sensoriamento remoto, a fotogrametria, o sistema de posicionamento global por satélites – GPS e os sistemas de informações geográficas (SIG), podem também ser citadas como ciências acessórias das geotecnologias a topografia, a geoestatística. Já o geoprocessamento pode ser definido como o conjunto de técnicas relacionadas ao tratamento da informação espacial, com capacidade de exercer a coleta, o armazenamento, o tratamento e a análise e o uso integrado da informação e seus conhecimentos. É composto por hardware, base de dados, programas para operações em base de dados e recursos humanos. Para se pensar na implantação do geoprocessamento para a administração de áreas urbanas, deve-se considerar a densidade deste espaço: densidade de pesso-

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as, de sistemas de suporte, como transporte público, infraestrutura e os serviços que as pessoas precisam e esperam. Existe uma multiplicidade dos dados, espaciais e não espaciais, que descrevem uma área urbana e seu meio natural e construído, que devem ser espacializados em escalas grandes e com boa precisão, além de serem constantemente atualizados em função das rápidas mudanças que se operam sobre o espaço urbano. Nesse sentido, a implantação do geoprocessamento deve ser encarada como um meio para alcançar um fim, “e o fim é o armazenamento, tratamento e a disponibilização de toda informação geográfica ou georreferenciável de um município com vistas ao apoio a tomada de decisão” (SEVERINO, 2007 p. 5). A implementação do geoprocessamento, em especial do SIG, permite centralizar toda a informação em bases de dados de modo que se evitem as redundâncias ou as divergências no armazenamento dos dados, garantem melhorias na eficiência da atualização, se aplicado com ações de fiscalização em campo. Não existe um modelo ótimo para a implantação do geoprocessamento, pois cada Município tem seu contexto político, prazos, recursos disponíveis e objetivos (DAVIS, 1997), mas, para que o projeto funcione, é necessário que ele seja desenvolvido em função dos usos que terá na instituição (FERRARI, 1997) e também que ele conte com uma base cartográfica precisa e atualizada e com uma base de dados adequada (FRANÇOSO, 1997). Um dos pontos cruciais identificados por pesquisadores do tema é a

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MODERNIZAÇÃO NAS CIDADES necessidade de identificação do fluxo de informação dentro da instituição para construir uma base de dados para a implantação do SIG (FRANÇOSO 1997, FERRARI 1997 e DOMINGUES 2005). O benefício de maior destaque para a administração municipal decorrente do emprego de geotecnologias é, sem dúvida, o aumento da arrecadação do IPTU em função da elaboração do Cadastro Imobiliário georreferenciado e preciso. Em geral, as administrações municipais obtêm o retorno financeiro investido no geoprocessamento já nos primeiros anos de arrecadação do IPTU. Em segundo plano, aparecem o auxílio para a produção do Plano Diretor Municipal e a projetos para a obtenção de recursos em programas estaduais ou federais. O geoprocessamento pode ser utilizado em diversas funções e em diversas Secretarias da Prefeitura com uma infinidade de aplicações em nível operacional, gerencial e estratégico, sempre que a localização geográfica seja a questão-chave para a solução de problemas. Tendo em vista que 85% de todas as bases de dados de uma Prefeitura têm ligação com a informação espacial dos atributos (endereços, localidades, códigos postais etc.), percebe-se que o geoprocessamento é sim muito mais que uma ferramenta de arrecadação, é um instrumento que permite a melhora da capacidade gerencial e da qualidade dos serviços prestados aos cidadãos (DOMINGUES e FRANÇOSO, 2006). O nível operacional compreende as atividades rotineiras, geralmente de grande volume e trabalhosa. Neste sentido, o geopro-

cessamento pode aumentar a eficiência operacional, garantindo mais qualidade para as atividades, e a redução de custos e do tempo de trabalho. Pode ser empregado em liberação de alvarás de construção, geração de plantas de valores, distribuição de alunos nas escolas municipais, controle operacional do transporte coletivo municipal, entre outros. O nível gerencial envolve as decisões referentes à alocação de recursos: boas informações espaciais garantem planos, gerenciamento e decisões coerentes. São exemplos o acompanhamento de endemias, a preservação do patrimônio histórico, a análise de padrões de distribuição de crimes, a determinação da área de atuação dos postos de saúde, escolas, lojas de atendimento, a administração de áreas de riscos diversas: risco geológico, de inundação, de saúde/sanitário, social. No nível estratégico, o geoprocessamento pode ser utilizado em projetos sociais para melhorar os serviços à população, no suporte a ações de marketing político, no compartilhamento de bases de dados e de custos operacionais com outras instituições, gerenciamento da arrecadação de impostos, na facilitação da comunicação com leigos, ou seja, o geoprocessamento no nível estratégico objetiva aumentar a satisfação dos cidadãos quanto aos serviços prestados pela administração e aumentar a margem da arrecadação e melhorar a imagem da administração ante os cidadãos e os parceiros (FERRARI, 1997). É consenso que as equipes que trabalhem com o geoprocessamento sejam multidisciplinares formadas por analistas de sistemas, geógrafos, engenheiros civis,

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arquitetos, engenheiros cartógrafos, assim como outros profissionais cuja especialidade seja necessária na Administração Pública. Fatores como a demora por resultados efetivos podem inviabi-

a elaboração de um projeto inicial para a obtenção de recursos do PMAT e do PNAFM, passando pela terceirização dos produtos adquiridos “em pacotes” que incluem SIG, ortofotos ou imagens

O geoprocessamento pode ser empregado na distribuição de alunos nas escolas municipais

lizar a continuidade de um projeto de geoprocessamento. Outros são a falta de recursos, que pode ser causada por gastos maiores que os previstos; a falta de apoio dos dirigentes por motivos diversos, como a inexistência de resultados que os beneficiem diretamente; ou a troca do quadro pessoal da gestão administrativa. O conflito entre setores e o temor de perda da posse da informação e, consequentemente, do poder também são bastante relevantes. A falta de profissionais qualificados também é um fator de grande risco para a inviabilização de um projeto. Quando a Prefeitura não conta com um quadro de profissionais qualificados e optam pela implantação do geoprocessamento, ela busca a terceirização de todo o processo, desde

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restituídas, cadastramento imobiliário, redes de referência cadastral. Por fim, nestes casos, é necessária a terceirização da fiscalização sobre esses serviços, pois os técnicos da Prefeitura não dão conta de avaliar a qualidade dos produtos, encarecendo substancialmente a implementação do geoprocessamento. Quase sempre, os pacotes informacionais adquiridos pelas Prefeituras acabam por ser subutilizados nas Prefeituras por falta de conhecimento sobre todas as suas potencialidades e benefícios à administração ou por oposição a mudanças que, como é sabido, tem um grau de relevância grande. Mas a terceirização pode conter alguns pontos positivos, como a rapidez e a obtenção de resultados esperados, uma vez que

as atividades prestadas estão em contratos. Uma forma de amortizar os custos do geoprocessamento é o estabelecimento de compartilhamento e parcerias com autarquias e concessionárias prestadoras de serviços que utilizam as mesmas informações geográficas. Podem ser pensadas também a possibilidade de venda dos dados como uma forma de recuperação dos custos de implantação e a terceirização de partes dos projetos de geoprocessamento em troca de prestação de serviços pela empresa à Pefeitura. Uma das vantagens de possuir dados atualizados e confiáveis é a possibilidade de cobrança dos mesmos. Convênios com as Universidades e Institutos de Pesquisa também devem ser considerados. No próximo item, serão apresentados os dois programas provedores de recursos para modernização das atividades administrativas para os municípios são: o Programa Nacional de Apoio a Gestão Administrativa e Fiscal dos Municípios Brasileiros (PNAFM) e o Programa de Modernização da Administração Tributária e Gestão dos Setores Sociais Básicos (PMAT). OS PROGRAMAS PARA MODERNIZAÇÃO DA GESTÃO URBANA: PMAT E PNAFM Ambos surgiram como uma resposta à necessidade de melhorar a administração tributária e financeira dos municípios, principalmente após as imposições da Lei de Responsabilidade Fiscal. São programas que podem ser complementares, e é válido ressaltar que não se tratam de financiamentos direcionados somente à implantação do geoprocessamen-

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to nas Prefeituras. Os recursos destes programas também podem ser destinados a este fim, pois atualmente o geoprocessamento é importante para subsidiar o planejamento de políticas públicas a partir do fornecimento das informações georreferenciadas. O PNAFM é executado pela Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda, por meio da Unidade de Coordenação de Programas (UCP), que gerencia a implementação com apoio da Caixa Econômica Federal, seu agente financeiro e coexecutor do programa. Trata-se de uma linha de crédito para apoiar iniciativas de modernização administrativa e fiscal e fortalecimento institucional dos municípios brasileiros. Tem como princípios a eficiência administrativa e a transparência, ou seja, instaurar novas práticas de gestão para viabilizar uma maior autonomia financeira e promover o maior controle social sobre as ações da Prefeitura por meio da divulgação de dados e participação popular. Os recursos disponíveis para essa tarefa são: empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), contratado em 2001, representando 50% do montante, US$1,1 bilhão, os outros 48% provêm das Prefeituras contratadas e 2% da União. Estima-se que estes valores tornarão possível a modernização administrativa em 3.854 municípios. O Programa permite dois tipos de financiamentos, variando com a quantidade populacional. Os municípios com até 50.000 habitantes se enquadram nos Projetos Simplificados, com valores que variam de R$ 200 mil a R$ 379 mil; já os municípios com mais de 50.000 habitantes participam dos Projetos Ampliados, com empréstimos de R$ 1,9 milhão a R$ 53 milhões. As Prefeituras têm um

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MODERNIZAÇÃO NAS CIDADES

As informações precisas e confiáveis sobre a configuração municipal são os primeiros passos de uma política efetiva de planejamento e gestão

período de carência de quatro anos e um prazo de amortização de até doze anos. A Região Nordeste foi a que mais recebeu recursos do programa, totalizando R$ 280 milhões em 16 Prefeituras, sendo seis capitais de Estado. Atualmente, 86 municípios brasileiros assinaram contratos (UCP, 2007). Para participação no projeto, é necessária a criação de uma Unidade de Execução Municipal (UEM) para apoiar a Prefeitura na elaboração dos projetos, na coordenação e na supervisão da execução dos projetos e na administração da aplicação dos recursos financeiros. Nos municípios, os recursos são destinados a programas de capacitação e consultorias; aquisição de equipamentos de informática e de comunicação; investimentos na infraestrutura (construção, reforma e adequação dos ambientes), ajustes no quadro profissional; e a integração de sistemas tributários com aplicativos e ferramentas de controle espacial, com o geoprocessamento e o georreferenciamento de bases de

dados e do cadastro municipal. De acordo com o Relatório de Acompanhamento do PNAFM, os investimentos estão alocados fundamentalmente em três categorias: Consultoria (34%), com destaque para ações de geoprocessamento e georreferenciamento; seguido da categoria Informática (26,6%) com destaque para os sistemas integrados; e Infraestrutura (23,1%), adequação e reformas dos centros administrativos (UCP, 2007). O PMAT tem como órgão executor o Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e foi implantado em 1997. Objetiva o aumento da receita própria municipal, o maior controle dos gastos e a racionalização do uso dos recursos públicos, a qualidade no atendimento ao cidadão e a transparência da ação governamental (BNDES, 2008). Em 2000, o Banco do Brasil tornou-se mandatário do programa, facilitando o contrato com Prefeituras de cidades pequenas, uma vez que, para operações diretas com o BNDES, o valor

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mínimo da operação é de R$ 6 milhões. Atualmente, também, são mandatários do BNDES a Caixa Econômica Federal, a Agência de Fomento Caixa RS e o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerias – BDMG. O PMAT contempla investimentos em (BNDES, 2008): • tecnologia de informação e equipamentos de informática: aquisição de hardware, redes de computação e de comunicação, inclusive aquisição e desenvolvimento de software e sistemas de informação; • capacitação de recursos humanos: contratação de cursos, seminários, programas de treinamento e reciclagem funcional e realização de visitas técnicas; • serviços técnicos especializados: contratação de serviços para apoiar/desenvolver atividades do projeto, inclusive sistemas de organização e gerência, base cadastral e de tecnologia de informação; • equipamentos de apoio à fiscalização: aquisição de veículos operacionais, equipamentos de comunicação e outros bens móveis operacionais; • infraestrutura física: adequação de ambientes, programas operacionais e atendimento ao cidadão. O limite de empréstimo está fixado em R$ 30 milhões, ou R$ 18 reais por habitante, ou 7% da receita líquida municipal. Apesar de ter um leque de possibilidades de investimentos maior que o PNAFM, em áreas como a administração da saúde e da educação, 77% dos investimentos são dirigidos para a área de modernização tributária (GUARNERI, 2002). Estão previstas visitas técnicas aos municípios para fins de acompanha-

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mento e para a avaliação dos projetos realizados e para o intercâmbio e a difusão das iniciativas de sucesso. Os municípios deverão apresentar um Projeto de Modernização da Administração Tributária e da Gestão dos Setores Sociais Básicos, a fim de identificar, analisar e acompanhar o conjunto de ações e metas, pelas quais pretenda alcançar um maior nível de eficiência fiscal em sua arrecadação e a melhoria da qualidade do gasto municipal. E também, o Município deverá constituir um Grupo Especial de Trabalho de Modernização da Gestão Pública, para coordenar a elaboração e a implantação do projeto, composto por profissionais das diferentes áreas técnicas (BNDES, 2008). Em ambos os Programas, as garantias de pagamentos estão atreladas aos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e do ICMS, e os municípios devem elaborar relatórios do progresso físico e financeiro dos recursos aplicados. Os dados dos Programas refletem a importância que o geoprocessamento vem adquirindo para a prática da atividade administrativa municipal. Ele desponta como uma das mais importantes categorias de investimento das Prefeituras entre aquelas que buscam a modernização administrativa. O MAPA DA MODERNIZAÇÃO Para conhecimento deste tema, foi elaborado um mapa, localizando os municípios brasileiros que receberam recursos dos programas descritos. É importante ressaltar que os resultados são um indicativo de modernização da administração, e não necessariamente do emprego do geoprocessamento. Entretanto,

como o geoprocessamento aparece no Relatório de Acompanhamento do PNAFM (UPG, 2007) e no trabalho “Modernização da Gestão Pública do BNDES” (GUARNERI, 2002) como um dos principais alvos de investimentos das Prefeituras, é válido que o mapa aponte para a possibilidade de uso e aquisição de geotecnologias. Com referência aos dados divulgados até o dia 16/12/2008, destacam-se as Regiões Sul e Sudeste, nas quais o Estado de São Paulo possui 110 municípios com contratos com o PMAT, seguido de Santa Catarina com 53 municípios e Paraná com 44. Na Região Nordeste, o Estado com mais financiamentos do PMAT é o Ceará com 26, e na Centro-Oeste, Mato Grosso com 22 municípios. Já em relação ao PNAFM, com base nos Contratos Assinados divulgados pela CEF, pode-se perceber que não há uma concentração marcante, o Estado de São Paulo foi o maior beneficiário com 13 municípios contratados, seguido do Rio Grande do Sul com 8 municípios e Paraíba com 7. Os municípios que tiveram os financiamentos do PMAT e do PNAFM são: Araucária (PR), Belo Horizonte (MG), Blumenau (SC), Campo Grande (MS), Canoas (RS), Diadema (SP), Fortaleza (CE), Foz do Iguaçu (PR), Gaspar (SC), Goianésia (GO), Ipatinga (MG), Jacareí (SP), João Pessoa (PB), Juiz de Fora (MG), Manaus (AM), Mogi Morim (SP), Nova Iguaçu (RJ), Nova Lima (MG), Palmas (TO), Ribeirão Corrente (SP), São Gabriel (RS), São Bernardo do Campo (SP), São Luís (MA). Da análise do cartograma, pode-se facilmente perceber a maior concentração de repasse de recursos para os municípios das Regiões Sul e Sudeste, possivelmente indicando uma melhor infraes-

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trutura e quadro profissional interessado na modernização da gestão urbana. Diante dos menores números de contratos assinados em outras regiões, é possível que se proponha uma maior divulgação dos programas e dos resultados alcançados por alguns municípios com a implementação do ge-

MODERNIZAÇÃO NAS CIDADES reconhecerem a importância das geotecnologias, porém, apesar disso, ainda não as utilizam por falta de conhecimento especializado ou mesmo de recursos. No Brasil, há uma falta de cultura do Poder Executivo municipal de investimento na cartografia e no cadastro urbano, em virtude do des-

Mapa 1 – Distribuição do PMAT e do PNAFM

oprocessamento nessas regiões, ou mesmo que se dirijam cursos de atualização profissional. CONSIDERAÇÕES FINAIS As informações precisas e confiáveis sobre a configuração municipal são os primeiros passos de uma política efetiva de planejamento e gestão. Muitas Prefeituras

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conhecimento do seu retorno econômico e social. Na escala regional ou municipal, o mapeamento sistemático brasileiro tem qualidade discutível, fato que compromete todos os tipos de projetos de engenharia e traz inconsistências para solução da questão fundiária (LOCH, 2005). É indiscutível a importância de manter a cartografia urbana e os cadastros imobiliários sempre atualizados para a equi-

dade tributária e o direcionamento de políticas públicas e obras de infraestrutura. É verdade que os municípios brasileiros têm alta dependência das transferências de recursos, assumindo uma posição pacífica, aguardando uma política nacional para solução dos problemas locais. Cerca de 67% da receita municipal é constituída de transferências, em 18% pela arrecadação de tributos locais e em 15% de outros itens (DECESARE, 2005). Neste caso, o geoprocessamento pode ser um instrumento que viabilize o aumento de recursos de arrecadação local, sem o aumento do imposto, mas sim pela identificação de áreas construídas que não constam nos cadastros das Prefeituras. Portanto, para que haja o financiamento das cidades, é necessário que se tenha uma base sólida, uma delas é o cadastro imobiliário, fundamental para a equidade fiscal (DECESARE, 2005). Apesar do forte apelo para modernização fiscal dos municípios, os programas da política nacional de modernização oferecem uma ótima oportunidade de implementação do geoprocessamento para a administração municipal como um todo. Para isso, é importante que se estabeleça uma política municipal de modernização, que não esteja somente atrelada à questão de aumento da receita. O aumento da arrecadação, sem dúvida, é fundamental para melhoria da capacidade de gestão e planejamento municipal, entretanto outras unidades ou secretaria podem ser amplamente beneficiadas com as informações sobre o Município que as geotecnologias fornecem. Ressalta-se, também, a importância de contar com um quadro técnico especializado e interessado no desenvolvimento e na implantação do geoprocessamento.

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NOTA 1 Pesquisa realizada com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL (BNDES). Modernização da administração tributária e gestão dos setores sociais básicos – PMAT. Disponível em <http://www.bnds.gov.br>. Acesso em 30/03/2008. DAVIS, C; YUAÇA, F.; SIKORSKI, S. SIG em Prefeituras. In: FERRARI, R. Viagem ao SIG: planejamento estratégico, viabilização, implantação e gerenciamento de sistemas de informação geográfica. Curitiba: Sagres, 1997. DE CESARE, C. O Cadastro como instrumento de política fiscal. In: ERBA, D. A. [et alii]. Cadastro Multifinalitário como instrumento de Política Urbana. Rio de Janeiro, 2005, 144 p. DOMINGUES, C. V. Aplicação de Geoprocessamento no processo de modernização da gestão municipal. Tese (Dissertação de Mestrado) – Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. DOMINGUES, C. V.; FRANÇOSO, M. T. (2006). Geoprocessamento: muito mais que ferramenta de arrecadação. Revista InfoGeo. Curitiba, 9(41), mar/abr de 2006 . FERRARI, R. Viagem ao SIG: planejamento estratégico, viabilização, implantação e gerenciamento de sistemas de informação geográfica. Curitiba: Sagres, 1997. FRANÇOSO, M. T. Diretrizes para planejamento assistido por computador em prefeituras de médio porte. Tese de Doutorado – Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997. GUARNERI, L. da S. (coord.). Modernização da gestão pública: uma avaliação de experiências Inovadoras. Rio de Janeiro: BNDES, 2002. LOCH, C. Cadastro Técnico Multifinalitário: instrumento de política fiscal e urbana. In: ERBA, D. A. [et alii]. Cadastro Multifinalitário como instrumento de Política Urbana. Rio de Janeiro, 2005, 144 p. MELGAÇO, L de M. Constatar não é compreender: limitações do geoprocessamento enquanto analítico da representação da realidade. In: Anais XIII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Florianópolis, Brasil, abril de 2007. SEVERINO, E. M. de O. P. Sistemas de Informações Geográficas nas Autarquias Locais: Modelo de Implementação. Dissertação de Mestrado – Instituto Superior de Estatísitca e Gestão de Informação, Universidade Nova de Lisboa, Portugal, 2007. UNIDADE DE COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS (UCP). (2007) Relatório de Acompanhamento. Jul/Dez de 2007.

ABSTRACT

The map of modernization in Brazilian cities: geotecnology in management of urban space This work aims to discuss the geotechnologies trends of implementation in county administration and present their development within the national program for the management modernization context, PMAT and PNAFM. In the management of the urban space, these technologies can bring great benefits because enable managers a spatial vision of the data over the territory, and allow the realization of spatial analysis and simulations on a range of issues that make up the framework of urban development. The drafting of a map of the Modernization had the intention of spatializing the transfers resources from programs in the national territory, the view that distribution allows raised questions about the regional differences between municipalities, and helps in the direction of public policies to reduce these differences.

RESUMEN

Keywords: Geotechnologies. County administration. Modernization. Public policies. Mapa de la modernización en las ciudades brasileñas: geotecnología en la gestión de espacio urbano Este estudio aborda la implementación de geotecnologías en la administración municipal y presenta su desarrollo dentro de los programas nacionales para la modernización de la gestión administrativa y fiscal, el PMAT y el PNAFM. Para la gestión del espacio urbano, estas tecnologías pueden ser de gran utilidad porque permiten a los administradores una visión espacial de los datos sobre el territorio, además permiten un análisis espaciales y simulaciones en una serie de temas que componen el marco de desarrollo urbano. Fue producido un cartograma con la espacialización de los fondos recibidos del PMAT y del PNAFM, en territorio nacional, una prevista de esta distribución pone de relieve las diferencias entre municipios y regiones, y ayuda a orientar las políticas públicas que busquen reducir estas diferencias. Palabras clave: Geotecnologias. Administración municipal. Modernización. Políticas públicas.

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ANÁLISE CADASTRAL

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Importância da análise da consistência cadastral aplicada ao cadastro fiscal (tributário) Marcos Aurélio Pelegrina

RESUMO

Doutorando em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Engenharia Civil pela UFSC.

Este trabalho evidencia a importância da prévia identificação das inconsistências cadastrais como instrumento de gestão dos tributos municipais. Outrossim, intenta demonstrar que qualquer projeto de levantamento cadastral ou de recadastramentos deve prever rotinas que propiciem a minimização de inconsistências e, por conseguinte, de iniquidades fiscais. Palavras-chave: Cadastro fiscal. Tributos municipais. Sistemas cadastrais. Erros cadastrais.

INTRODUÇÃO Os municípios brasileiros têm, por decisão constitucional, a responsabilidade de gerenciar a tributação incidente sobre os imóveis urbanos. No entanto, não há nenhuma norma ou legislação que estabeleça os critérios técnicos padronizados para a organização do cadastral urbano. Este vazio normativo provoca, na

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prática, uma situação de confusão de conceitos cadastrais, além de sistemas cadastrais ineficientes, incapazes de apresentar dados reais de seus respectivos territórios. Diagnósticos realizados em cadastros de várias Prefeituras de municípios brasileiros apontam falhas no sistema de gestão cadastral, nos quais podem ser encontradas diferentes inconsistências

cadastrais, tais como: dados incorretos, incompletos ou desatualizados. O lançamento e a cobrança do IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano) pressupõem o conhecimento de informações relativas ao imóvel (fato gerador do tributo) e ao contribuinte (sujeito passivo). Elementos essenciais para a notificação do lançamento do imposto, bem como para uma

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eventual execução fiscal, incluem o correto endereçamento do imóvel e os atributos relacionados ao contribuinte (proprietário, titular do domínio útil ou possuidor a qualquer título), tais como: nome, CPF e endereço para correspondência. De outra parte, objetivando a determinação da base de cálculo do tributo, qual seja, a avaliação dos imóveis, um cadastro imobiliário adequado deve fornecer, além de atributos relativos às características do terreno (como área ou fração ideal do terreno, topografia, pedologia e situação) e das edificações existentes sobre o mesmo (área, ano de construção e estado de conservação de cada tipologia construtiva), os atributos relacionados com a localização do imóvel, tais como: a disponibilidade de equipamentos e serviços de infraestrutura e demais elementos que influenciem na valorização imobiliária dos imóveis (DE CESARE, 2007). SISTEMAS CADASTRAIS Sistema cadastral para fins fiscais compreende o conjunto de informações descritivas sobre a proriedade imobliária (informações cadastrais), que fazem parte do sistema responsável pela tributação do Município. Os sistemas cadastrais não devem utilizar-se apenas das informações por meio de relatórios e de consultas alfanuméricas, mas sim traduzi-las para sistemas inteligentes, que gerem a mesma informação de forma espacial, facilitando, desta forma, tanto a compreensão dos dados pelos diferentes usuários desta informação como trazendo novos méto-

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dos para conferência da consistência cadastral (PELEGRINA,2005). Os sistemas de informações geográficas clássicos possuíam uma separação física entre dados geográficos e atributos, gerando arquitetura denominada “dual”. O conceito moderno de SIG baseia-se no Banco de Dados Geográfico (BD GEO). Este, por sua vez, é composto, na maioria dos casos, por um Sistema Gerenciador de Banco de Dados (SGBD), que contém recursos adicionais para o tratamento de dados geográficos. Com a evolução dos recursos tecnológicos, foram disponibilizados diversos SGBD que contém uma extensão espacial para tratamento de dados geográficos de maneira integrada e com alto desempenho. Os sistemas de informação geográfica (SIG) via WEB dispõem, ainda, de ferramentas básicas de controle, análise e gerenciamento dos dados por meio de um gerenciador de dados relacional.(UCHOA,2006). Este ferramental tecnológico permite que os sistemas de gestão cadastrais modernos sejam capazes de reunir todas as informações dos imóveis. Em uma única base de dados, podem ser integrados o banco de dados geográfico e o banco de dados alfanumérico, referente aos dados literais dos imóveis. Ativando-se um sistema de consistência cadastral com estes recursos, podem-se detectar os erros da base cartográfica cadastral e, ao mesmo tempo, detectar os erros no preenchimento das informações cadastrais. Neste sentido, Oliveira (2007) recomenda que o sistema de gestão cadastral deva ser preestabelecido

por ocasião do projeto de levantamento cadastral, contendo alguns procedimentos básicos, a saber: • parcelas devidamente espacializadas, contendo todos os níveis de informações levantadas em campo; • preestabelecimento de condições de inconsistências, por ocasião da coleta de dados em campo; • crítica permanente no cruzamento de dados existentes no banco de dados e os novos dados obtidos em levantamentos, com resultados apresentados em relatórios de inconsistências ou irregularidades; • produção de mapas temáticos diversos com base na espacialização das parcelas. Erba (2007) reforça este conceito de gestão cadastral, quando afirma que a qualidade da informação deve ser avaliada por diferentes formas, entre as quais destacam-se as seguintes: • Precisão Posicional: esta variável define a qualidade geométrica dos elementos gráficos constantes na cartografia; • Precisão Temática: esta variável quantifica a qualidade dos inúmeros atributos alfanuméricos associados a cada parcela. Os dados analisados devem relacionar a cartografia e a base de dados e vice-versa. A precisão temática está diretamente associada ao uso de rotinas computacionais para o controle e a identificação de inconsistências; • Confiabilidade: estima-se a confiabilidade por meio da razão entre o número de dados incorretos e o total de dados analisados.

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INCONSISTÊNCIAS CADASTRAIS Inconsistência cadastral pode ser definida como incorreto preenchimento das informações cadastrais, provenientes do Boletim de Informações Cadastrais (bci), geralmente devido aos dados incorretos, incompletos ou desatualizados. Por meio do tratamento das inconsistências cadastrais, detectadas por ocasião de diagnósticos ou mesmo pela utilização eventual de informações cadastrais, podem-se visualizar os diferentes níveis de erros cadastrais, demonstrando a necessidade de uma norma cadastral que permita minimizar tais distorções. Na figura 1, estão

cípio. A diferença entre a cidade real e a cidade legal (círculo laranja) são os imóveis existentes na cidade que não foram cadastrados, ou seja, não têm nenhum tipo de registro no sistema cadastral da Secretaria responsável pelo cadastro. O círculo seguinte abrange todos os imóveis cadastrados, e a área grifada corresponde aos imóveis cadastrados como terrenos baldios, que têm edificação sobre si, além dos imóveis sem informação sobre o contribuinte ou mesmo de terrenos sem endereço de correspondência. O próximo círculo representa as informações sobre as edificações, cujas medidas não correspondem

Figura 1

Principais inconsistências encontradas nos sistemas de gestão cadastral de municípios brasileiros (organizado pelos autores)

representadas as inconsistências cadastrais mais encontradas nos sistemas de gestão cadastrais brasileiros para fins de tributação imobiliária urbana, também denominados “furos cadastrais“. O primeiro círculo, o maior deles, representa a cidade real, ou seja, todos os imóveis do Muni-

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à realidade existente, decorrentes da ampliações não legalizada (área menor) ou até mesmo de apenas alterações (área maior). O último círculo, o menor deles representa as informações cuja tipologia construtiva está em desacordo com a realidade, impossibilitando a obtenção de uma ava-

liação correta do valor venal do imóvel. Do universo dos imóveis existentes em uma cidade, poucos deles têm uma representação cadastral correta (informações quantitativas e qualitativas), que propicie o cálculo do valor venal de acordo com a realidade de mercado. COMO OBTER UM CADASTRO EFICAZ? Um cadastro eficaz e consistente começa pela concepção correta do BIC (Boletim de Informações Cadastrais). O estudo e a eleição de cada um do campos, onde serão armazenadas as informações cadastrais, constituem-se de importantes procedimentos prévios à organização de qualquer cadastro. Napoleão Bonaparte já ensinava (PHILIPS, 2003): “um bom cadastro é aquele que tem o maior número de informações necessárias e o menor número de informações desnecessárias”. As informações cadastrais constantes no BIC são, geralmente, divididas em três partes, sendo que a primeira reúne as informações relativas ao contribuinte e à localização do imóvel; a segunda descreve as características do terreno; e a terceira descreve as características da edificação. A primeira parte contém os dados referentes ao contribuinte (sujeito passivo), entre as quais destaca-se a necessidade do número do CPF ou CNPJ, informação essencial para a instrução de um eventual processo de execução fiscal. Com relação à localização do imóvel, deve ser salientada a importância do número de inscrição cadastral, baseado em uma lógica que permita a ori-

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entação espacial/geográfica para a identificação da parcela. Outra importante informação diz respeito à titulação do imóvel, indicando a condição do contribuinte: proprietário (detentor de matrícula no Registro de Imóveis) ou possuidor de qualquer título (se detentor de contrato de compra e venda ou posse). Tais informações são fundamentais para a decisão e a execução de processos de regularização fundiária. Na parte intermediária do BIC, são reunidas as caracterísiticas relativas ao terreno, tais como: medidas, testadas, área/fração ideal, situação na quadra (meio ou esquina), topografia e pedologia. Por último, características relativas às edificações, tais como: área construída, tipo/padrão construtivo estado de conservação, idade aparente e usos. Tanto as informações gráficas (dados geográficos) como as informações quantitativas e qualitativas (dados alfanuméricos), que fazem parte do banco de dados de um sistema de gestão cadastral, carecem de uma análise de consistência cadastral. As rotinas a serem implementadas devem identificar todas as eventuais inconsistências e irregularidades existentes no cadastro, a saber: Gráficas: • fechamento de polígonos de todas as feições gráficas projetadas como polígonos; • verificação de relação lógica dos elementos gráficos com o banco de dados alfanumérico; • todos os elementos gráficos do tipo linha devem estar conectados;

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• verificação da situação do imóvel na quadra. Quantitativas: • relação entre as medidas das testadas e o código da face de quadra a que pertence; • relação entre a face de quadra e o código de logradouro; • relação entre a ocupação construída e a área maior que zero; • CPF/CNPJ; • relação entre a ocupação não construída e a área igual a zero; • relação entre as medidas das testadas e o código da face de quadra a que pertence. Qualitativas: • nome do contribuinte; • nome e código de logradouros; • verificação [mesma unidade cadastral/ autônoma com várias edificações (unidades de avaliação)]; • verificação [mesma parcela com várias unidades (comercial, residencial etc.)]; • relação entre o valor da PVG (Planta de Valores Genéricos) por face de quadra e as características das edificações; • relação entre as fotos obtidas em campo e as características do imóvel lançado no cadastro. A análise de consistência de um sistema de gestão cadastral pode ser executada de duas formas distintas. A primeira (menos recomendada) consiste na verificação da massa total de dados, por meio da utilização de rotinas computacionais capazes de identificar todas as inconsistências cadastrais, tanto do banco de dados alfanuméricos como do banco de dados geográfico. Este tipo de avaliação de dados é indicada ao final de um trabalho de levantamento cadastral ou imediatamente antes do lançamento do IPTU de cada ano fiscal.

A outra forma (mais eficaz) de manter um sistema de gestão cadastral consistente é projetar um sistema de verificação em tempo real, corrigindo as inconsistências ou as irregularidades por ocasião do levantamento cadastral no campo “in loco” e em laboratório. As correções em campo podem ser viabilizadas, incluindo a utilização de tecnologia do tipo PDA (personal digital assistent) ou PALM TOP (veja figura 2), por meio da criação de filtros, que impedem o operador de optar por alternativas in-

Figura 2: Uso de PDA em levantamento cadastral

corretas, como, por exemplo, inserir uma edificação em uma parcela, cuja ocupação está selecionada na opção “não construída”. Já em laboratório, por ocasião de uma alteração ou inclusão cadastral, por meio de processo interno do setor de cadastro, fazer a verificação de todos os dados, tanto gráfico como alfanuméricos. Um exemplo deste tipo de operação pode ser visualizado na figura 3. Para cada operação de alteração cadastral, são verificados todos os dados tanto do banco de dados geográfico como dos

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alfanuméricos, da quadra onde houve a alteração. Após a verificação, o gerenciador do sistema libera a quadra para o sistema de gestão cadastral (via Internet), para todos os usuários daquela informação. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES Pelas razões expostas, conclui-se que o projeto de um sistema de gestão cadastral deve conter, necessariamente, uma rotina que permita a verificação e a correção das informações cadastrais.

Figura 3: Correção de inconsistência no momento da inserção de dados cadatrais

Cumpre salientar, ainda, que um sistema de gestão cadastral consistente promove a minimização das inequidades tributárias, além de servir de base mais confiável para todas as demais Secretarias usuárias das informações constantes no cadastro. Recomenda-se, no entanto que, preliminarmente, ao estudo de um projeto de análise de inconsistências, deve ser realizada uma análise amostral dos dados cadastrais para verificação da qualidade/atualidade das informações, pois de nada adianta dados consistentes que não refletem dados reais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE CESARE, C.M. A tributação sobre a propriedade imobiliária e o IPTU: fundamentação, caracterização e desafios. In: CUNHA, P,M,E ; DE CESARE, C. M. Financiamento das Cidades: Instrumentos Fiscais e de Política Urbana – SEMINÁRIOS NACIONAIS – Brasília: Ministério das Cidades, 2007. ERBA, D. A.; ÀQUILA M. (RE) Estructuración y Actualización del Catastro Territorial. In: ERBA, D. A. Cadastro Multifinalitáio: aplicado a la definicion de políticas de suelo urbano/editor y organizador Diegeo Alfonso Erba.Cambridge, MA:Linconln Institute of Land Polycy,2007 448p.:il. MÖLLER, L.F.C. Planta de Valores Genéricos. Porto Alegre: Editora Sagra-Luzzatto, 1995. OLIVEIRA, F.H. Considerações sobre a necessidade municipais em relação à cartografia cadastral urbana. In: CUNHA, P,M,E; DE CESARE, C. M. Financiamento das Cidades: Instrumentos Fiscais e de Política Urbana – SEMINÁRIOS NACIONAIS – Brasília: Ministério das Cidades, 2007. PELEGRINA, M.; MOLLER, L.F.C; LEAL. P; BASTOS, L. Influencia of the Geometric Quality of the Cadastral Survey in the Urban Territorial Taxation in Brazil — Strategic Integration of Surveying Services, FIG Working Week 2007 Hong Kong SAR, China 2007. PELEGRINA, M.; MOLLER, L.F.C; LEAL. P. Cartografía Cadastral: ¿Expediente de Los impuestos o de Las propiedades Inmobiliarias? - 6th FIG Regional Conference San José, Costa Rica 12–15 November 2007. PELEGRINA, M. Uso de Mapas Temáticos na Gestão de Execução de Levantamento Cadastral Técnico Municipal — XXIII Congresso Brasileiro de Cartografia, Rio de Janeiro – RJ, 2007. PELEGRINA, M.; BASTOS, L. Uso de Mapas Temáticos para Avaliação da Conscistencia Cadastral — XXII Congresso Brasileiro de Cartografia, Macaé – RJ, 2005. PHILIPS, Jürgen. O Cadastro de Napoleão. In: VI Encontro Gaúcho de Agrimensura e Cartografia, Anais. Santo Ângelo, 2003.

ABSTRACT

UCHOA, H.; COELHO FILHO, L.C.; FERREIRA, P.R. Software livre na Implantação do CTM integrado a um Banco de Dados Geográfico — COBRAC 2006, UFSC Florianópolis, Anais (CD), 2006.

The importance of analysis of the cadastral consistency This work intends to check the importance of the previous identification of the cadastral inconsistencies as instrument of administration of the municipal tributes. For so much it tries to demonstrate that any cadaster project or of cadastral modernization they should foresee routines that propitiate the decrease of inconsistencies and, consequently, a fiscal justice. Keywords: Registration tax. Municipal tributes. Cadastral systems. Registration errors.

RESUMEN

Importancia del análisis de la coherencia de registro Este trabajo muestra la importancia de la identificación temprana de las incoherencias de registro como una herramienta para la gestión de los impuestos municipales. Por otra parte, trata de demostrar que cualquier proyecto de levantamiento catastral o de nuevo registro debe proporcionar rutinas para minimizar las contradicciones y por lo tanto las desigualdades fiscales. Palabras clave: Impuesto de matriculación. Impuestos municipales. Sistemas catastrales. Errores de registro.

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• PERGUNTE AO IBAM •

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Novas funcionalidades do SICONV • Pergunta Quais são as novas funcionalidades e adequações às funcionalidades existentes no SICONV – Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse? • Resposta A versão atualizada do Portal dos Convênios, disponibilizada em 08/09/2009, apresenta melhorias e novidades. São elas: •

possibilidade de credenciamento/cadastramento de Consórcio Público; cadastramento de proposta abrangendo mais de um Programa ou Objeto, desde de que pertençam ao mesmo Órgão Concedente; associação dos desembolsos financeiros previstos às etapas do Cronograma Físico; possibilidade de o Concedente optar por assinar o Termo de Convênio com Cláusula Suspensiva, para recebimento do Projeto Básico ou Termo de Referência após a assinatura e a publicação do extrato do Termo de Convênio no Diário Oficial

da União, desde que indique esta possibilidade na publicação do extrato do Convênio; abrangência de todas as espécies de pré-empenho, atendendo à legislação vigente; permissão para realizar todas as espécies de empenho, contemplando a lista de itens; atualização de dados automática no SIAFI quando houver alteração de um determinado domicílio bancário, sem a necessidade de reenvio da UGTV; abertura de contas automáticas pelo sistema quando o proponente indicar a Caixa como a instituição financeira federal da conta corrente para os Contratos de Repasse; associação dos itens do Documento de Liquidação à relação de Bens e Serviços constantes no Plano de Trabalho apresentado;

registro de todos os pagamentos realizados pelo Convenente, associando os mesmos a um Documento de Liquidação; envio de seleção/dados orçamentários, pelo Concedente, para a Instituição Mandatária, das propostas do tipo Contrato de Repasse; envio automático, via sistema, do extrato de Convênio e Contrato de Repasse para publicação na Imprensa Nacional; novos perfis de usuários Proponentes/Convenentes com suas atribuições; devolução de despesas, por GRU, relativas às transferências voluntárias registradas no Portal.

As funcionalidades de Prorroga de Ofício e Termo Aditivo sofreram ajustes, mas os procedimentos operacionais permanecem inalterados.

• Pergunta O que o IBAM oferece em capacitação no SICONV? • Resposta O IBAM inicia em outubro deste ano a realização de curso inédito de Gestão e Elaboração

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de Projetos no SICONV, com o objetivo de desenvolver competências para gestão e elaboração de projetos via SICONV, visando à celebração de Convê-

nios com a União e os órgãos da Administração Pública federal. Mais informações pelo endereço arin@ibam.org.br, ou pelo telefone (21) 2536-9712.

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SUS

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As responsabilidades no SUS Affonso de Aragão Peixoto Fortuna

RESUMO

Procurador do Município de Joinville

O artigo discute as atribuições das esferas públicas: União, Estado, e Municípios, no Sistema Único de Saúde (SUS). Amparado pela Constituição Federal, o autor nega a existência de solidariedade entre os órgãos e ratifica o caráter descentralizador e hierarquizado do sistema. São pontos do estudo: a distribuição de medicamentos, atendimentos e cirurgias realizadas pelo SUS. Palavras-chave: Sistema Único de Saúde. Constituição Federal. Competências das esferas públicas. Medicamentos e cirurgias.

AS NORMAS CONSTITUCIONAIS E A ORGANIZAÇÃO DO SUS A Constituição da República é a Lei das Leis. É a Lei

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Maior: aquela à qual todas as demais leis e todas as decisões e os comportamentos, públicos e privados, devem se submeter. Ensina José Afonso da Silva:

“Nossa Constituição é rígida. Em consequência, é a lei fundamental e suprema do Estado Brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere pode-

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res e competências governamentais. (...). O princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não se satisfaz apenas com a atuação positiva de acordo com a Constituição. Exige mais, pois omitir a aplicação das normas constitucionais quando a Constituição assim o determina constitui também conduta inconstitucional (In Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Editora RT, 1990, pp.45-6)”. Já no artigo 6º da Constituição, a preservação da saúde é erigida à categoria de direito social, na forma nela especificada. A seguir, o artigo 23 assevera que constitui competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios cuidar da saúde (inciso II), competindo aos mesmos entes legislar concorrentemente sobre a defesa da saúde (art. 24, inciso XII). O artigo 196 estabelece que o dever de o Estado prestar serviços de saúde deve ser garantido nos termos de políticas sociais e econômicas, o que significa dizer que a “redução do risco de doenças e de outros agravos” e o “acesso universal e igualitário às ações e aos serviços” não possuem uma amplitude sem limites, mas condiciona-se às ditas políticas sociais e econômicas. Essa peculiaridade está reafirmada no art. 197, ao dizer que o dever do Estado relativo às ações e aos serviços de saúde submete-

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se aos termos da lei, quanto à sua regulamentação. Arrematando essas regras e, ao mesmo tempo, suprindo a exigência de lei complementar para fixar as normas de cooperação entre os entes públicos (art. 23, parágrafo único), o art. 198 determina que as ações e os serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, organizada de acordo com a diretriz de descentralização (inciso I). Eis porque o SUS é concebido como um sistema, ou seja, como um conjunto, cujas partes encontram-se coordenadas entre si, funcionando segundo uma estrutura organizada, submetida a princípios e diretrizes fixados legalmente. Sendo um sistema, as partes que o compõem integram uma rede regionalizada e hierarquizada, sob o comando da União, a quem cabe definir as regras gerais sobre a matéria. O sistema é único, já que as regras que o informam emanam da União, que as estabelece nos termos do explicitado no art. 23 e seu inciso II, da Constituição Republicana. Aos estados cabe, segundo o mesmo dispositivo, detalhar as regras aplicáveis no âmbito de suas atividades ou segundo o que a legislação federal lhe atribuir. Aos municípios, no exercício de uma competência que é apenas residual, cabe disciplinar as questões restritas às suas peculiaridades. Com a propriedade que sempre lhe foi peculiar, esclarece Hely Lopes Meirelles, ao tratar da competência do Município em assuntos de interesse local: “... o interesse local se caracteriza pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse

do Município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância. Estabelecida essa premissa, é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria fastidiosa – e inútil, por incompleta – a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam simultaneamente à regulamentação pelas três ordens estatais, dada a sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre as quais dispõem a União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização etc.; regulamentos sanitários municipais). Isso porque, sobre cada faceta do assunto, há um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao Município, a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local (In Direito Municipal Brasileiro, São Paulo:

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Será, entretanto, que ocorre, quanto à prestação de serviços de saúde, solidariedade passiva da União, dos Estados e dos Municípios? A resposta plausível, decorrente da Constituição e da Lei Orgânica da Saúde, é a seguinte: não ocorre a mencionada solidariedade. A que existe é de natureza moral, não jurídica

Malheiros Editores, 1993, pp. 120-121).” Vitor Nunes Leal já tinha enunciado as regras a respeito, esclarecendo que os poderes federais concorrentes prevalecem sobre os poderes estaduais concorrentes e estes sobre os poderes municipais da mesma espécie (cf. Problemas de Direito Público, Rio de Janeiro: Forense, 1960).

A INEXISTÊNCIA DE SOLIDARIEDADE E AS COMPETÊNCIAS REPARTIDAS Com muita propriedade, Sua Excelência o Juiz Federal Roberto Fernandes Júnior, da 2ª Vara

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Federal de Joinville, reconheceu inexistir responsabilidade solidária entre os entes da República, verbis: “Por outro lado, a saúde pública, é matéria de competência concorrente dos entes federativos. Tanto no plano normativo, a teor do que dispõem, em combinação, os artigos 24, XII, e parágrafos, e 30, II, da Constituição Federal de 1988, como no plano das ações administrativas, a teor do que dispõem, mais uma vez em combinação, os artigos 23, II, e 30, VII, igualmente da carta política atual, é imprescindível que se afirme: Competência concorrente, de que cuida o referido artigo 24, ou a comum, de que cuida o igualmente referido artigo 23, não importam em uma obrigação solidária entre os entes federativos, sim-

plesmente, porque a mesma carta política prevê, ou pelo menos, permite a repartição de competências entre os entes federativos, ao estabelecer, em seu artigo 24, parágrafo 1º, que à União caberá a edição de normas gerais sobre as matérias integrantes da competência concorrente, e, em seu artigo 23, parágrafo único, que leis complementares, que por certo, são federais, fixarão normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Ainda nesse contexto, os EstadosMembros e os Municípios, sem prejuízo de suas competências normativas suplementares, ficam mais circunscritos às ações administrativas, no fornecimento da saúde pública (Ação n.º 2002.72.01.002757-1).” Revendo as questões acima tratadas, recordemos o que diz o art. 198 da CF: “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização...” A saúde constitui, de outro lado, competência comum dos entes federados, nos termos do art. 23, II, da Carta Maior. Como se vê, nenhum desses dispositivos fala em solidariedade, ou seja, a solidariedade entre entes públicos, em matéria de saúde, não existe, não está configurada, não se encontra expressa. Nem a Lei Maior nem as leis ordinárias falam em

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solidariedade. Se alguém interpretar que ela está ali presente, estará presumindo, supondo. Mas como diz o Código Civil, a solidariedade não se presume (“Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”). Em consequência, cabe dizer que as obrigações quanto à prestação de serviços de saúde sejam de fato conjuntas, tal como se depreende do art. 23, II, da CF e tal como a define o Direito Português, em que cada devedor só é obrigado a uma parte da prestação, o que não exclui as obrigações dos demais devedores quanto às partes a que se encontram obrigados. De qualquer modo, obrigação conjunta não é obrigação solidária. Na moderna doutrina alemã, conforme aponta Antunes Varela, não basta a comunhão de fins para o estabelecimento da solidariedade. Àquela, há de se acrescer o fato de que os devedores, convencional ou legalmente, estejam obrigados no mesmo grau, de modo que a prestação de um aproveite todos os outros em face do credor. Se tal não sucede, de maneira que um dos devedores é, nas relações com o credor, o fundamental obrigado, sendo o outro apenas provisoriamente obrigado, inexistindo entre as obrigações uma igual graduação ou igual valor, não haveria obrigação solidária, apesar da identidade de interesse do credor (citado por Eduardo Messias Gonçalves de Lyra Junior, in Notas sobre a solidariedade passiva no novo Código Civil, disponível em www.jus.com.br). Não se pode dizer que ocorre, na hipótese das ações e dos serviços de saúde, uma obrigação soli-

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O processo de descentralização, entanto, não exime os gestores federal e estadual da responsabilidade relativa à aquisição e distribuição de medicamentos em situações especiais

dária entre os entes da República, podendo o credor, assim, exigir a prestação jurisdicional de todos ou de qualquer dos entes. Esta solidariedade não existe. Nos termos da solidariedade clássica, digamos assim, tal como posta no art. 264 e seguintes do Código Civil, em havendo multiplicidade de devedores, pode o credor exigir o cumprimento da obrigação por parte de todos, de alguns ou de apenas um, posto que cada devedor é obrigado pela integridade do débito (CC, art. 275). Será, entretanto, que ocorre, quanto à prestação de serviços de saúde, solidariedade passiva da União, dos estados e dos municípios? A resposta plausível, decorrente da Constituição e da Lei Orgânica da Saúde, é a seguinte: Não ocorre a mencionada solidariedade. A que

existe é de natureza moral, não jurídica. Explicando: A regra do art. 265 do Código Civil é clara. Diz que a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes. Conforme menciona Maria Helena Diniz, comentando as disposições civis, se “a lei não impuser ou o contrato não estipular, não se terá a solidariedade (RT, 155:706; RF, 109:465)” (In Código Civil Anotado, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 681). O que existe: O SUS é um sistema. Diz a Constituição Federal que a saúde é dever do Estado (art. 196), cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle (art. 197), devendo as ações e os serviços de saúde integrar uma rede regionalizada e hierarquizada (art. 198), constituindo um sistema único que atenda às diretrizes de

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descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (incisos I a III do art. 198). O art. 198 da CF diz que as ações e os serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, ou seja, distribuída no espaço geográfico da Nação e organizada em níveis de subordinação e capacidade resolutiva. E assim ocorre porque não se pode exigir que um pequeno Município de um ou dois mil habitantes, com parcos recursos humanos, técnicos e financeiros, venha a prestar os mesmos serviços de uma grande metrópole, ou venha a prestar serviços só disponíveis nos hospitais universitários, federais, que constituem referência para procedimentos de alta complexidade. E quando a mesma Constituição diz que o sistema é único, aduz que a unicidade está vinculada à descentralização (de ações e de serviços), ao atendimento integral (que não pode ser atribuído a cada ente público, mas ao Estado, como gênero, divididas as responsabilidades entre os entes participantes, nos termos da regionalização e da hierarquização) e à participação da comunidade (sob a forma, prevista na legislação ordinária, dos Conselhos de Saúde). Entender que existe solidariedade passiva entre os entes da República, no caso da saúde, é entendimento desconforme com a Constituição, mais especificamente, desconforme com as regras dos artigos 197 e 198 da CF. E desconforme com as regras da Lei n.º 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde. O funcionamento do SUS e a sua descentralização, com a atribuição de competências, as-

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Os municípios e os estados disponibilizam consultas, exames, cirurgias e outros procedimentos, considerando as regras gerais fixadas pela União, os seus planos de saúde, os seus orçamentos e o estipulado nas Programações Pactuadas e Integradas estabelecidas entre os Estados e seus municípios e entre os estados e a União

sim consta da mencionada Lei n.º 8.080/90: a) a unicidade do SUS é caracterizada por uma hierarquia de comando, exercida: (i) pelo Ministério da Saúde; (ii) pelas Secretarias Estaduais de Saúde; e (iii) pelas Secretarias Municipais de Saúde (art. 9º), ou seja, a União, por meio do Ministério da Saúde, estabelece as regras básicas de funcionamento do sistema, como um todo. Aos Estados, cabe detalhar as regras aplicáveis no âmbito de suas atividades ou segundo o que a legislação federal lhes atribuir. Aos Municípios, no exercício de uma competência que é apenas residual, compete disciplinar as questões

restritas às suas peculiaridades; b) são competências do Ministério da Saúde: promover a descentralização para as unidades federadas e para os municípios, dos serviços e das ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal (inciso XV do art. 16) e elaborar o Planejamento Estratégico Nacional, em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal (inciso XVIII do art. 16); c) é competência das Secretarias Estaduais de Saúde promover a descentralização para os municípios dos serviços e das ações de saúde (inciso I do art. 17); d) às Secretarias Municipais de Saúde, compete planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os

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serviços públicos de saúde (inciso I do art. 18), o que deve ser feito em consonância com o disposto no inciso II do mesmo artigo: participar do planejamento, da programação e da organização da rede regionalizada e hierarquizada do Sistema Único de Saúde – SUS, em articulação com sua direção estadual; e) respeitada a integralidade de atendimento, abrangida pela regionalização, cada ente público só é responsável pela execução dos respectivos planos de saúde, segundo a regra do art. 36 e seus parágrafos, da Lei n.º 8.080/90: “§ 1º. Os planos de saúde serão a base das atividades e programações de cada nível de direção do Sistema Único de Saúde – SUS, e seu financiamento será previsto na respectiva proposta orçamentária.” Na organização da rede regionalizada e hierarquizada, ocorrem obrigações entre os entes participantes, havendo interdependência entre eles, de modo que se componha um sistema. Nenhum deles atua isoladamente e, se um não for capaz nem estiver habilitado a praticar determinada ação, a obrigação é do outro, de modo que seja garantida a integralidade de atendimento. Existem, pois, obrigações conjuntas, nos termos da regionalização e das obrigações repartidas, mas não a solidariedade do Código Civil. A solidariedade existente não é jurídica, mas moral. O SUS, cabe repetir, é concebido como um sistema, cujas partes encontram-se coordenadas entre si, funcionando segundo uma estrutura organizada, submetida a princípios e diretrizes fixados legalmente. Sendo um sistema, as partes que o

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compõem integram uma rede sob o comando da União, a quem cabe definir as regras gerais sobre a matéria. E a descentralização é necessária porque ocorrem diferenças marcantes (quanto a recursos financeiros, à capacidade técnica instalada, aos profissionais em atividade, a doenças prevalentes), entre um Município como São Paulo, com milhões de habitantes, um Município como Joinville, com cerca de 500.000 habitantes e um Município do interior, com pouco mais de mil habitantes. Diante disso, não se podem exigir, de cada ente, as mesmas e iguais obrigações, o que ocorreria se houvesse solidariedade. As responsabilidades quanto à prestação mesma de serviços de saúde, ou seja, as responsabilidades referentes à execução das ações finalísticas, dividem-se entre a União, os estados e os municípios. Pela União, por meio dos hospitais universitários e hospitais especializados. Nos estados, depende da política fixada pelo próprio Estado, por determinação autônoma. Essa política é fixada na PPI (Programação Pactuada e Integrada) de cada Estado, em que são alocados recursos financeiros para cada Município e definidas as responsabilidades de cada qual, segundo as suas possibilidades. Em suma: a responsabilidade entre os entes da Federação é repartida. À União, cabem os procedimentos de alta complexidade/ alto custo; aos estados, as de alta e média complexidade; aos municípios, de acordo com a PPI, as ações básicas e as de baixa complexidade e, segundo acordado com os estados, as de média e alta complexidade para as quais possuam recur-

sos financeiros, humanos e materiais. Nos termos do art. 196 da CF, o dever de o Estado prestar serviços de saúde deve estar garantido por políticas sociais e econômicas, ou seja, o direito decorrente não existe e não pode ser exercitado apenas em face do que diz a regra constitucional. Mas submete-se às políticas determinadas pelo Poder Público, “nos termos da lei”, tal como verbera o art. 197 da CF. A lei mais importante, no particular, é a de n.º 8.080/90, cujos principais artigos foram acima citados e comentados, e com base na qual o Ministério da Saúde tem expedido normas específicas. O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS Diz a Portaria n.º 3.916/98, do Ministério da Saúde, baixada sob autorização da Lei n.º 8.080/ 90, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos: “APRESENTAÇÃO (...). ... a Política Nacional de Medicamentos tem como propósito ‘garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade destes produtos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais’. Com esse intuito, suas diretrizes são o estabelecimento da relação de medicamentos essenciais ... e as responsabilidades dos gestores do Sistema Único da Saúde – SUS na sua efetivação. (...) 3. DIRETRIZES (...) 3.1. Adoção de relação de medicamentos essenciais (...). Esses produtos devem estar conti-

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nuamente disponíveis aos segmentos da sociedade que deles necessitem, nas formas farmacêuticas apropriadas, e compõem uma relação nacional de referência (...). O Ministério da Saúde estabelecerá mecanismos que permitam a contínua atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME, imprescindível instrumento de ação do SUS, na medida em que contempla um elenco de produtos necessários ao tratamento e controle da maioria das patologias prevalentes no País. (...)

g. assegurar a adequada dispensação dos medicamentos... (...) m. definir o elenco de medicamentos que serão adquiridos diretamente pelo Estado, inclusive os de dispensação em caráter excep-

2.475, de 13/10/06, para atender às doenças prevalentes, comuns, e que, por isso, devem ser disponibilizados pelos municípios, nos termos da lista que elaborarem, segundo o acordo firmado com cada Estado Federado, que deve forne-

3.3. O processo de descentralização, entanto, não exime os gestores federal e estadual da responsabilidade relativa à aquisição e distribuição de medicamentos em situações especiais... a saber: a. doenças que configuram problemas de saúde pública...; b. doenças consideradas de caráter individual... com o uso de medicamentos de custos elevados; c. doenças cujo tratamento envolve o uso de medicamentos não disponíveis no mercado. (...) 5. RESPONSABILIDADES DAS ESFERAS DE GOVERNO NO ÂMBITO DO SUS (...) 5.2. Gestor federal Caberá ao Ministério da Saúde, fundamentalmente, a implementação e a avaliação da Política Nacional de Medicamentos... (...) u. adquirir e distribuir produtos em situações especiais... (...) 5.3. Gestor estadual (...)

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A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde

cional... (...) 5.4. Gestor municipal (...) h. definir a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na RENAME... i. assegurar o suprimento dos medicamentos destinados à atenção básica à saúde de sua população...”. Nos termos das regras do SUS, existem três classes de medicamentos: a. os da RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, integrantes da Portaria n.º

cer os não integrantes das listas municipais; b. os excepcionais, constantes da Portaria n.º 2.577/GM, de 27/10/06, e os integrantes dos protocolos clínicos dirigidos a determinados tipos de doenças, como a AIDS (Recomendações para Terapia Antirretroviral em Adultos e adolescentes infectados pelo HIV), a hipertensão arterial e o diabetes melitus (Portaria n.º 371, de 04/03/02), os transplantes renais (Portaria n.º 1.018, de 23/12/ 02) a doença de Alzheimer (Portaria n.º 843, de 06/11/02), a Doença de Parkinson, Asma grave e Hipelipidemia (Portaria n.º 921, de

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25/11/02), a artrite reumatóide (Portaria n.º 865, de 12/11/02) a hepatite B (Portaria n.º 860, de 12/ 11/02), a hepatite C (Portaria n.º 863, de 12/11/02) e outras, medicamentos estes destinados a: (a) doenças que configuram problemas de saúde pública; (b) doenças de caráter individual; ou (c) doenças que envolvem o uso de medicamentos não disponíveis no mercado, a serem disponibilizados pelos estados-membros, nos termos da Portaria MS n.º 3.916/98, que, para tanto, recebem recursos financeiros específicos da União, como, por exemplo, determina a Portaria n.º 1.321, de 05/06/07; c. os medicamentos não constantes das listas elaboradas pelo Ministério da Saúde, a serem disponibilizados pela União, sempre que o Judiciário decidir que tais medicamentos devem ser fornecidos, já que a União é responsável pela política de saúde e pela política de medicamentos e é ela que elabora as listas e faz a repartição de competências entre os entes da República. Bem, pelas razões alinhavadas, assim decidiu o Juízo da 1ª Vara Federal de Joinville, nos autos do Processo n.º 2003.72.01.005010-0: “Ante o exposto, Defiro a antecipação de tutela para obrigar os réus a fornecerem os medicamentos ENTECAVIR 1mg ou ADEFOVIR DIPIVOXIL 10mg, observando os seguintes procedimentos: a) em 05 (cinco) dias contados da intimação desta decisão, na pessoa do seu Procurador, com a devida prova nos autos, a União deverá disponibilizar os recursos necessários para a Secretaria de Saúde do Estado de Santa Catarina, e esta, por sua vez,

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também em 05 (cinco) dias, deverá repassá-los ao Município de Joinville/ SC, devendo este, no prazo de 05 (cinco) dias, fornecer os medicamentos deferidos ao usuário A H M; b) o desatendimento dos prazos sujeitará os entes, cada qual dentro da sua obrigação judicialmente especificada, ao pagamento de uma multa diária de R$5.000,00 (cinco mil reais). Especificamente, no tocante à União, o desatendimento ainda acarretará o sequestro dos valores necessários para o cumprimento desta tutela deferida.” Decisões semelhantes foram proferidas, entre outros, nos seguintes processos que correm na Justiça Federal: 2004.72.01.002000-7; 2004.72.01.0003416-0; 2004.72.01.004841-8; 20004.72.01.003969-7; 2004.72.01.007745-5; 2006.72.01.003738-7. De resto, assim se manifestou a E. Ministra Ellen Gracie, nos autos da Suspensão de Tutela Antecipada n.º 91 (DJ 05/03/2007), verbis: “Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que

alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados “(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)” (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, a tutela concedida atinge, por sua amplitude, esferas de competência distintas, sem observar a repartição de atribuições decorrentes da descentralização do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 198 da Constituição Federal. Finalmente, verifico que o Estado de Alagoas não está se recusando a fornecer tratamento aos associados (fl. 59). É que, conforme asseverou em suas razões. “(...) a ação contempla medicamentos que estão fora da Portaria n.° 1.318 e, portanto, não são da responsabilidade do Estado, mas do Município de Maceió, (...)” (fl. 07), razão pela qual seu pedido é para que se suspenda a “(...) execução da antecipação de tutela, no que se refere aos medicamentos não constantes na Portaria n.° 1.318 do Ministério da Saúde, ou subsidiariamente, restringindo a execução aos medicamentos especificamente indicados na inicial, (...)” (fl. 11). 6. Ante o exposto, defiro parcialmente o pedido para suspen-

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der a execução da antecipação de tutela, tão somente para limitar a responsabilidade da Secretaria Executiva de Saúde do Estado de Alagoas ao fornecimento dos medicamentos contemplados na Portaria n.° 1.318 do Ministério da Saúde.”

A REALIZAÇÃO DE EXAMES, CIRURGIAS E OUTROS PROCEDIMENTOS Os municípios e os estados disponibilizam consultas, exames, cirurgias e outros procedimentos, considerando as regras gerais fixadas pela União, os seus planos de saúde, os seus orçamentos e o estipulado nas Programações Pactuadas e Integradas estabelecidas entre os estados e seus municípios e entre os estados e a União. Dessa forma, cumpre-se a regionalização e a hierarquização no sistema único – regras basilares contidas no artigo 198 da Constituição Federal. Bem por isso, quando um dos entes não disponibiliza um determinado serviço de saúde, a responsabilidade passa a ser do outro. Para tanto, é usado o mecanismo do TFD – Pedido de Tratamento Fora do Domicílio (Portaria MS/SAS n.º 055 de 04/ 02/99), dos municípios para o Estado respectivo ou entre municípios, quando existe pactuação prévia. Ou é acionada a Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (Portaria MS n.° 39, de 06/02/06), para transferir um paciente do Estado Federado para outro Estado ou para a União. A porta de entrada dos pacientes é, a princípio, uma unidade de saúde municipal. Se o

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exame, o tratamento ou a cirurgia não puder ser prestado pelo sistema municipal, o paciente será encaminhado ao Município próximo, nos termos da pactuação estadual, ou diretamente ao Estado, sempre por meio de TFD. Se o Estado não puder prestar o serviço, deverá contatar a Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade, que encaminhará o paciente à unidade de saúde estadual ou nacional apta a cumprir os desígnios do SUS. As despesas de locomoção serão sempre pagas pelo TFD. O entendimento acima transcrito, da ministra Ellen Gracie, quanto aos medicamentos, também se aplica às demais ações e serviços de saúde, como a realização de exames e cirurgias. Com efeito, vale lembrar que o SUS é um sistema único e integrado. Em particular, a responsabilidade da União relativa às ações de alta complexidade/alta especialidade/alto custo, é realizada por hospitais especializados (como são o Instituto Nacional do Câncer e o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia, ambos no Rio de Janeiro), além dos 45 Hospitais Universitários, distribuídos pelo território do país, que são entidades de referência nacional, integrantes do SUS. Como diz a página do Ministério da Educação na Internet: “São unidades de saúde, únicas em algumas regiões do país, capazes de prestarem serviços altamente especializados, com qualidade e tecnologia de ponta à população. Garantem, também, o suporte técnico necessário aos

programas mantidos por diversos Centros de Referência Estaduais ou Regionais e à gestão de sistemas de saúde pública, de alta complexidade e de elevados riscos e custos operacionais. Os Hospitais Universitários são importantes Centros de Formação de Recursos e de Desenvolvimento de Tecnologia para a área de saúde. A efetiva prestação de serviços de assistência à população possibilita o constante aprimoramento do atendimento, com a formulação de protocolos técnicos para as diversas patologias, o que garante melhores padrões de eficiência e eficácia, colocados à disposição para a Rede do Sistema Único de Saúde (SUS).” CONCLUSÃO Em suma, a organização do SUS vincula-se aos comandos constitucionais. Nestes, a responsabilidade solidária é expressamente afastada e em seu lugar é implantada uma organização regionalizada e hierarquizada, com responsabilidades claramente repartidas, nos termos da legislação infraconstitucional. Nesta, existem comandos acerca do fornecimento de medicamentos e sobre a prestação das demais ações e serviços de saúde. É assim que não se pode impor aos Municípios a prestação de todo e qualquer serviço de saúde, como ocorre em determinadas decisões judiciais, ocorrendo, nessas hipóteses, uma invasão de competência do Judiciário no Executivo. Ao revés, cabe ao provimento jurisdicional exigir que o sistema funcione, tal como previsto na

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lei. E, nesse sentido, cabe exigir do Município, do Estado ou da União, a prestação dos serviços cometidos a cada qual deles, mas não exigir do Muni-

cípio o que é de competência da União, por exemplo, ou exigir o cumprimento da decisão de forma “solidária e conjunta”, ferindo a Constituição da

República e posto que, nessa hipótese, a execução acaba recaindo, injustamente, sobre o Município, que é a parte mais frágil do sistema.

ABSTRACT

The Responsibilities in SUS The article discusses the roles of public spheres: Federal, State, and Municipalities, in the Sistema Único de Saúde (SUS). Bolstered by the Federal Constitution, the author denies the existence of solidarity among the organs and ratifies the hierarchical and decentralized character of the system. Points of the study: the distribution of medicines, treatments and surgeries performed by the SUS. Keywords: Sistema Único de Saúde. The Federal Constitution. Powers of public spheres. Medicines and surgeries.

RESUMEN

Las Responsabilidades en SUS

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El artículo discute el papel de lo público: Federal, Estatal y Municipios, en el Sistema Único de Saúde (SUS). Alentado por la Constitución Federal, el autor niega la existencia de la solidaridad entre los órganos y ratifica el carácter jerárquico y descentralizado del sistema. Son puntos del estudio: la distribución de medicamentos, tratamientos y cirugías realizadas por el SUS. Palabras clave: Sistema Único de Saúde. Constitución Federal. Poderes de las esferas pública. Medicamentos y cirugías.

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PARECERES E JURISPRUDÊNCIA

Revista Revista de de Administração Municipal - MUNICÍPIOS - IBAM

Competência Legislativa Municipal. Saúde Pública e Meio Ambiente Raquel Castilho da Silva Assessora Jurídica

CONSULTA Trata-se de uma consulta, formulada pela Presidência da Câmara Municipal sobre a legalidade e a constitucionalidade do Projeto de Lei substitutivo ao Projeto de Lei n.º 31/2009, que impõe aos “estabelecimentos comerciais do Município, compreendidos por distribuidores, revendedores de pneus novos, usados, recauchutados, borracharias, prestadores de serviços e demais segmentos que manuseiam pneus inservíveis” a obrigação de recolhimento de pneus em local apropriado.

RESPOSTA Para análise da compatibilidade da proposição legislativa com o ordenamento jurídico, faz-se necessário avaliá-la quanto a aspectos formais e materiais. No âmbito formal, é de se ressaltar que não há reserva de iniciativa quanto à matéria, sendo verdadeira prerrogativa da Câmara Municipal a faculdade de dar

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impulso a qualquer projeto de lei que verse sobre matéria de interesse local, salvo nas hipóteses excepcionais do art. 61, § 1º da CRFB, que devem ser interpretadas restritivamente de molde a não interferir na autonomia do Poder Legislativo. Pode-se dizer, também, que o tema está inserido na competência municipal suplementar, fundamentada na leitura conjugada dos artigos 30, (inciso II), e 24

(incisos V, VI, VIII e XII), ambos da Constituição da República de 1988. Isto significa dizer que não há vício formal na proposição apresentada pelo Legislativo do Município. Ao contrário, é um dever constitucional legislar sobre a questão quanto aos seus reflexos locais, desde que o faça de maneira que se coadune com a diretriz estabelecida pela União, em especial, as definidas

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na Resolução CONAMA n.º 258/1999. Neste ponto, vale a menção ao conteúdo e ao caráter nacional da supracitada Resolução CONAMA n.º 258/1999, ato normativo que imputa aos fabricantes e aos importadores de pneumáticos a obrigação de coletar e dar destinação final ambientalmente adequada aos pneus inservíveis. O projeto de lei em exame atendeu à diretriz traçada, entretanto, ao procurar adaptar à realidade local o que foi delineado em caráter genérico pela União, estabeleceu obrigações que ultrapassam os limites estabelecidos pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA). Nos artigos 1º, 3º e 4º, atribui diretamente aos “distribuidores, revendedores de pneus novos, usados, recauchutados, borracharias, prestadores de serviços e demais segmentos que manuseiam pneus inservíveis” as obrigações de recolher os pneus em local apropriado e de informar sobre a destinação final dos pneus, o que, ao nosso ver, não seria uma medida razoável, haja vista não observar o subprincípio da proporcionalidade estrito senso. Isso porque a proposição estaria impondo ônus, e consequente responsabilidade, a quem não tem ingerência sobre a real solução do problema. Seria criado um custo de infraestrutura e logística que não estaria inserido no perfil e na função econômica destes estabelecimentos. Embora a finalidade de evitar novos surtos de dengue seja louvável, esta não pode ser a jutificativa para a inobservância de princípios constitucionalmente estatuídos. É bem verdade que descarte e tratamento de resíduos são ativida-

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des inerentes ao risco do desempenho de um determinado negócio. Também é de se considerar que descarte e tratamento de resíduos são manifestações dos princípios constitucionais da solidariedade (art. 3º, I, da Constituição da República/ 1988), do pacto intergeracional – utilização de recursos de modo que se garanta uma existência digna às gerações futuras – (art. 225, caput, parte final, CRFB/888). Contudo, é bem verdade também que as ações adotadas dentro de uma cadeia produtiva devem ser proporcionais ao espaço e ao poderio econômico evidenciado pelos atores do mercado. Não pode a municipalidade instituir ônus que torne impraticável o desempenho da atividade por inviável economicamente para distribuidores, revendedores e prestadores de serviços. Estaria incorrendo em afronta a princípios de norteadores da ordem econômica (art. 170 da Constituição da República /1988). Ademais, é importante reconhecer a incidência dos conceitos de desenvolvimento sustentável e de sustentabilidade na questão. É preciso viabilizar a coexistência de um olhar de proteção ambiental e de um olhar de desenvolvimento econômico. Não são conceitos dissociáveis. Permitem conciliação, conforme disposto no mencionado artigo 170 da CRFB / 1988. No caso em tela, bastaria aliar a responsabilidade ao proveito econômico. Neste ponto, o Projeto de Lei deveria procurar dar efetividade ao parâmetro da Resolução n.º 258/1999, qual seja a imputação de responsabilidade e penalidades aos fabricantes e aos importadores. Isso porque são estes dois os agentes econômicos que

possuem maior capacidade de pesquisa de tecnologia e logística para atender ao fim que se pretende na proposição. Repisa-se, não se está a dizer que a municipalidade não tem competência para legislar sobre questão que verse sobre proteção ao meio ambiente e saúde pública. Ao contrário, o IBAM é inteiramente favorável à existência de uma legislação que se amolde às necessidades locais e que privilegie aspectos e interesses peculiares à sua circunscrição geográfica. Vale dizer que a hipótese aqui analisada é diferente da abordada no Parecer n.º 1.259/2009, resultado de consulta proveniente de mesmo Município. Naquele caso, tratava-se apenas de incluir uma cobertura nas áreas de depósitos já existentes para evitar a proliferação do mosquito Aedes Aegypti, o que é perfeitamente admissível por não ensejar ônus desproporcional. No caso em espécie, o que se pretende é obrigar aqueles que exercem atividades econômicas relacionadas ao ramo a construir depósitos para recolhimento e armazenamento de pneus, imputando, inclusive a responsabilidade sobre sua destinação final, o que, como dito, nos parece desproporcional e capaz de inviabilizar o exercício da própria atividade no Município. Assim, abordadas as questões relevantes sobre o tema, concluise que a compatibilidade do Projeto de Lei n.º 31/2009 com as normas constitucionais e legais vigentes está condicionada à sua adequação à Resolução CONAMA n.º 258/1999 e ao atendimento dos princípios constitucionais da razoabilidade, da solidariedade, da livre iniciativa e do pacto intergeracional.

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PARECERES E JURISPRUDÊNCIA

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Processo Legislativo. Análise das correntes que se posicionam a favor e contra a afixação de símbolos religiosos em espaços públicos Ana Luiza Mello Consultora Jurídica

CONSULTA A Câmara Municipal consulta a respeito da possibilidade de colocação de crucifixo na sede do Poder Legislativo, tendo em vista a atual discussão a respeito da permanência de símbolos religiosos em repartições públicas.

RESPOSTA Em consequência do princípio basilar da independência e da harmonia entre os Poderes,

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consagrado pela Constituição da República em seu art. 2º, é a competência outorgada às Casas do Congresso Nacional para “dispor sobre sua organização,

funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respecti-

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va remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias” (arts. 51, IV e 52, XIII). Estende-se essa regra a todas as esferas federativas, por força do princípio hermenêutico da simetria das formas. Logo, dispõe o Poder Legislativo de plena autonomia administrativa e financeira para deliberar sobre a sua organização interna da forma como melhor lhe aprouver, desde que obedeça aos princípios de ordem constitucional, não sendo necessária a apresentação de projetos de lei que disponham sobre tais matérias. No que tange ao cerne da questão, qual seja a possibilidade de afixação de símbolos religiosos em espaços públicos, passamos a expor as duas correntes que enfrentam o tema, tendo em vista a grande controvérsia que o envolve. Em defesa da adoção dos símbolos religiosos em espaços públicos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indeferiu o pedido de retirar os símbolos religiosos das dependências do Judiciário, após a apresentação, pela ONG “Brasil para Todos”, de quatro pedidos de providência (1344, 1345, 1346 e 1362). No julgamento, todos os presentes, exceto pelo relator, entenderam que os objetos seriam símbolos da cultura brasileira e que não interferiam na imparcialidade e na universalidade do Poder Judiciário. É importante destacar que o relator do caso, quando proferiu seu voto, defendeu que, no âmbito privado, cabem demonstrações pessoais, como o uso de símbolos religiosos; o

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que não deve ocorrer no âmbito público. A maioria do plenário, ainda assim, manteve decisão contrária à retirada dos símbolos religiosos, concluindo o julgamento dos procedimentos. Ressaltamos que o caso acima é o que melhor enfrenta a questão, motivo pelo qual exporemos, aqui, os argumentos proferidos pelos órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público aos requerimentos negados à ONG “Brasil para Todos”, quando dos pedidos para que fossem retirados os símbolos religiosos das dependências do Judiciário. A adoção de símbolos confessionais nos espaços públicos teve sua justificativa, quando da análise do caso em epígrafe, fundada no fato de confundirem-se com a extensa tradição cultural e histórica dos valores cristãos no Brasil. Alegou-se que alguns símbolos religiosos, como o crucifixo, não possuem mais caráter religioso, sendo incapazes de expressar valores morais de determinada fé. Não haveria, ademais, relevância constitucional quando da adoção de tais ícones, cuja presença seria meramente decorativa. A discussão foi além ao ter sido declarado que a retirada dos crucifixos consagraria um posicionamento de intolerância em relação aos magistrados e jurisdicionados cristãos e que teria um caráter não democrático, tendo em vista que a população brasileira é, majoritariamente, cristã. Acrescentamos, ainda, que o entendimento do CNJ acima

exposto foi adotado pela Procuradoria Regional da União da 3ª Região, unidade da Procuradoria Geral da União, que se pronunciou alegando que “os símbolos já pertencem à cultura e à tradição brasileiras”. Sustentou, ainda, que “a exposição desses crucifixos e objetos em prédios públicos não torna o Brasil um Estado clerical, devendo ser respeitada a religiosidade dos indivíduos”. É importante ressaltar, apenas, que os argumentos acima elencados foram utilizados em desfavor da retirada dos signos religiosos dos espaços públicos nos quais se encontravam, e não a favor de serem colocados em Tribunais e/ou Casas Legislativas. Sendo assim, estabelece-se uma relação de diferenciação entre a retirada e a adoção de ícones que façam referência a uma dada concepção religiosa. Em defesa da interpretação de que o Estado laico não admite a presença de adornos religiosos em seus organismos, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade n.º 113.349-01, realizado em 11 de maio de 2005, no qual se discutiu a validade de lei do Município de Assis, que determinara a obrigatoriedade de inserção do versículo bíblico “Feliz a Nação cujo Deus é o Senhor” em todos os impressos oficiais da municipalidade, além de apontar vício formal na lei, também entendeu que ela padecia de vício de inconstitucionalidade material, por afrontar ao princípio do Estado laico.

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Nas palavras do Tribunal, “como deve o Estado manterse absolutamente neutro em relação às diversas igrejas, não podendo beneficiá-las nem prejudicá-las, não tem cabimento admitir a inserção de versículo bíblico nos impressos e nos documentos oficiais do Município, pois isto evidencia simpatia em relação a determinadas orientações religiosas, o que é expressamente vedado pela Lei Maior”. Ademais, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.076-5/ Acre, no qual se discutiu a constitucionalidade da não reprodução, na Constituição Estadual do Acre, da referência a Deus constante no preâmbulo da Carta Federal, assim se manifestou: “Preâmbulo da Constituição não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa”. Note que o caráter normativo, segundo o entendimento acima, afasta a possibilidade de haver qualquer referência a símbolos ou a posicionamento de que se possa extrair vínculo religioso em conexão com qualquer exercício do poder do Estado. Nesse passo, e considerando que nos órgãos jurisdicionais são proferidas decisões cujos entendimentos vinculam seus jurisdicionados, por possuírem força normativa, não devem tais órgãos demonstrar ou sequer sugerir qualquer vínculo com uma dada religião, ainda que seja

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PARECERES E JURISPRUDÊNCIA majoritariamente adotada no Brasil. Ademais, compõe o rol de argumentos da tese aqui exposta o fato de o artigo 13, § 1º, da Constituição Federal do Brasil, estabelecer que “são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais”. Segundo tal entendimento, o legislador pretendeu, com tal previsão, regular o modo como serão apresentados os símbolos nacionais. A par disso, de acordo com Roberto Lorea, juiz de direito do Rio Grande do Sul, “não há margem para que o Estado Brasileiro se veja representado por outros símbolos que não aqueles previstos na Carta Magna”. Por fim, cumpre mencionar que, na presente discussão, a corrente até então apresentada afirma que é necessário ressaltar a confusão aparente que predomina na questão em cotejo, cujo enfoque são as relações privadas e públicas. Daniel Sarmento, Procurador Regional da República, a respeito do argumento invocado em defesa da liberdade religiosa dos magistrados e serventuários dos Tribunais e Casas Legislativas, que poderiam querer adornar os espaços públicos nos quais laboram com ícones que remetam à sua religião, afirma: “Quanto aos magistrados e serventuários da Justiça, é certo que, como cidadãos, eles têm a mesma liberdade de crença que as demais pessoas. Contudo, os espaços acessíveis ao público dos tribunais não pertencem aos magistrados ou serventuários, mas ao Estado bra-

sileiro, estando, portanto, plenamente submetidos ao irrestrito acatamento do princípio constitucional da laicidade. Afinal, numa República (res publica) o Estado não se confunde com as pessoas físicas que exercem o poder em seu nome. Talvez o único compromisso tolerável nesta matéria seja relativo a espaços privativos dos juízos e tribunais, em regra não acessíveis ao público em geral, como os gabinetes dos magistrados. Embora estes locais também pertençam ao Estado, neles há uma identificação muito mais direta e pessoal entre o espaço físico e o da autoridade que o ocupa, de forma a diluir a associação simbólica entre os objetos que o guarnecem e o Estado. Daí porque, parece a princípio ser mais aceitável a presença de um símbolo religioso no gabinete de um juiz, ao lado de outros objetos de cunho pessoal, do que, por exemplo, numa sala de audiência”. (SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos Tribunais e a laicidade do Estado. Publicado na Revista Eletrônica PRPE, MAIO 2007). Por fim, a despeito das correntes acima citadas e tendo em vista que toda ação governamental deve ter como meta o interesse geral e coletivo, cumpre a esta Câmara Municipal, devido à autonomia de que dispõe, adotar o posicionamento que melhor retratar o interesse da população local no que tange à colocação ou não de símbolos religiosos na sua sede, sendo desnecessária a edição de lei para tanto.

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• NOTÍCIAS MUNICIPAIS •

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Marcos Flavio R. Gonçalves Advogado e Assessor da Superintendência do IBAM

• IBAM completa 57 anos O dia 1º de outubro marca o aniversário de fundação do IBAM, ocorrida em 1952. São mais de cinco décadas de atuação com os municípios brasileiros, os governos federal e estaduais e a Administração Pública de numerosos países latino-americanos e africanos. Cumpriram-se assim – e continuam a ser cumpridas – as finalidades estatutárias do IBAM, instituído pelo Movimento Municipalista para atuar como seu braço técnico. São 57 anos de dedicação, responsabilidade, competência, ética, apartidarismo e seriedade, tornando o Instituto entidade com características que, aliadas ao dedicado esforço de todos que com ele colaboram e a confiança que seus parceiros lhe dedicam, o diferem de tantas outras. O IBAM agradece a todos que colaboraram ou colaboram para que atingisse essa idade. • Emenda Constitucional O Congresso Nacional promulgou, em 23 de setembro, a Emenda Constitucional n.º 58, que altera a redação do inciso IV do art. 29 e do art.29-A da Constituição Federal, para estabelecer nova composição numérica das Câmaras Municipais, calculada em função do número de habitantes de cada Município. O art. 3º da EC dispõe que sua vigência se dá na data da promulgação, porém os efeitos de seu art. 1º ocorrem a partir do processo eleitoral de 2008, e o disposto em seu art. 2º, a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao de sua promulgação, ou seja, 2010. A matéria foi objeto de ação de inconstitucionalidade, e a ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, concedeu, no dia 2 de outubro, liminar suspendendo a posse de novos vereadores até que a ação seja julgada. O IBAM defende um Poder Legislativo forte, atuante, preocupado com as questões que afetam a sociedade,

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e também o respeito aos princípios constitucionais vigentes. • Jurisprudência de interesse dos municípios Súmula do STJ define: legislação municipal decide quem é o sujeito passivo do IPTU Cabe à legislação municipal estabelecer o sujeito passivo do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU. Esse é o teor da Súmula n.º 399, aprovada pela Primeira Seção do STJ. Nova súmula trata da notificação do contribuinte de IPTU A remessa ao endereço do contribuinte do carnê de pagamento do IPTU é suficiente para notificá-lo do lançamento tributário. Tal entendimento, pacificado na Primeira Seção do STJ no julgamento de recurso especial, está contido na Súmula n.º 397: “O contribuinte de IPTU é notificado do lançamento pelo envio do carnê ao seu endereço”. • Câmara Municipal amplia participação popular A Câmara Municipal do Rio de Janeiro abriu nova possibilidade de participação popular via Internet, com a criação de base de dados para receber sugestões populares, que pode ser acessada na página principal do portal da Câmara (www.camara.rj.gov.br), por meio do link “Fale com a Câmara: Envie sugestões de leis.” • Conferência premia quatro municípios com o selo Cidade Cidadã A 10ª Conferência das Cidades premiou, com o selo Cidade Cidadã, as quatro cidades que implementaram projetos que melhoraram o transporte público urbano, tema do evento deste ano. Foram premiados Forquilhinha (SC), com o Projeto Ciclovia Gabriel

Arns; Leme (SP), com o Projeto Linha da Saúde; Contagem (MG), com o Programa Sem Limite; e Natal (RN), com o Projeto Via Livre. • Assembleia Geral da ONU aprova a criação de agência para as mulheres Atendendo proposta do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres – UNIFEM, de garantir expressiva presença nos países, mais recursos para as políticas para as mulheres, melhoria no assessoramento aos países e governos e mais integração das agências das Nações Unidas na agenda de igualdade de gênero, foi criada em setembro a Agência das Nações Unidas para as Mulheres, cuja estruturação será conduzida pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. • Governo lança sistema de gestão integrada para municípios Os municípios brasileiros terão à disposição software público capaz de gerenciar em um único sistema as principais áreas da Prefeitura. Tratase do e-cidade, desenvolvido para integrar áreas diversas do Município, como educação, controle de medicamentos, orçamento, finanças públicas, recursos humanos e tributária. A solução também permite gerir serviços que prestam atendimento ao cidadão ao gerar guias para pagamento bancário sem a necessidade de deslocamento. Todas as Prefeituras poderão acessar a ferramenta e-cidade, que será lançada e disponibilizada gratuitamente no Encontro Nacional de Tecnologia da Informação para os Municípios Brasileiros. O evento, dedicado a prefeitos, secretários, gestores e técnicos municipais, será promovido pelo Ministério do Planejamento, nos dias 27 e 28 de outubro, no Centro de Convenções Brasil 21, em Brasília. As inscrições são gratuitas e devem ser feitas no endereço www.softwarepublico.gov.br/ 4cmbr.

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