Conjuntura 2014 desafios para uma cidadania ativa(1)

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Conjuntura 2014: Desafios para uma cidadania ativa

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AGOSTO / 2014


SUMÁRIO INTRODUÇÃO POR CÂNDIDO GRZYBOWSKI ........................................................................... 5 DAS ELEIÇÕES AO LONGO PRAZO POR JOSÉ MAURÍCIO DOMINGOS .................................................................... 9 APROXIMAÇÕES DA SITUAÇÃO INTERNACIONAL POR JOSÉ CORREIA LEITE ............................................................................. 16 O DESENVOLVIMENTO HOJE POR SEBASTIÃO SOARES ............................................................................... 22 GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA BLOQUEADA POR PEDRO CLAUDIO CUNCA BOCAYUVA ...................................................... 28 BORBOLETAS DE FERRO NÃO BATEM ASAS POR CARLOS BITTENCOURT E MOEMA MIRANDA ...........................................36 ENERGIA NOS GOVERNOS LULA E DILMA E PERSPECTIVAS POR LUIZ PINGUELLI ROSA .......................................................................... 46 AVANÇOS E RECUOS DA AGROECOLOGIA NOS 12 ANOS DE GOVERNO POPULAR POR JEAN MARC WAN DER WEID ................................................................... 51 EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL: ENTRE O DIREITO SOCIAL E SUBJETIVO E O NEGÓCIO POR GAUDÊNCIO FRIGOTTO .......................................................................... 56 A (IN) SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL: UMA CRISE ANUNCIADA POR ISABEL CRISTINA CARVALHO ................................................................ 66 POVOS INDÍGENAS: EM LUTA CONTRA UM GENOCÍDIO QUE TAMBÉM MATA O QUE HÁ DE HUMANO EM CADA UM DE NÓS POR TÂNIA PACHECO ................................................................................... 69

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FACES DA QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO POR LEONILDE SÉRVULO DE MEDEIROS ....................................................... 80 QUESTÃO DO FEMININO HOJE POR SILVIA CAMURÇA...................................................................................85 FILANTROPIA PARA A JUSTIÇA SOCIAL: UM NOVO EMPREENDIMENTO PARA A SOCIEDADE CIVIL POR ATHAYDE MOTTA ................................................................................. 89 RISCOS E IMPASSES* POR ANDRÉ SINGER .................................................................................... 94 O BRASIL EM UM MUNDO EM PERMANENTE DISPUTA POR FÁTIMA MELLO .................................................................................... 98 O MUNDO DO TRABALHO E A CONJUNTURA ATUAL DO BRASIL POR ADHEMAR S. MINEIRO ......................................................................... 102 O QUE SERÁ, QUE SERÁ? POR ITAMAR SILVA ..................................................................................... 108 SUS, AVANÇOS E DILEMAS POR MARIA CECÍLIA DE SOUZA MINAYO .......................................................121 O SOCIAL NA CONJUNTURA DEMOCRÁTICA POR SÔNIA FLEURY .................................................................................... 130 AS ONGS NA CONJUNTURA POR JORGE EDUARDO S. DURÃO ................................................................. 139 IMPASSES NA PARTICIPAÇÃO CIDADÃ POR CÂNDIDO GRZYBOWSKI ....................................................................... 144 QUESTÃO DO EXTRATIVISMO HOJE POR JOSÉ TANAJURA CARVALHO ................................................................. 151 QUESTÃO POLÍTICO-RELIGIOSA HOJE POR LUIZ ALBERTO GOMES DE SOUZA ........................................................ 156

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JUVENTUDE E POLÍTICA: LIMITES E ALCANCES DAS 'JORNADAS DE JUNHO DE 2013'. NOTAS PARA UMA ANÁLISE DE CONJUNTURA POR REGINA NOVAES.................................................................................. 160 O BRASIL E A AGENDA RACIAL PASSADA A LIMPO POR NUNO COELHO ..................................................................................... 171 COMUNICAÇÃO, UM DIREITO A SER CONQUISTADO POR CAMILA NOBREGA, MARTHA NEIVA E ROGÉRIO DAFLON ....................... 175 SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL POR FRANCISCO MENEZES .......................................................................... 184 TRANSPORTE E MOBILIDADE URBANA, PROBLEMAS E DESAFIOS POR JUCIANO RODRIGUES .......................................................................... 191 O IBASE E A ANÁLISE DE CONJUNTURA PARA O MOVIMENTO SOCIAL POR FERNANDO CARDIM ............................................................................ 201

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INTRODUÇÃO Há 30 anos, em 1984, Herbert José de Souza – o nosso inesquecível Betinho – publicou pela Editora Vozes o livrinho Como se Faz Análise de Conjuntura. Trata-se de obra primorosa, muito procurada e lida por ativistas, tanto de movimentos sociais como educadores populares e integrantes de organizações de cidadania ativa, por estudantes universitários nas áreas de ciências sociais e por quem se interessa em ir além das informações bombardeadas todos os dias pela mídia que temos e quer se aprofundar na compreensão da conjuntura. O livrinho, em 2014, chegou à 34ª edição, sempre pela Editora Vozes. Betinho, um dos fundadores do Ibase, nos deixou um legado inspirador, que até hoje dá um sentido do que fazer e, ao mesmo tempo, um método. Merece ser celebrado e a forma mais adequada é fazendo análise da conjuntura atual. A ideia surgiu em troca de mensagens com José Tanajura Carvalho, professor de ciências sociais da UFMG, que também colabora no presente livro. Lembremos antes de tudo o momento político de 1984, quando o livro foi escrito e publicado. Betinho escreveu em sua introdução: “No momento em que toda a sociedade brasileira acompanha ativamente o desenrolar dos acontecimentos políticos, fica evidente que não basta apenas estar com a leitura dos jornais em dia para entender o que está ocorrendo. No volume de informações que é veiculado todos os dias é necessário identificar os ingredientes, os atores, os interesses em jogo. Fazer isto é fazer análise de conjuntura” (Souza, 1984, p.7). Trinta anos após, aquela conjuntura já é história passada. Betinho estava vivendo na aceleração dos acontecimentos que levaram ao fim da ditadura. Naquele momento ocorreu uma campanha cívica que, hoje podemos dizer, é um marco histórico. As “Diretas Já” talvez sejam uma das campanhas cívicas mais memoráveis na história recente do Brasil. No final de 1983 e janeiro de 1984, milhões de nós nos mobilizamos por democracia. Para instituí-la, ocupamos ruas e praças das cidades. Com nossa mobilização, demonstramos na prática que é sempre nas ruas e praças que se forja a democracia em sintonia com a cidadania. Que festa foi aquela! Algo mágico nos tornava finalmente um povo com sentido e projeto, cantando, dançando, compartilhando sonhos de democracia e muita alegria. As “Diretas Já” marcam a mais importante derrota que a cidadania brasileira infringiu à truculenta ditadura. Considero este movimento de cidadania o marco mais emblemático na democratização. O que veio depois em termos institucionais não foi definido ou gestado aí, definitivamente não: Nova República, Constituição de 1988, primeira eleição direta de

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1989 e tudo mais. Mas a refundação da democracia, a implosão das contradições políticas dominantes até então, por assim dizer, abrindo possibilidades totalmente novas, se deu aí, através das “Diretas Já”. Bem, Betinho falava da conjuntura inaugurada com as “Diretas Já”, onde ele foi ator. Nossa tarefa de avaliar algo fundante no passado é mais simples. Trata-se de análise histórica de uma conjuntura que não se move mais, só nossas interpretações do ocorrido podem divergir. É importante lembrar isto porque a análise da conjuntura é sempre um ato político de tomar posição. Mas é muito mais verdadeiro e de risco fazer análise de conjuntura enquanto se desenrolam os acontecimentos no presente, intervindo sobre ela. Segundo Betinho, fazer análise de conjuntura é se alinhar com uma das leituras possíveis, já que se trata de analisar agindo ao mesmo tempo. Betinho lembra que uma, a dominante, é “...a partir da situação ou ponto de vista do poder dominante (a lógica do poder)”. A outra é “...a partir da situação ou do ponto de vista dos movimentos populares, das classes subordinadas, da oposição ao poder dominante.” (Souza, 1999, p.15 e 16). Não existe análise de conjuntura desinteressada, pois ela é “...uma análise interessada em produzir um tipo de intervenção política; é um elemento fundamental na organização da política, na definição das estratégias e táticas das diversas forças sociais em luta.” (Id. Ibid. p.17). É com esta perspectiva que o presente livro foi organizado. Trata-se de trazer ao debate um olhar mais aprofundado, alternativo ao que prepondera no “clima” do espaço público, com seus mal estares e incertezas, mas com suas possibilidades também. Uma conjuntura que, na minha análise, pode definir para onde vai a democracia brasileira e qual o caminho que precisa ser criado. Claro, como ainda o próprio Betinho nos alerta, fazer análise de conjuntura é caracterizar as questões centrais que ocupam o cenário social e político (Id. Ibid., p.45). Mas quais são essas questões? Na organização do livro me inspirei no Grupo de PG – Políticas Governamentais, que Betinho criou e animou no Ibase, com reuniões mensais de seus colaboradores e parceiros políticos – eu diria cúmplices – desde a publicação do livro de que estamos tratando até o seu falecimento em 1997. Aliás, foi via PG que Betinho me arrastou até o Ibase na segunda metade dos 80 e me fez diretor em 1990. A PG, para quem dela participou – éramos um grupo de uns 50 a 60, mas apenas uns 20 a 25 “duros”, sempre presentes – foi uma experiência política das mais marcantes. Dela se originou a revista do Ibase Políticas Governamentais, que foi mudando de nome, ainda com o Betinho ativo, e se tornou Democracia Viva, após seu falecimento. O que importa mais aqui é o método da PG. A reunião era na 3a quarta-feira do mês, sempre após o expediente e

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com boa cerveja. Depois de debates acalorados, havia o jantar em grupo. Houve uma vez, na quarta-feira após o fatídico Plano Collor, em março de 1990, que o Ibase implodiu com tanta gente presente. O que uma mera análise de conjuntura pode mobilizar! O fato é que me inspirei no método do Betinho e seu exército de Brancaleone. Toda vez a gente começava o debate com uma avaliação da conjuntura em seu conjunto. Tratava-se de afinar a percepção, de forma compartilhada, quais eram as questões. Isto tomava a metade do tempo da reunião da PG. A segunda metade era de avaliação de questões específicas. A ordem era determinada pelo debate prévio, que nos levava a priorizar questões. Nunca deixávamos questões de fora, pois, existe a tal relação entre estrutura e conjuntura, como muito bem lembra Betinho. No momento algumas questões sobressaem, mas o processo estrutural é uma condicionante a sempre ter presente, pois muda em outro ritmo. Como nos lembra Marx, que tanto inspirou o Betinho, a gente faz história, mas não escolhe as condições. Tudo isto é para dizer que, na organização do presente livro, faltou uma PG para caracterizar e hierarquizar as questões. O jeito foi convocar velhos e novos colaboradores, mas sem a reunião prévia para discutir em conjunto. Só trocamos mensagens por Internet e assim mesmo de forma limitada, pois como pivô na armação do livro não socializei as mensagens. Infelizmente, não deu para ter todo mundo sondado. Todos manifestaram adesão à ideia, mas “a conjuntura individual”, com outros compromissos, os impediu de participar. Nem sei o quanto as diferentes pessoas que participam com textos primorosos sobre questões específicas no Brasil de hoje se conhecem e que relações pessoais e, sobretudo, políticas tem entre si. A obra coletiva é, ao mesmo tempo, uma novidade para cada uma e cada um que contribuiu para ela se tornar viável. Por que tais questões? Por que esta ou aquela não estão incluídas? As lacunas deste livro de homenagem ao memorável livro do Betinho são quase todas minhas. Um pouco foi devido ao curto espaço de tempo que dei às pessoas consultadas. Fatalmente alguns temas e algumas contribuições fundamentais não foram possíveis. Mas asseguro, cada texto é em si uma preciosidade. A obra pode parecer até apontar diferentes caminhos. Mas existe análise de conjuntura que não acabe assim mesmo, com dúvidas qualificadas? O aspecto fundamental é que a análise de conjuntura é um subsídio fundamental, mas não é ela que por si só molda as opções políticas fundamentais. Ela ajuda nas opções de rumos e caminhos a construir. A construção de uma sociedade de direitos de cidadania para todos e de sustentabilidade socioambiental, através da radicalização da democracia pela cidadania ativa, de algum modo nos une neste esforço de análise.

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Boa leitura! Sugiro também uma releitura do livrinho do Betinho com olhares de hoje, pois sempre podemos ser surpreendidos com novas descobertas metodológicas. Afinal, caminhos se fazem andando, mas com avaliações sistemáticas do passado, do presente e dos desafios na construção de outro futuro. Rio de Janeiro, agosto de 2014, nos 33 anos do Ibase Cândido Grzybowski

Referência bibliográfica: SOUZA, Herbert José de (Betinho). Como se Faz Análise de Conjuntura. 19.edição, Petrópolis, Vozes, 1999.

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DAS ELEIÇÕES AO LONGO PRAZO Por José Maurício Domingues Professor do IESP-UERJ autor de vários livros, entre eles O Brasil entre o presente e o futuro (Rio de Janeiro: Mauad, 2013)

No momento em que escrevem-se estas linhas, a campanha eleitoral formal não começou ainda e é, portanto, difícil dizer exatamente como se desdobrará, afora que será extremamente dura. Mostra-se ainda bastante provável a vitória de Dilma Rousseff. Se a situação da economia vai se complicando e ela não consegue empolgar, os candidatos da oposição estão se demonstrando espantosamente débeis. Reconhecendo as demandas das manifestações de 2013, Dilma começa a falar em ampliar as políticas de saúde e educação, mas qual será sua ênfase nisso ainda não é claro. Avançará realmente na direção de políticas sociais universais, na prática rechaçada por seu governo e os de Lula, que privilegiaram as políticas setorializadas e focalizadas? Deslocar-se-á claramente para a esquerda, para além do discurso de mais modernização estatal e econômica (fala agora de desburocratização)? Eduardo Campos e Marina Silva querem jogar com a ambiguidade de seus possíveis apoios, acenando simultaneamente aos eleitores descontentes do PT e do PSDB. Mas suas propostas parecem pouco consistentes, resumindo-se a demanda por uma “nova política” e pela retomada econômica, escondendo o que parece ser um forte viés econômico conservador inconfesso e a falta de novas políticas sociais, com inclusive pouca ênfase na questão ambiental. Aécio Neves tentará um discurso que oculte o profundo conservadorismo neoliberal de sua candidatura, mas é duvidoso se isso funcionará. Trata-se também de ver qual será a magnitude dos votos nulos e brancos, bem como das abstenções, que a falta de maior substância dos candidatos pode ocasionar, com o PSOL estando longe de evidenciar capacidade de servir de estuário a esse descontentamento, embora seguramente venha a contribuir para levar a eleição para o segundo turno, juntamente com outros candidatos, mais à esquerda e mais à direita. Tratase ainda de aquilatar o efeito dos fortes desalinhamentos políticos no plano estadual. Enquanto isso, a erupção das ruas permanece como possibilidade: fragmentadas e débeis neste momento, podem voltar a agitar-se fortemente em 2015, sobretudo se a economia travar e realizar-se um ajuste pós-eleitoral duro, como muitos preconizam.

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Se tiver Campos e Marina como adversários no segundo turno, Dilma corre maior risco, pois podem juntar as parcelas insatisfeitas da classe média com setores oriundos do dito “lulismo” desgostosos com seu tecnocratismo, surdez política e a falta de propostas mais incisivas de avanços econômicos e sociais. Terá de dobrar esta aposta. Batendo-se com Neves, Dilma estará, como sabem Lula e o comando de campanha petista, em zona de conforto muito maior. Isso é verdadeiro em particular se puder contar com o apoio de Campos no segundo turno. Para este o risco de suicídio político caso não apoie Dilma será grande, podendo, por outro lado, mais matreiramente e fracassando Neves, tornar-se o principal expoente futuro de uma oposição de centro-direita mais moderada. Difícil será manter um pé de cada lado, como o PSB vem fazendo por ora no plano estadual. Mas o que assombra mesmo é a baixa qualidade da discussão política. Não é apenas que os intelectuais estejam deslocados do debate público – a não ser quando instrumentalizados por algum partido, grupo ou candidato –, embora isso seja importante e explique em parte a debilidade das ideias em pauta. Houve enormes avanços no Brasil nas últimas décadas. Mas estamos na atual conjuntura carentes de discussões e direção mais contundentes. O pragmatismo radical dos partidos brasileiros de resto empurra nessa direção. O país, à esquerda e à direita, se revolve em torno a temas aos quais empresta relevância muito superior a que efetivamente possuem. Muitas vezes com muita demagogia. A questão da Copa do Mundo é o principal exemplo disso, com o governo afirmando sua enorme importância – a qual não tinha – e a oposição, principalmente a de esquerda, ou ultraesquerda, buscando usá-la para mobilizar aqueles que supostamente estariam à beira de mais uma explosão, como a de junho de 2013 (já para não falar das brutais lutas internas que se ensejaram nesse processo e da patética e cada vez mais obviamente nefasta ação dos chamados black blocs, bem como das interpretações das vaias a Dilma). A Política Nacional de Participação Social proposta por decreto pelo governo federal quase um ano depois daquelas massivas manifestações é outra instância da vacuidade do debate. Em si em princípio em parte positiva, mas proposta sem jamais engajar a opinião pública, tal política não significa necessariamente uma maior democratização do estado brasileiro, talvez implicando, sobretudo mais burocracia participativa; mas de modo algum e obviamente, ao contrário do que vocifera uma direita reacionária, representa tampouco a débâcle da democracia representativa. Por outro lado, se o combate à pobreza e ao racismo, assim como outros temas sociais importantes, se mantém com justa centralidade na pauta política, a defesa das políticas que o levam a cabo se faz de maneira tão dogmática e com frequência superficial que buscar sequer tematizá-las enfrenta uma hostilidade enorme das fileiras governistas e de alguns movimentos sociais. Pior só mesmo o debate sobre

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uma suposta nova classe média, teórica e politicamente bizarro. Se é verdade que as conjunturas se constroem a partir de fenômenos concretos, que um ou outro seja singularizado e ganhe destaque nas estratégias das forças políticas é significativo no que se refere a suas orientações e apostas. Busquei assinalar em outro lugar (Domingues, 2013) quais seriam os limites do projeto levado a cabo pela coalizão PT-PMDB-PSB-PC do B-etc. e os governos Lula e Dilma – o que defini como um social-liberalismo democratizado. Em particular o modelo de inclusão dos mais pobres por meio das transferências de renda condicionadas, da elevação do salário mínimo e do crédito barato em grande medida bateu em seu teto; seus impactos não podem ser senão marginais nas atuais condições, além dos problemas que já em si conjura com o culto liberal à integração social via mercado. Investimentos em infraestrutura e um salto de produtividade via tecnologia põem-se como desafios para o Brasil, ao lado da reforma tributária e da libertação do país do sistema da dívida pública que impede um maior protagonismo estatal nas políticas sociais e no desenvolvimento econômico. Aliás, é revelador que tema tão crucial esteja totalmente ausente do debate eleitoral. Por outro lado, aprofundar a democratização, com a pluralização da mídia, e buscar a reforma política – que como bandeira isolada não deve ser, porém, capaz de mobilizar a população – são outros temas candentes da agenda nacional. Aqueles primeiros dependem de acordos com o empresariado, estes tendem a opor o governo a frações significativas das classes dominantes. Mas quero aqui aprofundar, sobretudo alguns aspectos que levam para além desse horizonte mais imediato. Primeiro, a questão da democracia. Costumava-se na esquerda opor democracia “real” à “formal”. O duro aprendizado do século XX nos ensinou que por mais formal-liberal que se apresente, a democracia é imprescindível. Mas isso não nos deve impedir de perceber que o caráter do Estado não é dado simplesmente por um conteúdo de classe genérico. Ao lado do aspecto abstrato da cidadania e da legalidade estatal, é preciso reconhecer o conteúdo concreto de suas políticas e como as diversas classes, raças, gêneros, etnias, atravessam o Estado. Não por acaso ao período áureo da democracia, não obstante seus limites correspondeu o apogeu da socialdemocracia européia, com suas fortes políticas sociais tendencialmente universalistas e desmercantilizadoras da força de trabalho e da vida em geral, e a participação massiva das classes trabalhadoras na política, através de partidos e sindicatos, mesmo quando a esquerda, inclusive a comunista, não esteve no poder ou esteve e atuou sem grandes ambições de mudança social. Os dois aspectos – políticas sociais e participação de massas – caminhavam juntos, incluindo com frequência também uma renovação do pessoal político que gerenciava o Estado, outra face concreta sua e contraposta a seu aspecto burocrático abstrato e legalista.

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No Brasil, 12 anos de PT no poder tiveram impactos significativos em ambos os sentidos, embora estejamos longe inclusive das conquistas da socialdemocracia, concentrados em políticas focalizadas e setorializadas. Há, todavia o risco de que, pela falta real de mobilização nos primeiros momentos desses governos e de sintonia entre a que ora ocorre e o aparato político que sustenta esse projeto, esses dois aspectos percam sua capacidade de produzir sinergia e, ao lado de um participacionismo bastante formal, um desalento com a efetiva participação tenha lugar, sem que haja avanços maiores também nas políticas sociais. Os lados abstrato e concreto do sistema da cidadania e da política têm de ser mais fortemente costurados e avançar juntos, tanto pelo lado dos que ocupam o poder formal da república quanto da parte dos movimentos sociais, que necessitam ver o próprio Estado como campo de lutas. É esse entendimento preciso que o MST vem demonstrando em sua bandeira recente de uma “reforma agrária popular”, em que o apoio do aparato estatal é decisivo, alternativamente ao que o governo dá ao agronegócio de exportação. Isso implica também pensar o papel da classe média. Um estranho fenômeno produziu-se nos últimos dez anos. Uma parcela da classe média, desde sempre de direita, no que São Paulo, estado e capital, se destaca, radicaliza-se e destila um ódio típico dos que perdem privilégios. Os ricos, as classes dominantes, seus porta-vozes, aproveitam-se disso para criar anteparos que defendam seus próprios privilégios, que seguem intocados. Ninguém menos que Lula assinalou o caráter pró-empresário e mesmo pró-capital financeiro de seus governos – com Dilma, em grande medida por falta de projeto claro e por inabilidade política, se desentendendo com o primeiro e na base do voluntarismo tentando enfrentar o segundo – e fracassando. Há obviamente parcelas anti-distribucionistas nas classes médias, assim como o capital, pequeno, médio e grande, tem no mínimo desconfianças fortes em relação aos governos das coalizões lideradas pelo PT. Mas há também setores das classes médias que nada têm de reacionários. Não se pode esquecer que, ao lado das classes trabalhadoras, que os pagam indireta e regressivamente, é em larga medida a classe média que paga impostos diretos, sobre a renda, e pouco ou nada recebe em troca, em especial em saúde, educação e segurança. E que, ainda que os dados nos faltem, pois são ciosamente ocultos pela Receita Federal, a concentração da riqueza no Brasil no topo da pirâmide (seu 1% ou menos) certamente não diminuiu. Nem a corrupção público/privada, que suga recursos públicos. Isso deve ser revertido. Em lugar da saída fácil de tirar do meio da pirâmide (ainda que o meio por vezes esteja bem lá em cima no Brasil) e entregar aos mais pobres, com a militância de esquerda festejando cada bobagem reacionária e reativa produzida por aqueles setores, a questão é trazer para a esquerda parte significativa das classes médias baixas e médias, mediante políticas

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universais que criem uma solidariedade mais ampla e igualdade social, ampliando inclusive seu número por meio exatamente dessas políticas sociais (como professores, médicos, assistentes sociais, gestores públicos). É preciso taxar realmente os ricos que, como se sabe, pouco pagam de impostos. É preciso criar, sobretudo no longo prazo, uma coalizão distributivista mais forte e com um programa mais incisivo, impedindo inclusive que aventureiros de direita e messianicamente autoritários possam no futuro se aproveitar do desalento que parte dessas classes médias, mas também dos trabalhadores pobres, manifestam frente à política hoje. De certa maneira o Rio de Janeiro será o cenário de ensaio deste tipo de perspectiva nas eleições estaduais de 2014, que podem dar a vitória, com um pouco de sorte e inteligência, a Lindberg Farias, juntando exatamente setores populares e classes médias especialmente da capital. O foco crítico nos fortes setores de classe média reacionária, sobretudo de São Paulo – que também as tem progressistas – deve ser relativizado, não pode servir de bússola absoluta à política nacional – aliás, é o caso de investigar mais detidamente que setores transformaram Fernando Haddad em prefeito da capital. Além do mais, se as relações econômicas são fundamentais para entender o posicionamento de um “ator”, a cultura e a política em si em larga medida por ele são responsáveis. Se não, como entender que, especialmente no que tange à presença do Estado na economia e ao combate à pobreza, com base em perguntas genéricas em pesquisa recente do Datafolha (2013), 41% se considerem de “esquerda” ou “centro-esquerda” (no que se destacam aqueles com mais educação e bom nível salarial), 39% de “direita” ou “centro-direita” (com predomínio dos mais velhos, com menos escolaridade e menor renda), com 20% situando-se ao “centro”? O desenvolvimento, por seu turno, se põe inevitavelmente como eixo a ser debatido. Patinamos na improvisação. Não há exemplo pior disso que as desonerações repetidas das linhas de automóveis e outros bens de consumo duráveis (no que além do mais se destaca a aliança entre empresas e o corporativismo influente dos sindicatos do ABC), afora talvez o que ocorre no interior do país, com a mineração e um desenvolvimentismo energético que não carecia sequer ser tão brutal e antipopular. Mas não conseguimos especialmente dar o salto necessário na produção de novos ramos tecnológicos, nem na agregação de valor a nossas cadeias produtivas na indústria. Na história latino-americana as empresas estatais foram as únicas que buscaram a inovação tecnológica, serão elas que no futuro talvez tenham que de novo fazê-lo. Ao lado disso, sumiu em grande medida da discussão e precisa ser retomado, retirado inclusive da exclusividade com que se apropria dele hoje o discurso vago de Marina Silva, o tema do desenvolvimento sustentável e do meio-ambiente. Em um país como o Brasil, deixar de lado o desenvolvimento é perder o centro do debate, pois este é um justo anseio popular; de resto, mudar o padrão de acumulação capitalista predatório e mesmo eventualmente superá-lo implica em introduzir novas tecnologias, que somente o desenvolvimento pode gerar e generalizar na base produtiva e do

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consumo – a começar pelo consumo coletivo, do qual a mobilidade urbana é hoje a questão mais gritante. E certamente ajustes recessivos têm de ser afastados, pois nada resolvem e geram impactos sempre brutais na vida das classes populares. Difícil e em geral frustrante, construir uma nova agenda com os sindicatos e os movimentos sociais, assim como renegociar com o empresariado esse projeto – de maneira colaborativa, ao mesmo tempo que conflituosa – é fundamental. Aí obviamente incide a inflexão na política de alianças, criando-se base mais sólida para garantir essa renegociação – do contrário trata-se de apostar em mais do mesmo ou em uma ruptura completa com o capitalismo, o que não parece de modo algum plausível no desdobramento da conjuntura. O que não nos desobriga de buscar identificar que mecanismos hoje poderiam prometer amanhã passos nessa direção, apostando-se na experimentação social. Enfim, dramatizaram-se nos últimos dois anos as questões da sexualidade e das relações de gênero e mesmo o tema do aborto, ao lado das relativas às drogas e à segurança, impactando as identidades e a vida cotidiana. Aqui, contra a opinião dominante generalizada (ver Datafolha, 2013) e como projeto, trata-se em primeiro lugar de reafirmar direitos garantidos constitucionalmente, para todos e sob todos os aspectos, de pensar a saúde pública e a emancipação da mulher (embora dizer-se “a favor” do aborto seja estratégia no mínimo discutível) e de rejeitar soluções fáceis e brutais, como a redução da maioridade penal, avançando na descriminalização de condutas que dizem respeito diretamente aos cidadãos como indivíduos (como no caso das drogas). Ainda que não se devam desconhecer problemas de fundo mais complicados, herança de um padrão social violento e de uma pauta cultural em que simplesmente ter grana põe-se como prioridade para muitos, ao lado da erradicação da pobreza e da abertura dos horizontes de progresso individual e coletivo, a descriminalização das drogas ajudaria enormemente no enfrentamento da questão da criminalidade, ao passo que a pauta da reforma das polícias se mostra também inadiável. Por outro lado, há muitas vezes no tom da esquerda um suposto radicalismo anticlerical que remonta ao século XIX e que se encaixa mal com o pluralismo que se demanda do mundo contemporâneo. Os evangélicos são o alvo principal disso, porém os católicos, como por ocasião da visita do papa em 2013, por vezes acabam na alça de mira dessa postura de denúncia infantil e anacrônica da religião. Embates no caso desses temas são inevitáveis, contudo, mais uma vez, é preciso evitar uma polarização que leve os setores religiosos completamente para o campo da direita, mantendo as vias do diálogo respeitoso aberto sempre que possível. A maior parte da população brasileira é religiosa e o estado e suas leis têm necessariamente que negociar sua

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existência nesse contexto, não obstante o respeito aos diretos individuais universais do cidadão permanecer e precisar aprofundar-se também como pedra de toque da democracia. Em suma, se a conjuntura neste momento é pouco excitante, com o debate que é fundamental para o futuro do país realizando-se em um nível aquém do necessário, isso não nos deve fazer esquecer de que há uma agenda a ser (re)construída e que organizações, partidos e movimentos sociais, antigos e novos, têm que se engajar nessa tarefa. Passadas as eleições, é disso que precisamos tratar. A curta duração se decide amanhã. A longa nos demanda muito mais imaginação. Em, 29/06/2014 Pós-escrito (em 19/08/2014) Que a contingência comanda os destinos humanos é sabido, que ela teria tanta força para transformar o cenário de 2014, algo bem mais inesperado. A eleição parecia congelada e morna. A trágica morte de Eduardo Campos, a exemplo das manifestações de 2013, a alterou radicalmente, embora mudanças com o início do horário eleitoral não estivessem descartadas. Marina Silva já mostra seu potencial para canalizar insatisfações e votos antes sem desaguadouro e como candidata a passar ao segundo turno. O segundo turno tornou-se inevitável e seu resultado, imprevisível. Se Dilma Rousseff entra na eleição com o maior cabedal de votos e uma base popular sólida e aparentemente imexível, e será certamente a primeira colocada na primeira fase da eleição, Aécio Neves vê suas chances minguarem. Entretanto, as interrogações permanecem e a mudança na candidatura do PSB de modo algum as dissipam: serão esses governos futuros – inclusive na confusão crescente do plano estadual – capazes de propor um debate e ações que façam avançar a democracia, os direitos sociais e o desenvolvimento econômico, no sentido que o Brasil necessita? É o que demanda sua população, dos “pobres” trabalhadores à classe média remediada (a real, não a alardeada pelo IPEA). Os próximos lances eleitorais em parte responderão a essas perguntas, mas somente 2015 o fará de forma mais precisa. De todo modo, a campanha esquentará e o número de votos nulos e brancos diminuirá. Isso é bom para o Brasil. Referência bibliográfica: Datafolha, Perfil ideológico dos brasileiros, dezembro de 2013 (www.datafolha.com.br). DOMINGUES, José Maurício. O Brasil entre o presente e o futuro. Rio de Janeiro: Mauad, 2013.

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APROXIMAÇÕES DA SITUAÇÃO INTERNACIONAL Por José Correia Leite Professor de Filosofia e Sociologia da Comunicação na FACOM-FAAP. Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC. É um dos promotores do processo Fórum Social Mundial e do Movimento Ecologia Urbana

Dois temas ganharam o noticiário internadanielcional nos últimos meses, um com muito alarde, mas menos importante, a disputa na Ucrânia, e outro discretamente, mas com muito maior alcance, o colapso da política estado-unidense para o Oriente Médio. Fronteiras estão, em ambos os casos, sendo redefinidas e seus desdobramentos pesarão no longo prazo. Estes processos emergem em um cenário mundial de profundas transformações estruturais no capitalismo e na geopolítica global, com o aprofundamento das tendências ao multilateralismo e ao crescimento das disputas de espaço entre os imperialismos estabelecidos e os emergentes. As disputas no mercado mundial e sua expressão política A economia mundial tem se caracterizado, desde o final do século XX, por uma desconcentração do crescimento: entre 2000 e 2013 os países centrais cresceram em média 1,6% ao ano, enquanto o resto do mundo crescia 6,1% ao ano (ou 1,0% e 4,7% ao ano em termos de crescimento do PIB per capita). Mas ela entrou, depois de 2008, em uma onda longa de baixo crescimento, com o esgotamento do padrão neoliberal, sem que nenhuma alternativa emergisse. Agora, a China continua a crescer mais de 7% ao ano, o que é muito menos do que os mais de 10% do período anterior; os Estados Unidos reagem à crise restabilizando sua economia, mas em patamares muito baixo; e a Europa está estagnada e, portanto, recuando em termos relativos (com o fortalecimento da Alemanha em seu interior em detrimento dos países da bacia do Mediterrâneo). No conjunto dos países centrais, vemos os custos do combate à crise financeira global serem descarregados nas costas da população trabalhadora através das políticas de austeridade. Todas as potências – os velhos imperialismos e os poderes emergentes – são internamente dominados pelo mesmo bloco de classes sob a égide de do capital financeiro globalizado. Nos Estados Unidos e no Brasil, na Rússia e na Índia, no Japão e na África do Sul, na Europa e no China, na Turquia e na Austrália, no Irã e no Canadá uma solidariedade econômica-socialideológica unifica as classes dominantes sob parâmetros e horizontes comuns. Mudanças no

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pessoal dirigente em cada estado (ou proto-estado, como no caso da Europa) não tem representado mudanças que alterem as prioridades e o modo de regulação do capitalismo; não há questionamentos ao marco neoliberal. Mas, em cada país e região, estas classes se organizem em torno de estados para disputar e fazer valer seus interesses frente a outras burguesias. Na ausência de outra forma de organização social colocada no horizonte e mesmo de outra forma de regulação do capitalismo, estas disputas tendem a sequestrar a conflitividade social e expressa-las como nacionalismos, conflitos étnicos ou disputas de fundamentalismos religiosos, processos que, frequentemente, ocupam quase todo o espaço político. A nova conflitividade social Depois da erupção, em 2011, de importantes mobilizações sociais no mundo árabe, na Europa e em países por todo o continente americano – mobilizações que podem ser interpretadas como respostas sociais iniciais às políticas de austeridade postas em marcha depois de 2008 –, há uma recuperação da iniciativa política por parte dos poderes estabelecidos. O crescimento de correntes conservadoras e xenófobas que ocorria nos Estados Unidos desde de Reagan e agora sob a bandeira do Tea Party, parece se verificar também na Europa, embora ai um início de consolidação de novos projetos partidários de esquerda socialista em alguns países do Sul possam também vir a se revelar mais duradouros do que os fugazes movimentos dos Indignados. No Egito, o impasse na relação entre a Irmandade Mulçumana e as classes medias seculares deu condições para que os militares recuperassem a iniciativa política e restaurassem um governo conservador. E no restante da região governos da ordem foram restabelecidos nos países abalados por mobilizações sociais. Em nosso continente, há um cenário mais aberto, em que mesmo face ao refluxo nos ocuppies nos EUA, processos importantes de atividade popular continuam emergindo ou se mantendo, revelando que tendências mais profundas animam a luta social em todo o continente, e produzem o esgotamento não só do neoliberalismo, mas também dos projetos dito neodesenvolvimentistas da esquerda moderada; em muitos países projetos sociais dirigidos às camadas mais pobres da população tem permitido uma expansão do mercado interno, financiada pela venda de commodities para a China e outros países industriais da Ásia. O caso do Brasil é, neste sentido, exemplar. As políticas implantadas por dois governos Lula trouxeram para o mercado formal dezenas de milhões de pessoas que antes estavam dele alijadas. O resultado foi não só a expansão do consumo de massas, mas também a emergência de uma grande demanda, até então reprimida, de acesso a direitos e serviços antes fora do alcance destas populações. Na medida em que o projeto aplicado não produziu nem uma mudança da estrutura social nem a desconcentração da renda financeira, as aspirações emergentes não encontram

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respostas pelo estado, continuam sendo canalizadas para o mercado e são rapidamente frustradas. O resultado, depois de dois anos e meio de um governo especialmente inepto de Dilma, foram as mobilizações de junho de 2013. Tendo emergido espontaneamente, sem que nenhuma organização social e política pudesse utilizá-las como alavancas para mudanças sociais e políticas mais profundas, elas se esgotaram, não sem antes modificar a psicologia coletiva das massas e sacudir a passividade dos mais diversos setores da população trabalhadora. Suas sementes ficaram, para os setores mais radicalizados, na forma de comitês populares para protestar contra os gastos e despejos da Copa 2014 de futebol. Mais importante, elas abriram espaço para que um grande número de categorias de trabalhadores se mobilizassem por demandas salariais em 2014, em muitos casos contra as direções de seus sindicatos – no mais alto nível de atividade sindical em décadas. Este processo também reforçou um questionamento internacional mais complexo aos megaeventos esportivos que tem sido uma fonte de acumulação de alguns setores do capital em detrimento das populações dos países sede destes eventos. Passada a Copa do Mundo, o que diversos analistas têm chamado de mal humor popular recrudesce, produzindo uma queda do apoio ao governo Dilma e uma previsível retomada de mobilizações sindicais para as categorias com data base no início do segundo semestre. Mas as alternativas de orientação governamental postas são ainda um neoliberalismo mais ou menos ortodoxo ou um neoliberalismo light com financiamento ao consumo. Depois de décadas de neoliberalismo, o problema de uma alternativa ao sistema dotada de credibilidade para se tornar uma nova orientação de governo se coloca por toda parte. Onde confrontos mais agudos ocorreram e projetos político-partidários de esquerda conseguem emergir da dinâmica social, como na Grécia ou na Espanha, podemos dizer que uma dinâmica de recomposição da esquerda se abre e alternativas à velha esquerda aderida ao sistema começam a polarizar a sociedade. Mas estas são, até agora, mais as exceções do que a regra de um processo que deverá ser longo e desigual. A nova centralidade da questão ambiental A esquerda que se formou ao longo dos séculos XIX e XX buscou dar expressão política aos conflitos sociais ligados principalmente à dinâmica de classes e à desigualdade no acesso à riqueza. Estes problemas permanecem e se aprofundaram nas décadas neoliberais, embora a globalização tivesse permitido ao capital desconcentrar a produção e mover livremente suas mercadorias pelo planeta, colocando a classe trabalhadora de todo o planeta em concorrência e fragilizando seus setores mais organizados.

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Mas há enormes desafios colocados para a humanidade nas próximas décadas que colocam questões suplementares para o processo de recomposição, em especial uma crescente demanda de energia, as perspectivas da falta d’água, o colapso de ecossistemas e a perda de biodiversidade e o inexorável aquecimento global decorrente do caráter fossilista da economia capitalista. As lutas ambientais em torno destas questões têm crescido e se tornado uma fonte de conflitos importantes, sendo resgatadas por partidos verdes, mas ai esvaziadas de sua dimensão antissistema. E são, na maior parte das vezes, ignoradas ou bloqueadas pela esquerda tradicional, retardando o processo de recomposição de uma esquerda socialista integral, capaz de responder à totalidade do desafio societário contemporâneo. A aproximação da data limite para as negociações climáticas – na COP 21, em Paris, em dezembro de 2015 – torna candente superar-se a clivagem entre o social e o ambiental com caminhos estratégicos de enfrentamento do sistema. Mas aqui, novamente, o processo de recomposição tende a ser complexo e desigual. Ucrânia: redistribuição de poderes e direitos populares Em um mercado mundial cada vez mais denso e conflitivo, o avanço de uma potência tem que se dar às custas de outras, abrindo sucessivas questões nacionais. A União Européia e os EUA têm disputado a Ucrânia com a Rússia desde o colapso da União Soviética, condicionando a possibilidade de autodeterminação do povo ucraniano. Sucessivos governos de oligarcas nascidos da antiga burocracia soviética tem, de outro lado, sequestrado a política das mãos da população ucraniana. No último período, com a crescente perda de legitimidade do sistema político, aprofundada sob o último governo Ianukovich, que se equilibrava entre a Rússia e a Europa, emergiu um movimento radical por demandas sociais, nacionais e políticas, centrado na praça Maidan de Kiev. Ele congregou diferentes facções e foi disputado por diversos setores, inclusive uma minoria abertamente fascista. A derrubada de Ianukovich não foi um golpe de estado fascista, como descreveu a propaganda russa, mas também não estruturou um governo democrático, como que a propaganda estadunidense ou da imprensa da Europa Ocidental. Um governo frágil provisório dos oligarcas foi incapaz de inspirar segurança para a minoria russa da população ucraniana. O governo Poroshenko, afinal eleito democraticamente, mas boicotado pelas correntes russas, assumiu fragilizado.

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O resultado foi triplo. Abriu-se caminho para a anexação da Crimeia pela Rússia. Abriu-se uma disputa separatista armada nas regiões industriais do leste do país de maioria russa. E instalou-se uma guerra civil entre o governo central do país e rebeldes separatistas respaldados por Moscou. A dinâmica social volta a ficar subordinada à dinâmica da luta nacional, abrindo caminho para correntes e políticas xenófobas. A derrubada de um avião comercial da Malaysia Airlines, em julho, evidencia a gravidade da guerra em curso e agudiza a disputa. Oriente Médio: a chaga palestina e o colapso do estado iraquiano Um novo ataque israelense contra a população do gueto de Gaza – um equivalente de Guantanamo para os EUA que carece da frieza burocrática da prisão de Washington, aprisionando também parte importante a população civil palestina – recorda ao mundo a permanência sem solução da questão palestina. O curso político do estado israelense, cada vez mais condicionado pelas correntes religiosas fundamentalistas judaicas, torna sua política para com os palestinos cada vez mais xenófoba, alimentando o fundamentalismo religioso mulçumano. É uma espiral de ódio e massacres sem perspectiva de solução. Nesta visão, Israel sobrevive como estado apoiando-se no respaldo norte-americano e no uso da força contra seus adversários, como uma guarnição de uma fortaleza sitiada. Mas isso tende a reforçar um movimento global de boicote econômico a Israel que pode adquirir tanto peso como o movimento internacional de boicote ao regime do apartheid sul-africano. Entrementes, um cruento massacre cobra a vida de um grande número de civis palestinos, sem nenhuma perspectiva de solução política ou militar do confronto. Mas está se desenvolvendo, na região, outro processo decisivo para a política internacional. O Exército Islâmico do Iraque e do Levante (Isis é sua sigla em inglês) tomou um terço do Iraque e proclamou um califado unindo territórios iraquianos e sírios. Esse é também o principal grupo da jihad islâmica contra Assad, na Síria, que deixou de ser reconhecido pela Al Qaeda segundo alguns por ser demasiado fanático e cruel com seus adversários. Um deslocamento de forças desta magnitude é impensável apenas por via militar – 30 mil soldados iraquianos defendiam a região de Mosul e debandaram frente a 800 milicianos do Isis. Isso só foi possível porque grande parte das lideranças tribais sunitas se aliaram ao Isis, inclusive muitos integrantes do regime de Sadan Hussein, já que avaliam que o governo iraquiano está cada vez mais sequestrado pelas correntes xiitas, que também vem tornando o exército nacional iraquiano cada vez mais xiita. Lembremos que Assad é alauita, uma variedade de islamismo que tem mais proximidades com o xiismo. O que vemos é, portanto, um desbordamento acelerado da guerra civil síria para o Iraque

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onde o conflito generalizado opõe sunitas e xiitas e alinha a Arabia Saudita e o Catar com os milicianos sunitas e o Irã, o Iraque, o governo Assad e o Hezbollah. Frente ao colapso iraquiano perante o Isis, os curdos, cujas tropas de auto-defesa no Iraque, os peshmergas, são a força militar mais disciplina da região (muitos lutaram contra as tropas turcas no Curdistão daquele pais), contiveram a expansão do Isis em sua direção e tomaram Kirkuk, principal região petrolífera do norte do Iraque. Centenas de milhares de refugiados de Mosul estão hoje no Curdistão. O governo regional curdo aproveitou a situação e consolidou sua posição nos territórios que reivindicavam, isolando-se do restante do país e planejando declarar-se um estado independente. Bagdad está sob controle de milícias xiitas, que assumiram, junto com a parcela do exército leal ao governo de maioria xiita do Iraque, a defesa da cidade (que é de maioria sunita). Mas o conflito extravasou as fronteiras nacionais e o presidente iraniano declarou publicamente que fará o necessário para a defesa do governo de Bagdad. O governo iraquiano já recebeu o reforço dos basijis, tropas de elite da Guarda Revolucionária Iraniana e um de seus generais está supervisionando a defesa de Bagdad. Irã e os EUA tiveram que abrir negociações sobre a luta contra o Isis. Além do paradoxal realinhamento de forças, que coloca EUA e Irã na mesma trincheira, parece que o futuro do Iraque como estado é muito incerto e seu desmonte é, em se mantendo a situação de hoje, o mais provável. Isso conduziria à fragmentação do país em três regiões – sunitas no sul e centro, curdos no norte e nordeste e sunitas no centro e noroeste, com a definição do equilíbrio final em aberto. Isso seria não apenas uma derrota da estratégia perseguida pelos EUA na região por quase três décadas, mas a sua ruína. A conjuntura internacional não tem, dessa forma, nada de estável. Fortes tensões vêm permeando as relações entre potencias globais e regionais depois de 2008. Conflitos nacionais, étnicos ou religiosos tendem a sequestrar e esvaziar de seu conteúdo anti-sistêmico muitas lutas sociais pelo mundo afora.

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O DESENVOLVIMENTO HOJE Por Sebastião Soares Associado e colaborador voluntário do IBASE desde a sua fundação Participou do Conselho Curador, que presidiu até abril de 2014

Cenários e Enredos Históricos Considerando os cinco séculos de existência do país, o desenvolvimento brasileiro é acontecimento relativamente recente. Durante os trezentos anos do período colonial tudo o que aqui se produziu – e não foi pouca coisa – era destinado à metrópole. A mão de obra utilizada era de escravos trazidos da África ou indígenas que já habitavam o território antes do descobrimento, em ambos os casos tratados de forma precária e desumana, em condições limites da própria sobrevivência. Nenhum resultado dessas atividades aqui permanecia a não ser a miséria daquela população e as conseqüências nefastas da exploração predatória dos abundantes recursos naturais aqui existentes. Assim sendo, não havia continuidade ou sustentabilidade do que se realizava numa situação bem caracterizada pela historiografia com a denominação de ciclos de produção no Brasil Colônia. Com a Independência, no início do Século XIX, pouco se alterou nesse cenário. Em tempos de revolução industrial, que acontecia no hemisfério norte especialmente no continente europeu, continuou-se aqui produzindo bens primários com mão de obra escrava e destinados, principalmente, ao consumo no exterior. Pouco mudou em nossa inserção subordinada no contexto mundial seja do ponto de vista econômico ou político; apenas ficou mais direta e explícita a nossa dependência do Império Britânico. Nesse período o inicio da produção de café no sudeste e de borracha na Amazônia foram destaques. A população brasileira, embora tenha crescido numericamente, pouco evoluiu no período do ponto de vista econômico, social e político. A extinção jurídica da escravidão e o início da imigração organizada, principalmente de europeus para o Brasil, foram fatos significativos. No primeiro caso porque, efetivamente, foi mudança meramente formal, pois os escravos libertos e seus descendentes continuaram padecendo discriminações e exclusões de variada natureza que lhes dificultavam a evolução social e o desfrute de melhores condições de vida. A chegada dos imigrantes, por outro lado, propiciou o contato com pessoas e famílias – operários e trabalhadores – criadas e formadas em ambientes socialmente mais abertos em seus países de

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origem. Ambas as situações determinaram consequências relevantes para a evolução da sociedade brasileira, seja do ponto de vista antropológico quanto social e político. O regime republicano introduziu outro dinamismo à evolução brasileira, com avanços importantes nos campos político, econômico e social. Essa nova dinâmica manifestou-se, sobretudo, a partir do fim da primeira guerra mundial e o início dos anos vinte do século passado e alcançou o clímax na Revolução de 1930. A plataforma de governo da Aliança Liberal explicitava a preocupação com a “...questão social do Brasil (...) e o pouco que possuímos em matéria de legislação social ...”, e o mandato provisório exercido por Getúlio Vargas até 1934, criou o Ministério do Trabalho, instituiu a carteira de trabalho e a jornada de oito horas diárias, o código eleitoral, o voto obrigatório e secreto estendido às mulheres, dentre outras medidas de caráter sócio-político. A Constituição de 1934 também avança nesse sentido, ampliando as conquistas populares no conflito de interesses entre uma parcela crescente de população obreira e urbana com a elite cafeeira e exportadora. Na esfera econômica a modernização do Estado republicano com a elaboração de códigos e leis específicas e a criação de órgãos e instituições voltadas ao fomento de atividades produtivas – também está presente. È emblemático dessa evolução o capítulo Da Ordem Econômica e Social (Artigos 115 a 143) daquela Lei Magna. Criam-se assim, mais de quatro séculos após o descobrimento do Brasil, e embora ainda de forma incipiente, as primeiras condicionantes efetivas para a promoção organizada do crescimento produtivo e econômico do país, e a melhoria das condições de vida de seu povo. Sobre essa base e também orientado por estudos, diagnósticos e propostas para as economias latino-americanas – o desenvolvimentismo cepalino - durante as quatro décadas seguintes foram formulados conceitos e encaminhamentos estratégicos que permitiram efetivar-se um processo relativamente duradouro de crescimento e evolução. Não obstante as dificuldades decorrentes do aumento da inflação e da deterioração do balanço de pagamento o crescimento econômico brasileiro ocorreu em nível elevado, com a evolução anual do PIB situando-se no entorno dos 10%, e em alguns anos até ultrapassando essa referência. Na perspectiva social, embora tenha havido crescimento da oferta de empregos, o processo inflacionário reduziu o poder de compra da classe trabalhadora e, sobretudo a política de “primeiro crescer para depois distribuir” explicitada nos anos 1970 trouxeram consequências severas para a população em geral. Dessa forma o crescimento econômico acima referido, a despeito da interiorização benéfica promovida pela construção de Brasília e a mudança para lá do governo federal, não aliviou a injustiça social; ao contrário agravou a concentração da renda a nível pessoal e também acentuou os desequilíbrios inter regionais de renda.

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No campo político esse período não foi bom, tendo ocorrido sucessivos eventos muito desfavoráveis em 1954, 1961, 1964 e 1968. Na segunda metade desse período houve uma escalada de violência com o banimento do estado democrático de direito, o cerceamento rigoroso das liberdades individuais e do exercício dos direitos de cidadania, as prisões, as torturas, os assassinatos e os ‘desaparecimentos’ de militantes políticos, a maioria operários e estudantes. Foi um tempo muito tumultuado - os anos de chumbo – que perduraram por mais de vinte anos. Representaram um enorme retrocesso para o povo, afetando perversamente diversas gerações de brasileiros. Até hoje repercute negativamente na política nacional. No início dos anos oitenta a globalização planetária, especialmente nas transações comerciais e financeiras, já constituía uma realidade. Nesse ambiente, o excessivo endividamento externo assumido para financiar os investimentos na década anterior, juntamente com outros eventos internacionais, aqui repercutiram negativamente acarretando a intensificação do processo inflacionário e a desaceleração do crescimento econômico. Adicionalmente, e já na década de 1990, a abertura exagerada da economia aos mercados internacionais globalizados agravou a situação gerando enorme crise cambial que obrigou a renegociação das dívidas externas brasileiras. Nesse momento, já vigorando a política neoliberal, foram realizadas tais renegociações com total submissão às exigências e orientações do FMI/BIRD. Foram reduzidos drasticamente os investimentos e foi implementado um amplo programa de privatização de empresas estatais. Esse programa resultou na liquidação de ativos públicos a preços muito inferiores a seus respectivos valores reais, e teve duas consequências perversas principais: a desnacionalização de setores inteiros, e a obtenção de uma receita muito pequena que pouco contribuiu para a redução do déficit fiscal que se pretendia eliminar. Além disso, os salários permaneceram congelados e foram ampliados os índices de desemprego com a estagnação do crescimento econômico. Houve acentuada deterioração das condições de vida dos trabalhadores e cidadãos que compõem os estratos médios e inferiores da pirâmide social. A estabilidade monetária pretendida com o Plano Real juntamente com a busca da responsabilidade fiscal nas três instâncias federativas, afinal, resultou em relativa estabilidade monetária, o que foi positivo; todavia tem imposto dificuldades para o crescimento mais acelerado da economia brasileira. Além disso, a sustentabilidade do tripé que sustenta esse modelo (administração da taxa de juros interna; manutenção do câmbio flexível; obtenção de superávit primário) é bastante duvidosa, em face das perversas consequências econômicas e sociais dele derivadas e da sua própria eficácia e efetividade nas condições atuais da economia brasileira.

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No aspecto político a recuperação da democracia prenunciada em 1979, com a Lei da Anistia, foi completada nos anos seguintes com a mobilização da sociedade civil. Essa conjuntura culminou com a elaboração e a promulgação, em outubro de 1988, da Constituição “cidadã”. Decorridos praticamente três décadas desde esses acontecimentos, a despeito dos aperfeiçoamentos ainda necessários, constata-se ser este o mais longo período continuo de vida democrática na história brasileira. Segundo Ato – Mudança de Curso Na primeira década e meia do Século XXI o país alterou sensivelmente o curso de sua história econômica. Mantendo a inflação sob controle retomou o crescimento em ritmo que, embora ainda modesto, foi suficiente para enfrentar com sucesso a enorme crise econômico-financeira mundial deflagrada em 2008 e que persiste até agora. Foi possível também constituir e sustentar uma importante reserva de divisas e alcançar, praticamente, uma situação de pleno emprego para os brasileiros. Todavia é necessário avançar no modelo de ampliação do mercado de consumo de massa adotado desde o início do governo Lula, com a realização de investimentos para superar os gargalos existentes e prover a oferta de bens e serviços visando a atender necessidades internas e oportunidades de exportação. A exploração do Pré-Sal, o suprimento de energia elétrica a preços módicos, a ampliação e modernização da infraestrutura de transportes e logística, a melhoria dos serviços públicos de saúde e educação, o saneamento básico, a construção de moradias, a superação das dificuldades na mobilidade das pessoas que vivem e trabalham nas áreas urbanas, constituem uma variada gama de investimentos que precisam ser realizados pela União, Estados e Municípios, com competência e presteza, sem desperdícios de qualquer natureza. Em suma, é preciso avançar e aperfeiçoar a implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e de outros projetos semelhantes. No campo social, o Bolsa Família, os aumentos reais do salário mínimo, o já referido pleno emprego que propicia ganhos reais de salários, os recursos destinados à assistência social no campo e nas cidades, os programas Luz para Todos e Mais Médicos, a ampliação do número de vagas no ensino superior, o Ciência sem Fronteiras e o PRONATEC são alguns exemplos de programas e políticas públicas de sucesso. O resultado foi a redução da pobreza e a escalada de cerca de 50 milhões de brasileiros a níveis mais elevados de renda. Na política os avanços não ocorreram de forma semelhante. Embora por um lado a democracia tenha se fortalecido em diversos aspectos, de outra forma vêm sendo generalizadas posturas

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menos desejáveis de agentes e servidores que atuam nos poderes executivo, legislativo e judiciário, que põem em risco e ameaçam as conquistas acima referidas, de ordem econômica e social. Lentidão e ineficiência de implementação de ações nessas esferas; ausência de nitidez programática, de coerência e continuidade na atuação de governos e de seus agentes; e até a corrupção e barganhas visando à satisfação de interesses pessoais, provocam a descrença generalizada da população na importância da Política, o que constitui um risco efetivo de retrocesso. De fato, este período constitui um primeiro ensaio, ainda incipiente e imperfeito, de um crescimento econômico, socialmente justo e inclusivo, em ambiente democrático. Para aperfeiçoar e avançar são apresentadas a seguir algumas reflexões. Epílogo Desejado O Brasil encontra-se em uma conjuntura repleta de oportunidades e incertezas. Nos próximos anos serão necessárias decisões estratégicas que afetarão o seu futuro ao longo de todo este século. Nessa situação é imprescindível a existência de um Plano Estratégico Nacional, de longo prazo, que contemple os objetivos a alcançar, suas características e atributos, e os meios para consegui-los. Não deve ser apenas um plano de governo ou de um mandato, tampouco uma lei, ou decreto, ou mesmo um conjunto de políticas públicas. Precisa ser um projeto da sociedade política formulado, e implementado, em conjunto com a sociedade civil. Na esfera econômica, buscando um crescimento expressivo. endogenamente equilibrado, com justa distribuição pessoal e regional de seus resultados, e observando rigorosa sustentabilidade ambiental e parcimônia na utilização dos recursos naturais não renováveis. No âmbito social, incentivando a organização de uma sociedade aberta e plural, diversificada e pacífica, sem desequilíbrios, exclusões e discriminações de quaisquer naturezas. No campo político interno, promovendo um aperfeiçoamento institucional do Estado republicano, em suas três instâncias federativas, que assegure a eficiência, a eficácia e a efetividade na atuação dos agentes públicos e que acolha a participação da cidadania ativa em todos os níveis. Nas relações externas adotando uma atitude de harmonia com todas as nações e valorizando os organismos, acordos, entendimentos e decisões multilaterais. São atributos relevantes desse Plano Estratégico Nacional: (i) a inserção soberana no contexto internacional, mas respeitosa e solidária com as outras nações, preservando as autonomias tecnológica, financeira e política do Brasil; (ii) a reforma da educação básica visando à formação de cidadãos conscientes de seus direitos e responsabilidades, capazes de sustentar o desenvolvimento brasileiro com características como as aqui indicadas; e (iii) a radicalização da democracia, como resultado da ação cidadã – de toda natureza e em todos os níveis – da

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população brasileira, mediante a reforma educacional acima referida, a valorização das manifestações culturais inclusive as de origem regional, a multiplicação dos meios de comunicação com a eliminação dos monopólios hoje existentes, e o incentivo a uma formação ideológica e politicamente plural da opinião pública. A implementação desse plano de longo prazo – e até sua própria formulação – não são tarefas triviais, a serem cumpridas, de afogadilho, em gabinetes governamentais. Tampouco será o resultado da ação de governos que têm Poder (até para usufruir com exclusividade os benefícios dele decorrentes). Ou ainda, os que buscam apenas a Governabilidade, mediante negociações esdrúxulas e compondo alianças ineficazes e insustentáveis, mesmo no curto prazo. É necessário ao longo do processo organizar um arranjo liderado, sim, pelos poderes constituídos, mas que alcance um caráter Hegemônico com a participação e a adesão da sociedade brasileira, em todos os seus estratos. Somente assim esse Plano será apropriado e defendido pela cidadania ativa do Brasil e por seus representantes, diretos, nos poderes executivos e legislativos e, indiretos, no judiciário. Esse é o desafio a ser enfrentado imediatamente. Rio de Janeiro, julho de 2014

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GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA BLOQUEADA Por Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Núcleo de Estudos de Políticas Públicas e Direitos Humanos (NEPP-DH/UFRJ)

Nesse artigo pretendemos abordar a relação entre a conjuntura e a democracia, para o que é preciso levar em consideração os processos estruturais e os movimentos de protesto social recentes, que afetam a sociedade brasileira e a América do Sul no início do século XXI. A nossa perspectiva de análise parte da noção de democratização como processo e da democracia como um modo de organização do poder político. Identificamos a noção de democracia com a proposta de formação de governos constituídos como expressão da vontade, da representação, da participação direta e da soberania popular. A democracia como processo precisa ser sustentada pela força social e institucional que cria o contrato social, com o reconhecimento da cidadania ativa enquanto motor das decisões de interesse comum. O que exige a responsabilidade da coletividade para participar das decisões relativas ao bem comum. Na ótica da filosofia da práxis, postulamos a questão democrática como relação entre governantes e governados. A democracia é a forma de governo que se organiza como regime político que inverte, historicamente, a separação governante e governado na direção da sociedade autorregulada. A democracia questiona pela via da força direta da cidadania e do bem comum a limitação do código proprietário que se afasta da escala humana, na forma abstrata do poder monopolístico ou do “moinho satânico” que impõe a ditadura do valor de troca. A lógica progressiva histórica de ampliação dos direitos através do Estado, ou mesmo sua redução e extinção como aparece no horizonte utópico do liberalismo e do socialismo, acaba confluindo na história do pensamento político, como faces diversas e contraditórias de uma longa história de lutas por igualdade e liberdade, com efeitos contraditórios inegáveis na relação com o Estado nação e a definição do alcance da cidadania. Mas o reforço e a manutenção histórica do Estado e, da divisão de poder, nas várias esferas da vida social na modernidade mundo capitalista, fazem com que o tema da democracia se recoloque como o conceito guarda-chuva para pensarmos em como ampliar o poder da cidadania. Como engendrar as formas do governo popular da maioria, com o reconhecimento das liberdades e garantias de divergência de opinião, de representação e com a participação das minorias? Cabe ainda, considerar que a democracia como processo contrasta com a democracia reduzida ao caráter de regras do jogo, ao seu caráter procedimental que acaba por restringi-la a uma forma de seleção poliárquica, ou seja, para o seu uso cada vez

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mais restrito das elites que competem por capital político na economia dos campos do poder simbólico. Na atualidade vemos cenários de insignificância e morbidez da política como crise de representação, com o distanciamento, com o autoritarismo e o esvaziamento do poder de ingerência da cidadania nas decisões de governo. Os ciclos políticos e econômicos destituem e fragmentam o corpo soberano do povo nação na dinâmica de precarização, no contexto da globalização e sob o efeito de desarticulação da cidade organizada. Ao contrário do que afirma o diagnóstico liberal o contrato social, como expressão do poder constituinte da soberania popular não foi tragado pela força das burocracias e das administrações tecnocráticas, sob formas de regime autoritário e totalitário do tipo clássico. Muito menos pelo excesso demandas da cidadania. O Estado foi tragado para o exercício de uma função subordinada para a reprodução do capital. Os aparelhos de Estado, os dispositivos coercitivos, as máquinas técnicas e de controle foram redirecionados para os novos vetores da acumulação flexível. O Estado e os governos passaram, na era do capitalismo globalizado, a ser ocupados por funções movidas pelas lógicas e instâncias ligadas por modos de governar através de tecnologias econômicas. As tecnologias de poder são orientadas pelos grandes interesses bancários e empresariais, por modelos de intensificação da dominação pelo excesso, pelo excedente material, financeiro e imagético. Hoje a mundialização é apoiada por economia política globalizada,com a vitória do capitalismo ocidental que se ajusta espacialmente desde novos impulsos e mercados, como no caso do ajuste pela dinâmica sino cêntrica e leste asiática. O capitalismo mundializado se realiza por uma mais-valia social global, que se reproduz com base em novas dimensões produtivas em redes, cujos fluxos são apoiados pela ossatura dos Estados nacionais e das organizações multilaterais e ETNs. O que conforma o domínio das práticas sociais e espaciais pela constituição de um meio técnico informacional. O espaço nacional no qual se exercem as democracias existentes é condicionado por uma nova dimensão e vetor de espacialização e desterriorialização, através do comando que flui sob mecanismos cibernéticos, semióticos e biopolíticos fortemente subordinados a diretrizes de circulação transnacional. A propriedade intelectual se torna uma expressão jurídica que preside a nova contratualidade de uma economia com base nos serviços, apoiada por infraestruturas comunicacionais conectadas pelas nas novas tecnologias telemáticas. Uma nova grande transformação radicaliza a mercantilização e a privatização que atinge o quotidiano. O modo de governar as cidades pela agenda do empreendedorismo urbano do grande capital e pelas formas de city marketing, que destitui direitos e exige as políticas de (in)tolerância

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e de (in)segurança que reforçam e retroalimentam o controle punitivo como forma de governo. O novo constitucionalismo e neoliberalismo disciplinar transformam as práticas legais e as instituições de comando e regulação, formando agentes que operam as lógicas combinadas da espoliação permanente com a acumulação flexível apoiada no complexo cibernético. A formação de um novo consenso das elites se retroalimenta pelo diagnóstico da crise fiscal do Estado,se legitimada pelo fracasso das utopias e pelo custo e paralisia do poder dos Estados reguladores, que até então eram atravessados pelas formas de “ampliação de compromissos e pela regulação salarial”. Os atrativos competitivos e o acesso ao consumo são vetores que tentam compensar e articular o desejo aos objetos técnicos que proliferam em meio ao mundo das imagens mercadorias. Na América do Sul o caráter incompleto das revoluções e reformas democráticas, desde os movimentos políticos de transformação na era dos extremos. No Sul Global, no Oriente, os Subaltern@s, os oprimid@s e Os segregados inscreviam suas plataformas políticas na demanda por democracia e direitos. Afirmando a potência imanente das forças sociais unificadas na luta pela democracia. Desta forma, foram se compondo os ingredientes e as expectativas de novas forças sociais de aceder a uma cidadania que sintetizava diferentes mecanismos de governo popular ou de democracia de massas. No século XX a polêmica na luta contra as ditaduras e o autoritarismo tinha se orientado na chave da busca do poder e da soberania popular e do pacto social diante do fascismo, do estalinismo e da libertação e descolonização face à dependência colonial e neocolonial-imperialista. Desde metas como a da República e a da Assembleia Nacional Constituinte, o Estado de Direito aparecia na América Latina e no Brasil como um horizonte necessário de transição que partia da prioridade das regras e liberdades democráticas, de direitos civis e políticos na pegada das diferentes experiências de transição na Europa mediterrânea. A questão da ruptura (Portugal) ou da transição democrática controlada (Espanha) também era atravessada por outras plataformas de lutas com mais ênfase nos direitos econômicos e sociais e, de forma minoritária, pelos temas da autogestão e da democracia direta (dos conselhos). O final do século XX as muitas transições democráticas mundo afora (do socialismo real no leste europeu, das ditaduras na Europa Mediterrânea e na América Latina), se desenrolaram com apropriações do debate democrático e pela adesão aos tratados e fórmulas internacionais. Mas, paradoxalmente, as transições democráticas colocaram os temas da justiça social, dos direitos humanos e da qualidade de vida sob o crivo de um conjunto de tecnologias e dispositivos comandados pelas mega máquinas financeiras, comunicativas e militares. A crise das utopias que

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seguiu as coordenadas da crise do socialismo real se fez acompanhar de uma combinação cultural e epistemológica entre razão cínica, individualismo possessivo, ideologias fundamentalistas e políticas de globalização capitalista, um cenário de ruínas e precariedade emergiu ao lado de ilhas e arquipélagos de abundância. Os processos da mundialização capitalista impactaram a vida quotidiana e vem se dando com a dissolução da “comunidade política” e a destituição das formas de organização e associação da democracia de massas, até então pensada na relação com as organizações sócias e dos partidos de massas, enquanto vetores de constituição da sociedade civil. No final do século XX, depois de usar a visão da sociedade civil como espaço da cidadania contra as ditaduras, retomávamos sob o impulso do neoliberalismo o uso do conceito de sociedade civil deforma crítica, na sua acepção hegeliano-marxista, de mundo do privado e do mercado movido pela sua face corporativa em rede transnacional. Os novos meios de captura, de cooptação e de alienação agem sobre as identidades, as pessoas e os lugares se apequenam pelos modos de desgoverno e guerras civis difusas. As ações policiais militares são travadas, por todo o globo, o rebaixamento da vida política achara e transforma tudo em mercadoria com a criminalização, a judicialização e o encarceramento que atinge grupos sócias subalternos. A segregação e a razão instrumental operam com o apoio de instrumentos derivados da aldeia midiática global. Os jogos de guerra e a realidade virtual se combinam na economia do espetáculo e na inversão de prioridades em termos de excesso/resíduo. A produção de falsas necessidades se amplia ao lado da sedução e do poder de atração dos modelos de consumo e dos estilos que marcam a passagem do americanismo fordismo para uma condição de globalismo financeirizado e acumulação flexível. O desenvolvimento desigual, o Estado policial, a corrupção e a inversão de prioridades, confluem numa visão de período mais longo quando falamos do impacto das políticas neoliberais que vai das crises das dívidas, passando pelas políticas de privatização e de reestruturação com terceirização e relocalização. As formas de acumulação, espoliação e crueldade se expandem apesar das novas políticas reformistas resultantes de ações de resistência e de novos governos eleitos na América do Sul. Os processos de transição seguem diferentes sequências nacionais de questionamento do submetimento aos retrocessos nos processos constituintes e da tragédia das reformas privatizantes, mas os governos de centro e esquerda acabam espremidos pelos novos compromissos pela via transformista (modo pelo qual as forças dominantes conseguem cooptar e desradicalizar as forças sociais de oposição que chegaram aos governos). O Brasil e o subcontinente assistem e participam de novas relações globais derivadas da presença da China, do fim da Guerra Fria e da emergência do protesto social indígena, camponês e popular. Em cada

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país da América do Sul temos o impacto da transnacionalização que acompanha a modernização mundializada, que afeta o Sul, o Oriente, as Periferias e gera contextos extremos de agenciamento, exclusão e eliminação de enormes contingentes sociais ligados ao campo e ao trabalho formal, sem contar as intervenções e guerras imperiais em nome do combate ao terror, que desorganiza e destrói formações estatais e fragmenta sociedades por meio de guerras civis e ocupação/intervenção militar como no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria. No início do século XXI os avanços e demandas de participação e o poder constituinte dos movimentos e partidos de massas e, dos diferentes tipos de associação e sindicatos viveram na América Latina uma situação paradoxal de apogeu e desintegração, de destituição e absorção transformista. O exercício de experiências pontuais, inovadoras em matéria de participação e acesso foi bloqueado, diante da brutalidade das rupturas e das novas distâncias que colocam em questão as teorias e práticas que afirmavam a centralidade da democracia, do poder soberano do povo na base da formação da comunidade política e dos governos. Assistimos diariamente ser rasgadas as novas constituições e violados os direitos democráticos recém formalizados nas transições de regime político de formas de governo no nosso subcontinente. A conjuntura de autonomia relativa, que surge com a emergência de governos populares e de centro-esquerda no Brasil e na América Latina, acaba atravessada pelas ambivalências e lacunas para a sustentação de programas de democracia progressiva. A força que impulsiona o horizonte democrático de ampliação do Estado e, de democracia progressiva de massas, que colocava o problema da autonomia e da hegemonia, é bloqueada pela dimensão e complexidade de novas relações espaços-temporais globalizadas. Os avanços em lutas moleculares e novos movimentos sociais nascidos no final do século XX, se apresentam na cena contemporânea com suas demandas por reconhecimento e acesso frente ao Estado, mas seus esforços são cortados e golpeados pelas ações dos poderes que constroem a distância em relação ao governo e o retrocesso das formas de participação popular. A análise da correlação de forças vem demonstrando o esgotamento das formas de autonomia relativa que marcaram as conjunturas reformistas que questionavam as opções neoliberais. Vários tipos de disputas têm procurado impedir o desenvolvimento da capacidade de aproximar os sujeitos coletivos do poder de decisão e da autonomia popular, dificultando a busca de um caminho de transformação pela via da combinação entre democracia direta e democracia representativa. O governo sul-americano vem diminuindo sua iniciativa mesmo no plano interno, ou buscam saídas de maior confrontação sem ampliação de bases de apoio, sem horizontes de democratização real. O que no médio prazo retira energia das políticas reformistas e

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redistributivas que se deram em países como o Brasil. O que vem, novamente, estreitando o jogo político no quadro dos fenômenos de uma crise do Estado e da sua ilegitimidade, com o esvaziamento e privatização da política que é a outra face da morbidez da representação. O que acaba impondo a acentuação do poder nas esferas hierárquicas do Estado. No Brasil o poder estatal se encontra crescentemente subordinado ou limitado pelo jogo da normalização/reestruturação capitalista, com a espetacularização mercantilista operando limitando as alternativas nas estreitas margens da mobilidade por dentro das regras hegemônicas, pela via das relações comerciais e da competição. No âmbito interno os poderes executivo e judiciário se enfrentam, ao mesmo tempo em que somam na disputa e desqualificação da representação parlamentar. Vivemos na atualidade uma fuga para adiante no trato das questões da democracia. Quando buscamos reduzi-la aos problemas técnicos de uma reforma da política. O que obscurece a questão de fundo da reativação do poder constituinte e do caráter programático que envolve o desbloqueio das bases da transição. Entendida como democratização integral da vida nacional, na sua projeção como regime de direitos e governo democrático participativo, particularmente no caso brasileiro. O esvaziamento do poder constituinte, nascido das lutas cívicas democráticas, das lutas sociais de classe e das demandas dos novos movimentos sociais atinge a orientação programática das constituições como a brasileira. Bloqueando a iniciativa da participação e do controle popular sobre o processo decisório, por força das operações midiática e do consenso transnacional construído pelo discurso dos especialistas (em economia, psicologia social, comunicação e segurança). A propaganda e a publicidade, a opinião dita dos especialistas desenvolvem uma ação desqualificadora dos atores populares e das suas demandas. Os sujeitos coletivos se colocam face a um conceito de urgências de regras e padrões orientados por fórmulas impostas de estabilização capitalista, que buscam a geração de receitas para honrar compromissos financeiros, fluxos especulativos e jogos de guerra. Atualmente assistimos a operações de ocupação policial-militar das periferias gerando “comunidades pacificadas”, com estratégias de contenção e ações punitivas, ações de controle que vem impondo territórios e práticas de exceção. A coerção e a disciplinação se concentram sobre espaços periféricos selecionados, sobre zonas de exclusão, de fronteiras ou bordas internas subnacionais todas marcadas por certa composição social e étnica considerada perigosa pelos agentes governamentais. A visão do alongamento do investimento em políticas públicas de crescimento e as políticas de crédito complementam uma ação em que o próprio neoliberalismo tem de tolerar um certo retorno do Estado, ao lado da busca de formas de contenção social e de

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gentrificação, sem o que a implosão pode se transformar numa nova crise de reprodução social como a que verificou no período da hiperinflação. Os modos de incidência e contradições entre esses processos e as escalas espaciais e densidades humanas estão recobertos por tensões de mobilidade, redistribuição e disputa por direitos sócio espaciais. A contradição entre a postulação programática do acesso e universalização dos direitos,inscritas nas constituições das transições democráticas, estão na base de uma situação de empate e ambivalências que marcam a explosividade das escaramuças e das batalhas de luta sobre os modos de governar. A percepção das injustiças e a crítica ao modo de governar, sem escutar a sociedade, gerou uma explosão social de rebeldia e protesto significativa nas ruas do Brasil. A parede de gesso que recobre “o silêncio ao redor” foi atravessada pelo ruído de grupos os mais diversos. Muitos afluentes nessa multidão precária projetaram suas vozes, suas questões romperam com a monotonia da velha fórmula que culpabiliza e personaliza a corrupção dos políticos, que não desvenda a força dos mecanismos do poder corruptor. Face ao processo de perda de autonomia por parte de um corpo soberano fragmentado e face ao processo de hegemonia de políticas globalistas vivemos num quadro de impasses e bloqueios que mereceria um exame mais aprofundado. Nesse quadro ético político contraditório se materializa a crise de distância, de representação política com a consequente incapacidade de renovar a escuta dos governados por parte dos governantes, como mostraram as explosões juvenis e populares urbanas do último ano. Mas essa voz que explode e esses movimentos que se apresentam não conseguem sair da dinâmica molecular, não formam as esferas públicas e a relações de forças capazes de ir além das batalhas de desgaste e resistência, sem conseguir postular a necessidade de rearticular a democracia representativa com a democracia direta pela via da afirmação do social, do público e do comum, no entanto, impedem que a conjuntura se feche como um bloqueio e derrota da política democrática. Entre regressões e crueldades, entre desgastes e pequenas conquistas o que se revela é a necessidade de reabrir o tema da democracia, na chave da relação entre uma demanda por autonomia e retomada da disputa hegemônica. A construção do sujeito da nova democracia tendo por base a recolocação do tema do contrato social, da soberania popular. Retomar a direção de construção do poder dos governados com ênfase na relação entre poder e comunicação, informação e organização, em várias escalas espaciais. Articular as plataformas de direitos que possam se inscrever em uma nova esfera pública, de maneira consistente, sem perda do fio da meada das conquistas parciais e do horizonte programático do poder constituinte que animou a nossa transição inconclusa para a democracia.

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As conquistas de direitos foram o resultado de uma enorme disputa histórica. O resultado de uma costura de relações e o aprendizado de experiências comuns de luta, de memória relativamente recente. As frustrações que vivenciamos como sociedade e com a vida política são questões que devem ser lidas desde o problema aqui identificado, o da democracia bloqueada. Na linha do processo de democratização e do resgate do poder constituinte, não podemos perder a capacidade de ler os fenômenos de recomposição social e técnica do poder dominante global,com sua tradução negativa nas diferentes escalas, territórios e lugares. Colocando em pauta uma plataforma das transformações e lutas moleculares em conexão com a leitura ético-política dos interesses públicos, com ênfase na produção de bens públicos como base do comum, como nas questões urbanas que foram postas no centro das demandas recentes das lutas sociais por transporte, educação, saúde e habitação que ganharam as redes e as ruas desde as jornadas de junho de 2013.

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BORBOLETAS DE FERRO NÃO BATEM ASAS (NÃO HÁ FUTURO VIRTUOSO PARA UMA ECONOMIA PRIMÁRIA EXPORTADORA) Por Carlos Bittencourt e Moema Miranda Historiador e pesquisador do Ibase Antropóloga e diretora do Ibase

O Brasil é hoje um dos maiores exportadores de minérios do mundo. Nos últimos 10 a 15 anos a extração e exportação de commodities minerais aumentaram de forma exponencial, como se pode ver na tabela abaixo. Extração Mineral Brasileira 2002-2011 (DNPM) Em Toneladas Areia

2002 229.600.000

2011 347.000.000

Variação 51,1%

Bauxita

13.189

31.768

140,9%

Brita

156.400.000

268.000.000

71,4%

Caulim

3.953.455

6.216.000

57,2%

Cobre

30.642

213.760

597,6%

Ferro

212.000.000

398.130.813

87,8%

Ouro

44

65,2

27,7%

Tungstênio

42

300

614,3%

Zinco

307.904

2.302.760

647,9%

O PIB mineral cresceu entre 2001 e 2013 mais de 500%. Os negócios agro-minerais se estabeleceram definitivamente como componentes essenciais da economia brasileira. A “indústria extrativa” alcançou a marca de 5% do PIB, crescendo cerca de 150% entre 2001 e 2011. O peso crescente de produtos primários – minérios, soja, milho, pasta de celulose, cana de açúcar – na pauta exportadora brasileira faz com que muitos estudiosos e representantes de movimentos

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sociais destaquem o fato de que voltamos a nos tornar um país primário-exportador, reeditando vínculos da época colonial, com redução da produção e exportação de produtos manufaturados com maior intensidade tecnológica. A compreensão da conjuntura da mineração no Brasil exige uma reflexão sobre a inserção do país nas trocas econômicas internacionais. Exige, também, contextualizar a tendência expansiva da chamada indústria extrativa mineral como resultante da crise cambial de 1999 e do subsequente crescimento da economia chinesa a taxas exorbitantes e, posteriormente, ao cenário da crise econômica mundial que se acirra em 2008. Finalmente, este modelo, comum a outros países latino-americanos, combina exportação de commodities agrícolas e minerais com políticas públicas de combate a pobreza, seguindo desenho que vem sendo identificado como socialliberalismo. Assim, apesar de seu potencial depredador, concentrador e de tornar o país cada vez mais dependente das potências industriais, constrói-se uma atmosfera de consenso, onde as vozes críticas têm dificuldade de sobressair no debate público. A crise cambial e a corrida pelo dólar Guilherme Delgado, em artigo publicado em 2010, intitulado “Especialização primária como limite ao desenvolvimento”, analisou como a especialização primária do comércio brasileiro, a partir de 2000, se desenhou como resposta imediata à crise cambial de 1999. Ainda no governo Fernando Henrique Cardoso o rumo de nossa aposta estratégica sofreu uma inflexão significativa e parte fundamental dos recursos públicos passou a ser destinada ao apoio e fomento ao que se conformou como o agronegócio brasileiro1: uma combinação de produção para exportação com grandes concentrações de terra. “Em final de 1998 uma crise de liquidez internacional afeta a economia brasileira, provocando enorme fuga de capital e forçando a mudança do regime cambial. Desde então a política do ajuste externo se altera. Recorre-se forçosamente aos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) em três sucessivas operações de socorro -1999, 2001 e 2003. A política de comércio exterior é alterada ao longo do segundo governo FHC e passa a perseguir a estratégia que abandonara em 1994: gerar saldos de comércio exterior a qualquer custo, tendo em vista suprir o déficit da Conta Corrente. Este, por seu turno, se exacerba, pela pressão das saídas de rendas de

1

É importante destacar aqui que a privatização do sistema minerário brasileiro, através da entrega da CSN e da Vale do Rio Doce, também ocorre nesse contexto de criação de liquidez para o capital iniciar um novo ciclo de reprodução.

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capital, antes mesmo que se fizessem sentir os efeitos da reversão na política de comércio externo. Acrescente-se ainda, que ocorre fuga e não ingresso líquido de capitais no período imediatamente anterior e posterior à crise cambial (1996 até 2000). A Balança de Pagamentos apresenta déficit continuado, de sorte a promover acentuada perda de Reservas em moeda estrangeira. Outra vez, como ocorrera na primeira crise da dívida em 1982, os setores primário exportadores são escalados para gerar esse saldo comercial. Nesse contexto, a agricultura capitalista, autodenominada de agronegócio, volta às prioridades da agenda da política macroeconômica externa e da política agrícola interna2.” A lógica subjacente ao fenômeno do “agronegócio” alimenta, em seguida, o fomento da produção de commodities minerais, guardadas as especificidades. Neste sentido falamos aqui de uma economia agro-minero-exportadora. Ressalvem-se importantes distinções. Em primeiro lugar, destaca-se o fortalecimento da bancada ruralista, que conta na atual legislatura com mais de 150 deputados federais, claramente identificados. A vitória na disputa pelo Código Florestal evidenciou a força parlamentar dos interesses do agronegócio e sua disposição de impor ao governo petista, quando necessário, as condições de sua reprodução e ampliação. Um conjunto de políticas públicas que envolvem desde investimentos em infraestrutura logística para exportação, passando pela criação de empresas gigantes no setor de alimentos e o apoio à pesquisa e crédito bancário, se associam no mesmo arranjo. Além disso, a estratégia discursiva do “agro” se moderniza e investe na construção de uma nova imagem, com a valorização da música “sertaneja”, a massificação publicitária e a contratação de celebridades para garotos-propaganda. Dessa forma, o agronegócio passa a disputar com peso o imaginário, a opinião pública e, principalmente, recursos e financiamentos públicos. Esse modelo, em si, se transformou em “pauta de exportação” e o projeto Pró-Savana, em Moçambique, é expressão uma fina desta capacidade de ocupação da máquina pública. A expansão do setor minerador não tem tanta visibilidade midiática quanto aquela consagrada ao “agro”. O novo Código da Mineração, em disputa no Congresso ao longo dos dois últimos anos, não ganhou manchetes. Enviado pelo governo Dilma ao Congresso, após anos rodando entre ministérios, o Código visa estimular a ampliação e aceleração da produção, bem como aumentar a captura de renda minerária pelo estado, em um plano de “modernização” do setor. Apesar da expansão da produção de minérios no Brasil – já em 2013 o minério de ferro era o primeiro

2

DELGADO, Guilherme, “Especialização primária como limite ao desenvolvimento”, in Desenvolvimento e Debate, v.1,n.2,pp111-125, jan-abr e mai-ago,2010.

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produto da pauta de exportação brasileira, responsável por 14,5% das exportações nacionais – e o fato de termos uma extração mineral superior à soma do conjunto das exportações minerais da América Latina, não nos vemos, nem somos vistos, como um país minerador. O gigantismo da economia e das dimensões territoriais do Brasil, neste particular, ajudam a deixar na penumbra um setor que arrasta no seu crescimento mazelas das mais dramáticas. Mesmo comparada à expansão dos mono cultivos do agronegócio, as consequências, aqui são definitivas: afinal, a mineração não tem segunda safra! Além disto, a recuperação das terras e águas poluídas, degradadas ou destruídas pela mineração é extremamente custosa. Em geral as áreas onde a produção mineral se esgota ficam abandonadas, restando para as populações do entorno o passivo social e ambiental, como é o caso a Serra do Navio, no Amapá, ou das carvoarias em Santa Catarina, entre outras. Assim, embora haja especificidades importantes que distinguem o agronegócio da produção mineral, chamamos atenção para o fato de que em virtude de uma histórica crise cambial, a opção dos últimos governos foi a de apoiar e incentivar atividades que tiveram impacto imediato no saldo comercial e na balança de pagamentos brasileira3. Este aspecto da estabilidade macroeconômica passa a ser a pedra de toque da economia nacional4. Quando datamos de 1999 o ponto de inflexão na rota e desenho do modelo de crescimento e “desenvolvimento” brasileiros, afirmamos que um mesmo arranjo e sentido passaram, ainda que com alterações, do governo FHC aos governos Lula e Dilma. O texto de Guilherme Delgado ajuda a compreender como este projeto se conformou e como respondeu à necessidades de curto prazo que, aos poucos, ganharam perenidade. O impacto “positivo”, que alcançou seu ápice no primeiro governo Lula, no entanto, já começa a dar sinais de fragilidade. Para se ter uma ideia, o ano véspera à eclosão da crise econômica mundial (2007) o Brasil conseguiu seu maior saldo na série histórica iniciada em 1947, com US$ 87,5 bilhões de superávit no Balanço de Pagamentos. Mesmo após a crise, em 2011, esse saldo alcança a segunda marca histórica, com US$ 58,6 bilhões. Após esse período, há uma queda acentuada que se transforma em um déficit de US$ 5,9 bilhões. Por outro lado, a China define ritmos mais lentos de crescimento, impactando o conjunto das exportações já que desde 2009, é o principal mercado para os produtos primários brasileiros. A

3

Balanço de pagamentos é um dispositivo de registro da contabilidade nacional composto por duas contas: a de transações correntes e a capital e financeira. 4

http://www.canalibase.org.br/o-crescimento-cruel-no-brasil-da-mineracao/

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economia primário-exportadora não pode ser portadora de futuro. Ao menos não de um futuro com soberania e justiça socioambiental para todos e todas. A profilaxia para as duas últimas principais crises econômicas, resultante dos ajustes da globalização neoliberal, baseada nas teses das vantagens comparativas, foi como tratar paciente diabético, com doses de açúcar. O fato de, nessa estratégia, o primeiro ano de déficit do Balanço de Pagamentos (2013) já ser o 3º recorde, na série histórica desde 1947, deveria servir como um sinal de alerta. A impressão que temos é que os dólares que entram por um salto estrutural na capacidade de exportação de bens primários, sai pelo crescimento da capacidade importadora. Não à toa, o recorde no valor importado (US$ 239,6 bilhões) nessa série histórica é, precisamente, 2013. E o maior déficit histórico nas transações correntes ocorre no mesmo ano, com US$ 81,2 bilhões5. Na corrida atrás do próprio rabo, caso não haja reversão, a ampliação da exportação de bens intensivos em recursos naturais dilapidará o conjunto de nosso território. As condições externas e os arranjos internos para o “boom” O setor minerário define sua atividade como “indústria extrativa”. Vale um questionamento a esta definição, na medida em que o elemento “industrializante” esconde a realidade pura e simples da extração e exportação de bens naturais. Embora se reconheça a intensividade em capital investido e os avanços tecnológicos dos últimos cinquenta anos, é de se pensar que o volume de capital corresponde ao lucro extraordinário auferido. A tônica continua sendo a mesma da economia política clássica, o acesso ao estoque “gratuito” de recursos naturais. Não há mudança de qualidade, apesar dos avanços tecnológicos. Há, principalmente, uma mudança de escala, de quantidade. Assim, a afirmação da China como grande potência consumidora de minérios foi responsável, a partir dos anos 2000, por uma nova conjuntura de preços internacionais. O investimento feito por aquele país na urbanização, com ampliação da rede de eletricidade, sistemas de transporte, habitação e na industrialização implicaram o consumo de grandes volumes de commodities minerais. Um intenso investimento passou a ser feito, a partir de então, na maioria dos países com potencial exportador de matéria prima, para ampliar suas condições de produção, transporte e exportação. A cadeia produtiva/exportadora da mineração tem que ser pensada em articulação com seu pesado custo logístico. Um conjunto de grandes obras, que implicam na construção, ampliação ou revitalização de hidrelétricas, gasodutos, minerodutos e portos passou, por sua vez,

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Banco Central do Brasil.

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a integrar o negócio. O cruzamento de interesses entre grandes empreiteiras e mineradoras é facilmente compreensível. O apoio e financiamento público ao setor minerador não deve, portanto, ser medido apenas pelos investimentos diretos. A construção de uma hidrelétrica como Belo Monte, por exemplo, com enormes custos sociais e ambientais, não pode ser compreendida sem esta associação de interesses. A Vale tem 8% dos ativos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A roda do negócio, garantida por um grande comprador, China, pela necessidade de acerto na balança de pagamentos e por incentivos públicos à construção de infraestrutura, tem ainda como elemento importante a consolidação e ampliação do mercado de commodities a partir dos anos 2000. As “bolsas de mercadorias de futuro” foram criadas com o sentido de garantir preços para o consumidor e venda antecipada para os produtores agrícolas. Aos poucos, as mercadorias negociadas ampliaram-se e o investimento nas bolsas de futuro se transformou em negócio lucrativo. “Atualmente as bolsas de commodities comercializam insumos energéticos, produtos agrícolas e minerais. (...) Com o surgimento e a complexificação do mercado de commodities no fim de 1990 e início dos anos 2000, os meios de investir na bolsa aumentaram. Em mercados onde as transações têm pouca ou nenhuma regulação, como taxas oficiais ou trocas mínimas, os contratos futuros de commodities subiram de US$ 418 milhões em 2001 para US$ 2,6 trilhões em 2011”6. Grandes especuladores encontram espaço para lucro rápido, comprando e vendendo mercadorias sem interesse de uso. A financeirização da economia global implica aqui que determinados bens agrícolas e os minerais convertem-se em mercadorias, homogeneizadas por valores especulativos, sem vinculação com necessidades de consumo nem com lógicas de taxas de extração que contemplem uma estratégia de desenvolvimento nacional, isso para não falar de critérios de justiça social ou ambiental. No momento em que passamos de uma economia de mercado para uma sociedade financeira global, o valor financeiro e a possibilidade de lucro são os elementos primordiais na definição de ganho econômico, sobrepostos a qualquer outro valor, social, cultural ou ambiental, que os bens naturais possam ter. Assim, a lógica de inserção no comércio internacional como produtor de commodities externaliza o lócus de definição de prioridades. No circuito altamente internacionalizado, a mineração permite a extrema acumulação privada de seus lucros enquanto implica em um compartilhamento profundamente injusto dos custos ambientais e sociais. Basta levar em conta as condições de urbanização das cidades que detém os maiores índices de exportação de minérios. Em nenhuma delas verificou-se

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COELHO, Tadzo, in “Projeto Grande Carajás: trinta anos de desenvolvimento frustrado”, Ibase, 2014.

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ao longo dos últimos anos aumento expressivo da qualidade de vida da população, ao contrário, são recordistas em índices de violência e mortalidade por arma de fogo. A passagem dos anos 1990 para os 2000 assistiram, portanto, a criação de condições de uma tremenda lucratividade do setor minerário, que contaram com grandes investimentos públicos de infraestrutura e com a financeirização da economia como motores propulsores de uma produtividade e taxas de acumulação privada de lucros dramaticamente elevadas. Custos que a Balança Comercial não pesa A extração de minérios é, por definição, uma atividade material, impactante e invasiva. Em geral, a concepção empresarial é que a produção de minérios, essencial para qualquer civilização, deve estar subordinada aos ditames da necessidade econômica e ser mitigada em seus efeitos deletérios. Uma discussão mais profunda vem sendo impulsionada na América Latina por movimentos sociais, ambientalistas e indígenas bem como por intelectuais como Alberto Acosta e Eduardo Gudynas, à qual nos somamos, que questiona o sentido mesmo do “desenvolvimento” hegemônico, base de uma crise ambiental sem precedentes, associada à intensificação de padrões sociais desiguais, geradores de pobreza e exclusão. Não pretendemos, aqui, entrar no debate de conjunto do modelo. Na verdade, os custos sociais e ambientais da expansão da mineração, ditada pelo ritmo do negócio, é, em si, suficientemente contundente para impor uma reflexão urgente quanto ao sentido que estamos empregando para este investimento. O problema inicial e central é que a forma de definição de “custos” na economia capitalista externaliza ou desconsidera tanto o uso de bens comuns como água e energia, por exemplo, quanto os impactos sociais na vida das populações diretamente atingidas. Para os bens naturais parecerem gratuitos, como nos sugere a economia clássica, é necessário invisibilizar outros custos. No caso de gasto de energia, os dados são extremamente significativos. Pela ótica da demanda, temos a indústria e o transporte como os principais consumidores de energia no país, demandando juntos mais de dois terços do total consumido, com 35,1% e 31,3%, respectivamente. Não é possível desagregar dentro dos dados dos transportes, segundo as fontes a que tivemos acesso7, as informações específicas relativas às indústrias extrativas. No entanto, é bem verossímil a ideia de que esse setor também tem um papel destacado dentro da demanda dos transportes. O

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Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

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consumo de diesel total da empresa Vale é superior ao seu consumo elétrico, representando 22% dos seus gastos energéticos. Se somados ao óleo combustível e aos combustíveis de navegação, esse percentual sobe para 44%.Esses dados nos permitem deduzir que um percentual razoável da demanda referente aos transportes é oriundo do setor mineiro8. Se somarmos as demandas dos setores de cimento, ferro-gusa e aço, ferro-ligas, mineração e pelotização, não-ferrosos e cerâmica, temos a significativa cifra de 15,2% do total da demanda nacional advindo da cadeia minerária. Se olharmos a participação desses segmentos dentro da indústria, ele é o responsável por nada menos que 43,4% do consumo do setor industrial. Certamente, o processo de diminuição da indústria de transformação e o crescimento das indústrias extrativas no PIB, que se verificaram na última década, pode já ter consequências sobre o consumo energético desses setores. Os dados revelam que, apesar de o Brasil ter uma das mais diversificadas estruturas produtivas na região, o papel que a indústria extrativa mineral vem cumprindo no que diz respeito à demanda energética é bastante significativo. Além do incremento já experimentado pelo setor, há expectativa de crescimento para o próximo período. Além dos altos custos energéticos, a mineração impacta diretamente os recursos hídricos. As diversas fases do empreendimento minerador são marcadas pelo encontro, muitas vezes concorrencial e conflitivo, entre minério e recursos hídricos. Os impactos se estendem desde o início das operações, quando os recursos minerais concorrem com nascentes, riachos, estuários e águas subterrâneas. Seguem nas fases posteriores, com a construção de barragens de rejeitos, drenagens, diques para captação de água, com a deposição inadequada de escórias e prosseguem, mesmo após o fechamento das minas, com os efeitos da drenagem ácida, da lixiviação, do alagamento de cavas e minas subterrâneas. Os dados, no entanto, sobre as diversas relações entre a mineração e as águas são bastante precários. Mesmo o controle sobre o consumo direto de água pelos empreendimentos minerários contém limites reconhecidos pela Agência Nacional de Águas, limites esses que dizem respeito, inclusive, à integração de um sistema nacional unificado (com informações dos órgãos estaduais e nacionais). Ainda mais difícil é o acesso às informações relativas aos impactos da mineração sobre as fontes de água superficiais e subterrâneas, através da poluição, por exemplo.

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BITTENCOURT, Carlos, “Os impactos da mineração sobre a água e a energia no Brasil, 2014.

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Fica evidente, portanto, que há um déficit gigantesco de informações sobre os usos e impactos sobre as águas através de empreendimentos minerários já existentes. Mesmo subavaliados, os dados são impressionantes: as outorgas de água para a mineração já ultrapassaram as da indústria e o volume total requerido pela atividade minerário, em 2012, ultrapassou os três trilhões de litros de água. E há outro déficit tão importante no que diz respeito às informações prévias a instalação da mineração nos territórios e seus possíveis efeitos sobre as águas. Dessa forma fica prejudicado o planejamento público do setor e a proteção das águas e também a possibilidade de participação democrática dos agentes da cidadania no sentido de avaliar as benesses e os pontos contrários à instalação de uma mina em determinada região9. Uma análise breve dos elementos essenciais para garantir as propaladas “vantagens comparativas” do Brasil na extração acelerada de minérios revela que os custos compatíveis com lucros exorbitantes só se verificam porque o conjunto dos custos ambientais não está incluído nos cálculos. Se incluirmos, além destes já mencionados, os custos de infra-estrutura, todos financiados com verbas públicas, bem como os custos sociais, as desonerações fiscais, as heranças deixadas para as prefeituras sem controle comum, verificamos que a produção acelerada de minérios tem custos extremamente elevados. Ao final, é possível dizer que estamos construindo uma nova dívida. Pensando no saldo comercial recorde de 2001, mas sem abordar a Balança Comercial pelo saldo em moeda (US$ FOB), abordemos pelo saldo em volume. O volume total das exportações de mercadorias brasileiras foi de 544.244.158,158 toneladas, e o volume importado foi de 148.665.795,958 toneladas. Isso representa um déficit de 395.578.362,2 toneladas, um super déficit. A diferença entre saídas e entradas, em volume, foi mais de 266%. O tamanho desse déficit é o que podemos chamar de dívida ecológica, dívida material10.

Conflito socioambiental e disputa por destino Ao fim e ao cabo, as fronteiras propostas pela expansão minerária revelam um conflito cru, nu. Uma chegada vertical, determinada por dinâmicas forasteiras, que, como afirma Milton Santos,

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Idem.

10

Bittencourt, Carlos. O Brasil teve superavit comercial?, 2013. http://www.observatoriodopresal.com.br/?p=3921

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corporatiza os territórios, constrói uma inflexão de dinâmicas sócio comunitárias, no mais das vezes vividas em torno da agricultura, à dinâmica das corporações multinacionais. Subordina-os a uma dinâmica exterior a eles, inviabiliza práticas, contamina os vínculos comunitários com falsas promessas de desenvolvimento endógeno que nunca chegam. A resultante desse conflito entre escalas, valores e técnicas desiguais é a pavimentação de uma espécie de destino para a economia nacional. Se se constroem minas, minerodutos, ferrovias, hidrelétricas, portos voltados para a dinâmica primário-exportadora, se estrutura uma espécie de destino para nossa economia, para nossa vida nacional e continental. Depois de investidos bilhões e bilhões nessa lógica, o capital fará de tudo para se reproduzir e valorizar, amortizando estes investimentos. Se, por outro lado, compreendemos as resistências e mobilizações organizadas pelos que sofrem direta e indiretamente com a instalação de empreendimentos vinculados ao complexo agromineiro-exportador, como portadoras de futuro e não apenas como negação do progresso. Se vemos, nos diversos gritos de “NÃO” que ecoam no território nacional a estes empreendimentos, um “SIM” a um outro padrão de reprodução socioespacial e destino, apostamos em outra estratégia, nos aliamos a outros sujeitos sociais. Na situação atual, nadar contra a corrente parece mais promissor do que nos deixar levar no fluxo do rio que nos leva ao precipício das cataratas. Tornou-se urgente puxar o freio de emergência e buscar uma outra rota. O crescimento da mineração leva em seu rastro um aumento significativo dos conflitos por territórios. Não à toa, os movimentos do campo têm incorporado em sua agenda de lutas a questão do enfrentamento ao modelo minerário, pois cada vez mais o setor mineral torna-se um agente de disputa por terras. Por isso, uma das principais iniciativas da Via Campesina no Brasil nos últimos anos, em parceria com organizações como a rede Justiça nos Trilhos, foi a criação do Movimento Nacional pela Soberania Popular Frente à Mineração (MAM). A Comissão Pastoral da Terra, também tem dado cada vez mais centralidade ao tema, inclusive abrindo uma sessão especial em sua publicação anual sobre os conflitos no campo. A multiplicação dos conflitos e a organização das resistências, possibilitaram o surgimento do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração que cumpriu um papel de catalisador, ao mesmo tempo, em que constituiu uma voz pública nacional, incorporando organizações como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, desde uma perspectiva de justiça socioambiental.

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ENERGIA NOS GOVERNOS LULA E DILMA E PERSPECTIVAS Por Luiz Pinguellli Rosa diretor da Coppe-UFRJ

O tema energia abrange muitos aspectos: (i) a geração elétrica, com usinas hidrelétricas, termoelétricas e nucleares, a transmissão e a distribuição; (ii) os combustíveis fósseis,- petróleo, gás natural e carvão mineral; (iii) os biocombustíveis - etanol (álcool) e biodiesel (implantado no governo Lula), bagaço da cana, lenha e carvão vegetal; (iv) as alternativas energéticas - eólica (em expansão no governo Dilma), solar (muito pouco usada), resíduos (lixo, pouco aproveitado), oceânica (projeto experimental pioneiro da COPPE com a Tractbel no Ceará e com Furnas no Rio); (v) a eficiência energética (muito importante e pouco cuidada); (vi) impactos ambientais e sociais, incluindo a mudança climática. O efeito estufa tornou-se um grande problema político internacional, pois se trata de escolhas do futuro da humanidade. Há uma crise ambiental, devido à mudança do clima pelo aquecimento global intensificado pelas emissões de gases produzidos na queima de combustíveis fósseis. O Brasil assumiu, voluntariamente, na Conferência de Copenhague, o compromisso de reduzir suas emissões previstas para o ano de 2020. Houve redução do desmatamento, que era o principal emissor no Brasil, ficando agora em destaque as emissões do sistema energético ao lado da agropecuária. Entre as fontes primárias de energia de origem fóssil - ou seja, limitadas a um estoque existente no subsolo – no Brasil destacam-se o petróleo e o gás natural. Sua importância cresceu muito no governo Lula com a descoberta pela Petrobras das reservas do Pré-Sal, em grande profundidade no oceano e abaixo de uma camada de sal. Já o carvão mineral, outro combustível fóssil dominante no mundo, é pouco usado no país, exceto na siderurgia, importado, e em quantidade pequena na geração elétrica no Sul do país, embora haja novos projetos em outras regiões. Apesar de o petróleo e o gás natural terem prognósticos de declínio nas próximas décadas, novas descobertas como a do Pré-Sal e o aproveitamento do gás natural de folhelho nos EUA revigoram hoje sua produção fora dos grandes exportadores mundiais de petróleo. Há forte impacto ambiental na produção do gás não convencional norte americano com intenso consumo de água injetada com produtos químicos no solo. Não me parece oportuno o leilão da ANP para gás natural em terra, incluindo o de folhelho, imitando os norte-americanos. Além do risco ambiental, alertado pela SBPC, o custo aqui será maior. No caso da exploração no mar, o maior

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risco de impacto é o vazamento de óleo, tal qual ocorreu no Golfo do México e, em muito menor escala com a Chevron, no Brasil. É fundamental que se leve adiante o plano de emergência recomendado por especialistas. Entre as fontes renováveis - assim denominadas porque constituem um fluxo de energia originada principalmente do Sol - são mais importantes no país o etanol, derivado da cana, e a hidroeletricidade. Ambas tem sido objeto de críticas em âmbito internacional, a hidroeletricidade pelo impacto ambiental das barragens, especialmente na floresta Amazônica, embora os reservatórios de água das novas usinas construídas nos governos Lula e Dilma na Região Norte tenham dimensões muito reduzidas. São usinas a fio d’água. O preço a pagar é a necessidade de complementação basicamente térmica, mais cara e poluente. Dos biocombustíveis, o mais importante é o álcool de cana-de-açúcar - cujo consumo voltou a crescer a partir de 2003 com o estímulo aos automóveis com motores flexíveis. Ele também é alvo de polêmica internacional recente, acusado de competição com alimentos e contribuir para o desmatamento - que entretanto foi reduzido no período dos governos Lula e Dilma, apesar da polêmica do Código Florestal no Congresso. Do ponto de vista da redução das emissões de gases do efeito estufa, que agravam o aquecimento global do planeta, foi alvissareiro o aumento do consumo do álcool nos automóveis no governo Lula. Mas, a crise da produção do etanol em 2011 e 2012 e a política de preços dos combustíveis reduziram a sua participação percentual, que tinha ultrapassado a da gasolina e agora retrocedeu. Adicionalmente, a partir de 2003 foi implantado o programa de biodiesel como aditivo ao diesel de petróleo, primeiramente na proporção de 2% (B2), alcançando depois progressivamente 3% (B3) e 5% (B5). Houve um ambicioso programa de estímulo da agricultura familiar e de uso de vários óleos vegetais, como os de dendê que tem alto rendimento energético (litros de biodiesel por tonelada) e de mamona, mas prevaleceu o óleo de soja, de uma monocultura de grande escala. Apesar do baixo rendimento energético, a soja se tornou dominante para o biodiesel como excedente da enorme produção do agro negócio para exportação e para alimento no mercado interno. Como biocombustível tradicional sólido, há a lenha, usada in natura pelas famílias no interior, onde não chega o gás liquefeito do petróleo (GLP) para cozinhar. Da lenha deriva, através do processo de pirólise, o carvão vegetal, importante na siderurgia. Aproximadamente metade dele vem de florestas plantadas para este fim e metade de desmatamento, o que é ruim. Outro

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combustível alternativo é o lixo urbano além dos resíduos agrícolas e animais, mas falta uma política para favorecer seus usos. A participação das fontes renováveis no Brasil é de 47% - predominantemente das hidrelétricas e de biocombustíveis - enquanto no mundo este percentual é de 13% e nos países desenvolvidos é de apena 6%. Apesar dos investimentos em energia eólica e solar, no mundo os combustíveis fósseis somam cerca de 80%, com o petróleo à frente, seguido do carvão mineral, ficando o gás natural em terceiro lugar. Tem sido animador o crescimento da energia eólica no Brasil, complementar à hidrelétrica, embora ainda pequena em relação ao potencial brasileiro. O custo da energia eólica caiu muito no governo Dilma e a sua capacidade instalada alcançou a da energia nuclear (Angra I e II). A solar tem ainda um uso pequeno, mesmo para aquecimento de água, que é mais simples, foi incluído em parte das edificações do Programa Minha Casa Minha Vida. Recente medida da ANEEL estimula a geração distribuída com células fotovoltaicas, que é muito pequena no país, mas falta um esquema de financiamento para os consumidores. A partir de 2003 interrompeu-se a privatização do setor elétrico e retomou-se o planejamento com a criação da Empresa de Pesquisa Energética. Criou-se o Programa Luz para Todos de universalização sem ônus para a população pobre beneficiada. Entretanto, há problemas não resolvidos, alguns herdados do processo de privatização e que não foram revistos no início do governo Lula. Ocorreram interrupções de linhas de transmissão que trazem a energia elétrica por longas distâncias. Itaipu (binacional, com o Paraguai) e Tucurui são as duas maiores hidrelétricas. De Itaipu ao eixo Rio- S. Paulo há mais de 1000 km. A distância de Tucurui é maior. Ocorreu o desligamento de várias cidades de alguns estados por algumas horas. O efeito é como um dominó caindo uma peça por cima da outra. O desligamento é correto, pois evita danos a equipamentos e perdas de transformadores por sobrecarga. Mas, se deve ilhar áreas críticas. Ademais houve quedas da distribuição nas cidades, feita por uma variedade de empresas, muitas delas privatizadas. Não se trata de falta de energia, como a que levou ao racionamento em 2001, pois hoje há capacidade instalada suficiente, incluindo as usinas termoelétricas. Como evitar interrupções? Não há sistema tecnológico com 0% de falhas, mas o que pode ser feito é minimizá-las. Primeiramente evitar eventuais atrasos de obras de linha de transmissão. Há um

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cipoal de leis, como a obsoleta lei 8666, e órgãos de controle que entravam o setor público e não resolvem a corrupção (tema de histeria política na mídia e na Suprema Corte). Por outro lado, deve-se desenvolver a tecnologia de redes elétricas inteligentes, seja para fazer uma gestão melhor das redes seja pela inclusão da geração distribuída. Mas, deixar de usar a transmissão de longa distância seria uma bobagem. O sistema interligado permite otimizar o uso da geração hidrelétrica, muito importante no Brasil, embora complementada por outras fontes. As concessões das hidrelétricas antigas foram renovadas no governo Dilma, contrariando a enorme pressão da FIESP, o que foi positivo, porém com forte redução da remuneração da geração elétrica pelas usinas consideradas amortizadas, o que colocou em grande dificuldade as empresas do Grupo Eletrobrás, especialmente Furnas, Chesf e Eletronorte. Aposentadorias antecipadas e demissões voluntárias estão levando à perda de engenheiros experientes nestas empresas. O objetivo de redução das tarifas de energia elétrica foi correto, dada e forte elevação delas a partir das privatizações, especialmente das distribuidoras elétricas. Chegou a ultrapassar o preço da energia em países ricos, de alta renda per capita. Entretanto o modo de fazer esta redução onerou particularmente as geradoras federais. Outro problema atual a ser corrigido é o desequilíbrio entre os preços relativos dos principais combustíveis fluidos. De um lado o consumo de derivados do petróleo aumentou muito, enquanto a capacidade de refino da Petrobrás não cresceu proporcionalmente, estando atrasada a construção de novas refinarias, como as do Nordeste, inclusive a de Recife, prevista para processar óleo pesado em parceria com a Venezuela. O óleo até agora extraído em águas profundas é pesado obrigando a Petrobras a exportar parte dele e importar óleo mais leve para fazer um blend para o refino. Pior é que o país importa derivados de petróleo, embora exporte óleo cru. E a Petrobras paga no mercado internacional preço maior do que pratica internamente, por determinação do governo com medo da inflação, criando séria dificuldade de fluxo de caixa necessário para os pesados investimentos no Pré-Sal. Nesta fase o lucro da Petrobras caiu. O caso exemplar é a gasolina, cujo consumo cresceu recentemente em relação ao do etanol e tem aumentado muito a importação dela. Na maior parte do país o preço do etanol ficou muito próximo daquele da gasolina. Considerando o maior poder calorífico da gasolina, apesar da maior taxa de compressão permitida pelo etanol, com os preços atuais deixou de ser compensador o uso deste último. Seu consumo no Brasil tinha

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superado o da gasolina, mas retrocedeu recentemente. E pior, a produção nacional caiu de modo que se importa uma parcela do etanol dos EUA, que se tornaram o maior produtor mundial de etanol. O problema é que o etanol americano é feito de milho, que não dispõe de bagaço obrigando a queima de óleo combustível na destilação, emitindo dióxido de carbono para a atmosfera. Para finalizar, foi retomada a construção de Angra III – o segundo reator do Acordo Nuclear com a Alemanha no governo Geisel. Entre as fontes não renováveis, a energia nuclear, que representa cerca de 2% da potência elétrica brasileira, é a única que não emite gases do efeito estufa. Entretanto, inspirou preocupação o acidente com os reatores japoneses em Fukushima, atingidos pelo terremoto seguido de tsunami. A energia nuclear, além de ser fonte de energia para geração elétrica pelo aproveitamento da fissão do urânio, pode ser usada na propulsão naval (em geral de submarino e porta-aviões) e ter uso militar como o explosivo mais terrível conhecido, usado pelos norte-americanos sobre o Japão no fim da Segunda Guerra Mundial, Mas, o Brasil abdicou de desenvolver a bomba nuclear pela Constituição e por três acordos internacionais – o Tratado de Tlatelolco, latino americano, o Acordo Tripartite com a Argentina e a Agência Internacional de Energia Atômica e o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, de âmbito mundial. Entretanto, a meu ver o Brasil não deve aceitar as cláusulas adicionais deste Tratado, propostas pelos EUA, pois permitiriam abrir o acesso à tecnologia de enriquecimento do urânio, desenvolvida no projeto do submarino nuclear brasileiro. A despeito de os governos do PT e aliados não seguirem o que a esquerda, na qual me incluo, propunha e terem mantido uma política econômica conciliadora com o neoliberalismo, houve avanços. Cerca de 30 milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema com a bolsa família e o aumento real do salário mínimo, embora eu discorde que formem uma nova classe média. Mais de 10 milhões tiveram acesso à eletricidade sem ônus com o Programa Luz Para Todos. A privatização do setor elétrico foi interrompida e foi retomado o planejamento. Houve a descoberta do petróleo no Pré-Sal e mudou-se do regime de concessão para o de partilha nesta nova área ficando a operação da produção sempre com a Petrobras.

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AVANÇOS E RECUOS DA AGROECOLOGIA NOS 12 ANOS DE GOVERNO POPULAR Por Jean Marc von der Weid Coordenador do Programa de Políticas Públicas da AS-PTA

Aparentemente o movimento pela agroecologia está no seu mais alto nível de sucesso desde seu nascimento no início dos anos oitenta. Em Outubro do ano passado a presidente Dilma assinou o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), ovacionada pelos cerca de 1.500 participantes da Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário. A conferência foi ainda mais longe nas suas decisões ao votar por unanimidade a agroecologia como modelo de produção a ser adotado pelo conjunto da agricultura familiar. Esta orientação pró agroecologia já vinha sendo afirmada desde a primeira Conferência de Assistência Técnica e Extensão Rural em 2003 e confirmada em 2012 na segunda conferência. Em maio de 2014, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) reuniu o terceiro Encontro Nacional de Agroecologia, com 2.000 participantes, majoritariamente agricultores e agricultoras de todo o país. As organizações dos movimentos sociais do campo, sobretudo a Via Campesina, vêm defendendo a agroecologia como modelo de desenvolvimento alternativo para a agricultura familiar enquanto a CONTAG aderiu de forma mais discreta à esta proposta, sobretudo pelos suas secretarias de mulheres e de jovens. Por outro lado a EMBRAPA elaborou, ainda no primeiro governo Lula, o “Marco Referencial para a Pesquisa em Agroecologia”, assinado por quatrocentos dos seus pesquisadores. Estamos então no melhor dos mundos e prestes a ver as práticas agroecológicas

se

generalizarem

no

público

da

agricultura

familiar

garantindo

um

desenvolvimento sustentável e a prosperidade desta categoria? Infelizmente não, pois como dizia o filósofo “tudo que é sólido desmancha no ar”. Uma análise mais fina do significado destes vários eventos citados e um olhar para o mundo real dos agricultores familiares mostra que não só estamos longe deste ideal como também estamos nos afastando dele. O movimento agroecológico sempre se propôs a lutar por um desenvolvimento sustentável da agricultura brasileira baseado na agricultura familiar aplicando as técnicas da agroecologia. Segundo as análises dos defensores da agroecologia o sistema de produção do chamado agronegócio está condenado devido aos aumentos dos custos de produção provocados pelo paulatino esgotamento dos recursos naturais não renováveis (petróleo, gás, fósforo, potássio) e

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pelo também crescente deterioro dos recursos naturais renováveis (solo, água, biodiversidade). A agroecologia se apresenta como uma alternativa tecnológica viável economicamente e sustentável do ponto de vista dos recursos naturais. Ocorre que o modelo de produção agroecológico não é capaz de ser operado em larga escala dada a sua natureza de alta diversidade e complexidade e isto o faz perfeitamente adaptado para a agricultura familiar. Numa visão de futuro a agricultura brasileira sustentável seria totalmente baseada na agricultura familiar empregando as bases técnicas da agroecologia. É claro que um modelo desta natureza necessitaria um considerável número de agricultores para substituir a produção hoje oriunda do agronegócio. Alguns cálculos especulativos apontam para um universo de 10 a 15 milhões de agricultores familiares para que o uso da agroecologia possa garantir a produção das necessidades alimentares e outras de origem agrícola da população brasileira bem como manter um bom nível de exportações. Este quadro hipotético aponta para a necessidade de uma reforma agrária que duplique ou triplique o número atual de produtores familiares. Quanto menor o número de agricultores familiares no momento em que a conversão para o modelo agroecológico se tornar um exigência incontornável da realidade mais difícil será a transição e mais dura a crise alimentar e econômica decorrente da falência do modelo do agronegócio. Olhando para a realidade do mundo rural brasileiro o que podemos constatar é que a agricultura do país é cada vez mais dominada pelo agronegócio e centrada em um pequeno número de commodities com maior demanda no mercado externo. Desde o início do Plano Real quando a politica econômica passou a depender de forma exagerada das exportações agrícolas para criar uma balança comercial positiva que os governos Fernando Henrique, Lula e Dilma adotaram políticas de acordo com os interesses dos chamados ruralistas, ampliando cada vez mais o seu lugar na economia brasileira. No curto prazo esta opção foi uma solução, mas no longo prazo foi um suicídio. Os governos destes três presidentes não diferiram muito no tratamento que deram à questão do acesso à terra. Em todos os casos a Reforma Agrária foi vista como um elemento de distensionamento da crise social do campo brasileiro e não como uma opção estratégica de busca de um novo modelo de desenvolvimento. O governo Dilma foi além dos seus anteriores na execução da Reforma Agrária ao decretar que o essencial de desapropriações já estava realizado e que cabia agora priorizar a sustentabilidade dos assentamentos. Onde chegaram os três presidentes em 20 anos de poder? O número de assentados não chegou a um milhão de famílias, mas a continuidade das condições desfavoráveis para a agricultura familiar fizeram com que centenas de milhares saíssem do campo, na contramão dos esforços da Reforma Agrária. Tanto assentados como agricultores familiares com terra deixaram o mundo rural, sendo que a maioria

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deles foram os jovens homens e mulheres. O balanço final destes esforços mal concebidos e mal executados foi, segundo os dados do censo de 2006, um ligeiro aumento no número de agricultores familiares, mas que significou uma leve reversão da tendência de evasão que marcou com maior ou menor aceleração os censos realizados desde a Segunda Grande Guerra. Observações parciais em diferentes regiões do país indicam que o próximo censo vai registrar o retorno ao processo de esvaziamento do campo e tornar a conversão da agricultura brasileira para um modelo sustentável mais difícil no futuro. Mas porque será que os agricultores familiares estão deixando o campo? No passado esta evasão foi atribuída: à “fome de terras” do latifúndio, com seus processos violentos de ocupação dos territórios; ao fator de atração dos grandes projetos de engenharia que se sucederam desde o governo Juscelino; a oferta de empregos urbanos de uma economia que cresceu aceleradamente nas décadas de sessenta e setenta. Embora a violência ainda se verifique nas zonas rurais e que a atração dos empregos da construção civil e da indústria tenha se esgotado os jovens rurais continuam saindo do campo nos dias de hoje. Esta evasão tem duas motivações distintas segundo as regiões do país e os diferentes tipos de agricultor. Na região sul a política de apoio à agricultura familiar iniciada no governo FHC com a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do PRONAF foi seguida e aprofundada pelos dois governos Lula e pelo governo Dilma. O essencial desta política foi a facilitação do acesso ao crédito, sobretudo de custeio. Hoje são mais de 20 bilhões de reais distribuídos a cada safra, com forte concentração na região sul e na camada dos agricultores familiares mais ricos. A orientação para o uso do crédito veio do próprio sistema financeiro e da assistência técnica oferecida pelas EMATER e voltou-se para financiar adubos químicos, agrotóxicos, sementes de empresas e maquinário; em outras palavras, o pacote tecnológico da chamada “revolução verde”, já adotado pelo agronegócio patronal no Brasil. Não por acaso, esta categoria de agricultores ficou identificada nos movimentos sociais do campo como o “agronegocinho”. Com crédito farto, subsidiado, facilitado e coberto com um seguro a grande massa dos agricultores familiares da região sul adotou a fórmula da produção baseada em monoculturas e entrou no caminho da dependência do uso de insumos industriais e de um mercado de produtos agrícolas fortemente oligopolizado. O resultado foi um crescente endividamento da agricultura familiar que se refletiu na ênfase nas reivindicações de anistias e renegociações de dívidas com os bancos nas pautas de negociação entre os movimentos sociais e o governo. Hoje o processo perverso já faz dos agricultores tomadores automáticos de crédito que serve, sobretudo para pagar a divida da safra anterior. Apesar das anistias muitos agricultores não aguentaram e deixaram suas terras enquanto a geração seguinte preferiu buscar outro modo de vida menos estressante e ruinoso.

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Nas outras regiões o impacto da política de crédito foi menos danoso porque menos amplo. Mesmo assim, a inadimplência do Pronaf B, dirigido aos agricultores mais pobres, é gigantesca e paralisante nas regiões norte e nordeste. Nestas regiões as razões para a evasão rural são distintas e mais antigas. As políticas governamentais, salvo exceções, não conseguem levar em conta as condições ambientais da agricultura do semiárido e da Amazônia nem das condições sociais dos agricultores familiares destas regiões. O resultado é também um envelhecimento da agricultura familiar com a saída dos jovens em busca de melhores oportunidades. Apesar das políticas de assistência técnica terem sido orientadas no sentido de se procurar gerar um novo modelo de desenvolvimento da agricultura familiar baseado na agroecologia na prática o grosso da ATER financiada com recursos públicos federais e estaduais continuou promovendo o modelo do agronegócio em pequena escala. Já as políticas de compras governamentais tiveram mais sucesso mas atuaram com uma escala diminuta que não alterou o modelo de produção dominante. Como se pode concluir, os governos dos últimos 20 anos confiaram na proposta insustentável de promover o desenvolvimento da agricultura baseado no modelo da revolução verde, modelo este que foi levado tanto para a grande produção patronal como para a agricultura familiar. Lula costumava dizer que no Brasil há lugar para todos: produtores convencionais, orgânicos, agroecológicos, extrativistas, etc. As políticas governamentais de todos estes presidentes fizeram isto mesmo, promoveram modelos contraditórios de desenvolvimento mas com uma clara ênfase no modelo do agronegócio de grande porte. A agricultura orgânica e a agroecologia foram tratadas como pequenos segmentos e nichos de mercado e não como uma alternativa de logo prazo para o conjunto da agricultura brasileira.

O PLANAPO foi concebido pelo governo em negociação e em contradição com a sociedade civil como uma política de nicho voltada para um público de, no máximo, 200 mil agricultores em 5 anos. Em contradição com esta clara orientação para um mercado e um público ultra minoritários a Conferência de Desenvolvimento Rural Sustentável aprovou uma proposta de política de promoção da agroecologia de caráter universal, voltada para o conjunto da agricultura familiar. O mesmo foi expresso na Conferência de ATER. O problema é que as conferências decidem coisas de difícil execução, mesmo se o governo tivesse sintonia com as propostas, o que não é o caso. Os mais realistas entre os militantes da agroecologia sabem que, mesmo no melhor dos casos, seria necessário um logo processo de transição para converter a agricultura familiar, sobretudo a contaminada pelo agro negocinho, para o modelo de produção agroecológico. Para que esta

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transição pudesse ocorrer seria necessário que as políticas fossem orientadas de forma coerente e que os agentes governamentais fossem coerentes com esta orientação. Para dar um exemplo das possibilidades de um processo de transição cito o caso da produção de arroz nas Filipinas, onde um programa da FAO endossado pelo governo retirou paulatinamente subsídios ao uso de agrotóxicos e introduziu práticas de manejo integrado de pragas. Em dez anos o volume de agrotóxicos utilizados no país nas culturas de arroz caiu a 10% do seu emprego anterior. A dificuldade final deste processo de promoção da agroecologia junto com os governos populares no Brasil é pouca compreensão dos agentes públicos sobre a complexidade e diversidade da agroecologia e da agricultura familiar que exigem políticas muito bem calibradas para que tenham resultados sustentáveis. A pressa dos governos em conseguir massificar a produção agroecológica acaba atrasando a transição em vez de acelerá-la. Pode-se dizer que, até agora, com 12 anos de negociações entre a sociedade civil e o governo federal apenas a política de ATER foi minimamente afinada com as concepções da agroecologia e formulada de maneira a poder ser executada de forma coerente, muito embora sejam ainda muitas as dificuldades para as entidades que executam os projetos financiados pelo governo.

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EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL: ENTRE O DIREITO SOCIAL E SUBJETIVO E O NEGÓCIO Este pequeno texto, cujo objetivo é de forma breve e sucinta expor as situação conjuntural da educação básica no Brasil, sintetiza algumas análises de pesquisas recentes do ator, em grande parte divulgadas em trabalhos mais extensos ou em texto em co-autoria com Maria Ciavatta e Marise Ramos

Por Gaudêncio Frigotto Doutor em Educação: História, Política e Sociedade (PUC/SP). Professor titular em Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense (aposentado). Professor do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

No ideário da revolução burguesa no século XVIII a escola básica, hoje entendida no Brasil como o ensino fundamental e médio, era concebida como a instituição que deveria garantir, como direito social e subjetivo, o acesso universal, público, gratuito e laico ao conhecimento e ao patrimônio cultural da sociedade. Este legado permitiria às sucessivas gerações uma dupla cidadania: política e econômica. No primeiro caso a garantia da participação ativa na vida política e social, e, no segundo, a inserção qualificada no processo produtivo que permitisse a autonomia na construção de seu futuro. O fato da revolução burguesa não abolir a sociedade cindida em classes sociais, mas apenas produzir uma nova estrutura de classes, garantiu apenas parcialmente este ideário. O que se afirmou é uma estrutura dual de escolarização, reservando à classe trabalhadora uma formação instrumental e de cunho adestrador. Entretanto, naquelas nações onde as relações de força entre classes e frações de classe colimaram a forma clássica de revolução burguesa a maioria dos cidadãos, mesmo de modo diferenciado, atingiu a escolaridade básica, mediação necessária à dupla cidadania. O que espanta e causa estranheza para quem busque entender a sociedade brasileira é que chegamos na segunda década do Século XXI situados entre as sete maiores economias, mas mantendo a reiterada negação ao direito à educação básica completa para a maioria, quando não na persistência da produção do analfabetismo. Esta negação incide justamente sobre a grande

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maioria de jovens e adultos que pelo trabalho seu trabalho de geração a geração produziu esta riqueza. Com efeito, em plena segunda década do século XXI a sétima economia do mundo em produção de riqueza mantém mais de 13 milhões de analfabetos absolutos. Também na educação infantil (de zero a cinco anos) permanece uma imensa dívida, especialmente com os filhos das frações mais pobres da classe trabalhadora. Avançamos nas últimas décadas na quase universalização do acesso ao ensino fundamental, mas sem oferecer as bases materiais de uma aprendizagem adequada. Bases estas que implicam prédios adequados, bibliotecas, laboratórios, espaços de lazer e cultura, tempo do aluno na escola e professores com excelente formação geral e específica, e dignamente remunerados, o que lhes permitiria atuar numa só escola e com carga horária dividida entre aulas, organização de materiais, atendimento aos alunos que precisam de apoio e estudo, etc. O ensino superior, desde a ditadura civil militar, ampliou significativamente as matrículas, mas com uma diferenciação de qualidade e acelerada privatização. A partir da década de 1990 a expansão, incluindo cursos de educação à distância, teve um aumento exponencial e de baixa qualidade. Hoje, mais de 80% das matrículas são do ensino privado. Mesmo com a criação de 16 novas Universidades Federais e de 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF), com centenas de campi, o setor privado avançou proporcionalmente mais. Assim mesmo há um grande déficit, pois o nosso número de jovens que tem acesso à universidade é bem inferior de países como Argentina, México e Colômbia. A dívida maior, entretanto, é a negação á metade dos jovens brasileiros do acesso e permanência no ensino médio. A negação do direito constitucional desta etapa conclusiva da educação básica significa não apenas a perda de um direito mas a mutilação da cidadania política e a emancipação social e econômica. Os números são inequívocos. De acordo com os dados do Censo do INEP/MEC de 2011, havia 8.357.675 alunos matriculados no ensino médio. Apenas 1,2% no âmbito público federal, 85,9%, no âmbito estadual, 1,1% no municipal e 11,8% no ensino privado. Mas o alarmante é o que revela a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2012 sobre a negação do direito ao ensino médio aos jovens brasileiros. Aproximadamente 18 milhões de jovens entre 15 e 24 anos estão fora da escola. Isto equivale à metade da juventude brasileira considerada esta faixa etária. Mas tomando-se o custo aluno-ano como um indicador das bases materiais acima referidas para os alunos de ensino médio que estão matriculados nos âmbitos estadual e municipal (aproximadamente 86%) tem-se uma ideia da negação de condições objetivas para um ensino

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com o mínimo de qualidade. O relatório – Futuro em risco – do final da década de 1990, patrocinado pela Inter-American Dialogue e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento11 que trata da crise da educação na América Latina e as consequências na estagnação econômica, mostra-nos que o grau médio de gasto aluno/ano para o ensino fundamental e médio, nos países desenvolvidos, é de 4.170 dólares. No câmbio atual do dólar (2,30) isto equivale a 9.590,00 reais aluno ano. O custo aluno ano, em média nos estados da federação no Brasil não passa de 3.500 reais. Isto representa uma mensalidade em algumas das escolas particulares disputadas pelo pequeno “andar de cima” da sociedade nas principais capitais dos estados brasileiros. O baixo custo é um indicador daquilo que os poderes constituídos (parlamento, executivo e judiciário, estão dispostos a gastar com a juventude que frequenta a escola púbica, a maioria absoluta filhos da classe trabalhadora. Revela, de outra parte, que se excetuando aproximadamente 3% de alunos que frequentam a rede federal e algumas escolas estaduais, cujo custo aluno ano atinge o patamar de 4.000 dólares aluno ano, a qualidade do ensino médio dada aos jovens mais pobres é baixíssima. O baixo custo reflete a ausência do que definimos acima como bases materiais da qualidade. Um exemplo deste descaso é o Estado do Rio de Janeiro que desde a década de 1940 praticamente não constrói escolas apropriadas para este nível de ensino. Outro indicador que mostra a fragilidade do ensino médio é que mais de um terço, aproximadamente 35% dos jovens que o frequentam estão fora da idade série adequada. A estratégia pedagógica adotada para a sua correção e de “aceleração da aprendizagem”, justamente para aqueles que necessitariam de um tempo mais lento e ampliado para recuperar o que socialmente se lhes negou, a começar pela ausência de cresces e um ensino fundamental cuja universalidade do acesso não significa a garantia, no processo, de qualidade. À medida que o Ministério da Educação (MEC) oferece e sugere a partir de 2014 aos estados da federação para esta aceleração é que adotem o Telecurso da Rede Globo de televisão. E qual tem sido a estratégia compensatória para os jovens que se lhes negou o ensino médio ou se lhes deu um ensino médio precário para inseri-los no mundo da produção, agora já sob o que se denominou de Terceira Revolução Industrial onde a ciência é a mola mestra? No início da década de 1940, com o surto de desenvolvimento pela substituição de importações, criou-se o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial ( SENAI) e o Serviço de Aprendizagem Comercial (SENAC)

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Ver: Frigotto, Gaudêncio. Globalização e crise do emprego. Boletim Técnico do SENAC – DN, 25, nº 2, Rio de Janeiro, 1999.

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que a longo do tempo constituiu-se no Sistema S, hoje com uma dezena de instituições. Sistema gerido privadamente com o fundo público compulsório e sem amplo controle da sociedade. Um breve retrospecto nos revela que em cada ciclo virtuoso de crescimento o país é surpreendido com falta de mão de obra qualificada. A estratégia é a criação de Programas com um determinado tempo de duração. No início da década de 1960 criou-se o Programa Intensivo de Formação de Mão de Obra industrial (PIPMOI) que em seguida foi estendido a todas as áreas da economia sendo transformado em Programa Intensivo de Formação de Mão de Obra (PIPMO). Um Programa inicialmente proposto para durar 20 meses e que se estendeu por 19 anos12. No final da década de 1990 criou-se o Plano Nacional de Formação Profissional (PLANFOR) e no início da primeira década do século XXI o Plano Nacional de Qualificação (PNQ). O surpreendente é que depois de quase uma década de governo do um ex líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva e de sua sucessora Dilma Russeff, com nome diverso, cinquenta anos depois cria-se em 2011 o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC). Um programa que tirando a sua amplitude e volume gigantesco de recursos investidos reedita do PIPMO. Um programa que busca responder à necessidade de trabalhadores no contexto em que se retoma a palavra desenvolvimento que mesmo em sua acepção modernizadora havia desaparecido do vocabulário político e econômico. Em seu lugar os guardiões do capital financeiro, industrial, agroindustrial e de serviços, com a sistemática repetição na grande mídia a eles vinculada, cunharam os vocábulos de economias emergentes e mercados emergentes. Estes mesmos guardiões, pela voz de seus intelectuais, produziram a expressão apagão educacional reclamando do governo a falta de mão de obra qualificada. Uma realidade, pois de fato o Brasil está importando quadros de profissionais qualificados para os empregos ligados ao trabalho complexo. Mas o cínico é que os responsáveis deste apagão, no passado e no presente, são os que dele reclamam. A prova inequívoca disto é que os seus representantes no parlamento protelaram por quatro anos a aprovação do Plano Nacional de Educação construído no debate e negociação nas instituições científicas, sindicatos e movimentos sociais, sobretudo os relacionados com a educação. Um protelar idêntico ao que ocorreu na década de 1990 com o Projeto da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Um processo de mutilação dos aspectos fundamentais, em particular os

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Ver a respeito, BARRADAS ( 1986). É interessante perceber a similitude que assume o PRONATEC cinco décadas depois.

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relacionados ao financiamento e organização do sistema educacional e à concepção de educação púbica como direito social e subjetivo universal e gratuito. A reiteração do cinismo é de que quem efetiva estas mutilações são os representantes, no parlamento e no poder judiciário, dos grandes grupos e da mídia, hoje protagonistas do “ compromisso” Todos pela Educação. Do que expusemos até aqui derivam duas conclusões que nos parecem amplamente sustentáveis. A primeira é de que sem a universalização do ensino médio e cuja qualidade equivalha à dos aproximadamente 3% que o concluem na rede federal, os programas emergenciais do passado e o atual PRONATEC constituem-se em castelos em cima de areia. No caso do PRONATEC há a transferência de um vultoso fundo público ao mercado do privado em cursos em sua maioria absoluta de 160 horas. O que vem se evidenciando é que as grandes corporações que têm no ensino um negócio, inicialmente centrado no ensino superior, rapidamente estão também avançando sobre o mercado da educação técnica e profissional, tradicionalmente disputado pelo Sistema S. Isto fica evidenciado quando se toma, por exemplo dados referentes ao Estado do Rio de Janeiro. Das aproximadamente 40 mil vagas ofertadas pelo Pronatec (no Brasil são 291.338 vagas) em 2014 advêm de grandes empresas da educação, tais como a Universidade Estácio de Sá (29.840), a Unicarioca (1.040 vagas) e o Centro Universitário Anhanguera (2.360 vagas). Com fusão da Anhanguera à Kroton em 2013, numa mega operação financeira de aproximadamente R$ 14,1 bilhões, o grupo passa a controlar 800 unidades de ensino superior e 810 escolas privadas associadas à educação básica e profissional13. Cursos de 160 ou de 300 horas e oferecidos por instituições específicas e qualificadas e para jovens e adultos que tenham o ensino médio completo e similar ao que oferecem as Escolas Técnica Federais, hoje Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia ou equivalentes, representam um processo de acompanhamento das mudanças da base científica e técnica do processo de produção em todas as áreas. Sem esta base, na melhor das hipóteses, preparam para o trabalho simples ou representam o protelamento de uma ilusão e, quando vinculados a outras políticas compensatórias, uma estratégia de alívio da pobreza e controle social. A segunda conclusão é de que os problemas que persistem na conjuntura presente na educação básica, por ser esta constituída na e constituinte da saciedade, só podem ser adequadamente entendidos na relação orgânica com o tecido estrutural da mesma sociedade. O campo estrutural

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Dados retirados em 06 de julho de 2014 de www.revistaforum.com.br

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nos fornece a materialidade de processos históricos de longo prazo e o campo conjuntural nos indica, no médio e curto prazo, como os grupos, classes ou frações de classe, em síntese, as forças sociais disputam seus interesses e estabelecem relações mediadas por instituições, movimentos e lutas concretas. O elemento crucial destas disputas é o de apreender se a direção das mudanças se dá na conservação e reprodução das relações sociais historicamente dominantes ou na sua alteração qualitativa. Vários intelectuais do pensamento social crítico brasileiro nos permitem entender a especificidade estrutural de nossa sociedade e a natureza das forças sociais que a produziram e a mantém como uma das mais desiguais do planeta e que em seu projeto societário não só não cabe a universalização da educação básica, como politicamente a impedem. No espaço deste breve texto valho-me das análises de Florestan Fernandes, o grande batalhador pela educação pública até sua morte e Francisco de Oliveira14. Florestan Fernades (1981 e 1975) destaca que a burguesia brasileira não efetivou um projeto societário na forma clássica das revoluções burguesas e, como tal, nunca lutou por um projeto nacional. A opção foi por associar-se de forma subordinada aos grandes centros hegemônicos do capital em detrimento do desenvolvimento autônomo e soberano da nação e de seu povo. Forjou, assim, um projeto de capitalismo dependente que combina altíssima concentração de propriedade e de riqueza e produção ampla de pobreza e miséria. O conceito de capitalismo dependente expressa, por um lado, que o confronto e a disputa não é entre nações, mas o que ocorre é a aliança e associação subordinada da burguesia brasileira com as burguesias dos centros hegemônicos do sistema capital na consecução de seus interesses. De outra parte, contrapõem-se às visões liberais conservadoras dominantes que atribuem as dificuldades do Brasil de constituir-se um país desenvolvido com a tese de que existe uma pequena parte do mesmo moderna e avançada e que é contida pela grande massa do povo que vive no atraso, este identificado pela baixa escolaridade, pelo trabalho informal e baixo consumo.

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Outro conjunto de pensadores, com nuances de análise, nos ajudam entender nossa especificidade como sociedade. Celso Furtado é o pesquisador que mais publicou sobre a formação econômico-social brasileira. Uma de suas conclusões originais é de que o subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento, mas uma forma específica de construção de nossa sociedade. Ao longo de sua obra, situa a sociedade brasileira dentro do seguinte dilema: a construção de uma sociedade ou de uma nação onde os seres humanos possam produzir dignamente a sua existência ou a permanência num projeto de sociedade que aprofunda sua dependência subordinada aos grandes interesses dos centros hegemônicos do capitalismo mundial. Além de Furtado destaco as obras de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Octávio Ianni, Milton Santos, Nelson Werneck Sodré e Carlos Nelson Coutinho.

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Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira rechaçam a tese da estrutura dual da sociedade brasileira e mostram a relação dialética entre o arcaico, atrasado, tradicional, subdesenvolvido, e o moderno e o desenvolvido na especificidade ou particularidade de nossa formação social capitalista. Fernandes sublinha que a estratégia da classe dominante brasileira e de reiterar o processo de modernização do arcaico. Francisco de Oliveira (1972) em sua obra Economia Brasileira: Crítica da razão dualista mostra de forma lapidar a imbricação do atraso, do tradicional e do arcaico com o moderno e desenvolvido que potencializa a nossa forma específica de sociedade capitalista dependente e de nossa inserção subalterna na divisão internacional do trabalho. Mais incisivamente, os setores denominados de atrasado, improdutivo e informal, se constituem em condição essencial do núcleo integrado ao capitalismo orgânico mundial. Assim, a persistência da economia de sobrevivência nas cidades, uma ampliação ou inchaço do setor terciário ou da "altíssima informalidade" com alta exploração de mão-de-obra de baixo custo são funcionais à elevada acumulação capitalista, ao patrimonialismo e à concentração de propriedade e de renda. Ao atualizar, 30 anos depois, esta obra com um capítulo, que o denominou metaforicamente de o ornitorrinco, Oliveira (2003) nos revela que o que se tornou hegemônico foi a permanência de um projeto de sociedade que aprofunda sua dependência subordinada aos grandes interesses dos centros hegemônicos do capitalismo mundial. Esta opção hegemônica, em termos sociais, se assemelha ao ornitorrinco, um mostrengo. Um projeto societário que produz a miséria e se alimenta dela. Para Oliveira as forças sociais que elegeram Lula da Silva, mesmo num contexto diverso da eleição de 1989, davam ao novo governo uma base para ter como tarefa de mudar projeto societário, agora num marco de não retorno. Na periodização de logue duré brasileira, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, ancorada na excepcional performance do Partido dos Trabalhadores e de uma ampla frente de esquerda, tem tudo para ser uma espécie de quarta refundação da história nacional, isto é, um marco de não retorno a partir do qual impõem-se novos desdobramentos. (...). É tarefa das classes dominadas civilizar a dominação, o que as elites brasileiras foram incapazes de fazer. O que se exige do novo governo é de uma radicalidade que está muito além de simplesmente fazer um governo desenvolvimentista (Oliveira, 2003a, p.3) Uma ampla produção crítica, a começar pela do próprio Oliveira, permite-nos sustentar que por diferentes razões e determinações não ocorreu o caminho do não retorno. A radicalidade a que o

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autor se refere, no contexto das forças em jogo, seria uma opção clara de efetivação de medidas políticas profundas capazes de viabilizar a repartição da riqueza e suas consequências em termos de reformas de base na confrontação do latifúndio, do sistema financeiro e do aparato político e jurídico que os sustentam. O caminho foi outro, a formação de alianças com forças políticas e econômicas historicamente contrarias as mudanças estruturais. Forças que se ampliaram no governo Dilma Rousseff. Resultam daí duas perdas fundamentais. No âmbito político a fragmentação do campo da esquerda e perda significativa da base social que poderia dar sustentação às mudanças estruturais. Configurou-se o que Oliveira de nominou de hegemonia às avessas ou a despolitização da política. Para Coutinho (2010) abandonou-se as questões políticas estruturais, em termos de Gramsci, a grande política, e cristalizou-se a hegemonia da pequena política. Para os movimentos sociais mais organizados e com maior clareza de projeto societário, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a grande mídia e o poder judiciário avançaram na sua criminalização. O abandono e a perda do projeto no plano político social significaram, no âmbito da educação, a perda também da disputa da concepção pedagógica no governo e, em larga medida pela despolitização, na sociedade. Abriu-se no governo e no Estado o caminho para que a concepção mercantil de educação, sob a orientação dos organismos internacionais, intelectuais coletivos que zelam pelo lucro do capital, se tornasse dominante. Bancos, Associação do Agronegócio (ABAG), redes de televisão e institutos privados disputam não mais apenas recursos para o mercado privada da educação, mas a direção pedagógica do conteúdo e do método das escolas públicas. O mais paradoxal é que o governo de forma crescente estimula e legitima a orientação da educação básica , sua gestão, conteúdos e avaliação dentro dos critérios mercantis. À adoção do Telecuros da Rede Globo, acima mencionado para nivelar os alunos defasados na idade série somam-se, em 2014 duas outras medidas nesta direção. O MEC estabeleceu parceria com o Instituto Unibanco (IU) para orientar tecnicamente o ensino médio inovador. Qual a educação que um banco privado pode assessorar se não a que interessa ao seu negócio? Outro protocolo de parceria foi assinado entre o Ministério da Educação (MEC), por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e o Instituto Ayrton Senna (IAS) para estimular pesquisas sobre o desenvolvimento de habilidades socioemocionais na Educação. Um retrocessos à psicologização das questões sociais e da educação oriundas da teoria da modernização da década de 1940.

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O cenário das eleições presidenciais nos indica que as alternativas ao governo atual, salvo os partidos claramente de esquerda, tem projetos no campo da sociedade e da educação totalmente abertos à mercantililização. Coloca-se, neste cenário, para tentar renascer das cinza no plano social e educacional, inicialmente uma dupla autocrítica e, em seguida, de uma agenda política necessária e possível. Ao PT, partido que encabeça o governo e a proposição da reeleição da atual presidenta, apreender com a autocrítica, quer revela grandeza política e humana do que Florestan denominou, referindo-se à sua geração, de geração perdida. Fernandes, após perguntar o que queriam, onde e porque erraram e como aprender do erro responde com a clareza que o presente cobra: Não foi um erro confiar na democracia e lutar pela revolução nacional. O erro foi outro – o de supor que se poderiam atingir esses fins percorrendo a estrada real dos privilégios na companhia dos privilegiados. Não há reforma que concilie uma minoria prepotente a uma maioria desvalida. (FERNANDES, 1980, p. 145.). E prossegue indicando que a tarefa fundamental é de estar com o povo para que ele adquira a consciência e capacidade para fazer a revolução que o Brasil necessita. Ao campo das esquerdas, pois diversos são seus matizes, e dos partidos, sindicatos e movimentos sociais que as constituem, o desafio é de afirmar uma unidade possível. No plano estratégico aprender da classe dominante não transigir no que não é negociável. Trata-se de somar forças para a ruptura e superação do projeto societário que historicamente produz a desigualdade e se alimenta dela. No plano da agenda propositiva um primeiro passo é a retomada da defesa unitária das reformas estruturais, entre elas: A reforma agrária popular defendida pelo MST e outros movimentos sociais; a reforma tributária e novas alíquotas de imposto de renda, numa escala progressiva; controle do capital especulativo, taxação das grandes fortunas, reforma política e do judiciário, um dos poderes mais opacos e inacessível aos movimentos sociais e populares; controle social a monopólio privado da grande mídia e, no campo da educação, a construção de uma nova LDB, tendo como base a que foi produzido pela sociedade na década de 1990 e abortada pelos representantes da classe dominante no parlamento. Sem uma unidade mínima nesta direção o assalto ao fundo público e a mercantilização de todas as esferas da vida se darão por completo. Se esta unidade mais que necessária se torna possível o futuro próximo o dirá. Referências Bibliográficas. BARRADAS, Anésia Maria da Silva. A fábrica PIPMO: uma discussão sobre política de formação de mão-de-bra no período de 18963-1982. Rio de Janeiro, IESAE/ Fundação Getúlio Vargas.,

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1986. Dissertação de Mestrado.FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Um ensaio de interpretação sociológica. 3. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. COUTINHO, Carlos Nelson. A hegemonia da pequena política. In; Oliveira, Francisco de, Braga, Ruy e Rizek, Sibele. Hegemonia às Avessas. São Paulo, Boitempo, 2010,p.30-49 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1975 FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1980 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Um ensaio de interpretação sociológica. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 OLIVEIRA. Francisco de. Economia brasileira: crítica da razão dualista. Estudos Cebrap n. 2, São Paulo, 1972. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista.. O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003. OLIVEIRA, Francisco de. Revista reportagem, n. 41, fev.2003a. Entrevista concedida a Fernando Haddad e Leda Paulani. OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às avessas . In; Oliveira, Francisco de, Braga, Ruy e Rizek, Sibele. Hegemonia às Avessas. São Paulo, Boitempo, 2010. p.21-29 PAULANI, Leda. Brasil delivery. São Paulo, Editora Boitempo, 2008.

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A (IN) SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL: UMA CRISE ANUNCIADA Por Isabel Cristina de Moura Carvalho Psicóloga, doutora em educação Professora adjunta do PPG em Educação e da Faculdade de Educação da (PUC-RS)

Desde 1987 quando foi lançado oficialmente o conceito de Desenvolvimento sustentável pela ONU (Comissão Brundtland) temos assistido a um contínuo jogo de posições pela disputa dos sentidos do que pode ser o adjetivo “sustentável” e a que substantivo este se conecta. Em 1997, por exemplo o mundo empresarial produz a noção de Triple Bottom Line (profit, planet, people) indicando um ajuste do mundo organizacional às demandas de ambientalização. Outro deslocamento significativo do conceito operado pelos movimentos socioambientais demarcou sua desfiliação a Idea de desenvolvimento sustentável afirmando a expressão sociedade sustentável e também a ideia de sustentabilidade, livre da conexão com os imperativos do desenvolvimento desde a perspectiva do mercado capitalista industrial. Mais um marco importante foi expansão das lutas por justiça ambiental e a instauração de um horizonte ampliado apelo igualdade social com foco nas relações socioambientais onde se materializa a distribuição desigual das oportunidades de acesso aos bens ambientais e a produção de grupo ambientalmente vulneráveis (atingidos pela poluição, pela ausência de serviços ambientais, pelas mudanças climáticas, refugiados ambientais, entre outros). A cada mega evento ambiental como foi a Rio+20 - ou como têm sido as rodadas de negociação sobre as mudanças climáticas alimentadas pelos estudos do Painel Internacional de Especialistas sobre Mudanças Climáticas, o IPCC - estes conceitos circulam vertiginosamente. São discursos, performances, acordos e dispositivos políticos de múltiplas orientações no polissêmico idioma ambiental. O que temos visto neste fenômeno de institucionalização da problemática ambiental como objeto de políticas globais e nacionais é uma construção de consensos que se instalam no ambiente das formas da democracia representativa de gestão mas, produzem como efeito, um deslocamento do foco da responsabilidade ambiental para o campo dos interesses setoriais, flexibilizando direitos conquistados e pondo em risco a vida a segurança ambiental das populações e dos ecossistemas. Com este cenário ao fundo, podemos compreender os sentidos que vem ganhando vários dos atuais problemas ambientais, tanto em termos mundiais quanto locais. Apenas para citar dois

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exemplos, temos a redução da esfera de negociações em torno da mitigação da emissão de carbono ao modelo financeiro de fundo de ações para dar um exemplo dos conflitos ambientais globais. No plano nacional, em que pese a efetiva distribuição de renda operada pelos governos petistas na ultima década, não podemos negar que vivemos sob hegemonia de uma política desenvolvimentista. Ainda que sejam inegáveis os avanços nas políticas de acesso à educação e medidas econômicas redistributivas, não podemos dizer que a política ambiental tenha a mesma centralidade no governo Dilma, como tampouco teve nos governos Lula. Prova disto são os casos da transposição do Rio São Francisco, da política energética que segue baseada em grandes hidrelétricas, dos privilégios concedidos à a indústria automobilística, ou da falta de legislação e do descaso que permite que sejamos envenenados por alimentos contaminados diariamente por agrotóxicos banidos de outros países. Uma situação exemplar para pensar insustentabilidade que caracteriza a conjuntura ambiental neste momento é a situação do abastecimento de água em São Paulo. Este fenômeno não deixa de estar relacionado em certa medida às mudanças climáticas globais, na medida em que é consequência da irregularidade no regime de chuvas. Depois de um dos verões mais chuvosos dos últimos anos a região Sudeste e particularmente São Paulo vive um inverno seco e quente. A quantidade de chuva prevista para o mês de junho em São Paulo esteve abaixo da média. O sistema de abastecimento da Cantareira que atende 30 milhões de pessoas chegou a 20,4% de sua capacidade no início de julho. Este volume de água continua a cair e a segunda maior cidade da América Latina esta vivendo de sua reserva técnica ou do também chamado “volume morto” de seus mananciais. A grande mídia, voltada para a Copa do Mundo silenciou sobre a crise de abastecimento. O governo de São Paulo desde o início do ano, quando este cenário já estava instalado evita o racionamento para que este não afete “o clima” da campanha eleitoral. Enquanto isso as chuvas não caem, os paulistanos seguem queimando sua ultima reserva de água sem que o poder público sequer assuma sua responsabilidade em evitar o desastre ambiental e o desabastecimento que se aproxima rapidamente. Esta situação gravíssima revela não apenas uma contingência ambiental: a seca, a baixa pluviosidade. Expõe, sobretudo, um modo humano, socialmente situado, de intensificação da escassez de água pelo manejo irresponsável da situação. Apesar da gravidade e da urgência do problema ambiental, ele é posto em latência forçada, tornado secundário na esfera pública pelo silêncio da grande imprensa orientada pela política governamental e, neste caso, pelos interesses eleitorais. Uma estratégia que pretende tornar invisível o que é evidente, tornar insignificante que é obvio. Apesar de todas as evidências a cidade que não para continua em seu ritmo frenético,

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irrigada com a água do fundo dos seus mananciais, sorvendo irresponsavelmente sua ultima parcela potável. Será que esta estratégia suicida, guiada por interesses de curto prazo, tem por horizonte alguma preocupação com a qualidade de vida, a sustentabilidade ambiental do ambiente humano e não humano da cidade de São Paulo? Seria possível pensar em sustentabilidade ou equidade entre as necessidades presentes e futuras dos cidadãos quando restam menos de 100 dias de água potável? Haveria nesta orientação algum resquício de justiça ambiental?Qual o pacto societário será capaz de ampliar o horizonte imediatista da política eleitoral e de curto prazo na direção de uma ética da responsabilidade ambiental tal como formulada pelo filósofo ambientalista Hans Jonas?

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POVOS INDÍGENAS: EM LUTA CONTRA UM GENOCÍDIO QUE TAMBÉM MATA O QUE HÁ DE HUMANO EM CADA UM DE NÓS “O homem não está destruindo somente a natureza, está destruindo a sua própria natureza humana, isso eles não entendem, estão destruindo a si mesmo” (Trecho da “Carta dos Munduruku ao Governo explicita conhecimentos milenares e reafirma demandas”, disponível em http://goo.gl/DhUuBA.)

Por Tania Pacheco doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Coordenadora-executiva do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/) Ativista e produtora de conteúdo do blog Combate Racismo Ambiental (http://racismoambiental.net.br/)

Há uma boa probabilidade de que no futuro, ao estudarmos as consequências dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), venhamos a concluir que seus maiores beneficiários foram os povos indígenas. Infelizmente, também é possível que lamentemos não tenha essa chance sido aproveitada, e o genocídio afinal esteja consumado. E não há em nessas duas possibilidades qualquer espécie de exagero. No início de 2013, Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais e colaborador da CNV, descobriu no Museu do Índio um documento de mais de sete mil páginas que se julgava havia sido queimado num incêndio: o “Relatório Figueiredo”15, assim conhecido por ter sido escrito pelo Procurador da República Jader de Figueiredo Correia, em 1967/1968. A serviço do Ministério do Interior, o Procurador viajou cerca de 16 mil quilômetros, visitando mais de 130 postos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e entrevistando funcionários, moradores e indígenas, sobre denúncias envolvendo o órgão. À medida que o fazia, Figueiredo produzia o

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Uma síntese de 68 páginas do Relatório Figueiredo pode ser baixada emhttp://goo.gl/8zODyX.

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Relatório que na época nenhum efeito esperado produziu, considerando o teor das denúncias, mas, redescoberto precisamente agora, pode vir a fazer uma grande diferença para os futuros dos 305 povos indígenas ainda restantes em nosso País, segundo o IBGE. Consta que existiriam na área hoje conhecida como Brasil, quando de sua invasão, cerca de cinco milhões de indígenas, agrupados em não se sabe quantos milhares de povos. Pouco ouvimos falar disso, mas nas aulas de História aprendemos sobre os “gloriosos feitos” dos bandeirantes, até hoje homenageados em ruas, avenidas e monumentos. Por outro lado, é muito pouco conhecida a saga dos Terena, por exemplo, convencidos a deixarem suas terras para defender o Brasil na chamada Guerra do Paraguai para, na volta, descobrirem que, em troca, haviam perdido seu território e eram agora simples exilados num País que não os queria (Oliveira e Pereira, 2013). Saltando para os tempos da ditadura de 1964-1985, sabemos que, principalmente a partir do governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), tornara-se uma obsessão para os militares ‘desbravar’ o Centro-Oeste e levar o ‘desenvolvimento’ a ele e à Amazônia. Para isso, estradas eram abertas, derrubando florestas e tudo o mais que existisse no caminho, e assentamentos iam sendo criados, seguindo o avanço dos tratores. A respeito da BR-230, conhecida como a Transamazônia, o ditador era enfático, em filmes promocionais que obedeciam à estética de Leni Riefenstahl16: com sua abertura, iríamos levar “gente sem terra” (os nordestinos, aos quais não faltavam terras, e sim condições para nelas viver de forma digna) para “uma terra sem gente”. Para Médici e seus asseclas, os povos indígenas que lá viviam simplesmente não contavam como seres humanos. Mas, até 2013, não tínhamos noção de até onde a ditadura fora para promover sua política de “integração nacional” e transformar o território em espaço para o ‘progresso e desenvolvimento’. A síntese do Relatório Figueiredo configura um quadro de franco genocídio, provocado por causas variadas: da escravização, estupro, tortura e morte com características sádicas à contaminação de aldeias inteiras por doenças várias – varíola, sarampo, coqueluche, catapora e gripe - ou a bombardeios aéreos com dinamite. Por isso mesmo, provocou uma inesperada reviravolta nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que destacou inclusive a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl para se dedicar à questão. E os depoimentos por ela colhidos junto aos sobreviventes e cuidadosamente documentados em vídeos não só revelam uma face monstruosamente cruel dos militares e servidores do SPI envolvidos nessas ações como – num

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A grande cineasta do nazismo, diretora entre outros do clássico “O triunfo da vontade” (1902-2003).

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efeito que esperamos venha a ser importante para garantir a sobrevivência de seus descendentes confirmam o direito aos territórios reivindicados por muitos povos indígenas, comprovadamente deles expulsos nos registros do Procurador. A Constituição de 1988 é um marco importante de ressurgimento e de participação política dos povos indígenas entre nós, lutando claramente por seus direitos. Tanto que eles nela estão presentes através de dois artigos (231 e 232), do Capítulo VIII, intitulado “Dos Índios”. O artigo 231 é aberto de forma clara: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Os sete parágrafos seguintes versam sobre questões específicas, e o Artigo 232 garante aos povos indígenas a defesa legal de seus direitos e responsabiliza o Ministério Público Federal por representá-los. Fora isso, a Carta fixa um prazo de cinco anos, a partir de sua promulgação, para a demarcação de todas as terras indígenas. Não é necessário dizer que isso não foi respeitado, assim como muitos outros direitos continuam a não sê-lo. Em 2003, o Brasil assinou e em 2004 promulgou a Convenção 169 da OIT, “Sobre Povos Indígenas e Tribais”, que estabelece o Direito de Consulta Libre, Prévia e Informada antes da tomada de qualquer decisão que possa afetar as vidas não só de indígenas, mas também de quilombolas e comunidades tradicionais (as “Tribais”). Embora tenha valor reconhecido como supra legal pelo próprio Supremo Tribunal Federal (ou seja: esteja num nível entre a Constituição e as leis comuns), a Convenção 169 é tão respeitada pelo Estado quanto o prazo constitucional para a demarcação das terras. Que o digam os povos afetados por Belo Monte ou por qualquer outro empreendimento no qual eles estejam no caminho dos interesses do capital. A realidade é que, enquanto os povos indígenas lutavam para assumir seu justo protagonismo no cenário político, paralelamente e desde tempos na verdade anteriores à própria ditadura, ruralistas do agro e do hidronegócios, da pecuária e dos capangas, cada vez mais expandiam seu poder. A partir do Sul e do interior do sudeste, onde a terra começara a rarear e a tornar-se cada vez mais cara, já na virada para a década de 1960 eles formavam verdadeiras levas que se embrenhavam pelo Centro-Oeste, usando desde grileiros e jagunços a certidões forjadas (em grande parte com a conivência de cartórios e juízes) para, numa política de terra arrasada, expulsar, desmatar, queimar e, finalmente, introduzir seus rebanhos ou monocultivos variados, com agrotóxicos pulverizados por via área para contaminar ar, solo, água e também moradores renitentes. E isso quando era o próprio estado que se incumbia de afastar os ‘silvícolas’ e lotear suas terras, diretamente ou por intermédio de ‘empresas de colonização’.

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A partir do final da década de 1970, com o novo slogan da ditadura – “Plante que o João17 garante” - o “Arco do Desmatamento” se configuraria de forma clara no seu caminho para o Norte. E bem antes que ele adentrasse a Amazônia e o sudoeste do Nordeste, muitos povos indígenas – como os Kaiowá e Guarani18, em Mato Grosso do Sul - se veriam encurralados nas margens das estradas, entre o asfalto e as cercas que os mantêm fora das terras que já foram inclusive reconhecidas como legitimamente suas e onde seus antepassados estão enterrados. Nesse caso específico, provavelmente o exemplo mais chocante dentre diversos outros no Brasil atual, a realidade de sofrimento leva a estados de desesperança tais que 72 indígenas da etnia – na maioria entre os 15 e os 25 anos – foram “suicidados pela sociedade”19 somente ao longo de 2013. A esse número temos que somar ainda os ‘atropelamentos’ pelos carros e caminhões das usinas, assim como os assassinatos pelos jagunços (quando não pelas próprias forças policiais), inclusive de adolescentes. Mais ao norte, caso paradigmático quanto a isso é o de Adenilson Munduruku, assassinado durante uma incursão da Polícia Federal à aldeia Teles Pires, no dia 7 de novembro de 2012. Neste início de julho de 2014, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra o delegado comandante da operação por homicídio qualificado. Segundo o MPF20, a autópsia e os depoimentos colhidos revelaram que o delegado executou Adenilson com um tiro na nuca, embora o Mundurucu estivesse caído, já atingido três vezes nas pernas. Mas o caso de Adenilson lança luz também sobre a cada vez mais elogiável atuação do Ministério Público Federal ligado à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, que é quem tem a função específica de cuidar das questões ligadas às Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais. Embora infelizmente essa ação não se repita em todos os estados, em muitos, a ação do MPF vem contribuindo para que o assassinato se mostre desaconselhável ou, pelo menos, problemático. Um exemplo: a partir de denúncia do MPF, no início de janeiro deste ano a Justiça Federal determinou o fechamento de uma empresa de segurança que funcionava em mais de um

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General João Baptista Figueiredo, que ocupou o poder de 1979 a 1985.

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Verhttp://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=89.

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Uso essa expressão a partir da visão de Artaud (1975) sobre a morte de Van Gogh. Em MS, a omissão de uma sociedade com valores racistas permite que o capital determine a condenação desses jovens à não-existência. 20

Ver http://goo.gl/EMXSzp.

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município do Mato Grosso do Sul. A Gaspem foi acusada por envolvimento direto na morte de duas lideranças e ferimentos em dezenas de indígenas21. Infelizmente, nem mesmo o trabalho exemplar que vem sendo desenvolvido pelo MPF no Mato Grosso do Sul é capaz de evitar que o estado continue a ocupar a liderança absoluta no índice de mortes de indígenas. Só no que diz respeito aos ‘suicídios’, o número total em 2013 foi de 73 (houve também um caso na etnia Terena), o que equivale a mais de um por semana! Ano após ano, os Relatórios do Conselho Indígena Missionário e da Comissão Pastoral da Terra nos estarrecem com a constatação de que, sozinho, Mato Grosso do Sul supera todos os demais estados somados, em termos de violência, suicídios e assassinatos, em particular. Um recorde do qual algumas de suas ‘elites’ parecem se orgulhar, na medida em que não têm qualquer pudor em aparecer no Youtube em vídeos incitando à compra e ao uso de armas ou organizando leilões para melhor armar seus capangas, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Outra estratégia contra o crescente empoderamento dos povos indígena sem pleno uso atualmente é a criminalização de suas lideranças. No caso dos Tupinambá, uma das principais e, sem dúvida, a mais carismática, o cacique Babau, da Serra do Padeiro, já disse nunca saber direito sequer a quantos processos está respondendo. Quando pensa estarem todos resolvidos, a Polícia Federal tira mais um da manga, como há dois meses, quando ele estava numa reunião em Brasília, de passaporte pronto para viajar no dia seguinte, com uma delegação do Cimi, para ser recebido pelo Papa Francisco. Para Babau (ou Rosivaldo Ferreira da Silva, como querem as leis dos brancos), que já viu a Constituição ser rasgada de dentro de um presídio de segurança máxima, no Rio Grande do Norte, a experiência mostrou que o melhor era ele próprio se apresentar e entregar o passaporte. De volta à Serra do Padeiro, ele pode aguardar melhor o próximo passo da Justiça da Bahia. Uma Justiça totalmente cega, por exemplo, quando os ruralistas mandam colocar nos arredores de Buerarema imensos cartazes com fotos de jagunços armados com espingardas e frases de incitamento ao ódio, mas rápida para dar provimento em menos de 24 horas a uma ordem de prisão. A ser cumprida, diga-se de passagem, em Brasília e contra alguém ameaçado de morte, que já foi vítima de atentados e que, por isso mesmo, está incluído no Programa de Proteção aos Direitos Humanos da Secretaria de Direitos da Presidência da República.

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Ver http://goo.gl/GiPZXh.

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O desaparecimento de três não indígenas na Transamazônica, em 16 de dezembro de 2013, foi o ponto de partida para outro tipo de estratégia. No dia 25, de Natal, insuflada por madeireiros e seus jagunços, a população de Humaitá saiu às ruas, queimando bem públicos da Funai e da Sesai e ameaçando os 150 indígenas que estavam (ou moravam) na cidade, incluindo os doentes do Polo Base de Saúde. Abrigados no 54º Batalhão de Infantaria na Selva, somente no dia 30 o Ministério Público Federal conseguiu garantias da Justiça para que eles pudessem retornar a suas aldeias, que continuaram entretanto sob ameaça. Nos portais e páginas de Humaitá, Apuí e Manicoré, a incitação ao racismo, ao ódio e à violência fez o MPF atuar mais de uma vez, levando a Justiça a determinar a retirada desse material da internet e das redes sociais. Coincidentemente, a Polícia Federal desde o início de sua atuação concentrou todas as investigações na Terra Indígena Tenharim Marmelos, a ponto de para lá levar um caminhão de operações que ficou conhecido como o ‘super caveirão’. As ofertas iniciais de ajuda por parte dos Tenharim e dos Jiahuiforam rebatidas com intimidações. Finalmente, no dia 30 de janeiro, a PF prendeu cinco lideranças Tenharim: Gilson e Gilvan, professores e ambos filhos do cacique Ivan, vítima de uma provável tentativa de homicídio no dia 2 de dezembro (faleceu no dia seguinte, no hospital); Valdinar, agente indígena de saneamento (os três da aldeia Campinho-hu); Domiceno, professor e cacique da aldeia Taboca; e Simeão, agente indígena de saúde da aldeia Marmelos. Levados para uma prisão de segurança média em Porto Velho, que fica a 160 km da Terra Indígena, eles lá continuam, enquanto a Polícia mantém o processo ‘sob sigilo’, alegando a necessidade de manter o anonimato dos acusadores, e tenta ainda conseguir a decretação da prisão de uma liderança chave: Aurélio Tenhrarim22. Na sua conversa com o general Eduardo Villas Bôas, comandante militar da Amazônia, divulgada pelo jornalista José Maria Tomazela no Estado de São Paulo, Aurélio Tenharim foi claro: “Nós éramos 30 mil tenharins; hoje somos 800. Os jiahui foram quase extintos. (...) A Transamazônica tem história de massacre, de estupro de nossas índias, escravos, violação de direitos. Quem vai pagar isso?”. Segundo o MPF, quando a Terra Indígena Jiahui foi homologada, em 2004, restavam apenas 17 indivíduos. Embora esse número tenha aumentado razoavelmente em dez anos, hoje eles totalizam só 98 indígenas. Criminalização, acusação de assassinato e prisão foi também a estratégia utilizada pela Polícia Federal contra os Kaingang, agora no Sul do País. Espalhados por 30 grupamentos que vão do Rio

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Sobre a vida dos cinco Tenharim ao longo destes meses, ver o comovente depoimento que eles deram à antropóloga Receba Campos Ferreira, disponível em http://goo.gl/OOF62b.

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Grande do Sul a São Paulo, eles somam hoje cerca de 30 mil indivíduos. Em 1846, o governo do Rio Grande do Sul decidiu destituí-los de seu território no estado, determinando seu confinamento num aldeamento – Nonoai -, liberando suas terras para a exploração agrícola. Desde então os Kaingang lutam pelo seu território de diferentes formas. No início de maio último, estava marcada uma reunião do Ministro da Justiça com as lideranças da etnia, na Terra Indígena Kandóya, Rio Grande do Sul. Dias antes, três grupos Kaingang fizeram manifestações de protesto fechando estradas na região. Dois irmãos agricultores tentaram furar um dos bloqueios, usando um menino indígena como refém. Conseguiram, mas foram perseguidos, alcançados e, na briga, acabaram mortos. Na data marcada para a reunião, as lideranças indígenas compareceram, contra o conselho de alguns; o Ministro faltou; mas a Polícia Federal se fez presente e, no que foi denunciado como uma emboscada, prendeu os sete Kaingang, acusando-os do assassinato. Dois foram soltos quase que de imediato, pois sequer estavam na região quando do incidente. Os outros cinco permaneceram presos, embora toda a comunidade garantisse que eles sequer haviam estado perto do bloqueio em questão. De acordo com testemunhos diversos, tanto o cacique Deoclides de Paula como Nelson Reco de Oliveira estavam em casa com suas famílias. O mesmo poderia ser dito de Celinho de Oliveira, com o agravante de que ele estava em Nonoai, a 25 km de distância do conflito. Como agente de saúde que é, Daniel Rodrigues Fortes estava fazendo visitas domiciliares na comunidade. Finalmente, Romildo de Paula participava de um outro bloqueio, a mais de 500 metros de distância. Apesar da evidente injustiça, os Kaingang tiveram mais sorte que os Tenharim: ficaram presos apenas do dia 9 ao dia 22 de maio, quando foram libertados por força de liminar concedida ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O processo continua, entretanto, embora cada vez mais fique clara a absurda atitude tomada pela Polícia Federal e, em particular, pelo delegado Mário Vieira, que admitiu para os juízes de primeira instância que pode ter havido falha no processo, pois “a identificação de índios é muito difícil”. A explicação para a ‘dificuldade’ é simples: segundo o delegado, eles são todos parecidos. Como já mencionamos, segundo o IBGE os indígenas corresponderiam, em 2010, a 0,44% da população. Nesse mesmo ano era disponibilizado na internet o Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil23, resultado de uma parceria entre a Fase e a Fundação

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O Mapa de Conflitos está disponível em http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/.

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Osvaldo Cruz (Fiocruz) Utilizando uma plataforma baseada no Google Maps, o Mapa de Conflitos estreava com aqueles que na ocasião eram considerados por especialistas de todos os estados os 297 piores casos de injustiça e de racismo ambientais no País. E o que dá uma dimensão especial a tudo que estamos discutindo é que, nesses 297 piores conflitos, os povos indígenas estavam presentes em 33,7% (Pacheco e Faustino, 2013)! Ao longo destes quatro anos, muitos outros conflitos foram iniciados e outros já existentes encontraram finalmente seu lugar no Mapa. Temos hoje, em meados de julho de 2014, precisos 490 casos. Da mesma forma, muitos indígenas nasceram, outros tantos decidiram assumir sua identidade étnica, enquanto outros, como vimos, se juntavam aos seus “encantados”, de uma forma ou de outra. No entanto, os povos indígenas estão hoje presentes em 165 conflitos, o que corresponde a 33,67%. Ou a 33,7%, se arredondarmos os números. Se de um lado isso reflete a forma como continuam a ser tratados, de outro, a própria existência dos conflitos deixa claro que eles estão lutando bravamente contra o genocídio. Embora falem 274 diferentes idiomas, segundo o IBGE, as 305 etnias indígenas existentes no Brasil cada vez mais se unem em entidades, começando pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), saem da invisibilidade e se fortalecem para exigir seus direitos, embora isso aconteça de forma muito desigual. Há situações extremamente penosas, que levam a diferentes formas de degradação e mesmo de autodestruição, como já mencionado, mas há também os muitos que resistem. Uns retomam seus territórios (como os Tupinambá24, na Bahia, ou os Xakriabá25, em Minas Gerais), outros mantêm-se em estado de quase beligerância, expulsando de suas terras tanto garimpeiros quanto técnicos governamentais interessados em usar seus rios (a bacia doTapajós e o Teles Pires, no caso dos Munduruku26) para a construção de barragens e hidrelétricas que fornecerão energia a baixo custo para indústrias eletrointensivas que produzirão commodities para exportação e, paralelamente, abrirão caminho para a mineração. Ou ainda, no caso dos Kaa’por da Terra Indígena Alto Turiaçu, ‘patrulhando’ e expulsando os madeireiros de seu território, ao mesmo

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Ver http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=30.

25

Ver http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=215.

26

Ver http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=432.

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tempo que ajudavam aos Awá-Guajá a conseguirem sua própria Terra, que acaba de sofrer o processo de desintrusão27. Em todos esses casos o governo federal se mantém, no mínimo, omisso. A bancada ruralista, cuja Frente Parlamentar detém oficialmente 202 cadeiras de um total das 594 do Congresso Nacional, sem contar o apoio da bancada evangélica, leva o governo Dilma Rousseff a fazer acordos em nome de uma governabilidade cada vez mais subserviente, seguindo a já velha mas sempre lamentável receita da “pós-democracia consensual” (Rancière, 1996), que ameaça de morte não só a política, como quem luta pelos seus direitos. Não importa, assim, se os mais respeitados juristas e até o Ministro da Justiça reafirmam a inconstitucionalidade da PEC 215/2000, por exemplo, para usarmos como exemplo a que mais descaradamente mostra o desejo de entregar ao capital a decisão sobre as terras indígenas. Apesar de todos os protestos e até mesmo, neste caso, da presença física de dezenas de lideranças de diferentes povos na Câmara, a comissão para discuti-la foi instalada, e o grande temor é que ela siga o mesmo caminho já trilhado pelo Código Florestal, abrindo uma brecha ainda maior para a aprovação de um Código de Mineração altamente lesivo aos interesses indígenas (e do País). O Relatório do Cimi Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil 2013 mostra que Dilma Rousseff mantém a mais baixa média de homologação de terras indígenas - 3,6 por ano -, sendo que em 2013 apenas uma mereceu a sua atenção nesse sentido: a Terra Indígena Kayabi, no Pará. Mas o registro ficou pendente graças a outro organismo que parece não considerar muito os direitos constitucionais indígenas – o STF. O Cimi nos oferece ainda uma totalização cruel: de 1986 a 1997, “foram registradas 244 mortes por suicídio entre os Guarani-Kaiowá do estado, número que praticamente triplicou na última década. De 2000 a 2013 foram 684 casos”. Mas há vida e esperança e luta, nisso tudo, como mostra o crescimento dos números no Mapa de Conflitos. Encerro, pois, com três exemplos que nos levam adiante. O primeiro resumo de forma simples, no sorriso aberto de Babau, lá da Serra do Padeiro, resistindo, sempre. Como segundo, escolho os Xakriabá do norte de Minas Gerais, construindo uma aliança com quilombolas e vazanteiros, contra seus inimigos comuns, que incluem também o conservacionismo de órgãos ambientais. E finalmente retomo uma história que me é particularmente cara.

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Ver http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=437.

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Em maio de 2013, os Munduruku percorrendo mais de 800 quilômetros, rios acima, para ocupar o canteiro de obras de Belo Monte e reafirmar sua recusa em ter hidrelétricas construídas no seu território. O Secretário Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, pediu que eles escolhessem cinco representantes para irem a Brasília dialogar. Eles responderam: somos 140, mais nossos aliados (um dos quais, aliás, era Babau!). O Ministro insistiu, a resposta se manteve. Finalmente, no dia 4 de junho, o governo brasileiro mandou dois aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) a Belo Monte, e 150 indígenas foram levados para a reunião na capital do país. Os Munduruku não ganharam a guerra, mas sua luta continua. É bem possível que o Tapajós caia, assim como o Madeira, o último grande rio da Amazônia ainda não estuprado pelas barragens e hidrelétricas. De qualquer forma, eles nos deram um exemplo de força e de união. E, com isso, apontaram um caminho para muitos outros, indígenas ou não. Que tenhamos a dignidade e a força para imitá-los, pois eles não nos apontam só isso. Nos desafiam, igualmente, a optar por outros valores, por um paradigma civilizatório no qual o ter, o consumir e o lucrar não sejam os valores prevalentes. Por um paradigma no qual prevaleçam a fraternidade e a busca do Bem Viver, como reafirmam na belíssima carta já citada, da qual repito aqui o trecho usado na abertura deste texto acrescido demais uma frase, para que possamos retomá-lo a partir de tudo o que foi dito:

Referência bibliográfica: Artaud, A. Van Gogh: Le suicidé de la société. Paris: Gallimard, 1975. Cimi. Violência contra povos indígenas no Brasil. Brasília: Cimi, 2014. Correa,

J.F.Uma

síntese

de

68

páginas

do

Relatório

Figueiredo.

Disponível

emhttp://goo.gl/8zODyX. IBGE. Censo Demográfico de 2010. Disponível em http://www.ibge.gov.br. Oliveira, J.E.; Pereira, L.M. (2013). “Duas no pé e uma na bunda”: da participação Terena na guerra entre o Paraguai e Tríplice Aliança à luta pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti. Disponível em http://goo.gl/foHosp. Pacheco, T & Faustino, C. “A iniludível e desumana prevalência do Racismo Ambiental nos conflitos do Mapa”. In: PORTO, M.F.; PACHECO, T.; LEROY, J.P. (orgs). Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil: o Mapa de Conflitos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. Pp. 73-114.

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Rancière, J. Democracia ou consenso. In: RANCIÈRE, J. O Desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996.

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FACES DA QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Por Leonilde Medeiros Professora do CPDA/ICHS/UFRRJ, pesquisadora do CNPq e da Faperj

Pensar a questão agrária no Brasil hoje implica discutir as novas formas assumidas pela propriedade da terra, sua progressiva financeirização, bem como as complexas relações entre agronegócio, agricultura familiar e as diferentes formas de demanda por terra. Envolve ainda entender o sentido que essa demanda assume para as chamadas “populações tradicionais” e para povos indígenas. O que está em jogo é não só o reconhecimento e legitimação de determinadas formas de se relacionar com a terra, como também a emergente crítica a formas de produção concentradoras de terra e renda, ambientalmente danosas e com riscos à saúde humana. Ao longo da história brasileira, se a questão agrária mostrou diferentes faces e configurações, teve também elementos de continuidade muito marcantes, que podem ser sintetizados na permanência da concentração da terra, na renovação dos mecanismos de apropriação da renda fundiária e nos processos de expropriação e violência de que são vítimas diferentes tipos de famílias que vivem e trabalham no campo e povos indígenas. Por outro lado, a questão agrária não pode ser separada da questão urbana, na medida em que elas não só tem raízes comuns na forma como se constituiu a propriedade da terra no Brasil, como porque, cada vez mais, ficam visíveis os elos que ligam formas de vida e trabalho que se articulam por meio dos mecanismos pelos quais diferentes capitais se reproduziram e reproduzem, e pelas consequências do processo de expropriação e desenraizamento constante que atinge as áreas rurais. Desde a 1ª Constituição brasileira, em 1824, a noção de propriedade como direito absoluto se impôs. A regulamentação desse direito no que diz respeito à propriedade fundiária, por meio da Lei de Terras de 1850, produziu o que José de Souza Martins chamou de “cativeiro da terra”: a transformação da terra em mercadoria e a consequente dificuldade de acesso a ela tanto pelos escravos, que, pouco a pouco, se tornariam livres, como pelos imigrantes europeus que, expropriados em seus países de origem, vieram tentar a sorte nas grandes lavouras de café, então nosso principal produto de exportação e cuja expansão se fazia celeremente por áreas de mata, habitadas quer por indígenas, quer por homens “livres e pobres” que se estabeleciam com suas famílias nas terras disponíveis.

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Essa marca de origem se perpetuou ao longo dos tempos: nos dias de hoje, a produção de soja e milho, de algodão, de pinho e eucalipto, entre outros, vem crescentemente quer se apropriando de terras ainda tomadas por matas, quer dando nova função econômica a áreas antes abandonadas pelo capital, mas onde viviam agricultores, posseiros. A crescente mercantilização da terra se confronta tanto com os direitos das populações que nelas vivem, fazendo com que o processo de expropriação e violência seja continuado, quanto com a crescente exclusão de vastas porções de terras do mercado pela ação estatal que, frente à pressão gerada em segmentos diversos da sociedade, transforma-as em assentamentos rurais, áreas de conservação ambiental ou reservas indígenas. Embora demarcadas e regularizadas continuam sendo objeto de disputa tanto pela ação direta de empresas, quanto por meio de pressões por mudanças legais que permitam a flexibilização do acesso a elas. Ao longo do século XX, o tema do acesso à terra apareceu intimamente vinculado à proposta de reforma agrária, que passou a recobrir e dar sentido unificador a lutas que ocorriam em diversos pontos do país, envolvendo posseiros (Baixada Fluminense, norte do Paraná, Goiás) e trabalhadores com acesso precário à terra (foreiros, que foram a base do crescimento das Ligas Camponesas no Nordeste,e arrendatários, que originaram o movimento de “arranca capim” em São Paulo), para mencionarsomente situações mais conhecidas. Tratava-se, para esses agricultores, envolvidos em processos de resistência e que apareciam na cena política como “camponeses”, de permanecer na terra onde viviam, por vezes há décadas. Para tanto, a solução proposta pelas mediações políticas era a redistribuição de terras, o que as levou a se centrar no debate sobre mecanismos que viabilizassem a desapropriação de fazendas consideradas improdutivas. Nesse momento, o adversário a ser combatido era entendido como sendo o “latifúndio”, ou seja, a grande propriedade, com baixos índices de produção, onde imperavam relações de exploração e formas de dominação que combinavam o paternalismo com a violência. Se a forte repressão que se abateu, em especial após o golpe militar, sobre as incipientes organizações de trabalhadores rurais que surgiram entre o final dos anos 1940 e 1964 fez com que elas refluíssem, nem por isso o tema saiu da berlinda. O Estatuto da Terra, que em novembro de 2014 completará 50 anos, foi promulgado logo após o golpe e instituiu entre nós a tese de que a terra deveria cumprir uma função social, à qual estava subordinado o direito de propriedade. Nos termos dessa lei, a propriedade da terra deveria favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutavam, assim como o de suas famílias; manter níveis satisfatórios de produtividade;assegurar a conservação dos recursos naturais e observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho. No entanto, o estímulo à modernização tecnológica como forma de incentivar a transformação dos latifúndios em empresas, princípio nodal do Estatuto da

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Terra eque foi rapidamente implementado, colocou em segundo plano tanto direitos trabalhistas, quanto a conservação de recursos naturais, ou seja, jogou por terra a função social da propriedade. Também promoveu uma aceleração do processo de expropriação de posseiros e povos indígenas, potencializando situações de conflito que, no entanto, pouco conseguiram se articularão longo dos anos 1970, mas que mostraram sua força nas décadas seguintes. A redemocratização foi produto e, ao mesmo tempo, tornou visível nos espaços públicos a dramaticidade dos conflitos no campo e, mais uma vez, a questão fundiária foi colocada como um ponto chave do debate político. Como efeito desses embates, o tema da reforma agrária voltou à cena e a Constituição Federal de 1988 abrigou a tese da função social da propriedade, com definição próxima à contida no Estatuto da Terra. No entanto, em artigo imediatamente anterior ao que define a função social,a Carta Magna afirma que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária. Essa ambiguidade do texto constitucional fez com que o princípio da produtividade se impusesse sobre os demais na interpretação da maior parte dos juízes e na dinâmica do uso da lei, como já havia antes acontecido. Por meio dessa brecha, em nome da produtividade, milhares de trabalhadores continuaram à margem dos direitos sociais e trabalhistas (o grande contingente que de há muito vem sendo denunciado como vivendo em situação de trabalho precário ou em condições análogas à escravidão), bem como se mantem a ameaça permanente de que grandes contingentes de trabalhadores sejam expropriados das terras em que vivem e trabalham, mas da qual não tem um título considerado legal. A força da propriedade da terra e do princípio da produtividade em nossa sociedade pode ser exemplificado com o fato de que, em que pese um grande número de famílias assentadas no final dos anos 1990 e no início dos anos 2000 (em torno de um milhão), o coeficiente de Gini da concentração fundiária pouco de alterou e se manteve como um dos maiores do mundo. Esse dado tem razões profundas, de caráter estrutural: a expansão dessa agricultura tecnologicamente moderna, produtora de commodities para os mercados internacionais, exige o domínio sobre crescentes quantidades de terra, mesmo que não estejam (ainda) em produção. Os interesses a ela ligados alardeiam ser esta a única alternativa possível, fazem propaganda de seu papel na balança comercial brasileira e se afirmam, cada vez mais, por seu poder político no Congresso Nacional. Deve-se frisar que a disputa hoje não se reduz ao controle somente sobre terras para cultivo, mas se estende sobre as águas e o subsolo, onde estão riquezas minerais cada vez mais demandadas. No que diz respeito à água, ela é hoje uma das principais fontes de produção de energia, é condição para agricultura moderna, que necessita de irrigação, e para as diferentes formas de

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aquicultura. Quanto ao subsolo, o acesso aos recursos que ele guarda é raiz de disputas que afetam diretamente grupos que, muitas vezes, vivem em terras já demarcadas como reservas. Assim, a questão agrária vem se complexificando. Envolve terra para produção agrícola, para reserva de valor, para exploração do subsolo e da água, colocando em risco a reprodução tanto da agricultura familiar/camponesa, muitas vezes com dificuldade de competir no mercado, como de povos e comunidades tradicionais. Prova disso é o fato de que hoje se discute inclusive a possibilidade de flexibilizar a legislação sobre reservas indígenas e ambientais. Para marcar a complexidade das questões em jogo, há que se considerar a articulação de interesses que tem no acesso à terra o seu eixo: não estamos mais à frente somente de proprietários individuais, mas, cada vez mais, trata-se de empresas, sociedades anônimas, cujo poder se impõe pela sua capacidade de investimentos em diferentes setores da economia, em especial nesse emaranhado de interesses que vem sendo chamado de agronegócio. São grandes conglomerados internacionais produtores de insumos químicos, maquinário agrícola, que controlam a comercialização e a transformação dos produtos e que impõem a dinâmica do processo de apropriação de terras no Brasil contemporâneo, uma vez que a expansão desse modelo agrícola é condição para sua própria sobrevivência. Nesse contexto, novas frentes de conflito se explicitam, em especial a resistência das chamadas “comunidades tradicionais”, uma enorme diversidade de situações cujo traço comum é a vinculação com a terra a partir de princípios distintos daqueles que regem a defesa da produtividade. Não se trata de terra que pode ser trocada no mercado, seja por outra, seja por indenização monetária, mas de território, espaço de tradições, não passíveis de avaliação e compensação monetária. Paralelamente cresce a crítica social a um padrão de produção, marcado por determinado tipo de tecnologia, controlada por grandes grupos empresariais e que torna a produção refém do patenteamento inclusive de sementes, ameaçando as bases da biodiversidade. Uma crítica que se enraíza na destruição ambiental, mas também nos riscos à saúde humana e animal que esse modelo contém. Estamos numa espécie de encruzilhada civilizatória e a questão do acesso à terra é ainda central, embora assuma novos significados, ao mesmo tempo em que reitera antigos, em especial a tese do direito absoluto de propriedade, acionada abundantemente ao longo do debate sobre o Código Florestal, para dar um exemplo mais palpável. Hoje, o tema da reforma agrária parece ter saído da pauta governamental e o número de assentamentos se reduziu drasticamente. No entanto, famílias de sem terra continuam acampadas; o trabalho precário nas atividades agrícolas permanece, bem como as migrações e a saturação das periferias urbanas, reiterando formas perversas de urbanização. Grupos diversos

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demandam a regularização de sua situação de ocupantes tradicionais. O desgaste ambiental, a ameaça a biomas são cada vez mais visíveis e ameaçadores. Os agricultores de base familiar lutam pela sobrevivência em condições adversas de competição no mercado. Esses fatos demonstram que estamos ainda longe do cumprimento do princípio constitucional da função social da propriedade, ao mesmo tempo em que indicam que a desapropriação e realização de assentamentos continua importante, mas nem de longe esgota a complexidade da questão fundiária no Brasil contemporâneo.

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QUESTÃO DO FEMININO HOJE Por Silvia Camurça Educadora do SOS Corpo Integra a coordenação nacional da Articulação de Mulheres Brasileiras e a coordenação colegiada do Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE) Representa o FMPE no Conselho Estadual de Direitos da Mulher (PE)

A emergência do feminismo na Europa e nos Estados Unidos no séc XVIII e sua consolidação como força política em todos os continentes nos séc XIX e XX representou não apenas a possibilidade das mulheres organizadas se firmarem como novos sujeitos políticos (Ávila, B) mas produziu um novo paradigma para leitura da realidade social: a crítica feminista. O feminismo apresentou para o pensar crítico os conceitos de patriarcado e, mais recentemente, o conceito de relações sociais de gênero. Ambos instrumentos de análise com forte poder explicativo da situação das mulheres no mundo, mesmo considerando a diversidade entre regiões e tempos históricos e mesmo considerando a singularidade da vida de cada mulher, vidas que são marcadas por desigualdades e diferenças de classe, raça, idade, etnia, grau de instrução, local de moradia, tipo de família, opção sexual, enfim. O feminismo criou a categoria política do '‘nós mulheres’', promoveu a consciência de sermos coletivamente oprimidas e exploradas, apontou o inimigo comum, inspirou a organização das mulheres para a luta por sua liberdade e autonomia e, muito importante, o feminismo desvelou as contradições sociais que estavam invisíveis até então na perspectiva das lutas por transformação social. O feminismo estabeleceu referências interpretativas que conferem visibilidade a situações e fatos da conjuntura que de outra perspectiva não seriam relevantes nem pertinentes (Amorós, C.) Três séculos de lutas feministas produziram grandes mudanças na vida para muitas mulheres, mas pela força das desigualdades sociais, não universalizou estas conquistas entre todas as mulheres. Articulado com o capitalismo e o racismo, o patriarcado refez formas de opressão, aprofundou outras e inovou em muito as formas de seus tentáculos alcançarem todos os âmbitos da vida social. Em tempos de globalização, o processo de mercantilização está aprofundado e fortalecido. Os cenários são os piores possíveis. A mercantilização do corpo das mulheres, componente estrutural do sistema, será um fenômeno de longuíssima duração, haja vista, nesta conjuntura, a pujança da

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indústria da beleza, da medicina estética, da propaganda, da indústria do sexo, da pornografia e da prostituição, cada vez mais organizadas em escala transacional. A acumulação gerada por esta exploração é imensa, sua base material o nosso corpo, vendido, exposto, '‘reformado’', recriado, conforme os ditames do mercado a serviço do desejo do '‘outro’'. Um processo que oprime e explora milhões de mulheres em todo o mundo, nas distintas classes, castas, etnias e culturas, agora acelerado pelo capital transnacional. A expropriação e mercantilização de nosso corpo tem como única força contra hegemônica a força da organização feminista, ainda insuficiente para ir além da resistência e dos enfrentamentos pontuais às muitas situações que se colocam no dia a dia. Os conflitos em torno ao tema da maternidade livre, mais antigos que o próprio feminismo, tendem a aprofundar-se no espaço do Estado e na sociedade. A força da bancada religiosa conservadora no Congresso Nacional e legislativo estaduais e municipais cresceu e tende a crescer pelo uso da fé para angariar votos e pela forma de atuação das igrejas, que atuam como partido fazendo de seus fiéis base eleitoral (Revista Fórum). Por diferentes formas de agir estes atores pretendem, recolocar na história a imposição da maternidade como destino às mulheres, pelo retorno à sacralização da gravidez, transformando a concepção num '‘milagre’' e o corpo de nós mulheres mero instrumentos da vontade divina. Utilizam textos bíblicos para sustentar sua ideologia machista e tem sido, infelizmente, bem-sucedidos, no intento de preservar a cultura patriarcal e sua concepção de família, mulher e maternidade. A força política destes segmentos tem rebaixado a orientação das políticas públicas importante para a liberdade das mulheres: não querem educação sexual nas escolas, são contra o ensino da história da África, defendem o '‘criacionismo’' como matéria obrigatória, querem revogar o direito das mulheres abortar uma gravidez indesejada resultante de estupro, pregam contra distribuição de preservativos a jovens solteiros/as, buscam impor o retorno da maternidade obrigatória para as mulheres, reconstruindo o '‘nosso lugar natural’' e exclusivo. Ao mesmo tempo, estes setores e seus representantes e aliados na mídia, imputam às mulheres, tal qual fizeram seus antecessores em séculos passados, muitos dos males sociais: porque as mulheres falham seus filhos tornam-se bandidos, porque a família já não é a mesma, com '‘mamãe em casa’', cresce a violência e o uso de drogas entre os jovens. Mas esta família patriarcal, que nunca foi espaço de proteção para as mulheres, ao contrário, foi o locus permanente de opressão, violência física e sexual, está definitivamente posta em questão pela força do feminismo. Talvez por isso o sistema busque reforçar os mecanismos que impeçam sua

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destruição e criminalizam às mulheres, sempre que decidem interromper uma gestação indesejada. Denunciados pelo feminismo como a força antidireitos humanos, estes atores atuam associados e em aliança com as forças de direita e centro-direita no Congresso. Parte destes atores, pautados pela '‘teologia da prosperidade’, associam-se às políticas neoliberais, forçando a guinada neoliberal nos governos de coalizão liderados por partidos oriundos da esquerda, e apoiando o projeto neodesenvolvimetista que tanto tem aprofundado a injustiça social e ambiental, produzindo muito mais e novas dificuldades para a conquista da autonomia econômica para as mulheres. Há na sociedade política uma aliança antirreforma agrária, pró agronegócio, cuja força bloqueia qualquer tentativa de avançar no acesso aos meios de produção e expropria deste acesso comunidades inteiras que ainda detém algum poder sobre seus territórios. No campo, na cidade e nas florestas, as relações sociais no mundo do trabalho seguem apoiandose na divisão do trabalho e, como denúncia o feminismo, reforçando a divisão sexual do trabalho. A divisão sexual do trabalho determina '‘lugares’' de homens e mulheres na sociedade e hierarquiza o lugar de homens e mulheres no mundo do trabalho empurrando as mulheres para a dependência econômica. Seja por ficarem confinadas ao trabalho gratuito para sua própria família, seja por terem de despender grande parte de seu tempo de vida aos cuidados de crianças e idosos, dada a falta de suporte institucional do Estado, seja ainda por terem precárias oportunidades de trabalho: somos ainda maioria no mercado informal, as que recebem os menores salários, e não por acaso as que mais fazem horas extras na indústria, nos serviços e comércio. Os bloqueios à participação política das mulheres permanecem. Seja no marco institucional de nossa democracia, seja pelo recrudescimento da repressão às lutas sociais, ou ainda pela concentração dos meios de comunicação, que impede a voz da resistência de se fazer ouvir, retirando o contraditório da cena política. O sistema de poder, construído pela elite branca e masculina, em bases patriarcais, é refratário à participação social, favorece a resolução dos interesses do capital, mantém a sub representação da classe trabalhadora, da população negra e indígena e das mulheres nos espaços de poder. A repressão às lutas bloqueia avanços das mulheres na luta pelo direito ao aborto, atinge as que estão na luta por terra, as que estão em resistência à perda de seus territórios, para dar espaço a grandes projetos, e as que resistem à perda de suas casas, para dar lugar às obras da Copa. Ao mesmo tempo a violência sexual masculina contra as mulheres, instrumento de dominação patriarcal desde sempre, cresce tanto na forma de estupros coletivos e '‘corretivos’' e como abuso

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e exploração. A violência física, agressões e feminicídios permanece e em alguns contextos cresce, exemplo das localidades com grande concentração masculina por conta das obras de '‘desenvolvimento’'. A violência cresce também contra as mulheres negras, descortinando a perversa associação do machismo com o racismo em nossa sociedade. Estão mantidas assim, os vários estratagemas de controle político das mulheres e os bloqueios à sua organização: a ideologia patriarcal da resignação, a violência e medo, a coerção econômica, o controle da informação e o controle do acesso aos espaços de poder político. E assim, a luta feminista permanece necessária, neste momento tendo como força antagonista os setores religiosos conservadores e os representantes do capital, numa aliança liberal fundamentalista, impensável anos atrás, mas realmente existente.

Referências bibliográficas: Amorós, C. 1998. “El punto de vista feminista como crítica” in Carmen Bernabé (Dir.), Câmbio de paradigma, género y eclesiologia, Verbo Divino, Navarra, p. 22. Ávila, B. 2005, “Feminismo e sujeito político” in Carmen Silva et all (org.), Mulher e Trabalho. CUT, SNMT-CUT SOSCorpo, Recife-São paulo, p.49. Bedia, R.C. 2014, Aproximaciones a la teoria crítica feminista. Cladem, Comitê de Formação, Lima, Perú.

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FILANTROPIA PARA A JUSTIÇA SOCIAL: UM NOVO EMPREENDIMENTO PARA A SOCIEDADE CIVIL Por Athayde Motta Diretor do Fundo Baobá para Equidade Racial

A questão da sustentabilidade político-financeira das organizações da sociedade civil (OSCs) brasileiras no período pós-ditadura tem sido debatida à exaustão por líderes e estudiosos do setor sem fins lucrativos. Em mais de três décadas, a lista de causas, problemas, barreiras, vínculos, hábitos, limitações e o que mais se possa pensar tem sido compilada e analisada por pesquisadores em disciplinas como história, ciência política, sociologia, antropologia, administração de empresas, serviço social, educação, contabilidade e direito. A grande novidade da última década no Brasil, os fundos independentes para a justiça social, foram, por algum tempo, vistos como um instrumento local necessário e importante para a formação de uma comunidade doadora no país, um dos pilares necessários para a autossustentabilidade das OSCs. E essa comunidade doadora teria como prioridade a promoção da justiça social, não apenas a área com mais dificuldade de obter apoio, mas a que traz os resultados mais sólidos em termos de consolidação da democracia. Há, no entanto, uma transformação radical mais recente em curso no setor sem fins lucrativos no Brasil: o surgimento de um mercado de investimento no empreendedorismo filantrópico, ou seja, a criação de organizações filantrópicas capazes de arrecadar e administrar fundos e utilizá-los na realização do complexo trabalho de diagnosticar graves problemas sociais e investir em organizações e ideias que possam solucioná-los. Em todo o mundo, organizações filantrópicas gozam de grande credibilidade devido ao resultado das ações que apoiam, e também por sua capacidade de administrar seus próprios recursos com uma visão de longo prazo, seja a partir de um fundo de tipo endowment, seja a partir da atividade constante de captação e mobilização de recursos. Ao longo século 20, grandes, médias e pequenas organizações filantrópicas internacionais trataram o Brasil como apenas mais um país do Hemisfério Sul, com grandes problemas de pobreza e violação de direitos e sob o controle de um aparato institucional fraco, quando não violento e repressor contra a população mais pobre e contra aqueles que demonstravam dissensos

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com a ordem estabelecida. O que teria determinado, então, o surgimento desse novo mercado? Três fatores podem ser citados: 1) O crescimento econômico do país, sua consequente reclassificação como um país de renda média e sua ascensão como líder emergente do novo “Sul Global”, ainda que se aceitem todas as ressalvas sobre a fragilidade desse crescimento, 2) A ocorrência inédita de uma onda de mobilidade social cujos integrantes praticam mais a doação do que as tradicionais classes médias e elites,e 3) A existência de um aparato institucional (especialmente leis e serviços públicos) de caráter progressista que, apesar dos percalços, se aperfeiçoa, em grande parte, devido à ação incansável das OSCs. Isso não quer dizer que o Estado e o governo brasileiros estejam livres do patrimonialismo e da privatização do bem público por interesses privados, seus eternos pecados. Mas também não se deve minimizar o fato de que a “geração de 68” tem estado solidamente à frente da política brasileira há quase 20 anos. Não por coincidência, há dois projetos de lei atualmente em tramitação no Congresso Nacional que poderão dinamizar ainda mais o investimento em organizações filantrópicas. Um deles é o Marco Regulatório das OSCs (PL 7168/14), aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados e que aguarda apenas a sanção da presidenta Dilma Roussef, publicamente favorável à nova lei. Uma antiga demanda das OSCs brasileiras, o marco nada mais é do que um estatuto que regulamenta a relação entre governos e organizações sem fins lucrativos autônomas, protegendo tanto o erário público quando as próprias OSCs. Em outra área, o PL 4643/12 tramita na Câmara dos Deputados, onde foi aprovado em uma de suas comissões, antes de seguir para a Secretaria Geral da Presidência da República e para o Senado Federal. Este projeto cria fundos patrimoniais vinculados e a concessão de incentivos como elementos estruturantes da sustentabilidade das OSCs brasileiras. Ambos os projetos surgiram a partir da mobilização de amplos setores que incluem organizações de defesa de direitos, fundações empresariais e organizações profissionais que se dedicam ao amadurecimento da filantropia no Brasil. Se aprovados, os dois projetos irão alterar significativamente o cenário atual e podem dinamizar ainda mais esse emergente mercado para o empreendedorismo filantrópico. Essas novas leis também podem iniciar uma era de novos desafios.

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O primeiro desafio, claro, é como as organizações que poderão surgir a partir desses investimentos irão se relacionar com o universo de grupos e entidades que são legalmente definidas como “associações sem fins lucrativos” e “fundações” (as duas únicas definições legais possíveis), mas que são, de fato, organizações com formatos, governança, objetivos, missões e visões bastante heterogêneas e que formam redes, alianças e grupos de interesses diversos, complexos e com agendas que nem sempre convergem. No cerne dessa relação estão visões e práticas de desenvolvimento organizacional e independência política que se distinguem de maneira não menos relevante. Se, como diz Brad Smith, do Foundation Center (EUA), a filantropia tornou-se um fenômeno global com profundas raízes nas normas, valores e cultura política dos Estados Unidos, isso se traduz objetivamente em um modelo que prioriza a administração financeira para a autossustentabilidade e os exercícios de reflexão estratégica com base em dados, o mapeamento de tendências e a busca incessante pela inovação para a solução de problemas sociais. Já no caso brasileiro, mesmo se considerarmos os resultados altamente positivos de várias OSCs na área de defesa de direitos, a tênue ligação entre o Terceiro Setor, o setor sem fins lucrativos e as OSCs não impede que a maioria pratique a “cultura de subsídios” como estratégia de sustentação financeira, que, de resto, aparece até mesmo em setores do empresariado brasileiro. Também seguindo a tradição, a governança da maioria dessas organizações segue uma cultura política de grupos de pressão que, mesmo quando apartidária, se isola e pratica a autorreferencia para interpretar a realidade a sua volta. A consequência principal de tais características é a criação de um mínimo denominador comum para avaliar o impacto e a legitimidade de todo o setor junto à sociedade e à opinião pública. É uma realidade injusta com muitas dessas organizações e aumenta sua fragilidade perante as constantes tentativas de criminalização empreendidas pelos setores conservadores. Diante de um cenário que deverá opor visões e práticas tão específicas, outro desafio relevante será a forma de acesso aos recursos desse mercado, que é formado tanto por investidores (em sua maioria organizações filantrópicas internacionais) como por recursos de doações individuais e empresariais (estes ainda sendo “cultivados” na sociedade brasileira). Não é necessário enfatizas que

organizações

internacionais

levam

imensa

vantagem

na

gestão

desses

novos

empreendimentos. No entanto, também deve ser destacado que muitas dessas organizações, honrando os princípios de cooperação e solidariedade que defendem e praticam, vêm tentando estabelecer parcerias onde a troca de tecnologias sociais e o aprendizado sobre as peculiaridades do mercado doador brasileiro sejam parte de um diálogo frutífero para os dois lados. Surge aqui,

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então, outro problema. Em vários casos, o esforço necessário para que uma organização de defesa de direitos se transforme em uma organização doadora é simplesmente enorme, condizente com a distância que as separa na prática, e que muitos não haviam percebido, apesar de trabalharem em parceria no país há décadas. Isso abre um precedente que pode ser, ao mesmo tempo, uma oportunidade e um grande risco. Há claramente a necessidade de organizações intermediárias que se ocupem da infraestrutura necessária para criar e manter uma organização filantrópica no Brasil, que aproveitem as oportunidades sendo criadas e explorem outras. Esse é um espaço que pode e deve ser ocupado por organizações e profissionais brasileiros, sem que isso signifique uma reserva de mercado xenófoba. Apenas não há mais a necessidade de que o Brasil mantenha uma classe de expatriados para gerir uma organização filantrópica de nível internacional, uma prática comum durante muitos anos no setor privado. Por outro lado, haverá uma ruptura em algum nível entre essas novas organizações doadoras e as organizações de defesas de direitos que receberão apoio para realizar seu trabalho no Brasil. A infraestrutura necessária para gerir uma administração focada na autossustentabilidade difere muito e é bem mais trabalhosa que a administração típica de uma ONG. O investimento a ser feito em desenvolvimento de programas, planejamento estratégico, mapeamento de tendências e o investimento em inovação (sem contar as tradicionais áreas de monitoramento, avaliação, aprendizado e qualidade, cada vez mais complexas). Há grande simetria entre o trabalho dessas organizações e resultados positivos são mais prováveis quando há uma parceria efetiva. Entretanto, é ingenuidade não reconhecer que suas lógicas de funcionamento, formas de sustentabilidade e objetivos são diferentes e que parcerias antigas podem se desfazer para dar lugar a novas iniciativas. Se um novo pacto de cooperação não for criado entre organizações doadoras e OSCs, o Brasil pode tornar-se um mercado com altos retornos para o investimento filantrópico internacional, mas irrelevante para a sustentabilidade das OSCs brasileiras. Finalmente, a existência desse novo mercado traz à tona um aspecto fundamental da filantropia internacional que poderá ter grandes impactos nas iniciativas criadas pelas elites ricas no país. Assim como é fundamental que os ricos no Brasil doem para a filantropia (e para a filantropia para a justiça social em especial), é fundamental que as organizações criadas por eles estabeleçam personalidades autônomas e independentes das empresas e/ou fortunas que lhes deram origem. Isso não quer dizer que essas pessoas não podem se envolver em atividades filantrópicas. Pelo contrário, sua presença pode ser importante para transformar a doação em um ato visível e que pode ser praticado por todos. Mas eles precisam estar a serviço dos objetivos e do

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desenvolvimento das organizações que criaram (e não o contrário). Precisam estimular o senso de pertencimento e autonomia criativa de suas equipes e ser capazes de criar estruturas onde a diversidade de pensamentos, de indivíduos e da sociedade possa estar incorporada e ser um motor de inovação a serviço da própria organização. Não há registro público de Bill Gates fazendo qualquer alusão ao seu “business” desde que assumiu integralmente a direção da Fundação Bill e Melinda Gates. Tal independência e desprendimento são fundamentais para o desenvolvimento de uma filantropia brasileira saudável, de longo alcance, com contribuições realmente relevantes para a democratização da sociedade.

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RISCOS E IMPASSES* Por André Singer Departamento de Ciência Política Universidade de São Paulo (USP)

Nota-se, em meios de esquerda, certa perplexidade sobre a eleição de 2014. Há uma percepção crescente, embora difusa, de que, fracassadas as tentativas de relançar a economia, o país se encontra sob cerco do capital, tanto o globalizado quanto o brasileiro, e da direita nacional. Diante dessa situação delicada, tende a haver duas reações distintas. A primeira se inclina a pensar que como a potência reunida pelas forças sitiantes coloca em risco os avanços sociais alcançados de 2003 para cá, cabe uma postura defensiva, pois estariam ameaçados a Bolsa Família, o aumento do salário mínimo, o pleno emprego, conforme mensurado pelo IBGE, e a contínua obtenção de ganhos reais nos dissídios coletivos. Tais argumentos fazem sentido. Assusta a crescente clareza usada pelos formuladores do conservadorismo para falar a respeito do duro ajuste supostamente necessário em 2015. A ideia de “arrumar a casa” e partir para uma fase de aumento da “competitividade” à custa do valor do trabalho pode prenunciar tempos bicudos. Apesar disso, as diretrizes do programa de governo registrado pelo PSDB no início da campanha eleitoral garante a manutenção dos avanços sociais, não assumindo a retórica que os seus próprios formuladores usam. A segunda reação à esquerda acha que as melhorias alcançadas não são suficientes para justificar uma posição meramente defensiva. A explosão de insatisfação que percorre o país desde junho de 2013 seria o sinal mais visível de que a situação social está longe de ser boa, não justificando, nem permitindo, um entrincheiramento resistente. Seria necessário avançar. Mais ainda, os que se inclinam na última direção acreditam que tentar ir adiante é um imperativo da dinâmica real já em curso. Procurar apenas resistir poderia significar, na prática, retroceder, pois não se conseguiria convencer as massas mobilizadas a ficar onde estão. Essas dúvidas à esquerda lembram conversas que giram entre o copo meio cheio e o meio vazio. De um ângulo, houve melhoras efetivas na condição de vida de milhões de pessoas que valeria preservar. De outro, a condição da grande maioria é ainda bem distante da dignidade que se poderia com tranquilidade defender.

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Como sempre, nesses casos, os dois lados estão parcialmente corretos: os avanços obtidos, inegáveis em si mesmos, representam pouco em face do tamanho da pobreza, da desigualdade e do caráter selvagem do capitalismo que se desenvolve no Brasil. Para poder avançar na discussão é preciso realizar com realismo, mas também algum otimismo da vontade, dois balanços. O primeiro a respeito de quanto efetivamente se avançou. O segundo a respeito da correlação de forças para avançar mais. Um exemplo de controvérsia a ser aprofundada é a que diz respeito à distribuição da renda. Afinal, o ciclo lulista distribuiu ou concentrou renda? De acordo com reportagem publicada pelo Valor em 26/06/2014 (p. A14), a fatia apropriada no Brasil pelo 1% mais rico da população não caiu entre 2000 e 2010. O decil superior abocanhava cerca de 17% da renda nacional no início do século 21 e continuava a fazê-lo uma década depois. Estaria provado, então, que não houve redistribuição no período petista? O primeiro impulso é responder que sim, mas a questão é mais complicada. A depender do lugar em que se decida fazer o corte estatístico, aparecem aspectos contraditórios da realidade. A mesma peça jornalística, assinada por Denise Neumann, mostra que se tomarmos a renda dos 10% mais ricos, veremos que caiu de 51% para 48% do total no período considerado. Mais ainda. A proporção subtraída do que se convenciona chamar de classe média tradicional parece ter ido parar no bolso dos pobres. A jornalista indica que os 60% pior aquinhoados tiveram os seus rendimentos elevados, indo de 18% para 22%. Visto o problema desse ângulo, houve ou não distribuição de renda? O impulso é responder que sim. Uma hipótese plausível é que tenham ocorrido as duas coisas ao mesmo tempo. Isto é, enquanto a imensa massa dos pobres via a própria renda crescer, ainda que de maneira moderada e a partir de um ponto inicial muito baixo, a classe média perdia algo, produzindo-se, assim, um efeito distributivo, ainda que seja ainda visível a desproporção: 10% detêm 48% da renda; 60% ficam com 22%. Por outro lado, os mais ricos dentro da classe média (o 1%) não perderam nada. Pode-se supor até que no interior do segmento rico houve concentração, ou seja, os megarricos ficando ainda mais poderosos. Um exemplo interessante, embora posterior ao período até aqui observado: apenas em 2013 o número de bilionários brasileiros aumentou em 50%, passando de 43 para 65, de acordo com a revista Forbes. Ou seja, o patrimônio estaria se concentrando na ponta da ponta da ponta. É possível, assim, que a mesma tendência detectada por Thomas Piketty em escala mundial tenha se dado por aqui, embora simultaneamente houvesse ocorrido um movimento distributivo do

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meio para baixo. Em resumo, teria havido uma melhora nas pontas, com uma piora relativa no setor intermediário. Note-se que enquanto de um lado cresceu o número de bilionários, de outro a renda dos 10% mais pobres aumentou 106% entre 2003 e 2012, segundo Marcelo Neri (Valor, 26/06/2014, p. A12). Trata-se apenas de uma hipótese, mas admita-se que o raciocínio é compatível com a ira da classe média tradicional em relação ao lulismo. O quadro eleitoral Até onde é possível observar quando este artigo é escrito (meados de julho de 2014), o próximo pleito tem uma configuração parecida com o de 1998. Tal como na reeleição de Fernando Henrique Cardoso, há um mau humor generalizado no país, mas ao mesmo tempo permanece na memória da população que as coisas melhoraram em relação ao que eram antes. Naquela época, pela estabilização de preços do Plano Real. Agora, pelo aumento de emprego e renda que houve no ciclo lulista. Da mesma maneira que fez FHC naquela ocasião, a estratégia discursiva de Dilma Rousseff deverá ser a de atribuir os problemas atuais a uma situação internacional fora de seu controle, o que também é parcialmente verdadeiro. O problema é que a população de baixa renda, sobretudo nas metrópoles, está impaciente para que a melhora das condições de vida continue. Até que ponto há espaço para esperar é uma das perguntas dos próximos meses. Joga a favor da presidente o fato de que Aécio Neves e Eduardo Campos são pouco conhecidos e não tem propostas nítidas de como sair do atoleiro em que se meteu a economia nacional. Assim, a estratégia de continuidade tem chance de vingar, apesar de haver emoções prováveis no caminho. Nos dez Estados nordestinos, que congregam quase um terço do eleitorado brasileiro, a diferença em favor do PT sobre o PSDB subiu para incríveis 45 pontos percentuais em julho (Datafolha). Tal superioridade supera até mesmo a alcançada no segundo turno de 2010 (42 pp), tornando pouco provável que os tucanos consigam tirar qualquer prejuízo por lá. Em compensação, no Sudeste, onde estão concentrados mais de 40% dos votantes, o ex-governador mineiro estava a apenas uma casa de distância em relação à presidente da República (28% contra 27%), no começo de julho. Note-se que embora Dilma tenha, segundo a mesma pesquisa, recuperado intenção de voto em todos os segmentos da sociedade, a melhora da petista foi particularmente sensível no interior. Nas regiões metropolitanas a performance não houve alteração. Dado o peso do triângulo urbano formado por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, compreende-se, o empenho de Aécio em reforçar a artilharia no que Henfil chamava de sul maravilha, escolhendo um vice de São Paulo.

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É possível que batalha decisiva se dê em São Paulo. Com um colégio eleitoral gigantesco, a disputa paulista pode ter peso em pleito apertado. Daí o interesse nacional pelo jogo de alianças armado em torno das disputas pelos cargos de governador e senador em São Paulo, mas o mesmo se aplica ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais. Depois da eleição O problema maior, do ângulo das forças que apoiam Dilma, é o risco de ganhar com a promessa de um novo “ciclo de prosperidade”, como consta das diretrizes de governo registradas no TSE, e ter que começar o governo com um ajuste recessivo, cuja necessidade aparece em diversas análises, mesmo no campo dilmista. Discute-se o tamanho do ajuste, a intensidade e a duração do mesmo, mas é raro alguém discordar que ele virá em 2015. Há inúmeras variações, mas ajuste, nesse caso, quer dizer, em linhas muito amplas, aumento de preços represados, sobretudo, na área de energia, e em consequência, aumento de juros para segurar a inflação causada pela elevação de tarifas. Depois, corte de gastos públicos, em parte para pagar juros. Para os “ajustistas” mais radicais seria bom que houvesse também um aumento do desemprego em função da contração da atividade econômica, resultando em aumento da competitividade nacional pelo barateamento da mão de obra. Do ponto de vista social, tais receitas vão jogar gasolina em uma situação de per si explosiva. Vale lembrar que junho de 2013 foi o início de uma longa fase de luta, em que diferentes camadas entraram em um conflito distributivo acirrado. Para evitar tal desfecho, é preciso construir uma alternativa pública forte e consistente à única proposta até agora na mesa para sair do marasmo: fazer um ajuste recessivo que crie espaço para “reformas” pró-mercado e, assim, destravar os financiamentos retidos por desconfiança do “intervencionismo” estatal. Seria necessário reunir os que pensam diferente em vários campos para formular alternativas ao famigerado “ajuste”. Benjamin Steinbruch, na Folha de S. Paulo, e Amir Khair, em O Estado de S. Paulo, tem escrito interessantes artigos na mão contrária, mas parece faltar uma instância que seja capaz de generalizar esses pontos de vista alternativos. *O presente artigo baseia-se em textos antes publicados pelo autor em coluna semanal na Folha de S. Paulo.

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O BRASIL EM UM MUNDO EM PERMANENTE DISPUTA Por Fátima Mello Pesquisadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e Coordenadora da Rede Brasileira de Integração dos Povos (REBRIP)

Desde o início dos anos 2000 o lugar do Brasil no mundo está passando por importantes mudanças. Se até 2003 a inserção externa do país era subordinada à lógica da parceria preferencial com os EUA, o que ocorreu de modo especialmente acentuado nos anos 90, a eleição de Lula marcou um novo período, onde passaram a ser valorizadas as coalizões Sul-Sul, a integração regional da América do Sul e o investimento no multilateralismo foi ainda mais fortalecido. As recentes mudanças na inserção externa do Brasil estão relacionadas às transformações e disputas em curso nos planos internacional e doméstico. O mundo vive um longo processo de reconfiguração do poder. Desde o fim da IIª Guerra Mundial até a queda do Muro de Berlim a estrutura do sistema internacional era ordenada por dois pólos de poder. A partir de 1989 o mundo passou por um brevíssimo período de domínio dos EUA, quando alguns analistas apressados passaram a argumentar que passaríamos a viver um longo ciclo de poder unilateral, com hegemonia inconteste do receituário do pensamento único expresso no que ficou conhecido como Consenso de Washington; alguns chegaram a prever que estaríamos diante do “fim da História”. Mas logo a História voltou a mostrar que a política internacional se faz de conflito e disputa permanente. Em meados dos anos 90, ao mesmo tempo em que o governo Clinton anunciava a criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), das montanhas de Chiapas o levante Zapatista anunciava ao mundo que o pensamento único não era tão único assim e a crítica e resistência por parte dos povos começaria a reascender. Desde então, a cada novo passo do neoliberalismo, como a criação da OMC, novas resistências emergiam, até convergirem em Seattle no apagar das luzes do milênio para anunciar a reconstrução de um movimento global que se desdobrou no Fórum Social Mundial. E de novo a História mostrou que sua roda não para: no auge das mobilizações globais, o atentado às torres gêmeas de Nova Iorque inaugurou um novo período, recolocando a guerra no centro da agenda da ordem internacional e jogando na criminalização o ascendente movimento global.

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Na América Latina, os anos 2000 com o Fórum Social Mundial, a Campanha contra a ALCA e outras iniciativas anti-imperialistas e antineoliberais resultaram em um novo ciclo político na região com a eleição de um conjunto de governos mais próximos das demandas populares as quais haviam sido esmagadas na década anterior. Este novo ambiente regional, combinado com o deslocamento de prioridade dos EUA para a guerra, criou espaço para que o Brasil e a região pudessem redefinir sua forma de inserção na arena global. Ao mesmo tempo, até 2008 o cenário econômico internacional era muito favorável: os preços altos das commodities exportadas pelo Brasil no mercado internacional criavam as condições para o governo Lula se credenciar em fóruns econômicos globais como o G20 e ao mesmo tempo implementar dentro do país programas e políticas de valorização do salário mínimo e de inclusão social. Os demais países emergentes também mantinham taxas de crescimento impressionantes, o que possibilitou o fortalecimento de coalizões como os BRICS que passaram a disputar com peso crescente, frente às potências tradicionais, um papel central na reconfiguração do poder global. O Brasil soube aproveitar este cenário favorável; além dos BRICS, colocou peso na disputa de postos chave no sistema multilateral e hoje o país dirige instituições como a OMC e a FAO. Ampliou sua presença em países do Sul por meio do aumento dos fluxos de sua cooperação e dos investimentos visando a internacionalização das empresas brasileiras. Em todos estes movimentos o Brasil construiu seus objetivos e diretrizes de inserção externa como um reflexo de suas prioridades e contradições existentes no plano doméstico. Um exemplo claro tem sido como o Brasil se move nas diversas arenas globais na agenda da agricultura; espelhando os históricos conflitos internos entre os interesses do agronegócio e os da agricultura familiar e camponesa, i, os dois sistemas de produção em permanente conflito em nossa sociedade, na política internacional o Brasil acaba por exportar este conflito: por um lado prioriza a tentativa de viabilização dos interesses de ampliação de acesso a mercados e investimentos para as exportações de soja, açúcar e outros produtos do agronegócio na OMC, em acordos de livre comércio, na cooperação Sul-Sul, e por outro apresenta ao mundo suas políticas e programas de apoio a agricultura familiar e camponesa, como é o caso do PAA, do PNAE e de espaços de concertação e participação social como o CONSEA. A crise de 2008 alterou significativamente o cenário até então favorável. A retração dos países centrais reduziu o ritmo de crescimento dos países emergentes. O mercado financeiro passou a atacar com voracidade as conquistas do Estado de bem-estar. As políticas de austeridade e ajuste voltaram ao centro da agenda econômica e política mundial. O governo Dilma reagiu a este cenário recuando nas iniciativas desencadeadas na era Lula e chegou a apresentar ao rentismo no Fórum Econômico Mundial de Davos uma espécie de Carta aos Brasileiros II. Neste cenário de

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recuo, as contradições e limites da presença externa do país passaram a ficar ainda mais claras; em especial, frente ao encolhimento da iniciativa política por parte do governo, os interesses do setor privado passaram a dominar em uma medida ainda maior a agenda da cooperação, dos investimentos e das negociações de comércio, entre outras. Há que se ressaltar que o recuo da política externa de Dilma teve duas importantes exceções: a contundente intervenção na Assembléia Geral das Nações Unidas em 2013 quando o mundo conheceu as denúncias de Edward Snowden sobre a espionagem da NSA e o Brasil assumiu a liderança global do debate sobre governança democrática da internet; e a reunião dos BRICS realizada em Fortaleza em julho de 2014 quando, além de reunir o bloco com a UNASUL, foi criado o Novo Banco do Desenvolvimento, o Arranjo Contingente de Reservas e um conjunto de posicionamentos do bloco sobre os conflitos em curso no mundo, sinalizando claramente que os BRICS dão passos cada vez mais concretos na disputa pela democratização das instituições financeiras multilaterais e no enfrentamento da hegemonia militar e estratégica das potências tr adicionais. Hoje o Brasil encontra-se diante de um grave problema em relação ao seu projeto de futuro. Se na conjuntura o Brasil vem acumulando condições para disputar um novo papel na política internacional, do ponto de vista estrutural o país ocupa o lugar de elo mais frágil nas cadeias produtivas globais. As prioridades políticas e de investimentos dadas na política doméstica ao agronegócio e aos setores da indústria extrativa se combinam com o lugar que o Brasil assume de forma cada vez mais acentuada com a especialização primário-exportadora. A pauta de exportações brasileira está fortemente concentrada na exportação de recursos naturais para a China – em especial soja, minérios e combustíveis fósseis. À reprimarização das exportações soma-se a desindustrialização provocada pela importação de manufaturas chinesas produzidas em condições indignas de trabalho. A condição doméstica que faz com que o Brasil ocupe o elo mais fraco das cadeias produtivas globais é que a indústria extrativa e o agronegócio contam com uma estrutura fundiária fortemente concentrada, com a fragilização da legislação que protege direitos, com a violação do direito a terra e território dos camponeses e populações tradicionais. Em uma conjuntura de disputa de projeto de país como a que vivemos em 2014 devemos nos perguntar como os objetivos e valores que queremos para a nossa sociedade deverão se espelhar na forma como queremos nos inserir no mundo. Quais são nossas prioridades domésticas e como elas se traduzem em prioridades para a nossa inserção internacional? Redistribuir renda e riqueza, lutar contra as desigualdades, fortalecer direitos, construir um modelo de desenvolvimento com justiça socioambiental, democratização da sociedade e do Estado,

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participação cidadã, regulação democrática, ter o Estado como condutor de políticas públicas com controle cidadão devem ser objetivos a serem alcançados dentro do país e no sistema internacional.

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O MUNDO DO TRABALHO E A CONJUNTURA ATUAL DO BRASIL Por Adhemar Mineiro Departamento Intersindical de Estudos Econômicos Social e Estatísticos (DIEESE)

Estávamos no comecinho de setembro de 1988. Para quem tiver dificuldade de localizar historicamente, estávamos no Governo Sarney no Brasil. A nova Constituição do país, a que sucede o arremedo de Constituição vigente na ditadura militar, acabava de ser promulgada, o que encerrava praticamente um ciclo político. O ano seguinte seria o ano da primeira campanha para eleições presidenciais diretas no Brasil desde 1960, quando haviam sido eleitos Jânio Quadros para presidente e João Goulart para vice-presidente, por partidos e coligações políticas distintas, como era possível na época. Na economia, os planos econômicos se sucediam, visando controlar a ascendente inflação, refletindo a disputa distributiva pela renda na sociedade brasileira, mas também expressão da disputa pelo poder, que não se resolvia. Os movimentos sociais e o movimento sindical em ascensão se refletiram em poderosa pressão sobre o processo constituinte, mas o impasse na disputa do poder também ficou marcado na nova Carta – os direitos, que eram conquistados nos capítulos sociais, eram limitados nos capítulos econômicos. O presidente de turno, também expressão dessa conjuntura ambivalente, o maranhense José Sarney, sai da presidência do partido de suporte político da ditadura para herdar, com o falecimento do presidente eleito para conduzir a transição, o veterano político mineiro Tancredo Neves, a presidência da República contra o candidato do prosseguimento do status quo, o paulista Paulo Maluf, nas últimas eleições indiretas ocorridas no país, em janeiro de 1985. Creio que a esta altura já estão colocados suficientes elementos para que o quadro político do período esteja presente para quem está lendo. É com este pano de fundo da conjuntura política do país que dois carros seguem em caravana pela BR-040, do Rio para Belo Horizonte, em direção ao 3º. Congresso Nacional da CUT, que se realizaria de 7 a 11 de setembro daquele ano na capital mineira. Neles, seguiam Betinho (que, com sua notória implicância com aviões, preferiu seguir de carro), alguns pesquisadores do Ibase e alguns delegados ao Congresso – eu, na época, nas duas condições, já que além de pesquisador do Ibase, era também um dos mais de seis mil delegados ao Congresso. É neste quadro também que longas conversas sobre o sindicalismo, os movimentos sociais e o processo político brasileiro daquele momento tiveram lugar. Entre os diversos temas do Congresso, a ideia de um Contrato

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Coletivo de Trabalho Nacional – a pressão sindical era nacional, expressa através de várias greves gerais e jornadas de luta que foram organizadas no país no período, e que centralizavam as lutas contra as políticas econômicas, pela reforma agrária e contra a violência no campo, e contra a dívida externa e suas políticas de ajuste negociadas com o FMI. Todos esses temas eram motivos de debate, na viagem e no Congresso, entre nós. E ficaram como lembranças tão fortes quanto as lágrimas de Betinho, enquanto um metalúrgico entoava em português a letra da Internacional na abertura do Congresso. No ano seguinte, outro metalúrgico e líder sindical disputaria, até o segundo turno, a Presidência da República. E os debates na viagem, o que eram, afinal? Eram análises da conjuntura daquele momento. “A análise da conjuntura é uma mistura de conhecimento e descoberta, é uma leitura especial da realidade que se faz sempre em função de alguma necessidade ou interesse. Nesse sentido, não há análise de conjuntura neutra, desinteressada: ela pode ser objetiva, mas estará sempre relacionada a uma determinada visão do sentido e do rumo dos acontecimentos”28. O sentido do nosso debate era como o movimento sindical, em particular o movimento sindical que organizava a CUT, poderia contribuir para a disputa de poder em curso naquele momento, no sentido de uma transformação progressiva e progressista da sociedade brasileira. O que implicava discutir também o processo eleitoral que se daria em 1989 já que, como dito anteriormente, o fim do processo constituinte encerrava um ciclo político, abrindo caminho para o processo de disputa que teria como um de seus momentos a eleição presidencial do ano seguinte, e esse processo político de disputas definiria o que ficara pendente na Constituição que acabara de ser promulgada: valeriam os direitos, expressos na chamada “Constituição Cidadã” ou os limites a eles, também expressos no mesmo texto constitucional? Seria possível que os dois grandes blocos que se enfrentaram no processo constituinte conseguiriam fazer um ajuste de contas, definindo no processo político que se seguiria os pontos que ficaram ambíguos? Para quem conheceu de perto o otimismo contagiante do Betinho, não é difícil saber sua aposta na conversa. Como se veria a seguir, o ajuste de contas se faria parcialmente, e a Constituição recémpromulgada seria regulamentada e revista ao longo da década que se seguiu, infelizmente limitando os direitos nela expressos. As vitórias eleitorais de Collor de Mello ao final de 1989, em uma eleição pulverizada partidariamente, e de Fernando Henrique Cardoso em 1994, encabeçando a coligação PSDB/PFL/PTB, e sua reeleição em 1998, pela mesma coligação ampliada, sinalizariam que os setores conservadores passariam a dar as cartas por mais de uma

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Herbert José de SOUZA, “Como se faz Análise de Conjuntura”, 3ª. edição, Ed. Vozes, Petrópolis, 1985, p. 8.

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década. Nesse quadro político se completaria o processo de reestruturação produtiva no parque produtivo do país iniciado ainda nos anos 1980. No âmbito do mercado de trabalho, várias medidas foram tomadas no sentido de uma maior flexibilização do mercado laboral. No que diz respeito à remuneração, a medida que flexibiliza a remuneração no sentido da remuneração variável introdução da Participação nos Lucros e Resultados (PLR). A PLR é introduzida no período final do Governo Itamar Franco (através de medida provisória, que só vira lei cerca de seis anos depois, já no final de 2000), mas já no bojo do chamado “Plano Real”, como forma de possibilitar algum ganho de remuneração sem reajuste dos salários, já que um dos objetivos do plano era a quebra (pelo menos para os salários) da indexação. Entretanto, como contrapartida, a medida não apenas referendava o sistema de remuneração variável no país, como servia para desviar o foco dos trabalhadores das mobilizações por aumento real e a disputa da produtividade incorporada aos salários, além de introduzir na negociação entre sindicatos e empresas (a negociação aqui é por empresa) os objetivos (metas) das empresas como condicionantes para a obtenção da PLR. Além disso, são tomadas várias medidas de flexibilização do trabalho, como o trabalho por tempo determinado, trabalho em tempo parcial, trabalho temporário, banco de horas, cooperativas de prestação de serviços (contribuindo para acelerar o processo de terceirização do trabalho), suspensão temporária do contrato de trabalho, entre outras adotadas no período. O movimento sindical, imprensado entre a reestruturação produtiva nas empresas, que enfraquecia progressivamente os sindicatos nos processos de negociação pela introdução de inovações técnicas e gerenciais poupadoras de mão de obra, e por uma política econômica estruturalmente hostil, com liberalização comercial e câmbio sobrevalorizado como pilares da política anti-inflacionária, e uma política macroeconômica geral operando para o baixo ou nenhum crescimento econômico, acabou operando na década de 1990, sob hegemonia liberal, para tentar minimizar perdas. No âmbito do setor público, há que lembrar ainda os processos de privatização e reestruturação do setor público, atingindo ainda os servidores públicos e trabalhadores das empresas estatais. Não é de estranhar, portanto, que o movimento sindical tivesse sido uma das principais forças a jogar peso para tentar buscar alternativas políticas amplas na medida em que o bloco de poder liberal se fragilizava com a crise econômica no final dos anos 1990, especialmente em 1998/1999, e com o processo político que se seguiu, e que ao deslocar forças políticas de sustentação do governo da época para o campo da busca de alternativas, ajudou a consolidar a construção de

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uma alternativa de governo, com a vitória da coalizão de apoio a Lula nas eleições presidenciais de 2002. O novo governo, entretanto – e isso ficava claro na reta final da campanha eleitoral de 2002 – iria assumir com ao menos duas fortes limitações a quem esperava mudanças mais profundas. A primeira, porque o processo de liberalização levado adiante nos anos de hegemonia liberal deitou raízes profundas, estruturais, difíceis de serem mexidas. Uma dessas raízes, a consolidação do poder do mundo dos interesses financeiros, estruturando como sua principal fonte de enriquecimento um brutal sistema de transferência de renda, parasitando o orçamento público via taxas de juros elevadas e a política de superávits primários. E a outra, que complicava ainda mais as coisas, era que o deslocamento de forças políticas e sociais que haviam sustentado os anos de poder liberal nos anos 1990 no país para o campo do novo bloco de poder, acaba limitando ou reduzindo a vontade política do novo governo para fazer mudanças maiores (ou, em alguns campos, para fazer qualquer mudança) – um bom exemplo aqui é a chamada “bancada ruralista”, o bloco de interesses dos grandes proprietários de terra. Assim, o novo governo estruturado a partir de 2003, e apesar de seu forte suporte junto ao movimento sindical, se move de forma contraditória em relação aos interesses do mundo do trabalho. Antes de tudo, é possível afirmar que o ambiente geral se tornou mais favorável, com uma política econômica com taxas de crescimento um pouco superiores às da chamada “década perdida”, os anos 1990, políticas de formalização do mercado de trabalho e de geração de emprego e, sobretudo, a política de valorização do salário mínimo e as políticas de garantia de renda. Entretanto, se o governo acabou cumprindo com uma das principais propostas do programa de governo de Lula, a política de valorização do salário mínimo, há que se apontar que duas outras medidas listadas não foram adiante – a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, até hoje em discussão, e a reforma da legislação sindical e trabalhista – o Fórum Nacional do Trabalho, espaço tripartite de negociação em torno a esse tema, termina em meio a impasses e os seus resultados estão longe de terem chegado a um bom termo entre as partes. Além disso, o governo navegou desde 2003 entre a continuidade de medidas que seguem o sentido geral de liberalização, como a reforma da Previdência, a redução dos encargos, a nova lei de falências (reduzindo a prioridade aos créditos trabalhistas), entre outras, e medidas de reforço à regulação do mercado de trabalho e de formalização. Há que se apontar que, em vários momentos, e em função de uma correlação de forças bastante hostil aos interesses do mundo do trabalho no parlamento brasileiro, o reforço no sentido de uma maior regulação do mercado de trabalho acabou se dando pela utilização do peso político do Executivo para a retirada de projetos

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em tramitação, vetos a pontos de propostas aprovadas no Congresso, ou revogação de portarias existentes. Como “a análise de conjuntura de modo geral é uma análise interessada em produzir um tipo de intervenção na política; é um elemento fundamental na organização da política, na definição das estratégias e táticas das diversas forças sociais em luta”29, se poderia perguntar: o que se pode esperar dos próximos anos? Em que sentido deveriam se mover as forças representativas do mundo do trabalho, definindo suas estratégias e táticas? Se poderia dizer que existe uma agenda central e comum, embora talvez neste momento as organizações sindicais se apresentem bastante divididas em torno a questões da conjuntura, como o processo eleitoral em curso, mais do que em outros momentos e processos políticos pelos quais passamos recentemente. O primeiro ponto importante é a aceleração do crescimento econômico. Depois de um ensaio nesse sentido basicamente como uma resposta à crise econômica internacional de 2007/2008, o país voltou a refluir no Governo Dilma para taxas de crescimento bastante baixas. É preciso por isto pressionar no sentido de romper os entraves ao crescimento econômico, o principal deles localizado exatamente na cristalização do parasitismo orçamentário dos interesses financeiros, mas é preciso reconhecer também que vai ser necessária muita pressão neste sentido, pois significa romper com um dos mais fortes pilares deixados pelos anos de hegemonia liberal. Além disso, é fundamental seguir colocando o crescimento do emprego e da renda como um motor do crescimento da economia, e um ponto fundamental para isto é a manutenção da política de valorização do salário mínimo, o que não está garantido. Depois, existe uma série de medidas de regulação do mercado de trabalho que seguem em pauta. A começar pela redução da jornada de trabalho e a reforma sindical e trabalhista. Mas também é preciso reduzir a rotatividade no mercado de trabalho no Brasil. É fundamental seguir a formalização e o combate à informalidade, caminhar no sentido do trabalho decente e combater, visando a eliminação, o trabalho forçado e o trabalho infantil. É importante combater os acidentes de trabalho e as contratações fraudulentas. O processo de terceirização, que nadou de braçada nas últimas três décadas, precisa ser regulado e enquadrado dentro de padrões trabalhistas e sindicais compatíveis com a melhoria da renda, do emprego e da representação

29

Idem, p. 17.

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desses trabalhadores. É imprescindível melhorar a qualidade dos empregos, das relações de trabalho e das remunerações no país. Como fazer para acumular forças neste sentido? Como alterar uma correlação de forças na qual, embora as forças organizadas do mundo do trabalho tenham se transformado em um ator fundamental na definição do jogo político, e em especial o político-eleitoral, no país, tenham um reduzido espaço de representação parlamentar, em um Congresso onde os interesses dos grandes proprietários da riqueza do país são a ampla maioria? Neste sentido, como conectar os temas diretos de interesse dos trabalhadores, temas da política econômica e temas específicos que dizem respeito às políticas de regulação e demais políticas ativas de mercado de trabalho, com temas que ajudem no sentido da mudança da correlação de forças no parlamento, como a reforma política e a democratização dos meios de comunicação? Como fazer para que os mecanismos de transparência e participação que foram sendo desenhados e implementados a partir da Constituição de 1988 e, de forma mais ativa, nos últimos dez anos, não apenas se institucionalizem, mas sejam mecanismos vivos, ativos e influentes no jogo político nacional? Como fortalecer a organização de base do movimento sindical, a sua representação nos locais de trabalho, razão de ampliação de sua representatividade e de sua força para as grandes transformações? Enfim, como passar do ceticismo e das dificuldades atuais, para um novo período de otimismo. Como voltar, enfim, para o otimismo com o qual chegávamos a Belo Horizonte naquele a esta altura já distante início de setembro de 1988?

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O QUE SERÁ, QUE SERÁ? O que será que me dá Que me bole por dentro, será que me dá Que brota à flor da pele, será que me dá E que me sobe às faces e me faz corar E que me salta aos olhos a me atraiçoar E que me aperta o peito e me faz confessar O que não tem mais jeito de dissimular E que nem é direito ninguém recusar E que me faz mendigo, me faz suplicar O que não tem medida, nem nunca terá O que não tem remédio, nem nunca terá O que não tem receita. Chico Buarque de Hollanda

Por Itamar Silva Jornalista Diretor do Ibase e morador do Santa Marta, onde coordena o Grupo ECO

A poesia tem o dom de dizer mais do que aquilo pretendido por seu autor. Talvez por isso Chico Buarque tenha se surpreendido ao ler em sua ficha no DOPS, já em tempos de reconstrução democrática, a interpretação revolucionária que a ditadura civil-militar imposta em 1964 emprestou à letra de uma das três versões da música que havia composto para Dona Flor e seus dois maridos, filme dirigido por Bruno Barreto e baseado no romance de Jorge Amado. Não foram apenas os militares brasileiros que viram em À flor da pele um hino libertário. A música, gravada em 1976, foi proibida na Argentina do General Videla. Em entrevista dada ao Jornal do Brasil e citada por Wagner Homem no livro Chico Buarque: Histórias de canções, Chico afirma que nem ele sabe bem o que existe por trás da letra que fez. Mestre da palavra poética, encerra o debate sobre o dito e o entredito em À flor da pele de forma lapidar: “[...] e se soubesse, não teria cabimento explicar”. Não teria cabimento porque a poesia não é feita para ser explicada. Livre, ela sai das entranhas do poeta, se materializa em palavras e, por caminhos sempre misteriosos, chega a quem as ouve ou lê carregada de sentidos diversos e sempre surpreendentes.

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Ao tomar de empréstimo os primeiros versos de À flor da pele como epígrafe e como fio condutor desse texto que pretende refletir sobre cidades e cidadania da perspectiva de alguém nascido em uma favela do Rio de Janeiro e que, com os pés enraizados no Morro de Santa Marta, procura pensar o mundo, o país e a cidade, sei que o faço como quem quer acolher o desafio, quase sempre sem um vencedor e um vencido, das perguntas que nunca encontram uma resposta satisfatória. Porque esse é um tema que nos bole por dentro. Nos brota à flor da pele. E, dia após dia, nos sobe às faces e nos faz corar. 1. O que não tem mais jeito de dissimular Quero falar do que vejo. E o que vejo é um mundo que, não poucas vezes, não reconheço. É um mundo de contornos quase irreais e que nos chega de forma avassaladora em tempo real através das telas de todas as mídias. Nele, as cidades crescem com rapidez sempre maior; o ar se torna quase irrespirável; a água escasseia; a violência se multiplica por vezes de modo explícito, por vezes de modo velado. E todos os dias somos alertados de que a ação do homem ameaça o futuro dos nossos filhos. Bombas chovem sobre populações civis; multidões se deslocam por causa da escassez, das guerras ou da intolerância. Na faixa de Gaza, uma guerra desigual enfrenta o exército israelense e o Hamas, a custa de quem apenas quer um lugar para morar. No Curdistão iraquiano, milhares de famílias se refugiam nas montanhas inóspitas para fugir da morte pelas mãos dos jihadistas e, talvez, para morrer de fome e de sede. No Brasil, haitianos, bolivianos e africanos de muitos países aceitam condições de vida e de trabalho desumanas em troca de uma sobrevivência que desrespeita a dignidade humana. Em tempos que acreditávamos ser de conquistas femininas, 200 meninas nigerianas entre os 7 e os 15 anos são sequestradas pelo Boko Haram porque queriam estudar. Mais perto de nós, muito mais de 200 meninas e meninos têm sua infância também sequestrada pela prostituição infantil, pelo trabalho mal pago ou pela violência. E no país que se orgulha de ser a terra dos livres e elegeu seu primeiro presidente negro, o assassinato de Michael Brown, um jovem negro de 18 anos, desarmado, por um policial branco mostra que a questão racial ainda é uma ferida aberta nos Estados Unidos. Nas cidades brasileiras, o mapa da violência evidencia que as principais vítimas são jovens, do sexo masculino e negros. A enumeração de situações inaceitáveis perto e longe de nossos olhos poderia se multiplicar indefinidamente. Diante delas, os organismos internacionais como a ONU são quase impotentes. As fronteiras dos estados nacionais mostram-se, como nunca, linhas realmente imaginárias e porosas, facilmente permeáveis não apenas diante dos tanques russos na Ucrânia, mas diante da

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interminável onda de precárias embarcações chegam à ilha de Lampedusa, a Algeciras e a Tarifa carregadas de africanos que fogem da fome, da miséria e da guerra; diante do devastador vírus Ebola; diante das multidões de refugiados de todas as guerras ou diante das poderosas ferramentas da Internet que, para o bem e para o mal, encurtam distâncias ao mesmo tempo em que parecem fazer realidade a ficção do Grande Irmão que a todos espiona e controla. Há pouco mais de um mês assistimos bem perto de nós, e o mundo inteiro assistiu conosco via satélite, àquela que talvez seja a última grande liturgia dos Estados Nação tal como desenhados pelo Ocidente ao longo do século XIX e estendidos, nem sempre por meios pacíficos, ao mundo inteiro. Na Copa do Mundo de Futebol, para muitos a Copa da FIFA, assim como em outros eventos esportivos de âmbito mundial, hinos, uniformes com cores e símbolos nacionais e bandeiras de todas as cores são destacados com orgulho e emoção, antecedendo momentos de disputas acirradas no campo. Uma arena onde se dramatiza a relação entre as potências de forma pacífica, eventuais dentadas e vértebras fraturadas à parte. Ali não há necessidade de se eliminar o outro, e a única consequência da derrota é cair no ranking da FIFA, ou perder contratos milionários de propaganda e marketing. No futebol, a afirmação dos Estados Nação como configuração do mundo da Copa, ainda permite surpresas e deslocamentos: a França representada pelos craques Benzema e Prokba, desafiou a direita xenófoba francesa. A Alemanha, ganhadora da Copa, demonstrou ser boa de bola dentro e fora de campo com um time formado por novos alemães de velha cepa germânica tanto quanto por filhos de árabes, turcos e africanos, mas não deixou de dar um escorregão na celebração da vitória ao ridicularizar com um certo ranço racista as equipes vencidas, durante a comemoração no portão de Brademburgo, ainda que tenha se desculpado publicamente pelo deslize. A Costa Rica despertou simpatia e espalhou a tese de que um país sem exército pode ser guerreiro e vitorioso em campo. A Argélia permitiu aos seus jogadores tornar pública diante do mundo sua simpatia e comprometimento com a luta do povo palestino. Os africanos subsaarianos, portadores, já há alguns anos, da esperança de fazer subir ao pódio uma equipe totalmente composta por jogadores negros, representou talvez um argumento forte para acabar com as demonstrações de racismo nos estádios mundo a fora. Essas e outras situações ofereceram às esquerdas um álibi para torcer e deixar-se contagiar pelo futebol, mesmo que tenham participado de manifestações contrárias à realização da Copa no Brasil. No entanto, o espetáculo midiático buscou a todo instante um nome a ser glorificado e qualidades individuais que se destacassem. É claro que de vez em quando somos surpreendidos, como no passado pelo carrossel holandês e atualmente pelo jogo de conjunto da Alemanha, mas via de regra as atenções estão voltadas para os talentos individuais: Robben, Neymar, Cristiano Ronaldo, Schweinsteiger, Messi, Benzema, Giroux, Drogba, James Rodríguez e tantos outros.

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Qualquer movimento mais ousado dessas estrelas, dentro ou fora do campo, é motivo de repetidas aparições nas telas no mundo inteiro. Daí as empresas de marketing elevarem os valores de seus contratos até a estratosfera. Isso envolve muito dinheiro, tal como o comprova a guerra midiática entre Cristiano Ronaldo e Neymar para ver quem vende melhor uma cueca. A cada aparição, abocanham mais dinheiro e estabelecem um novo ranking: Messi, 57milhões de dólares; Cristiano Ronaldo, 55 milhões de dólares e Neymar chegando perto disso. Nessa perspectiva uma pergunta parece inevitável: como manter uma equipe em campo, jogando coletivamente, se os dividendos fora de campo são diferenciados? A pergunta não parece aplicar-se apenas ao futebol. Como metáfora do mundo em que vivemos e de suas metrópoles, onde nos cabe atuar, ela faz ecoar o muito que vemos no cenário geopolítico internacional e em suas múltiplas formas de teatralização coletiva, e se impõe à nossa reflexão. No mundo globalizado, multicultural e pluriétnico as cidades não podem estar mais referidas aos Estados Nação de matriz decimonônica. E se postulamos uma cidadania global, uma sensibilidade ecológica de escala planetária e um real empenho pela paz e a justiça no mundo, temos muito o que aprender, a começar pela afirmação do valor positivo conferido às diferenças e pelo reconhecimento da alteridade, que em nada se opõem à afirmação da igualdade básica entre todos, como lembra o filósofo português Boaventura Souza Santos. Os desafios que daí derivam para a educação, para a política, para a economia, para a vida cultural, para exercício da cidadania e para a busca de valores constituem o que não tem mais jeito de dissimular. 2. O que nem é direito ninguém recusar Quero falar do que sinto. E, como acontece com muitos de nós, o que sinto ao olhar o país onde vivo e nossas cidades é um grande desconcerto. Talvez tenha sido esse desconcerto o que, em junho de 2013, esteve por trás das manifestações que encheram as cidades do país de uma multidão de jovens que faziam assim sua estreia nas ruas como arena política e de não tão jovens que voltavam a ocupar esse cenário. O tema da mobilidade urbana, que afeta a todos e obriga os mais pobres a uma longa jornada nos transportes públicos, tanto piores quanto mais circulem nas periferias, serviu de estopim para o movimento, mas os cartazes advertiam que os manifestantes queriam muito mais do que os 20 centavos do aumento imposto ao preço das passagens. Ainda que não soubessem tematizar com clareza o que queriam, e insistissem no caráter apartidário dos protestos, as ruas sabiam muito bem o que não queriam. Protestavam contra a corrupção na política; contra a falta de uma educação pública de qualidade; contra um sistema de

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saúde falido; contra a violência da polícia; contra partidos políticos que não as representam e que frustram as esperanças de algo novo depositadas em alguns deles. Nas franjas do movimento pacífico de muitos, a violência de alguns fazia suspeitar, por um lado, da atuação de agentes policiais infiltrados e, por outro da dimensão da insatisfação daqueles que são multiplamente excluídos há gerações e que não suportam mais a criminalização da pobreza, a perpetuação da miséria e a naturalização da subordinação. O fato de que os principais alvos da violência tenham sido os equipamentos públicos de uma administração recorrentemente de costas para o povo pobre, as agências bancarias e as lojas de grife são um indício eloquente de que, com rostos cobertos ou com rostos descobertos, é preciso ouvir essas vozes, como escreveu Leonardo Afonso de Miranda Pereira no calor da hora, em artigo publicado em O Globo. É verdade que os últimos governos, no plano nacional, consolidaram a democracia, conseguiram controlar a inflação galopante, tiraram da miséria absoluta mais de 20 milhões de brasileiros, implementaram programas sociais relevantes e investiram na educação, na ciência e na tecnologia. Mas também é verdade que os grandes partidos que dominam a cena política oferecem à população um espetáculo degradante de compadrio, troca de favores, alianças espúrias e corrupção a céu aberto. A grande novidade nesse setor é que pela primeira vez os desmandos, inclusive os da base aliada do governo, são investigados e desmascarados e alguns dos culpados terminam por conhecer, mesmo que com mordomias que os presos comuns não conhecem, a condenação e a prisão. Os programas sociais implementados não deixam de ter um certo sabor paternalista. E a classe média, quase sempre reacionária, não suporta ver a feirante que consegue realizar o sonho de uma viagem a Paris; os aeroportos transformados em rodoviárias porque frequentados pelos mais pobres, como teve o desplante de publicar em seu Facebook uma professora universitária; e os porteiros e empregadas domésticas tomarem o caminho de volta aos lugares de onde migraram para as grandes cidades porque não querem mais um trabalho mal pago e podem voltar a cultivar uma nesga de terra para sua sobrevivência, enquanto vivem do Bolsa Família. Muitos não escondem sua irritação com o fato de que os poucos pobres que conseguem entrar na universidade possam fazer a experiência de um estágio em alguma grande Universidade no exterior através do programa Ciência Sem Fronteiras, já que essa era até bem pouco tempo uma das marcas de distinção de uma elite intelectual que é também a elite sócio econômica do país. Para voltar ao espinhoso assunto da Copa da FIFA, de nada resolve a falsa solução dos problemas urbanos no curto tempo da competição e, rigorosamente, para inglês ver. O tema da mobilidade urbana, tão atual ainda para os grandes centros urbanos, foi equacionado durante o período da Copa pelos governos estaduais e municipais com a decretação de feriados, a flexibilização nos

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horários de trabalho, o aumento numérico e a maior qualidade da frota de ônibus, os intervalos menores entre os trens do Metro e outras medidas menos visíveis que garantiram o cumprimento dos acordos assumidos anteriormente com Mr. Blatter. Os serviços de saúde funcionaram como nunca durante a Copa. O número de policiais nas ruas bateu todos os recordes, assim como a sensação de segurança nas ruas. E para variar, a polícia, treinada para atender os visitantes em várias línguas, não economizou no uso da força contra os que queriam dar visibilidade aos protestos durante a competição. Às vésperas da partida final, por medida de precaução, a justiça, pelas mãos da polícia, procedeu a prisões preventivas. 12 pessoas acusadas de articular manifestações violentas no encerramento da Copa foram presas em suas casas, como medida preventiva. Violação de direitos que fazia lembrar tempos que gostaríamos de esquecer, estado de exceção, e procedimentos não compatíveis com democracia. Tudo isso e a falta de sensibilidade política marcou a cidade, ao menos no Rio de Janeiro, fora do Estádio, agora transformado em Arena, denominação que não traz boas lembranças para a memória política brasileira. Abriu-se com isso uma nova frente de enfrentamentos e críticas em relação à polícia e a justiça e, por corresponsabilidade, aos governos estadual e municipal. A luta agora é para garantir direitos conquistados: manifestação não é crime. E é também para deixar muito claro que não queremos o chamado “padrão FIFA”, que se revelou prepotente, elitista e altamente excludente. O jornal inglês The Guardian publicou um artigo que denunciava a falta de diversidade nos rostos da torcida que ocupou os estádios brasileiros. “A imagem do Brasil é vendida internacionalmente como uma nação arco-íris, um país democrático em termos raciais onde não há conflitos étnicos ou religiosos e todos falam a mesma língua. O governo esperava usar a Copa para mostrar esta diversidade cultural”. No entanto, a realidade se revelou outra. “Em todas as oportunidades geradas pela Copa do Mundo, a questão dos negros não está incluída. Neste quesito, em particular, o Brasil marcou um gol contra”, afirmou o artigo do jornalista Felipe Araújo, brasileiro que trabalha para a emissora de televisão alemã ZDF. As imagens produzidas pela empresa contratada pela FIFA revelaram quem pode entrar nas arenas da Copa. O preço determinou o público e escancarou a desigualdade econômico racial brasileira. No dia 02 de junho de 2013 o jogo entre Brasil e Inglaterra foi transmitido pela rede brasileira de televisão. Havia em mim um certo incômodo, que a princípio não conseguia definir. Olhava para aquele estádio e não via o meu Maracanã. Mais que isso, eu não me identificava com aquele conjunto de torcedores e não reconhecia a massa que por tantos anos fez vibrar aquele estádio. Parecia um estádio europeu, todos muito bem comportados, brancos na sua imensa maioria, e

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com lindos sorrisos. A mesma imagem se repetiu nos jogos da Copa. Tive dificuldades de me identificar com aquele quadro. No entanto, nem em junho de 2013 e nem mesmo durante a Copa, em junho de 2014, houve reação de indignação por parte dos brasileiros com o retrato distorcido mostrado para o mundo. Desconfio que, no fundo, muitos se enganam e acreditam que aquela é a cara do Brasil ou, ao menos, a cara que desejariam para o país. Caso proceda, a hipótese denota a dificuldade que os brasileiros têm em enfrentar o racismo e as desigualdades presentes na sociedade brasileira. O fato é que enquanto não olharmos de frente a lógica excludente que gera, historicamente, as desigualdades no Brasil e enquanto não buscarmos enfrentar essa desigualdade e aquela lógica com medidas estruturais e políticas de governo eficazes, poderemos continuar a ser a sétima economia mundial na classificação do Banco Mundial, mas dificilmente superaremos o abismo que separa os mais ricos dos mais pobres, ainda que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), da ONU, que mede a qualidade de vida com base na renda, educação e esperança de vida da população de um país, mostre avanços nos últimos 10 anos e o Indicador de Bem-estar Social, elaborado pelo instituto norte-americano Social Progress Imperative, divulgado em abril de 2014, situe o Brasil em 46º lugar entre os132 países avaliados. O índice mostra o Brasil melhor colocado no quesito progresso social, mas também evidencia que o país ainda deixa a desejar nos quesitos renda per capita e atendimento às necessidades básicas, que abrange aspectos como segurança pública, sistema de saúde e acesso ao saneamento básico. Enquanto nos satisfizermos com medidas paliativas no que diz respeito à reforma agrária, ao déficit habitacional urbano, à segurança, à saúde e à educação pública em todos os níveis, dificilmente construiremos as bases necessárias para a cidadania e para a democracia. E posto que nosso foco principal são as cidades, cabe lembrar que o déficit habitacional urbano brasileiro é imenso. Segundo a Fundação João Pinheiro, em pesquisa realizada em parceria com o Ministério das Cidades, ele é de 6.940 milhões de unidades habitacionais em todo o país. E 85% deste déficit estão em área urbana. Isso se explica porque o Brasil teve um processo acelerado de urbanização, principalmente a partir da década de 50, com a intensificação do processo de industrialização, sobretudo a partir de 1956 com os projetos desenvolvimentistas. Em 2010, segundo dados do IBGE, 84% da população brasileira vivia em área urbana, e essa percentagem provavelmente não decresceu nos últimos anos, o que contribui para ampliar o déficit de moradias, saúde, educação, saneamento básico e serviços de infraestrutura urbana.

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Junte-se a isso o fato de que o investimento em habitação ficou congelado por anos. A última investida do governo federal no sentido de intervir para regular o mercado imobiliário com um projeto de construção habitacional foi a experiência do BNH, o Banco Nacional de Habitação, criado por lei em 1964 e idealizado para ser a principal ferramenta para o desenvolvimento urbano brasileiro. O BNH incentivou a construção civil através do Sistema Financeiro de Habitação. A partir de 1970 criam-se três programas, o PROFILURB, o PROMORAR e o Programa João de Barro com objetivo de atuar no setor de menor poder aquisitivo, no entanto, esse conjunto de programas representou 7% (285.000 unidades) da produção habitacional do BNH. O Banco foi extinto em 1986. Segundo Georges Bonduki Nabil, professor da USP especializado em questões relativas à habitação popular com passagens significativa por órgãos da administração federal e estadual, “Na redemocratização, ao invés de uma transformação, ocorreu um esvaziamento e pode-se dizer que deixou propriamente de existir uma política nacional de habitação. Entre a extinção do BNH (1986) e a criação do Ministério das Cidades (2003), o setor do governo federal responsável pela gestão da política habitacional esteve subordinado a sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes, caracterizando descontinuidade e ausência de estratégia para enfrentar o problema” . Para enfrentar este vazio o Ministério das Cidades assumiu o papel de incidir diretamente na gestão da política urbana no Brasil e, para isso, tem como principal instrumento o Estatuto da Cidade, consolidado pela Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 e criado para dar concretude ao capítulo relativo à política urbana da Constituição Brasileira. No entanto, a regulamentação da Lei 10.257 é lenta e impede o uso de alguns dispositivos que poderiam efetivar o planejamento participativo e a função social da propriedade, dois princípios básico contidos na letra da Lei. O Direito à Cidade ainda é um horizonte distante e permeado de barreiras político institucionais que inviabilizam sua plena realização e abrem espaço para iniciativas autoritárias do poder público em sua articulação com o capital imobiliário, tal como ocorre no recente processo de alteração das cidades, neste caso tendo como álibi os grande eventos esportivos de 2014 e 2016. A partir de 2009 uma iniciativa do governo federal cria o programa MCMV, Minha Casa Minha Vida, que potencialmente é um instrumento de democratização do acesso à moradia urbana. No entanto, com o argumento de que o preço da terra urbana é muito alto, as empreiteiras passaram a construir as unidades habitacionais, principalmente aquelas destinadas a população que recebe mensalmente de 0 a 3 salários mínimos, em áreas distantes dos centros dotados de uma

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infraestrutura já estabelecida. Aos pobres estão sendo oferecido lugares remotos, onde a cidade ainda não chegou. A ocupação diversificada do Centro da Cidade, no caso do Rio de Janeiro, é uma demanda histórica dos movimentos sociais de moradia e consenso entre urbanistas. No entanto, a lógica mercantilista que tem orientado as intervenções urbanas impõe um processo de elitização do Centro, na medida em que constrói ou reforma majoritariamente para aqueles que podem pagar muito, o que acelera o processo de periferização da pobreza e constrói ilhas na cidade. Nestes casos, o programa MCMV contribui para assentar os pobres na periferia, distante do local de trabalho, não dotada de infraestrutura urbana, e onde a oferta de serviços é menos disponível. Esta dinâmica a médio prazo vai onerar o próprio Estado, que terá de responder a demandas de investimentos nesses lugares para garantir o mínimo de urbanidade a essa população. Vários urbanistas compartilham da opinião de que as cidades compactas são mais viáveis e que é alto o custo para levar serviços e infraestrutura até as áreas de expansão da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, tem prevalecido a lógica do mercado, que supõe menor custo e maior ganho para as empreiteiras, o que desvirtua o MCMV. Esse programa não pode ser deixado ao sabor e humor do mercado e dos interesses da construção civil. É necessária a atuação direta do poder público e o exercício efetivo do controle social, no momento em se que se está redesenhando o perfil da cidade. A afirmação do prefeito Eduardo Paes de que “a Copa e as Olimpíadas são desculpas fantásticas para se promover mudanças no Rio”, precisa ser contestada. Em primeiro lugar porque a cidade precisa de políticas públicas e não de “desculpas fantásticas” para promover as mudanças de que precisa. Mas, sobretudo, porque é necessário encontrar mecanismos para que a cidadania e não a especulação e o negócio decidam sobre o que é melhor para a cidade. E o exercício pleno da cidadania é o que não é direito ninguém recusar. 3. O que não tem descanso, nem nunca terá Quero falar de onde piso. No duplo sentido de quem fala a partir do lugar em que faz sua a cidade em que vive, mas também de quem usa a palavra com a cautela e a ousadia de quem sabe na própria carne do que fala. O Rio de Janeiro é uma cidade que nasceu para o encontro. Sua geografia de mar e montanhas permitiu generosamente que diferentes classes sociais se abrigassem em seus morros e planícies, e até mesmo que a ação dos governantes avançasse sobre suas águas. No caso do Rio, o mar

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nunca reclamou, verdadeiramente, a parte que foi aterrada para criar melhores condições de circulação e de lazer para sua população. Todo o Aterro do Flamengo pertencia ao mar até a década de 1950. Nos tempos coloniais, as águas da Guanabara vinham até a mureta do Outeiro da Glória. E a Urca é um bairro artificial, também aterrado em 1908 para abrigar a Exposição Nacional comemorativa do centenário da abertura dos portos. Na cidade que até a década de 1960 foi a capital da república, os pobres sempre impuseram sua presença à despeito do posicionamento do poder público. A cidade necessitou, desde sempre, de mão de obra para o setor de serviços e mesmo para o comércio ou para os postos subalternos da administração pública e a população dos morros e de outros “livres acampamentos da miséria”, para utilizar uma expressão do cronista João do Rio, ocupou-se dessas funções. E o povo pobre soube abrir espaços para suas expressões culturais e vincular-se estreitamente à produção cultural da cidade. Como produtores e como consumidores de bens e de cultura, os pobres contribuíram e contribuem substantivamente para construir a identidade cultural do Rio de Janeiro. Se é verdade, como afirmou recentemente o pesquisador e especialista em marketing territorial italiano Massimo Giovanardi, que as cidades se parecem cada vez mais umas com as outras, todas elas tendo como porta de entrada imensos aeroportos, todas recortadas por avenidas e viadutos sempre engarrafados, todas substituindo parques e praças por shoppings centers onde as mesmas lojas vendem, de Nova Déli a Blumenau, roupas, brinquedos, móveis e utensílios idênticos, cada uma delas tem peculiaridades a serem descobertas. No caso do Rio, a proximidade física e a distância socioeconômica entre os ricos, encerrados entre grades em condomínios luxuosos e edifícios de apartamentos, e os pobres que povoam os morros da cidade, é uma delas. Nas últimas décadas, cientistas sociais e historiadores dedicaram-se a estudar como essa convivência no mesmo espaço entre ricos e pobres, nem sempre vista com bons olhos pelas elites, vem de longa data. Já em 1981 Nicolau Sevcenko, historiador e professor da USP e da Universidade de Harvard morto precocemente no último dia 13 de agosto, pioneiro em estudos culturais que relacionam história e literatura, analisou a vida dos cortiços, casas de cômodos, estalagens que alugavam vagas para dormir, casebres e barracos que começavam a subir os morros, nas primeiras décadas republicanas, através da produção de crônicas de intelectuais da época como Lima Barreto e Olavo Bilac. Sidney Chalhoub, também historiador e professor da UNICAMP, analisou a experiência dos trabalhadores mais pobres da cidade, a vida nos cortiços e o início do processo de favelização no livro Cidade Febril. Cortiços e epidemias na Corte Imperial, publicado em 1996. E mais recentemente multiplicaram-se as teses acadêmicas

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voltadas para o estudo de favelas e habitações populares no Rio, tanto na perspectiva histórica, como no caso das teses de mestrado e de doutorado defendidas na UFF pelo, hoje, professor da PUC-Rio Rômulo Costa Mattos, quanto do ângulo das ciências sociais, como no caso da tese de doutorado de Juliana de Farias Mello e Lima, defendida no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ em abril de 2014. Desde que o cortiço Cabeça de Porco, cidadela da pobreza erguida em pleno Centro da Cidade, foi derrubado pelo primeiro prefeito da cidade do Rio de Janeiro no dia 26 de janeiro de 1893, os poderes públicos tentaram, repetidas vezes, remover pela força os pobres de suas moradias precárias quando estas se localizam em bairros de moradia da chamada boa sociedade. Barata Ribeiro, por certo, não primava pela sutileza nem em palavras nem em atos. Já em sua tese para a obtenção do título de doutor em medicina, em 1867, escrevera: “Só vemos um conselho a dar a respeito dos cortiços: a demolição de todos.” E a demolição do Cabeça de Porco, comandada pessoalmente por ele, foi uma verdadeira operação de guerra na qual as forças policiais usaram de truculência para remover os 4.000 moradores que, segundo estimativas da época, ali moravam. Foi também com violência que Pereira Passos, prefeito e reformador do Rio de Janeiro, empreendeu o chamado Bota Abaixo, demolindo antigos sobrados do Centro do Rio na primeira década do século XX para a construção da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, que deveria ser a materialização do sonho de fazer do Rio de Janeiro uma Paris Tropical. Posteriormente, a política de remoção de favelas, em razão da especulação imobiliária ou da pressão dos moradores endinheirados, sobretudo da Zona Sul do Rio, sempre escudada pelo argumento da insalubridade das moradias pobres e da precariedade dos terrenos das encostas dos morros, revestiu-se de várias formas, todas elas violentas e nenhuma delas discutidas e decididas com as populações removidas. Assim, quando Carlos Lacerda foi governador do então Estado da Guanabara, foram erradicadas, total ou parcialmente, 32 favelas, entre as quais as favelas do Morro do Pasmado em Botafogo, do Esqueleto, no Maracanã, e as da Praia de Ramos e de Maria Angu, na zona da Leopoldina. Os 42.000 moradores removidos por Lacerda foram levados, quisessem ou não, para os Conjuntos Habitacionais da Vila Kennedy, na Zona Oeste, a 40 km do Centro, da Vila Aliança, em Bangu ou para Vigário Geral, onde o Conjunto Habitacional construído para 464 famílias removidas recebeu o cínico nome de Vila Esperança. No entanto, nunca como durante o período da ditadura civil-militar iniciada em 1964 a política de remoção de favelas no Rio de Janeiro alcançou proporções tão avassaladoras. Entre 1968 e 1973, a

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CHISAM, Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana, um programa federal que atou em âmbito nacional, juntamente com o governo do Estado da Guanabara então exercido por Negrão de Lima, desalojou mais de 175.000 moradores de 62 favelas do Rio de Janeiro, no maior projeto de remoção jamais executado em toda a história da cidade. Essa população foi levada também para conjuntos habitacionais distantes, de construção de baixa qualidade e em locais sem infraestrutura urbana. Foi o caso, entre outras, de favelas do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, como a Catacumba, a Macedo Sobrinho, a da Ilha das Dragas e a da Praia do Pinto. Essa última teve sua remoção acelerada por um incêndio de origem nunca bem explicada, ocorrido na noite que antecedeu o dia das mães, em maio de 1969. Parte dos moradores afetados pelo incêndio da Praia do Pinto foi alocada em um Conjunto Habitacional construído pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, D. Helder Câmara, no coração do bairro mais valorizado da Zona Sul carioca, o Leblon, conjunto que recebeu o nome de Cruzada São Sebastião. Em 1970 foi removida a favela estabelecida no antigo Parque Proletário da Gávea e a maior parte de sua população foi para o Conjunto Habitacional da Cidade de Deus ou realocou-se em outras favelas, principalmente na Rocinha. Por certo, foi para abrigar a população do Parque Proletário da Gávea que Affonso Eduardo Reidy, um dos poucos arquitetos que projetou e executou moradias de qualidade para a população pobre, idealizou na década de 1950 o Conjunto Habitacional da Gávea, só parcialmente construído e hoje mais conhecido como o Minhocão, ao lado da PUC-Rio. É desse arquiteto também o Conjunto Habitacional do Pedregulho, localizado em Benfica e construído entre 1946 e 1952, até hoje considerado um extraordinário exemplo de arquitetura social. Hoje, a política de remoções truculentas das décadas de 1960 e 1970 deixou de ser possível, em boa parte pela resistência e organização dos próprios favelados. No entanto, uma forma mais insidiosa de expulsão dos mais pobres ganha alento. Com a urbanização de algumas favelas, conseguida pela luta de seus moradores; com a instalação das UPPs que reduziram ou tornaram menos visível o tráfico de drogas e o crime organizado e, nesse movimento, em algumas delas substituíram a violência cotidiana do tráfico pela violência mais esporádica ainda que não menos letal da própria polícia, agora instalada nos morros e exercendo forte controle sobre a população; e ainda com a instalação de alguns equipamentos e serviços urbanos nas favelas, ganha contornos cada vez mais nítidos a chamada gentrificação dos morros do Rio, uma transformação imobiliária e populacional desses espaços.

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No vácuo de políticas públicas eficientes, o preço de compra ou aluguel de moradias nos morros cariocas cresceu exponencialmente. Muitos moradores diminuíram ainda mais o espaço de vida de suas famílias para alugar um quarto aos novos moradores; outros deixaram seus barracos para construir em seu lugar um hostal, um restaurante ou outro tipo de instalação para o comércio ou o lazer; outros ainda venderam seus barracos na ilusão de com isso poder comprar o sonho de deixar o morro e ter acesso a uma moradia na rua; outros muitos cederam à pressão da especulação imobiliária que, ali onde isso é possível, investe no crescimento vertical das construções nas favelas. E, certamente, os morros da Zona Sul do Rio deixaram de ser o lugar onde os mais pobres da cidade ou os migrantes que a ela chegam podem instalar suas moradias precárias. Ao que parece, a luta dos moradores das favelas do Rio pelos direitos da cidadania não tem descanso, nem nunca terá. Ainda bem que essa luta, pelo que se vê, se inclui no rol do que não tem cansaço, nem nunca terá, porque a cidade também é nossa.

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SUS, AVANÇOS E DILEMAS Por Maria Cecília de Souza Minayo socióloga, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp)

O cenário e os atores É muito recente a história da saúde pública como política de Estado no Brasil. Para se ter ideia de quão curto é esse projeto, basta dizer que o primeiro Ministério com ações na área da Saúde foi criado em 1930, durante o governo de Getúlio Vargas, com o nome de Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Publica. Em 1937, essa instância passou a se chamar Ministério da Educação e Saúde e só em 1953 foi criado o Ministério da Saúde. O SUS (Sistema Único de Saúde) apenas acaba de completar 25 anos. Historicamente os cuidados com a saúde do brasileiro primeiro passaram pela filantropia religiosa. O Estado sempre agiu pontualmente diante de epidemias e de algumas enfermidades negligenciadas como a doença mental, a hanseníase e a tuberculose ou frente a situações em que era preciso garantir a saúde de determinado grupo específico. A história aponta um desses momentos, quando a extração da borracha e do manganês na Amazônia se associou às demandas de matéria-prima pelos aliados na Primeira Guerra Mundial. Por causa dessa necessidade produtiva, foi criado um sistema de saúde denominado “Serviços Especiais de Saúde Pública (SESP)” para atender às populações envolvidas, com inspiração e financiamento dos Estados Unidos. Em quase todos os locais onde se implantou o SESP (principalmente Região Norte e Nordeste) este era o único recurso de saúde existente. Da mesma forma que no item anterior, o processo de industrialização do país exigia uma classe trabalhadora em condições de saúde para enfrentá-lo. Foi com esse interesse que no ano de 1923, por meio da chamada Lei Eloy Chaves, foi implantada no Brasil a Previdência Social, na forma de pensão, caixas de aposentadoria e assistência médica para alguns segmentos da classe trabalhadora. Em 1960, com a Lei Orgânica da Previdência Social, houve a unificação dessas Leis Previdenciárias, mas a unificação administrativa só se realizou em 1966, já em plena ditadura militar, quando se criou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Nesse caso o projeto privilegiava apenas os trabalhadores com carteira assinada.

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Um ponto que merece destaque na história da saúde pública brasileira é a instituição de Conferências Nacionais que ocorrem de quatro em quatro anos e das quais sempre participaram atores importantes na organização do setor. Deve-se ressaltar a 3ª Conferência realizada em 1963, quando houve a primeira tentativa de criação de um sistema de saúde para todos, descentralizado e focado no protagonismo do município. A ditadura militar iniciada em 1964 tratou de sepultar as propostas alvissareiras, mas não abalou os ânimos dos que as defendiam. Nos porões da ditadura continuou a gestar-se uma organização em defesa de um sistema público de saúde que fosse integral e universal. Diversos atores militaram dentro desse propósito. Citam-se os principais: movimentos populares entre eles as Comunidades Eclesiais de Base; grupos inovadores localizados nas faculdades de medicina e nos departamentos de medicina social; partidos políticos progressistas como o MDB histórico que abrigava grupos de esquerda sintonizados com a questão social e representantes de partidos de orientação comunista; alguns prefeitos com bandeiras progressistas e relevantes no cenário nacional; e profissionais de saúde das mais diferentes formações e pontos do país. As grandes teses em debate deram continuidade e aprimoraram as propostas de 1963: como conseguir implantar um sistema universal de saúde à semelhança do que fizeram os países da Europa após a 2ª Grande Guerra; e como conseguir que o Estado brasileiro se responsabilizasse e garantisse esse direito de forma universal. Essa discussão que durou anos e atravessou os tempos sombrios da ditadura acabou por se consolidar numa proposta inovadora e universal a que se denominou “Projeto da Reforma Sanitária”. Sua consolidação se deu já nos anos de abertura política, em 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde que teve a participação de cerca de cinco mil pessoas. A presença maciça de todos os atores já citados, de forma uníssona percutindo os princípios da integralidade, universalidade e descentralização e participação social, tornou essa Conferência um março indelével na história da saúde publica brasileira. A proposta referendada pelos cidadãos na VIII Conferência foi entregue aos constituintes que absorveram grande parte de suas teses ao definir a Ordem Social e, dentro dela, a Seguridade Social. Com a Constituição Federal de 1988, a Seguridade Social foi instituída com base no tripé Saúde, Previdência e Assistência Social. Assim nasceu o Sistema Único de Saúde (SUS). O capítulo da Constituição que o instituiu foi regulamentado pela Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080 de 1990) e a partir dela, criaram-se os Fundos de Saúde (federal, estaduais e municipais) para repasse de verbas públicas destinadas ao funcionamento do Sistema. Também foi extinto o

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INAMPS, braço hospitalar do INPS. E toda a gestão do setor ficou unificada no Ministério da Saúde de forma compartilhada com Estados e Municípios. Os avanços do SUS Mesmo os maiores críticos dos serviços públicos não podem deixar de reconhecer que nestes 25 anos transcorridos desde a Constituição Cidadã de 1988, o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) tornou-se responsável por muitos êxitos relativos aos indicadores de saúde dos brasileiros. As teses defendidas na VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), consagradas na Constituição Federal de 1988, privilegiaram a formulação da política de saúde com base nas transformações do perfil demográfico e epidemiológico da população. Os debates acalorados pelo contexto político da redemocratização do país enfatizaram as ações de promoção e proteção da saúde e não apenas o tratamento das doenças. Cada vez mais se buscaram estratégias de acessibilidade dos cidadãos à atenção à saúde, independentemente de sua capacidade financeira, assim como para que os processos decisórios do SUS fossem participativos. Nesse breve tempo histórico o SUS carrega um acervo de grandes conquistas. Umas das mais importantes é a “Estratégia Saúde da Família” (ESF) criada em 1994, visando a ofertar ações de promoção, exames preventivos e cuidados básicos exatamente nas localidades onde reside a população. O crescimento da ESF está associado à redução da mortalidade infantil e de internações evitáveis pela atenção primária, ao maior acesso a consultas gratuitas e ao atendimento domiciliar, especialmente no caso das populações mais pobres. Hoje há 34.185 equipes distribuídas em 5.309, ou seja, em 95% dos municípios, atingindo 108.096.363 pessoas (56% da população brasileira). Esta estratégia tem sido permanentemente avaliada e sempre sinaliza a melhoria do desempenho dos municípios que a adotam. Os indicadores de serviços prestados pela ESF nos 20 anos de sua existência são impressionantes: a queda da mortalidade infantil foi de 83,3/1000 em 1994 para 15/1000 em 2013, um decréscimo de 77,5%. A taxa de mortalidade de menores de 5 anos foi reduzida em 77%. Nos últimos cinco anos, as internações por diabetes decresceram 25% e o percentual de crianças antes dos 5 anos abaixo do peso caiu 67%. A longevidade aumentou rapidamente, acrescendo 9.2 anos de vida aos brasileiros nessas duas últimas décadas. E o IDH subiu 47,5% nesse mesmo período. Com ações de vigilância orientadas pelo Ministério da Saúde, a maioria das doenças infecciosas foi eliminada ou controlada. Hoje, embora persistam as enfermidades infecciosas associadas à pobreza, a maioria dos problemas de saúde são outros, principalmente as doenças crônicas (cardiovasculares, neoplasias, respiratórias e endócrinas) além das violências e acidentes que dizimam e lesionam, sobretudo,

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jovens e adultos jovens. O envelhecimento acelerado da população que, em princípio, é um bônus, traz também preocupações por causa do aumento dos processos degenerativos físicos e mentais. Para se aquilatar o tamanho do SUS que vai cada vez mais rumo à universalização, é importante mostrar mais alguns dados (de 2012). O total de procedimentos médicos das três esferas de governo chegou ao astronômico número de 3,9 bilhões. Foram realizados 11 milhões de internações, 3,3 milhões de cirurgias, 2 milhões de procedimentos de obstetrícia e 6 milhões de internações clínicas. Foram efetuados 887 milhões de exames bioquímicos e por imagem. Ações específicas de promoção e prevenção somaram 583 milhões. A quaisquer olhos – mesmo sem comparar com a produtividade de outros países - é claro que mais foi feito do que se deixou de realizar. Não menos importante, o país tem hoje um excelente sistema de informação, o DATASUS, que serve de parâmetro e referência para outros setores. Existe muito mais capacidade de diagnóstico das situações, muito mais capacidade de gestão, aumentou exponencialmente a qualidade da formação dos profissionais; e o país tem um elenco importante de investigadores dedicados ao setor. Nesse particular, o Brasil ocupa hoje o 3º lugar em número de publicações do setor no mundo, somente atrás dos Estados Unidos e da Inglaterra. Portanto, pode-se dizer que hoje os gestores do SUS têm muito mais clareza de suas necessidades, problemas e caminhos de solução. É preciso assinalar ainda que foi construída e assentada em lei, nesse período, a organização dos atores responsáveis pelo Sistema: a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e Bipartite (CIB) e os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Saúde, esses últimos, com a finalidade de exercerem o controle social. Mas os atores do sistema são muito mais e dentre eles, citam-se os trabalhadores de saúde, gestores e conselheiros de que têm uma militância ativa para que o SUS seja uma política bem sucedida, buscando acentuar e dar força ao “SUS que dá certo”. Os problemas e desafios do SUS Existem hoje vários estudos que mostram as armadilhas que tornaram o SUS menos SUS. Dentre seus mais ferrenhos críticos encontram-se os atores que, desde a primeira hora até hoje, se dedicaram e se dedicam firmemente à sua implementação. Assinalam-se algumas dessas armadilhas. Na contramão do Estado Mínimo - O SUS já nasceu como uma proposta contra a corrente. Nos anos 1980, o mundo político e econômico ocidental dava uma guinada atrás nas ideias que conformaram o Estado de Bem-Estar na Europa e abraçava as reformas neoliberais iniciadas na

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Inglaterra sob o governo de Margareth Thatcher que preconizava uma diminuição do poder do estado. Esse pensamento chegou no Brasil, dominou a gestão do governo Collor, continuou no mandato de Fernando Henrique Cardoso e, infelizmente, esteve presente nos governos do PT. Em relação a esses dois últimos, houve um raio de esperança de que Lula e depois Dilma voltassem a encarar a proposta constitucional do SUS. Pelo contrário, os investimentos públicos em saúde nos últimos 12 anos não aumentaram segundo o crescimento do PIB e não se enfrentaram os problemas de fundo na forma devida. Portanto, é forçoso reconhecer que nenhum dos governos depois da Constituição de 1988 colocou a saúde como prioridade. O maniqueísmo entre financiamento e eficiência – Existe uma fala que atravessa todos os governos e é embalada pela mídia, que contrapõe financiamento e eficiência. Falso dilema, pois existem evidências inequívocas de que o financiamento atual é insuficiente; e de que há uma baixa qualidade de gestão: um problema potencializando o outro. Sobre o financiamento, em 1993, visando ao ajuste de contas, o governo retirou a designação constitucional que destinava 30% do Orçamento da Seguridade Social para o SUS. Quando, visando a compensar as perdas insuportáveis, em 1996, foi aprovada a CPMF, grande parte desse recurso foi desviada para outras rubricas de gastos públicos. Assim, o gasto federal per capita com saúde caiu entre 1997 e 2008 e só aumentou mediante a ameaça da gripe suína. Em 1997 ele era de R$ 294 per capita; em 2003, primeiro ano do governo Lula, de R$ 234, e em 2008, de R$ 289. Entre 1995 e 2011 caiu o gasto percentual em relação à Receita Federal: 11,72% em 1995 e 7,3% em 2011. Constata-se, pois, que a participação federal no financiamento da saúde veio decrescendo enquanto aumentou a dos estados e municípios. Em 1980 o aporte federal era de 75%, o estadual, 18% e o municipal, 7%. Em 2011, a União contribuiu apenas com 47%, os estados, com 26% e os municípios com 28%. Numa perspectiva internacional, os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), mostram que o Brasil investe pouco com o SUS. Comparando-se o gasto médio como o percentual do PIB entre os países que integram a OMS que é de 5,5%, o do Brasil é de apenas a 3,7%. Também está abaixo do que é destinado no Uruguai, na Argentina, no Chile e em Costa Rica e é cerca de 15 vezes menor que o do Canadá, dos países Europeus e da Austrália. Para o Brasil se equiparar aos países com sistemas universais, a despesa pública em saúde deveria subir para 8,3% do PIB, segundo a OMS. Desde 2003 existe uma luta dos sanitaristas históricos para aumentar o financiamento do setor. Emblemática é a chamada Emenda 29 que, quando entra em pauta para ser votada, é barrada pelos sucessivos governos. Ações como essas demonstram a distância entre o discurso de

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privilegiamento do setor saúde e a prática de asfixiá-lo, atuando em sentido contrário à universalização, empurrando as pessoas para os planos privados de saúde. Fragilidades na profissionalização do SUS - Desde que criado, o SUS não foi acompanhado por uma gestão competente e adequada, nem quanto às prioridades e nem quanto aos recursos humanos. Ao contrário, aprofunda-se cada vez mais uma desastrosa precarização das relações de trabalho nos órgãos federais de saúde e nas outras esferas também. O Ministério da Saúde e as Secretarias Estaduais e Municipais estão repletos de funcionários com vínculos precários, terceirizados ou comissionados, criando uma potencial descontinuidade nas propostas que precisam se firmar e se aprofundar, mesmo quando há mudanças de governo. Observa-se uma suspensão permanente de concursos públicos que, ao contrário, deveriam aumentar na medida em que o SUS expandisse. Há um aviltamento das carreiras e dos salários, inexiste avaliação de desempenho dos funcionários e ocorre aumento das terceirizações. Mais ainda, como resquício de estruturas antigas, existem vários Ministérios da Saúde dentro do Ministério da Saúde, onde predominam interesses corporativos e clientelistas. É importante ressaltar que nunca se realizou a organização de uma carreira no SUS que, ao mesmo tempo, valorizasse os profissionais e os tornassem adequados para atender a lógica do Sistema. Seria preciso que o Ministério da Saúde e da Educação intervissem de forma a organizar a formação segundo as necessidades socioepidemiológicas e sociodemográficas do país. Nesse particular é importante citar o que vem ocorrendo com a categoria médica porque ela é central no Sistema e sua visão é hegemônica em toda a área da saúde. A mentalidade corporativista e hospitalocêntrica e os interesses particulares acabam prevalecendo sobre as necessidades em saúde. A maioria dos profissionais que se forma escolhe as especialidades mais lucrativas, oferecendo baixa dedicação de tempo e qualidade ao SUS e privilegiando outros empregos ou consultórios onde auferem maior rentabilidade. Para se ter ideia do descompasso entre as necessidades de saúde da população e a vontade pessoal dos médicos, atualmente faltam pediatras em todas os níveis do SUS e muito mais raros ainda são os geriatras que quase inexistem, frente a uma população que envelhece aceleradamente: ambas são carreiras pouco rentáveis. Desde o início, muitos profissionais assumiram o SUS como um “bico estável”, onde em geral, os atendimentos são corridos, insuficientes e não resolutivos. Os Conselheiros de Saúde e os usuários repercutem à exaustão, as queixas da população que se sente atendida com indiferença, burocracia e até maus-tratos. Fragilidades na gestão de prioridades - A atenção básica, como se viu anteriormente, expande-se para as camadas pobres da população, mas estabiliza-se na baixa qualidade e

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resolutividade. Desta forma, ela quase nunca consegue ser a porta de entrada preferencial do Sistema. Os serviços assistenciais de média e alta complexidade estão cada vez mais congestionados e insuficientes, reprimindo a demanda. O que se vê pelo país afora são gestores municipais complementando valores defasados da tabela de pagamento por procedimentos, na tentativa de aliviar a repressão da demanda nos serviços assistenciais. Frente a isso existem dois fenômenos crescentes à sombra do subfinanciamento e dos problemas de gestão. Um é o florescimento das empresas de planos privados (que hoje já recobrem 56 milhões de segurados) que captam a clientela da classe média, no vazio da insuficiência, da resposta fraca e da pouca qualidade do que é oferecido. Outro é a indústria crescente de judicialização da saúde que, se de um lado, acode e defende pessoas pobres e necessitadas de cirurgias urgentes – uma vez que não conseguem romper as filas infindáveis, verdadeiros demonstrativos do descompasso entre demanda e oferta - e de medicamentos caros frequentemente conseguidos apenas por mandato judicial; de outro, a judicialização se tornou uma fórmula utilizada pelas pessoas que têm posses e acionam o sistema, exigindo o pagamento de procedimentos de alto custo, por vezes realizados no exterior, aprofundando a iniquidade, o subfinanciamento e a fragmentação do SUS. Fragilidades relativas ao modelo de gestão - As diretrizes de integralidade e equidade pouco avançaram. Assim o modelo público vai se estabilizando como um sistema pobre (atende a 80% dos mais pobres) e como um sistema complementar para os compradores de planos privados. Na verdade, o foco do sistema ainda é a produção de serviços centrada nos procedimentos médicos de diagnose e terapia e pouca atenção é dada à prevenção das enfermidades e à promoção da saúde, apesar dos esforços contínuos para se qualificar, particularmente, no que tange à Estratégia Saúde da Família. Ambiguidades do Programa “Mais Médicos” – Essa proposta foi a novidade do governo Dilma para enfrentar os problemas vividos pelo SUS nos pequenos municípios do interior e nas periferias das grandes cidades. Ele marcou em cima de um problema estrutural do setor saúde: a concentração dos profissionais e dos serviços nos centros dinâmicos do país. Está voltado, principalmente, para a atenção primária e já tem dados que comprovam sua assertiva emergencial: aumento de cerca de 40% no número de consultas e atendimentos e diminuição de 21% da demanda aos procedimentos hospitalares em média. Nesse sentido, o programa contribui para o debate sobre o “Mais SUS”, pois torna evidentes as várias debilidades do Sistema: da formação profissional que não se adéqua à maioria das necessidades em saúde; das distorções de um mercado de trabalho conformado pelo fetiche das tecnologias e pela força econômica do setor privado de serviços de saúde e dos produtores e fornecedores de equipamentos e insumos; e da péssima distribuição geográfica de médicos generalistas e especialistas. Portanto, talvez por via

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não ortodoxa, a decisão do governo federal de enfrentar o problema da escassez de profissionais de saúde e o corporativismo dos médicos parece correta. Mas é necessário muito mais. Sobretudo é preciso criar mecanismos que orientem a abertura de vagas de estudantes da área de saúde para a atenção primária, balanceando o número dos que escolhem outras especialidades. A formação em saúde não pode e não deve ser um processo liberal onde apenas vale a demanda individual. Ao contrário, as Universidades Públicas precisam ser chamadas às suas responsabilidades na implementação do SUS, buscando fixar profissionais em regiões periféricas e remotas, particularmente, orientando a residência médica para os locais mais necessitados. Alguns países com sistemas universais – como pretende ser o SUS - como a Inglaterra e o Canadá, criam vagas de residência médica distribuídas conforme as necessidades do sistema de saúde, exigindo que ano a ano haja, em média, 40% dos estudantes voltados para Medicina da Família e da Comunidade. Igualmente, é preocupante que o Programa Mais Médicos deixe em suspenso problemas sérios que não foram resolvidos ao longo do tempo e não serão resolvidos na forma como o Programa foi concebido: ele apresenta um caráter emergencial. As contratações dos profissionais são feitas bolsas, o que não resolve os problemas de precariedade dos vínculos de trabalho. Uma vez que a sociedade opte para que o SUS continue, é preciso que os profissionais que nele atuam sigam uma carreira de Estado, em regime de dedicação exclusiva e em condições de trabalho adequadas e acompanhadas por um programa de educação permanente. Considerações finais O SUS teve que percorrer os caminhos difíceis de mudanças estruturais e culturais em relação a um sistema anterior marcado pela visão hospitalocêntrica, centralizadora e discriminatória, situação que em muitos casos persiste e tem provocado o descrédito do Sistema. Nesse processo, os atores sociais de transformação se diversificaram e se multiplicaram em relação aos primeiros instituintes. A pureza da proposta original também teve de ser adequada às contingências da realidade. Nesse sentido, o SUS jamais se poderia considerar um projeto consolidado, mas sim, um organismo vivo e pulsante, presente na dinâmica provisória e perene de seus êxitos e suas deficiências. Nesse equilíbrio incerto, tendo que negociar os mais diversos interesses, ele precisa responder, aqui e agora, aos problemas de saúde, corrigir rumos, incluir novos temas em sua agenda, criar tecnologias, insumos e arranjos gerenciais cada vez mais eficientes e eficazes. O que o SUS não pode é perder o norte da resposta aos anseios da população brasileira – seu único alvo inamovível – que se propõe a atingir um patamar mais elevado em sua qualidade de vida e de saúde.

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É importante lembrar que o SUS não é uma entidade. É um jovem processo em construção ao interior das Políticas Públicas Brasileiras e que só pode ser compreendido a partir do conjunto do sistema político, econômico, social e cultural em que se integra. Mas ele é um bem do povo brasileiro e assim deve ser cuidado, protegido, questionado e aprimorado.

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O SOCIAL NA CONJUNTURA DEMOCRÁTICA

“Se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter

expectativas

de

milagres.

Não

porque

acreditemos

(religiosamente) em milagres, mas porque os homens, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não”. Hannah Arendt, 1993 p.122 30

Por Sonia Fleury Doutora em Ciência política, professora titular da Escola Brasileira de Administração pública e de Empresas (EBAPE da Fundação Getúlio Vargas)

Introdução A análise de conjuntura foi, durante muitos anos, o principal instrumento e metodologia empregados pelos atores sociais de esquerda para compreender a dinâmica apresentada pela estrutura em cada tempo e espaço particulares, de forma a identificar os interesses em jogo e assim construir cenários, traçar sua tática e estratégia de ação com vistas a alterar a correlação de forças. A suposição que embasa essa prática é que cada conjuntura particular abre espaços de incerteza, nos quais a vontade política, baseada em uma análise rigorosa da dinâmica social, pode ser exercida de forma efetiva. Essa análise deve ter em conta as determinações estruturais e suas expressões em cada tempo e espaço, mediadas pela ação e interesses dos sujeitos políticos. Para Fiori (1995:14) “os grupos sociais e políticos movem-se num tempo presente que é a condensação do passado vivido e conhecido e de um futuro que desejam prever e antecipar. Na conjuntura, experimentam o tempo enquanto fluxo, a estrutura como construção e a sua prática enquanto luta permanente no sentido de controlar a incerteza, regulando a vontade e as expectativas dos adversários”31. A análise de conjuntura pressupõe a existência de leis que regulam os fenômenos socioeconômicos, uma determinação estrutural dada pelo modo de

30

AREND, H – A Dignidade da Política, Rio de Janeiro, RelumeDumará, 1993.

31

FIORI, J L – Conjuntura e Ciclo em O Voo da Coruja. Rio de Janeiro, EDUERJ, 1995.

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produção em cada etapa do capitalismo, que se atualiza na conjuntura em movimentos impulsionados pelo surgimento de contradições, o que abre espaço para o realinhamento dos atores e interesses em novos blocos históricos que redefinem a correlação de forças. Portanto, trata de poder separar de forma racional as determinações estruturais das contradições manifestas que geram incertezas, as vontades e interesses das condições materiais necessárias à alteração das relações de força. As contribuições de Poulantzas (1981)32 foram fundamentais para compreender o papel do Estado como condensação material e específica de uma correlação de forças. Mas, também sua direção política unitária, ao organizar, a partir do seu interior, as classes dominantes como bloco no poder e operar, simultaneamente, mecanismos de reprodução da hegemonia por meio de compromissos com as classes dominadas e mecanismo de coerção, capazes de desorganizar suas organizações políticas. A concepção ampliada do Estado de Gramsci permitiu aprofundar essa compreensão acerca da simultaneidade da ação estatal coercitiva de dominação e de expansão da hegemonia na construção da direção política (Coutinho, 1989)33. A combinação de polarizações como determinação e autonomia, coerção e direção, hegemonia e ditadura, civilização e violência permite compreender a importância da análise de conjuntura para orientar a ação dos sujeitos políticos nas disputas pelo poder. A análise de conjuntura, mesmo tendo em conta a condensação material das relações de força que representa no presente as lutas do passado, bem como a determinação da produção econômica sobre a autonomia relativa dos sujeitos e das instituições, é, sem lugar a dúvidas, a expressão maior do primado da política. A política é pensada como conhecimento histórico do movimento que gera mudanças econômicas e sociais e análise dialética das contradições, o que propicia a possibilidade de transformar a análise de conjuntura em um instrumento científico ao mesmo tempo em que práxis política orientada à transformação social. No Brasil, a conjuntura da transição democrática talvez tenha sido a que melhor espelhou o paroxismo da situação de incerteza, onde as relações de poder materializadas na institucionalidade social e do Estado encontravam-se defasadas das crescentes demandas dos movimentos sociais. Naquela conjuntura, assistimos essa junção virtuosa entre apropriação social do conhecimento da realidade nacional e organização da luta política em direção à utopia de uma

32

POULANTZAS, N – O Estado, o Poder, o Socialismo. Rio de Janeiro, Ed. Graal 1981.

33

COUTINHO, C N – Gramsci – Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1989

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sociedade justa, estruturada a partir da universalização da condição igualitária da cidadania sob o resguardo dos direitos sociais. Não são muitas as décadas que nos separam daquele momento, mas muita coisa mudou na realidade brasileira e mundial deslocando a análise de conjuntura para um lugar obscuro, obsolescência incapaz de fazer frente ao pragmatismo individualizado e utilitário que predomina como norma de conduta social. Sujeitos plurais em suas identidades, mas isolados e com demandas fragmentadas, coalizões voláteis de interesses e organizações sociais cada vez mais corporativas e/ou burocráticas, destituem o lugar da política como o reino da liberdade em busca da transformação social. Frente à incapacidade de enfrentar-se à hegemonia liberal e ao individualismo consumista, estes ganham foros de verdades indiscutíveis com base na imanência de uma economia global que reproduz, em todas as sociedades, uma dinâmica comum das relações de acumulação e exploração, agora sacralizadas e destituídas de conteúdo político, porque respaldadas pelas leis da economia de mercado. A inexorabilidade da mão não tão invisível do mercado eleva a economia à condição de lei natural, rompendo a unidade contraditória anteriormente postulada entre política e economia, para colocar a primeira totalmente a serviço da segunda. Incapazes de resgatar o lugar da política por meio da análise de conjuntura, os sujeitos e movimentos se veem aturdidos por perplexidades crescentes diante de acontecimentos, cuja dinâmica passam a atribuir mais bem a recursos tecnológicos do que a vontades políticas. A explosão dos limites tradicionais de tempo e espaço em uma sociedade conectada em redes virtuais e fragmentada em múltiplas identidades torna difícil atualizar os instrumentos da análise de conjuntura para entender a dinâmica socioeconômica atual. Enquanto a especulação financeira e a exploração sem critérios dos recursos urbanos e ambientais passam a ser naturalizadas, o social passa a integrar o circuito da acumulação capitalista e a questão social deixa de ser enquadrada no âmbito dos direitos para ser compreendida como violência e ameaça à ordem. A busca da coesão social por meio da inclusão na condição de cidadania em um processo de crescente participação e cobertura pública das necessidades sociais dá lugara um processo decisório autoritário, à individualização dos riscos e do consumo de proteção social e ao aumento do controle e coerção sobre as populações das periferias, vistas como ameaças reais ou potenciais à ordem social. Esse movimento de transformação do projeto de WelfareState em um outro projeto de sociedade, que denominei WarfareState, precisa ser compreendido para ser transformado pelos sujeitos sociais.Em outros termos, é necessário fazer a análise de conjuntura

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das transformações do social para resgatar a possibilidade de construção da democracia brasileira. Do Welfare ao Warfare State34 A sociedade brasileira vive nas últimas três décadas o desafio de construir um país democrático, a depender da retomada do desenvolvimento econômico compatibilizada com a efetiva redistribuição social, dentro de um quadro de estabilidade institucional. Recentemente, o debate democrático tem se concentrado no pilar institucional, enfatizando a transparência e o arranjo entre os poderes da República, como se as questões culturais e redistributivas já estivessem equacionadas. Ao contrário, constata-se que está havendo uma transmutação regressiva do social, com a presença de valores conservadores, uma articulação nefasta entre política e moralismo religioso, além do incentivo ao empreendedorismo individual e ao consumismo em detrimento de formas solidárias de sociabilidade e da existência de mecanismos institucionais de proteção social pública. Esse movimento têm nos afastado cada dia mais dos ideais de democracia social que foram corporificados no texto constitucional. Essa transformação vem sendo feita sem alarde, mas com grande impacto, pois tem sido capaz de transformar o projeto original do Estado do Bem-Estar Social (WelfareState) em um estado de gestão empresarial e militarizada (WarfareState), cujas consequências políticas e sociais estão por ser avaliadas. A construção da democracia brasileira tem como marco a Constituição Federal de 1988, onde se corporificou um projeto de democracia social que respondia aos anseios societários de construção de uma nova institucionalidade sob o primado da justiça social. O desafio de promover a inclusão social e a redistribuição de renda em uma das sociedades com maior nível mundial de desigualdade teve de enfrentar vários entraves, mas contou com a organização da sociedade civil em torno da reivindicação de direitos sociais e da construção de sistemas universais de proteção social, estruturados de forma descentralizada e participativa como requisitos fundamentais para universalização da cidadania. Ao criar a Ordem Social, pela primeira vez os direitos sociais deixavam de ser subsumidos no capítulo da Ordem Econômica, onde existiam exclusivamente como direitos do trabalhador, passando à condição de direitos universais da cidadania. No entanto, a institucionalização deste

34

Essa parte do texto foi originalmente publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, Fevereiro de 2013, p. 8-9.

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ordenamento constitucional se deu em um novo contexto político e econômico, com o predomínio dos ditames neoliberais de predomino do mercado e das políticas de ajuste fiscal. Tais medidas implicaram na subversão das condições necessárias ao desenvolvimento de políticas públicas que assegurassem a transformação dos direitos-na-lei em direitos-em-exercício. Ademais das condições estruturais que sempre reproduziram a desigualdade e exclusão social de forma persistente, concorreram para contaminar o modelo de Estado do Bem-Estar Social (WS) desenhado para a democracia brasileira, diferentes ordens de limitantes. Dentre eles destacamos fatores tais como: culturais, com o predomínio dos valores individualistas e de consumo; ideológicos, com a valorização da lógica do mercado como melhor provedor de bens coletivos; políticos, fruto de um sistema político organizado como presidencialismo de coalizão, o que terminou por aprisionar os partidos mais modernos na velha dinâmica de barganha de prebendas em troca de lealdade dos setores conservadores e religiosos, majoritários no Congresso; administrativos, em função da deterioração dos salários do funcionalismo público, perda de quadros qualificados e opção pela substituição de prestadores públicos por provedores privados; econômicos, coma subordinação da política econômica à dinâmica especulativa financeira e às necessidades de controle inflacionário, o que se traduziu na adoção de elevadas metas do superávit fiscal ao lado da manutenção de altíssimas taxas de juros. Ambas as medidas foram responsáveis pelo aumento do déficit público e redução do investimento, impacto negativo na atividade industrial, aumento da taxa de desemprego, além da incapacidade estatal de financiamento das políticas sociais. A resultante da busca de construção de uma democracia social em condições tão adversas é hoje não apenas uma questão teórica em aberto, quanto inspira, no Brasil, as lutas políticas de resistência ao desmantelamento da proposta constitucional e a busca de novas estratégias de institucionalização das políticas sociais em situações desfavoráveis. Ainda assim, muitos preceitos já foram des-constitucionalizados, em especial na área dos direitos previdenciários que impõe custos mais elevados ao governo e empresários. O financiamento da Seguridade foi sempre alvo de disputas e de tensão, já que a destinação de fontes específicas para formação de um orçamento completamente separado do orçamento fiscal e integrado apenas pelos gastos com previdência, saúde e assistência nunca foi efetivamente cumprida. Houve também uma reversão das prioridades desde as políticas universais em prol de novas políticas do tipo focalizadas, gerando um híbrido institucional neste campo da Seguridade Social. Enquanto isso, outras diretrizes constitucionais, apesar de mantidas, não foram regulamentados ou

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suficientemente respeitadas, de forma que deram espaço a novas articulações entre Estado e mercado, em especial no caso da saúde. Ficou assim caracterizada a existência de uma espécie de institucionalidade oculta, já que interesses mercantis passaram a circular no interior dos sistemas públicos universais, cujo desenho original foi orientado pelo princípio da desmercantilização da proteção social. Esta condição de ocultamento da circulação de mercadorias, subsídios, lógica de gestão, compras de serviços e insumos, promiscuidade de inserções profissionais e dupla porta de entrada para usuários, permite que, mesmo estando à margem da lei, ou operando em suas brechas, esta institucionalidade favoreça interesses particulares em detrimento da dimensão pública das políticas sociais. O pior efeito do ocultamento é que este fato não chega a ser tematizado na agenda governamental. Esta prevalência do mercado se mantém e se amplia, mesmo face à crise do neoliberalismo. A reação dos governos progressistas se fez sentir na busca da retomada do desenvolvimento econômico nacional desta vez com ênfase no combate à pobreza, ainda que limitada pelo constante temor de volta do desequilíbrio inflacionário. Recentemente, foram tomadas medidas de políticas públicas voltadas para impulsionar o desenvolvimento, tais como: transferências de renda; distribuição de subsídios a setores industriais, aumento sustentado do salário mínimo e do crédito popular; ampliação do investimento público. Tais medidas expandiram tanto o consumo popular como a capacidade competitiva de alguns grandes grupos nacionais, fortemente apoiados por investimento público, além de seu poder de definição da agenda pública. A redução da pobreza, fruto tanto do crescimento econômico quanto das políticas salariais e de assistência social, contribuiu para o clima de otimismo e de consolidação da institucionalidade democrática no Brasil. Já o impacto na diminuição da desigualdade foi enfraquecido pela constante negação do acesso à população mais pobre a serviços públicos de qualidade em áreas como educação, saúde, transporte, saneamento e moradia. Esta mudança de rumo no contexto pós-neoliberal não se caracterizou pela sua superação ou pela retomada do projeto social democrata. O social fora traduzido constitucionalmente na década de 1980 em termos de direitos universais de cidadania a serem assegurados por um Estado democrático, descentralizado, laico, participativo e com mecanismos solidários que deveriam se traduzir em um sistema tributário progressivo e em contribuições sociais exclusivas.

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Já a resignificação do social a partir dos anos 1990 afasta-se dos sistemas universais dos direitos sociais, onerosos para um estado endividado e se transmuta em programas e políticas focalizados de combate à pobreza. Políticas sociais já não falam de direitos coletivos, mas de necessidades e riscos familiares que devem ser enfrentadas por meio de transferências condicionadas de rendas mínimas. Esta disputa de significados sobre a qualificação do social é ideológica, mas também políticoinstitucional. Em torno destes dois modelos se articularam duas coalizões com projetos distintos de sociedade. No entanto, esta disputa não é um jogo de soma zero, envolvendo perdedores e ganhadores dos dois lados. Institucionalmente o modelo da Seguridade Social da CF/88 terminou por se impor e as políticas focalizadas deixaram de ser uma alternativa às políticas universais, encontrando sua inserção institucional no interior de sistemas de políticas sociais que têm como referente a cidadania. Já do ponto de vista político-ideológico a disputa foi claramente favorável às políticas focalizadas, que ganham espaço na mídia como as principais responsáveis pela atual reestratificação social que culminou com ampliação da classe média. Ao invés da noção de direitos, como articuladora das relações e das normas que orientam as políticas, o que qualifica o social, neste caso, é a capacidade de consumo desta nova classe emergente. Compatível com uma visão de sociedade que, cada vez mais, valoriza o consumo e a ascensão vista dede a perspectiva de empreendedorismo, a agenda pública passa a ser construída predominantemente por atores poderosos como a mídia e o mercado. A política social adequada é vista como sendo aquela que retira o pobre da situação limite por meio de transferências públicas mínimas, de forma a aumentar seu poder de consumo sem desestimulá-lo ao trabalho. Sem representar também um custo demasiadamente alto para os empregadores ou comprometer o déficit público. Ao contrário, o combate à exclusão por meio de instrumentos de crédito e transferências é associado à capacidade de ampliação do mercado nacional e redução da vulnerabilidade da economia às crises internacionais. Porém, um novo movimento de redefinição do social começa a se configurar a partir da necessidade de enfrentamento da violência urbana e do que se convencionou chamar cidade partida, para designar a fratura social e jurídica entre as populações residentes em diferentes zonas urbanas. Medidas pontuais como programas de urbanização não alcançaram modificar essa situação de apartação e o crescimento do domínio de narcotraficantes sobre os territórios das favelas terminou gerar uma sensação de medo generalizado, aumentado pela sensação de perda de controle estatal sobre a cidade, barbarizada pelas guerras entre facções de traficantes rivais.

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O investimento da cidade do Rio de Janeiro em uma nova inserção internacional, disputando e vencendo a postulação para sede dos megaeventos terminou por comprometer os três níveis governamentais com a urgência de equacionamento do problema da violência urbana, pelo menos na área mais rica e turística. A ocupação militar permanente de algumas favelas em posições estratégicas passou a ser adotada nos últimos anos, sob o nome de Política de Pacificação (UPP). Esta política de ocupação das favelas foi fortemente ancorada no apoio de grupos empresariais, na sua formulação, financiamento e execução. Ela tem prioritariamente um componente repressivo, militar e policial, que busca garantir a ocupação e domínio estatal destes territórios e o controle sobre suas populações. No entanto, seu direcionamento é para a reforma urbana que se está processando rapidamente, com maciços investimentos públicos e privados, e grandes especulações na área de construção civil e imobiliária. Já o componente social é representado por uma miríade de ações de órgãos, governamentais e não governamentais, que buscam capacitar a população da favela para uma melhor integração à cidade. O foco deixa de ser o pobre e suas necessidades básicas, para se deslocar para o território com sua aglomeração habitacional subnormal e para a população favelada cuja sociabilidade é vista como incompatível com a ordem e a formalização necessárias à vida na cidade. O social é concebido como processo de aquisição de habilidades necessárias ao ordenamento dos comportamentos, das moradias, da sexualidade, dos laços familiares e comunitários, das expressões culturais. Os programas e atividades sociais visam ocupar os jovens e adolescentes para evitar que caiam na criminalidade, vista como fruto do ócio, e educar os demais no papel de consumidores e cidadãos que cumprem seus deveres de formalização e pagamento de impostos e serviços. Além de capacitá-los para que possam desenvolver habilidades empresariais e alguns inserir-se de forma vantajosa no mercado. A integração urbana toma a forma de inserção no mercado, na medida em que a própria cidade passa a ser concebida como mercadoria. O ideário de uma cidade participativa, que era parte do projeto de democracia social cede lugar a um imaginário de cidade que se projeta no cenário internacional como uma mercadoria que poderá ser vendida em proveito de todos seus habitantes. Para isto, é preciso que as políticas públicas estejam estreitamente vinculadas aos interesses dos grupos empresariais que passaram à condição de sócios privilegiados do governo. Os benefícios atribuídos à pacificação das favelas, em relação à presença armada do tráfico, são sentidos pela população da cidade e também pelos moradores das favelas. No entanto, a opinião pública desconhece os conflitos que se apresentam no cotidiano das favelas, onde a ordem

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repressiva passa a predominar sobre qualquer ordenamento jurídico existente, transformando esta conquista em um tipo de Estado de exceção, cidade de exceção, cidadania de exceção. Mas, é preciso reconhecer que esse modelo decisório sem transparência, participação ou controle social, é um modelo de gestão autoritária, que mina as bases da recente construção democrática brasileira, onde regime de exceção vira regra.

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AS ONGS NA CONJUNTURA Por Jorge Eduardo S. Durão Assessor da diretoria executiva da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE)

Este artigo se propõe a examinar o modo como os elementos da atual conjuntura incidem sobre as Organizações Não-governamentais (ONGs) – em particular sobre as organizações de defesa de direitos -, ou, como prefere Cândido Grzybowski, sobre as organizações de cidadania ativa. Entender o lugar das ONGs na conjuntura exige que não percamos de vista algumas circunstâncias da história recente do país que condicionam a percepção de diferentes setores da sociedade brasileira acerca do papel das ONGs e acabam por influenciar, direta ou indiretamente, a atuação das próprias ONGs. Se tomarmos como referência as duas últimas décadas – o período em que o PSDB e o PT se alternaram no poder -, constatamos que depois de uma etapa de “convergência perversa” (nas palavras de Evelina Dagnino) entre o projeto neoliberal e o discurso de ampliação da participação social – com grande prejuízo para a imagem pública das OSCs -, a década de predomínio petista, ao contrário do que muitos esperavam, não se mostrou mais propícia ao fortalecimento do campo das organizações de defesa de direitos. A recuperação da memória da tentativa de apropriação das ONGs pelo discurso neoliberal não resulta de uma fixação anacrônica da minha parte, pois basta uma rápida olhada sobre a literatura atualmente produzida pelo pensamento hegemônico nas escolas de serviço social para verificar que ainda hoje as ONGs estão sendo demonizadas como cúmplices da contra reforma do Estado do governo FHC e da consequente transferência de responsabilidades com o enfrentamento da questão social para a filantropia empresarial e o chamado terceiro setor, em detrimento do Estado35. Por outro lado, no discurso político atual de certas correntes da esquerda radical (e de certos intelectuais chapa branca nada radicais), as ONGs chegam a ser tomadas como referência negativa para a análise dos movimentos sociais, cuja burocratização é igualada à sua redução à condição de ONG. O período de hegemonia do lulismo, com a combinação de “políticas para reduzir a pobreza – com destaque para o combate à miséria – e para a ativação do mercado interno, sem confronto

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Não cabe nos limites deste breve artigo aprofundar uma avaliação sobre as mudanças internas do perfil das ONGs e o quanto a subordinação de muitas ONGs à lógica de projetos contribui para corroborar essas interpretações.

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com o capital”36, apoiada num pacto conservador, estreitou sobremaneira o espaço político para a atuação das ONGs de defesa de direitos. Basta considerar a natureza da ampla coalizão partidária montada para a sustentação congressual dos governos Lula da Silva e Dilma Roussef, com o peso das bancadas ruralista e “evangélica”, para se perceber o isolamento político a que tal correlação de forças conduz um campo de organizações que participam de enfrentamentos diários com os interesses do agronegócio, defendem os direitos dos indígenas, e se contrapõem à agenda dos grupos fundamentalistas que buscam reverter e impedir avanços dos direitos humanos das mulheres, de homossexuais, da população negra e de adeptos das religiões afro-brasileiras. Não deveria nos surpreender assim a falta de compromisso dos governos Lula e Dilma com o fortalecimento de um campo autônomo de organizações de defesa de direitos, inclusive no que diz respeito às questões do marco regulatório (MROSC) e do acesso aos fundos públicos. Estou certo de que esta última afirmação parecerá bastante discutível para alguns dos leitores desta publicação. Acredito mesmo que a ambivalência de muitos militantes que atuam nas nossas organizações em relação a esta opinião polêmica se explica pelas contradições de uma conjuntura em que prevalece uma correlação de forças totalmente desfavorável à afirmação de alternativas políticas à esquerda do desenvolvimentismo com nuances sociais da era Lula, num cenário em que está sempre presente a ameaça de um dramático retrocesso para a direita, como já se anuncia com a configuração abertamente neoliberal e direitista da candidatura de Aécio Neves. Na leitura dos políticos da direita e da mídia partidarizada que combate implacavelmente o governo Dilma, as ONGs e os movimentos sociais, quando não são criminalizados, são sistematicamente desqualificados como mera clientela dos governos petistas. A celeuma no Congresso Nacional em torno do decreto presidencial instituindo a política nacional de participação social não foi apenas uma tempestade em copo d’água com fins eleitoreiros, revelou também que o próprio PSDB já retrocedeu em relação ao seu discurso sobre a participação social, tão em voga no tempo em que a Doutora Ruth Cardoso presidia o Conselho da Comunidade Solidária. A rigor, o alcance do decreto presidencial que institui a política nacional de participação social tem de ser relativizado. Numa conjuntura marcada pela reconquista das ruas pelos movimentos sociais, as ONGs estão desafiadas a questionar o caráter de um “sistema de participação social” absorvido pelas estruturas estatais e reduzido a um discurso institucional. As ONGs precisam

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Cf. André Singer, “Os Sentidos do Lulismo”, 2012.

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resgatar os nexos entre participação institucional e mobilização popular e denunciar a falta de efetividade da participação em relação aos processos decisórios, bem com a blindagem das áreas estratégicas do governo em relação à participação. Os episódios do decreto da participação social e da aprovação na semana passada do Projeto de Lei 7168/2014 – ambos resultantes de uma correta atuação da Secretaria Geral da Presidência da República (e do Ministro Gilberto Carvalho) – podem sugerir um desmentido da nossa interpretação segundo a qual é praticamente nulo o compromisso do governo Dilma (e antes do governo Lula) com o fortalecimento do nosso campo de ONGs. No entanto, se o governo Lula empurrou com a barriga a agenda do MROSC, o governo Dilma se caracterizou por uma postura de desconfiança e de distanciamento da chefia do Poder Executivo em relação às organizações da sociedade civil, com momentos particularmente negativos como o do decreto que suspendeu de forma indiscriminada o repasse de recursos de convênios para todas as entidades conveniadas, canalizando para as ONGs a indignação da opinião pública frente aos desvios de recursos públicos por integrantes do seu governo e da sua base de sustentação partidária, através da criação de falsas ONGs. Pode-se dizer então que os dois fatos acima mencionados representam uma mudança positiva de rumo do governo Dilma em relação às ONGs? Tendo a achar que não. É verdade que as contradições internas do governo deram margem para uma atuação favorável às OSCs por parte da Secretaria Geral da Presidência, que buscou resultados por uma linha de menor resistência, através da via legislativa, depois que a presidente Dilma se furtou durante meses a respaldar publicamente o produto do Grupo de Trabalho sobre o Marco Regulatório37. No entanto, em relação à aprovação do Projeto de Lei que regula o repasse de fundos públicos às OSC, apesar dos inegáveis avanços normativos consagrados na nova Lei, não podemos perder de vista, nesta análise de conjuntura, que o significado da sua aprovação, que prevalece no Congresso e na opinião pública, é o de que a Câmara de Deputados endureceu as regras para contratos com as ONGs. Ou seja, aquilo que está sendo interpretado pragmaticamente pelas OSCs como uma vitória significativa – o que de fato é – do ponto de vista simbólico, na luta pelos corações e mentes, pode ser apenas mais um episódio de um processo de erosão da imagem pública das ONGs.

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Esse Grupo de Trabalho, composto por representantes do governo e da sociedade civil, foi criado em novembro de 2011 no âmbito da Secretaria Geral da Presidência da República, atendendo à reivindicação da Plataforma das OSCs por um Novo Marco Regulatório, encampada pela candidata Dilma Roussef em 2010.

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Nossa análise da situação atual reconhece a importância seminal que as ONGs de defesa de direitos, das organizações de cidadania ativa podem vir a ter como parte do processo de gestação de um novo campo político à esquerda, num cenário político nacional que se encontra fortemente deslocado para a direita na conjuntura eleitoral de 2014. A retomada da mobilização social, iniciada com forte ímpeto a partir de junho de 2013 e que não arrefeceu em 2014, como se pode ver pelas greves e manifestações cotidianas de inúmeras categorias de trabalhadores e de moradores das periferias nas cidades brasileiras, não se traduziu na emergência de novas forças políticas e partidárias com incidência decisiva nas próximas eleições. Falta ainda a necessária costura entre as recentes lutas sociais e a construção de um campo político que se contraponha à hegemonia do desenvolvimentismo – incorporando uma visão crítica tanto do neo extrativismo quanto da economia verde - e aposte na radicalização da democracia e na ampliação efetiva da participação popular autônoma. Embora muitas ONGs apoiem permanentemente as lutas de resistência das populações nos territórios – onde são atingidas pelos desastrosos impactos socioambientais de grandes projetos, como as hidrelétricas e as remoções decorrentes dos megaeventos esportivos -, entendo que de maneira geral elas estão desafiadas a desenvolverem uma sintonia fina com os novos movimentos sob pena de se condenarem a uma certa irrelevância no futuro próximo. As ONGs que forem capazes de superar as fragilidades institucionais que as caracterizam de maneira geral, atuando de forma consequente na construção de alternativas políticas poderão desempenhar um papel importante na construção de novas alianças e para a redução do isolamento social e político das nossas organizações. Não podemos ignorar as dificuldades para a atuação das ONGs num cenário eleitoral em que a candidata do PT à reeleição parece disposta a pagar um preço bastante elevado pela manutenção da aliança com o PMDB, deslocando-se tanto quanto preciso para a direita. Nesse cenário, as ONGs terão de caminhar no fio da navalha, criticando quando necessário a ação governamental, tensionando as disputas em torno das políticas públicas, sem perder de vista que nos movemos numa conjuntura em que um dos principais articulistas de O Globo comemora a articulação em torno do candidato do PSC, pastor Everaldo Pereira, de uma tendência política “tradicionalista

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em questões morais e sociais” e a “receptividade de parte do eleitorado ao projeto liberalconservador”38. Nesse contexto adverso, mas desafiador, vivido pelas ONGs, permanece na ordem do dia a construção de uma arquitetura de sustentação política e financeira dessas organizações. Este objetivo esbarra nas relações contraditórias com o Estado brasileiro – como apontamos acima no tocante à disputa em torno do MROSC – e no novo papel que algumas agências de cooperação internacional pretendem assumir na sociedade brasileira, em substituição ao seu papel tradicional de apoiadores e parceiros das organizações da sociedade civil brasileira. Essas organizações internacionais se constituem agora como pessoas jurídicas e atores políticos no país, priorizando a conquista de uma fatia do promissor mercado de doações de indivíduos em nossa sociedade. Por outro lado, ao se proporem a atuar como atores políticos próprios na sociedade brasileira trazem à discussão novas questões relativas à legitimidade das ONGs e colocam para as organizações nacionais novas exigências de reflexão acerca dos limites entre o internacionalismo que anima a constituição de uma futura “sociedade civil planetária” e a intervenção, aqui e agora, de organizações internacionais na política interna de cada país. Algumas ONGs brasileiras parecem pouco preparadas para enfrentar os novos desafios da sua atuação nas questões internacionais, não apenas porque agendas politicamente importantes não foram ainda incorporadas pelas organizações da sociedade civil e movimentos sociais brasileiros (por exemplo, a questão do BRICS), mas também porque persiste uma leitura desatualizada e ambígua da relação com atores da cooperação internacional que passaram por importantes mutações nos últimos anos. Sob o influxo também das iniciativas governamentais, de organismos multilaterais e da cooperação internacional, algumas ONGs embarcam acriticamente em agendas irrelevantes ou diversionistas, como a Agenda Pós 2015 em debate na ONU, dispersando as poucas forças com que contam as nossas organizações. As ONGs brasileiras atuam num cenário internacional cada vez mais complexo, mas não percebemos da parte delas um esforço coletivo de compreensão do sistema internacional que propicie uma superação das ilusões que acompanharam o processo de globalização a partir dos anos 90 do século passado.

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José Casado, “A Direita Avança”, o Globo, 08.07.2014.

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IMPASSES NA PARTICIPAÇÃO CIDADÃ Por Cândido Gzybowski Sociólogo e diretor do Ibase

Vivemos um momento de mal estar político, de insatisfações latentes e de incertezas, com os extremos do espectro político raivosos, tanto na esquerda como na direita. E estamos em processo eleitoral muito importante, onde muita coisa pode ser decidida. Mas cadê aquele entusiasmo cívica participativo, que derrotou a ditadura e instaurou a democratização entre nós? A onda democratizadora se esgotou? Sou dos que tem alertado para o risco de estarmos caminhando para uma democracia de baixa intensidade, ritualizada e incapaz de novos avanços. Como entender a participação cidadã possível em tal conjuntura? Bem, a grande novidade, que inaugura a conjuntura que vivemos, foi exatamente gerada pela participação ou numa verdadeira implosão de cidadania, em junho de 2013, nada esperada pelas forças políticas constituídas. O mal estar e a insatisfação entraram por esta via na agenda política. Mas eles vem de mais longe. Começa com a ascensão do PT ao pode e numa espécie de “encurralamento” de movimentos sociais e organizações da sociedade civil pelos governos petistas, desde o primeiro ano do Governo Lula, em 2003. Para ser simples e direto, basta dizer que muitos passaram a estar no governo sem ser governo. O governo petista se tornou viável, neste nosso país de profunda tradição patrimonialista, fazendo uma aliança sindical empresarial em nome do desenvolvimento, com condicionalidades sociais, mas renunciando ao projeto redirecionador de rumos, de mudanças substantivas. Na expressão do André Singer, o petismo – ele define como “lulismo” - optou por um “reformismo conservador”. Na minha análise, a grande onda democratizadora, que vem lá dos 80 do século passado, se esgotou em reformas conservadoras. Inspirado em Gramsci, afirmo que ocorreu entre nós o processo de “transformismo” do PT, de suporte ao projeto de desenvolvimento econômico de outros por uma força política emergida de sindicatos, movimentos sociais, associações populares e de organizações ativistas de cidadania. Não que isto não tenha significado avanços, particularmente em termos sociais. Mas não foi mudança. Foi continuísmo do mesmo modelo com condicionalidades sociais. Lembro tudo isto unicamente com o propósito de entender a origem do mal estar e das insatisfações, hoje tão claras. Como analista e ativista no sentido da radicalização da democracia, tenho me debruçado sistematicamente, desde 2004, na busca dos “sinais” conjunturais onde iria estourar o represamento de demandas por participação e direitos, nas cidades e no campo,

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aflorando as contradições que a democracia brasileira precisa enfrentar, gerando uma nova e revitalizante onda de democratização substantiva. A única certeza em minhas análises era que um dia a cidadania iria surpreender. E ela estourou lá onde não se esperava, no seio de grupos sociais, jovens e não tão jovens, que representam a ascensão do nível de pobreza a um patamar mínimo de consumo de milhões, uma nova “classe batalhadora” – na boa caracterização de Jessé … - , que muitos, inclusive o Governo Dilma, considera “ a nova classe média”. Só alguns elementos sobre as manifestações de junho de 2013. Foram, antes de mais nada, incontestavelmente uma novidade política que só a cidadania sabe criar, em sua natural e saudável rebeldia, se não fosse assim nada se moveria nas sociedades. Em segundo lugar, na multiplicidade de demandas e protestos, talvez o comum tenha sido a questão de direitos de cidadania e universalização de políticas públicas básicas, como transporte, saúde, educação, segurança e demais, com aquele slogan de “padrão FIFA”. Um terceiro aspecto, ao meu ver, foi o contexto da Copa das Confederações, uma data e um cenário para dar ampla visibilidade a demandas de cidadania tão profundamente críticas sobre prioridades de investimentos de governantes e tal falta de dinheiro. O curioso é que sempre falta dinheiro quando é para garantir direitos, mas não falta para financiar grandes projetos, cujo orçamento duplica ou triplica no decurso das obras. Um quarto aspecto que cabe destacar é o uso das novas tecnologias de informação e comunicação, que as redes sociais passaram a fazer como arma de ação política. Não é uma invenção brasileira, mas foi apropriada e veio para mudar muita coisa na nossa política e no processo de democratização da própria comunicação, dado que a mídia dominante não prioriza tão pouco o que vem da cidadania. Penso que as mobilizações através de redes sociais informatizadas criaram um clima latente contra a mercantilização das comunicações e em favor da aprovação do Marco Civil da Internet no Brasil, que aconteceu em 2014 e é um avanço, sem dúvida. Um quinto aspecto que destaco, talvez o mais impactante das mobilizações de junho de 2013 para a democracia, foi a clara contestação de todas as formas de representação política: a institucional em todas as suas formas, seja partidos, representantes eleitos, governantes, em todos os níveis; mas também as lideranças sindicais, de associações e de movimentos sociais, com suas bandeiras e discursos; e mesmo as organizações de cidadania ativa, onde o próprio Ibase se inclui de algum modo foram questionadas. Muito se escreveu a respeito de junho de 2013 e muita gente, inclusive eu, esperava alguma forma de repique das grandes manifestações no contexto da Copa do Mundo. Veio a Copa e elas não se repetiram. Por que? Grande questão para longos debates de conjuntura. Lamentavelmente, o momento de mal estar e incertezas não nos está levando à prática cidadã do encontro de amigos e cúmplices para análise de conjuntura. Encontramos muitas desculpas para não nos reunirmos

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afim de discutir em volta de uma mesma, de preferência com algum chopinho ou caipirinha e alguns beliscos. Já que este livro comemora um livro sobre análise de conjuntura do Betinho, vale a pena lembrar o que ele dizia e praticava: na mesa de um bar era onde a liberdade cidadã, em igualdade de condições para o debate de conjuntura, era mais radicalidade e criatividade. Penso que é necessário nos debruçarmos sobre o que aconteceu de junho de 2013 para cá em termos de participação cidadã e do direito fundamental de se manifestar. Tenho pensado muito sobre porque as impressionantes manifestações de junho de 2013 não foram capazes de gerar uma nova onda democratizadora até aqui. Elas instauraram um elemento novo na agenda política e definiram um antes e um depois delas para todos os atores políticos, pois mostraram que demandas de cidadania não podem ser relegadas e que nas manifestações de rua se pratica algo essencial para as democracias. Em termos um tanto exploratórios, como em toda análise conjuntura, vale a pena se debruçar sobre o que vem passando após junho de 2013 em dois planos políticos fundamentais: de um lado, o susto inicial, a forte reação contra, as iniciativas e debates institucionais protelatórios; de outro, os encontros e desencontros no campo cidadão e popular, sem conseguir criar movimentos irresistíveis. Um elemento chave é a evolução da repressão. No início, ainda nas primeiras manifestações, a brutal reação das polícias militares acabou sendo uma forma de atiçar o ardor das mobilizações cidadãs. E elas cresceram. O que o momento revelou é o total despreparo das polícias que temos para lidar com manifestações. As polícias militares são uma instituição que não foi mudada no pós ditadura, carrega uma concepção estratégica e uma cultura de repressão violenta. Como violência gera violência, gradativamente as manifestações passaram a ser palco de confronto entre “black blocs” e polícias militares, esvaziando as próprias manifestações. Pior, esta situação despertou uma fúria repressiva de certos setores políticos no Congresso Nacional, com o objetivo de criar leis duras e criminalizadoras das próprias manifestações. Eu diria que esta parada ainda não está resolvida, é um espectro que ronda a participação cidadã. Mas o que mais chama atenção no fato político de junho de 2013 é uma certa paralisia das principais lideranças políticas nos Governos e nos Parlamentos. São emblemáticas as situações do Rio de Janeiro e de São Paulo. Chama a atenção a demora em “cair a ficha” da Presidência da República e de seu entorno de colaboradores mais próximos. As manifestações geraram perplexidades num primeiro momento e ações afoitas em seguida. Claro, alguma resposta o Governo Dilma deveria dar, pois ele também era atingido diretamente, assim como o Congresso em geral e praticamente todos os governadores e Assembleias Legislativas. Mas alguém lembra ainda das cinco (eram cinco?) propostas de Dilma? O que de real aconteceu após junho de 2013

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em termos de transporte, educação, saúde e segurança? O “Mais Médicos”, com todas as controvérsias, foi uma inovação. O que mais? Faltou, faltou, faltou muita coisa! No Congresso, rapidamente a situação foi apropriada por oportunistas para mostrar quem continua dando as cartas. O exemplo da liderança do PMDB é emblemática no caso, capaz de dobrar o governo. O governador do Rio, que nem podia aparecer nas ruas – aliás, nem candidato é, com medo de perder – ficou calado desde então. No contexto de quase paralisia institucional diante do que as ruas demandavam, algumas iniciativas até estranhas aparecerem. A tal tentativa no Congresso de legislar sobre manifestações de cidadania é uma. Outra é a forte reação ao decreto da Presidente Dilma formalizando a Participação Social nas políticas, que já é uma prática, pouco efetiva por sinal, pois nada passa de prática de consulta, sem deliberação. Mas o Congresso e a mídia das tais “10 famílias” viu nisto uma espécie de “chavização” da democracia brasileira. Um absurdo! Participar é, por definição, um direito de cidadania. Afinal, a representação é derivada, eleita pela cidadania, e não dona da política. O debate em torno ao Decreto Lei da Participação Social vale pelo que revela do extremo conservadorismo reinante, uma espécie de reação após o susto que a cidadania na rua pregou nas elites. Voltou-se a reivindicar o papel predominante do Congresso na democracia, esquecendo que o único e legítimo poder instituinte e constituinte, em última análise, é da cidadania. Os integrantes do Congresso são derivados, com mandatos temporários de delegados e representantes eleitos, que como cidadãs e cidadãos podemos revogar. Ainda no plano um tanto institucional, já caminhando para o segundo campo de análise, vale a pena lembrar aqui o susto das próprias lideranças de movimentos e organizações estabelecidas. Na brecha aberta pelas mobilizações dos que pareciam sem identidade, voz e capacidade de participar, rapidamente clássicas organizações e movimentos tentaram recuperar o terreno, organizando seus atos, sem muito impacto por sinal. Uma iniciativa ainda incerta tem a ver com a reforma política. São duas iniciativas, mas articuladas: a do Plebiscito e da Lei de Iniciativa Popular. Em termos de coalizão institucional, as duas congregam o que existe de mais representativo na sociedade civil. Em termos de resgatar o clima das mobilizações de junho de 2013, especialmente o questionamento claro da representação política como acontece, até valem como tentativa de impulsionar processos de mudança. Mas, um aspecto chave para a cidadania, falta empolgação. As propostas não são capazes de tocar o imaginário coletivo. Falta energia cidadã nas iniciativas por causa disto. Ainda no campo mais institucionalizada da sociedade civil, merecem destaque as greves ocorridas. Lembro a greve dos garis no Carnaval, a dos trabalhadores das empreiteiras no

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COMPERJ e os rodoviários, todas no Rio. Creio que algo semelhante ocorreu e ocorre em outras partes do Brasil. As três greves do Rio foram feitas contra a própria decisão das lideranças sindicais, que negociaram acordos. A base trabalhadora negou os acordos, fez a greve e deslegitimou as lideranças. Temos que admitir que algo novo está ocorrendo. Já antes, nas grandes obras hidrelétricas da Amazônia, havia ocorrido o mesmo. Poderia haver algo mais revelador de impasses na participação cidadã do que este desencontro no movimento sindical, o mais clássico nos anos recentes? Mas olhando de mais perto o que se passou e passa no campo em que floresceram as mobilizações de junho de 2013, importa, em primeiro lugar, destacar a reconquista do direito de se manifestar. Para muitos, uma verdadeira descoberta, dado que isto sempre esteve longe, vindo de estratos subalternos sem identidade e voz no passado, condenados ao favor de políticos e políticas públicas. Sentir-se cidadão ou cidadã é, em si mesmo, uma revolução cultural. É certo que muitos subalternos sempre se manifestaram. Mas o contexto gerado deu maior visibilidade aos “sem teto”, aos grupos das periferias metropolitanas sempre tratadas como marginais e nunca como cidadãos, aos indígenas de diferentes constados, aos atingidos pela exploração mineral, aos pescadores e tantos outros. Nunca o Brasil experimentou tal proliferação de manifestações locais e com tal intensidade. Mas ações fragmentadas locais, por mais legítimas e fortes que sejam, não criam uma onda democratizadora na sociedade. Para isto falta o sonho comum do diverso, o cimento que une as vontades e capacidades de todas e todos e que gestam a ação coletiva. É aí, ao meu ver, que reside a principal questão: o que pode juntar este universo fragmentado, cada grupo com a sua legítima forma de manifestação e demanda? Precisamos deixar as nossas ideias preconcebidas e mergulhar mais na realidade, na riqueza cidadã que ela contém. Eu diria que o momento é mais de abertura de “trincheiras cidadãs”, de verdadeira resistência local, do que de ação de tomada das ruas e instituições. O sonho e o imaginário mobilizador, bem como as formas, precisam ser gestados. A verdade é que estamos diante de enormes fissuras no seio da sociedade civil, com predominância da fragmentação e das divergências políticas entre sujeitos coletivos diversos, no seio da sociedade civil.

Um elemento adicional que explica uma certa paralisia das manifestações tem a ver com o oportunismo dos “black blocs”, que aproveitam o espaço público gerado por quem se manifesta para impor sua agenda anarquista pouco discutida e aceita. Longe de mim questionar a

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legitimidade cidadã de ser “black blocs”, mesmo divergindo de seus métodos. Mas, na prática, eles contribuíram para o esvaziamento das mobilizações. Como resultado, vimos o que se passou na Copa do Mundo. Ocorreram muitas manifestações... minúsculas, sem impacto. Claro que voluntarismo é necessário, mas insuficiente para que haja adesões a uma manifestação. A surpresa de 2013, na Copa das Confederações, não foi uma variável agora. Predominou certa insensibilidade ao que o próprio futebol significa para a cultura e identidade brasileira, a maioria da cidadania, enfim. Com isto, as manifestações foram incapazes de angariar solidariedade cidadã. Até correspondentes estrangeiros, loucos por ver a tal rebeldia civil no Brasil, mudaram de foco e foram destacar a nossa criatividade, as nossas conquistas e a nossa capacidade de ser alegres, até na adversidade. O momento foi de voltar a aparecer para o mundo como uma nação emergente de esperança e não de desencontro. Saberemos lidar com isto? Um último aspecto que gostaria de destacar é a questão das redes sociais que a novas tecnologias de informação e comunicação permitem e que foram fundamentais em 2013. Mas elas não são per se aglutinadoras, capazes de gerar pensamento estratégico em termos políticos. Funcionaram aqui e na Primavera Árabe, mas havia outras condições. Agora, na Copa no Brasil, não voltaram a ter o papel de 2013. Vejamos mais de perto a questão política de tais meios para a participação cidadã. O que é essencial para a participação cidadã em tais mídias é o fato que delas estenderem e somarem relacionamentos sociais de forma horizontal. Mas o seu limite é o fato que não criam nodos de adensamento de pensamento estratégico, não geram novas lideranças. Isto por definição, pois são poderosos meios em difusão, com radical potencial de democratização da informação, mas não de busca do comum agregador, da agenda política comum. As ideias são diversas e múltiplas, podem arrastam multidões, mas não tem caráter mobilizador político. Esta é a sua força e o seu limite. Afirmo isto das novas tecnologias para destacar um elemento que exige aprofundada discussão no seio da cidadania e das organizações sociais. Trata-se da representação. É falso pensar que a representação é só exercida pelo prefeito, vereador, governador, presidente, deputados. Um líder é uma forma de representação. Um porta-voz é representante de algum modo. Um negociador em nome do movimento, pode ser muito inteligente e hábil, mas sua legitimidade é a representação. Enfim, toda a ação coletiva gera representação, pois não pode se restringir ao pequeno grupo local para ter impacto. Nas redes sociais talvez isto seja impossível, mas aí elas não passam de redes de troca de ideias, sem adensamento estratégico. Isto precisa ser discutido mais profundamente,

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pois seu potencial político é claro. Mas como ser o mais horizontal possível sem perder eficácia política? Velho dilema democrático renovado pelas novas tecnologias de comunicação. Finalizo esta incursão na conjuntura da participação cidadã com a conjuntura eleitoral. O voto, queiramos ou não, numa sociedade de 200 milhões de habitantes como a nossa, é e vai continuar sendo poderosa forma de participação da cidadania. Mas como votar com tanto mal estar e incertezas? Aí é que o voto se torna ainda mais importante. Ninguém, nesta conjuntura, está sabendo exatamente que direção tomar. Todos estamos num impasse. Porém, só nós podemos fazer a melhor opção possível no momento histórico. A pior opção é dar uma de avestruz e esconder a cabeça. Mais do que nunca, precisamos participar ativamente. Apostar na universalização de direitos de cidadania, o que mais claramente emergiu de junho de 2013, pode ser um até de fé no poder de nossa participação moldar rumos para o país. Bem, as “trincheiras cidadãs” locais são base real. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, como nos diz a canção, hino da redemocratização, no qual precisamos nos inspirar.

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QUESTÃO DO EXTRATIVISMO HOJE (BETINHO E OS PORQUÊS DA MINERAÇÃO) Por José Tanajura Carvalho Professor de ciências sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

O que mais impressiona na grandeza dessa cartilha de Betinho, Como se faz análise de conjuntura (1984), é a objetividade e concisão, porquanto ali ele mapeia os porquês necessários à tomada de decisões sobre a totalidade social, econômica e política, e o compõe no sucedimento de um caminho ao real. Nas legendas desse mapa, Betinho faz constar indicações de encruzilhadas enganosas armadas nas condições de dominância do capital sobre o trabalho. Alerta quanto aos fantasmas da resignação e do medo como formas de controle ideológico das massas populares. Ressalta os sonoros cânticos da mídia sob os quais se escamoteiam os fatos nas suas verdadeiras vertentes. Chama a atenção sobre o poder do Estado para fazer leis e com elas justificar suas ações de organizar e desorganizar a sociedade civil segundo os interesses do capital. Porém, nos entremeios de tantos percalços, Betinho recupera a importância das práticas diuturnas do sujeito social, enquanto individuo e como classe social, na percepção das contradições do sistema vigente e busca de formas participativas de transformação para a democracia plena. Contudo, os movimentos de contestação não conseguem, na maioria das vezes, apontar proposições claras – não são raras expressões tais como: ...estamos contra o que está ai! - pelo fato simplesmente de não terem, até então, muito que dizerem aonde quer chegar, com demonstração de desconhecer exatamente onde estão em termos de objetividade política. Decorre, à vista disso, sujeitarem-se a interesses que lhes são estranhos, e terminarem na descrença absoluta ou em desvios por apelos subjacentes a proposições autoritárias, fascistas, xenofóbicas, racistas e sexistas (MARTINS, 1998). Escrito no limiar de uma ordem marcante na economia mundial, a globalização — coisa de trinta anos — a proposta de Betinho não está apenas atual, mas é, sobretudo, oportuno como um instrumento de o governo federal fazer valer a Política Nacional de Participação Social, celebrada no Decreto 8.243, uma decorrência das manifestações de rua em junho de 2013. Nessa cartilha, os movimentos populares contam com reflexões capazes de subsidiarem a interpretação crítica de informações sobre o país em geral a partir de avaliações e específicas e localizadas, ou seja, conjunturais, que, afinal, formam o devir histórico nacional.

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A reestruturação da economia brasileira, guarnecida pelo movimento da globalização, desarticula, por exemplo, os espaços nacionais, então substanciados no construto social, econômico e político, para contestá-los com jazimentos ou estâncias minerais na formação de uma territorialidade passiva (SANTOS, 1982; DEMATTEIS, 2008), providencial à flexão e exploração de recursos naturais, institucional e humano do território, em escalas e intensidades jamais vistas. De fato, a mineração globalizada reproduz entropias ao acionar formas específicas na exploração de jazimentos minerais, compreendidas pela ativação de lavra extensivamente não apenas a uma mina, mas simultaneamente a diversas outras, sob o regime de frenética intensificação do tempo e na integração absoluta de multi espaços construídos de per si com um mesmo estofo urbano e rural. Quer dizer, na produção flexível, a mineração se realiza na exploração absoluta e relativa de jazimentos minerais, como espaços construídos geoeconomicamente e exclusivos ao uso da produção, na forma de elevar e expropriar a massa total de excedente com a maior brevidade de tempo possível do ciclo dinheiro, mercadoria, dinheiro valorizado (D — M — D’). Com o anteparo da desregulação dos fluxos internacionais de capital, cada espaço de jazimento mineral é regido por interesses de apenas um capital individual na determinação de favorecer o investimento exclusivamente rentista. A mineração chega, então, a ser objeto de investimentos em magnitudes surpreendentes, atraídos por uma taxa de lucro superior à média dos demais setores da economia. Ainda que o seja com ações de toda ordem: no acirramento à vulnerabilidade das condições sociais e pauperização das pessoas, invalidação das instituições, destruição do meio-ambiente e aquíferos, registros históricos e culturais. A mineração atual, portanto, apresenta-se diferentemente da mineração de enclave. Em Furtado (1971), os espaços urbanos, na mineração de enclave, constam como sustentação das atividades de uma grande empresa monopolista, que, em muitos casos, complementa e mantém a estrutura do espaço urbano local com a organização de elementos necessários ao seu funcionamento, na maioria das vezes, ao assumir os encargos com serviços distributivos, sociais e pessoais. Essa forma de atuação, que poderá ser vista como assíncrona ao capitalismo, de fato, origina uma relação paternalista entre a empresa monopolista e a sociedade local, o suficiente para isolar o espaço urbano local dos demais espaços regionais e, não raras vezes, do próprio país, em condições propícias à expropriação do excedente nas condições históricas nas quais se desenvolve o imperialismo clássico. Assim, a empresa mineradora amplia a relação das forças produtivas, na medida em que permite subjazer o espaço construído em tudo que ele representa — populações, cidades, instituições, governo, cultura e recursos naturais — nas relações de produção voltadas para os interesses do

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capital rentista. Isto é, a indústria de mineração não se contenta tão somente com a magnitude da mais-valia gerada pela força de trabalho empregada no processo direto de produção, mas volta-se à extensão de toda e qualquer forma material e imaterial, com equivalência monetária, reproduzida no espaço construído para uso da produção. Desta forma é possível a indústria de mineração ter o domínio das forças produtivas com correspondência decisiva na e da sociedade, como forma de retirar qualquer vínculo de envolvimento que não o estritamente objetivo aos interesses do capital rentista. Como se vê, a reificação da relação mineração-sociedade local não se manifesta mais nos termos do paternalismo prescrito pela avidez imperialista, representado na mineração de enclave, mas se move e se concretiza no fetiche do desenvolvimentismo, no qual se conjectura a contribuição de benefícios da indústria de mineração em termos da sustentação do emprego, aumento da renda local, e de contribuição para o equilíbrio macroeconômico do país, através do pagamento de impostos e da exportação mineral em volumes e valores crescentes. Em troca, a mineração tem acrescida a acumulação com uma mais-valia extra, compreendida pela mais-valia social gerada pela capacidade da força de trabalho no conjunto da sociedade e de benefícios garantidos pelo Estado. De fato, o que se verifica é a alteração mesma do binômio das relações de produção e forças produtivas, inaugurando uma nova natureza de interferência na definição dos ritmos de acumulação (LEMOS, 1988). A expropriação de excedentes assume, pois, a expressão do mais-valor não desembolsado ao trabalhador com a adição de superlucro (MANDEL, 1982), bem como de excedente-valor (CARCANHOLO, sd), como apropriação de lucro adicional, obtido através de transferências provenientes de articulações que se enraízam por todo o tecido do espaço de jazimento mineral e instituições das esferas públicas. O apontamento destas formas de atuação da mineração resulta uma das confirmações de essa ser uma atividade, no gérmen, monopolista. Se anteriormente a mineração necessita do domínio paternalista do espaço — de certa forma apregoando a antinomia, na qual seria o lado bom das coisas — e, assim confirma o seu propósito de reprodução do capital, na atualidade, afirma-se em sobrevalorizar o excedente a ser expropriado com comportamento monopolista, desprendido de qualquer nuance de humanitarismo. Nega, por exemplo, a instalação de empresas, qualquer que seja a atividade, nas suas áreas de influência com propósito de evitar concorrências e ameaças às conveniências de reprodução do capital individual ali investido. Para tanto, procura manter sob o seu domínio o meio-ambiente, dando-lhe a destinação que melhor compraz aos seus interesses capitalísticos; incentiva a persistência de extenso exército industrial de reserva, interfere comumente na política local — diga-se, reduzindo-a, segundo a compreensão gramsciana, à dimensão da pequena política — com financiamento de políticos e partidos (OLIVEIRA, 2013), promove projetos ditos sociais, porém de conotações meramente de marketing político-

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institucional. E, assim, exerce o monopólio das decisões sobre o espaço geoeconomicamente construído, após buscar e, não raras vezes conseguir, subordinar o Estado, nas diferentes esferas, aos seus projetos exclusivos. Haja vista o projeto de lei do Marco Regulatório da Mineração, em tramitação no Congresso Nacional é a formalização de favorecimento à mineração monopolista e ao seu desabrido mando em extensas áreas do território nacional sem medir limites a ameaças ao pacto federativo e à soberania nacional. Decerto, os movimentos da mineração de enclave e de objetivo rentista encerram disposições orgânicas com imbricações que confirmam o continuum de dependência do Brasil em relação aos países hegemônicos. Em ambos, perduram a resignação e o medo. Então como vencer tal entropia provocada pela mineração? Certamente não será com o uso de instrumental positivista da economia do mainstream. Neste caso o Betinho tem a resposta já na primeira página da sua cartilha: No volume de informações que é veiculado todos os dias é necessário identificar os ingredientes, os atores, os interesses em jogo. Fazer isso é fazer análise de conjuntura. Referências bibliográfica: CARCANHOLO, Reinaldo. O TRABALHO PRODUTIVO NA TEORIA MARXISTA. UFES, Vitória, SD DEMATTEIS, Giuseppe. Sistema Local Territorial (SLOT): um instrumento para representar, ler e transformar o território. In ALVES, Adilson Francelino; CARRIJO, Beatriz Rodrigues; CANDIOTTO, Luciano Z. P. (Orgs). Desenvolvimento Territorial e Agroecologia. São Paulo: Expressão Popular, 2008 FURTADO, Celso.Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico.Abril Cultural, São Paulo, 1983 LEMOS, Maurício Borges. Espaço e capital: um estudo sobre a dinâmica centro x periferia. Tese Doutorado, UNICAMP, 1988 MANDEL, Ernest. O Capitalismo Tardio. Abril Cultural, São Paulo, 1982 MARTINS, José de Souza; O senso comum e a vida cotidiana, Tempo Social; Rev. Sociol. USP, 10(1): 1-8, maio; S. Paulo: 1998.

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OLIVEIRA, Clarissa Reis. Quem é quem nas discussões do novo código da mineração. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase. Rio de Janeiro, 2013 SANTOS, Milton. Sociedade e Espaço: Formação Espacial como Teoria e como Método, in Espaço e sociedade: Ensaios. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

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QUESTÃO POLÍTICO-RELIGIOSA HOJE Por Luiz Alberto Gómez de Souza Sociólogo

Temos duas tendências político-religiosas opostas. Desde o final dos anos 60, desenvolveu-se na América Latina a Teologia da Libertação. Ela preparou a declaração dos bispos católicos no encontro continental de Puebla, em 1979, que proclamou “a opção preferencial pelos pobres”. Trata-se de um compromisso social com base nos princípios evangélicos, que repercute no político e que prega o compromisso dos cristãos com a justiça social e as grandes causas da pessoa humana, da sociedade e até do planeta. Mas não se confunde com uma tendência política determinada. Não apresenta candidatos próprios, mas faz um chamado ao discernimento e a uma opção livre e madura dos cristãos. Está na linha do bispo de Roma Francisco, que incita os católicos a sair de seu gueto e a enfrentar os desafios da sociedade, não para defender uma doutrina, mas basicamente para exercer a caridade e a misericórdia. No caso do Brasil, ela se expressa em pastorais sociais cristãs e nas Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs), onde se encontram membros de vários partidos. No dizer do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, ela quer ser “uma palavra coerente com uma prática”. Prática de compromisso com os injustiçados e oprimidos. Nos últimos anos, o Movimento Fé e Política organizou encontros com milhares de participantes. O IX Encontro se realizou em Brasília, em novembro de 2013. Numa Carta de princípios, o movimento se declarou “ecumênico, não confessional e não partidário”. Mas tem algumas orientações básicas: “está aberto a todas as pessoas que consideram a política dimensão fundamental da vivência de sua fé, o horizonte de sua utopia política”. Quer ser “um serviço de formação e informação (para) questões de política, cultura, ecologia, ética e espiritualidade”. Busca “a construção de uma sociedade alternativa ao capitalismo neoliberal” e quer promover “uma cidadania ativa”. Não é um movimento neutro, tem princípios claros, mas não participa do processo eleitoral com candidatos. Do outro lado, em oposição, temos no parlamento a constituição de uma bancada evangélica, que na atual legislatura começou com 73 deputados e 4 senadores, de certa maneira a terceira bancada, depois do PMDB e do PT. Alguns de seus princípios: contra o aborto, a eutanásia, o casamento homossexual. Consta que 23 de seus membros respondem a processos no Supremo Tribunal Federal. O “lobby” dessa bancada, à qual de unem em certos momentos católicos conservadores, elegeu o pastor Marco Feliciano (PSC-SP) como presidente da Comissão de

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Direitos Humanos. Ele quis transformar a mesma numa plataforma de sua orientação. Feliciano chegou a declarar que os africanos são vítimas de uma maldição que vem dos tempos bíblicos! Outro membro, Eduardo Cunha (RJ), líder do PMDB na Câmara, negocia abertamente cargos e liberação de recursos. Está sendo investigado por sonegação de impostos. Essa bancada tem princípios rígidos, mas uma ética bastante fluida. E nas próximas eleições, se prepara para disputar cargos, com um candidato a presidente, o pastor Everaldo Pereira, do Partido Social Cristão (PSC) e dois a governadores do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho (PR) e Marcelo Crivella (PRB). Seus similares nos Estados Unidos são grupos fundamentalistas conservadores. Vale lembrar um incidente mais atrás. Em 2010, na eleição presidencial, foi necessário um segundo turno, quando as forças da oposição vieram com toda a artilharia. O bispo católico de Guarulhos escreveu uma declaração, afirmando que Dilma Rousseff tinha se posicionado favorável ao aborto. Publicou indevidamente, com o logotipo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e em nome do regional episcopal de São Paulo, do qual era presidente e teve apenas o apoio de outro bispo da região. O fato é que essa instância da CNBB não discutira o tema e o bispo foi logo desautorizado por outro membro do regional. Mas a carta, apócrifa como manifestação coletiva, foi sendo distribuída com milhares de cópias. Nesses dias, alguns bispos brasileiros encontraram Bento XVI. Alguém, da cúria ou da nunciatura brasileira, introduziu uma frase na fala do papa, em que ele alertava para o perigo de votar em pessoas que eram contra o direito à vida. Também alguns pastores pentecostais se manifestaram contra Dilma (outros deram seu apoio). Na verdade, nenhum desses fatos iria incidir seriamente na eleição. Por tudo isso, entretanto, foi preparado um Manifesto de cristãos e cristãs evangélico/as e católico/as em favor da vida e da vida em abundância, apoiando a candidatura de Dilma. Lemos no texto: “Somos homens e mulheres, ministros, ministras, agentes de pastoral, teólogos/as, padres, pastores e pastoras, intelectuais e militantes sociais, membros de diferentes Igrejas cristãs, movidos/as pela fidelidade à verdade, vimos a público declarar: Nestes dias, circulam pela internet, pela imprensa e dentro de algumas de nossas igrejas, manifestações de líderes cristãos que, em nome da fé, pedem ao povo que não vote em Dilma Rousseff sob o pretexto de que ela seria favorável ao aborto, ao casamento gay e a outras medidas tidas como ‘contrárias à moral’... A própria candidata negou a veracidade destas afirmações e se reuniu com lideranças das Igrejas... Apesar disso, estes boatos e mentiras continuam sendo espalhados. Diante destas posturas autoritárias e mentirosas, disfarçadas sob o uso da boa moral e da fé, ... não aceitamos que se use da fé para condenar alguma candidatura. Por isso, fazemos esta declaração como cristãos, ligando nossa fé à vida concreta, a partir de uma análise social e política da realidade e não apenas por motivos religiosos ou doutrinais. Em nome do nosso

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compromisso com o povo brasileiro, declaramos publicamente o nosso voto em Dilma Rousseff ... defender a vida é oferecer condições de saúde, educação, moradia, terra, trabalho, lazer, cultura e dignidade para todas as pessoas, particularmente as que mais precisam” . Seguiam mais de 650 assinaturas, oito bispos, entre os quais, Tomás Balduíno, Pedro Casaldáliga, Demétrio Valentini, sacerdotes, pastores e pastoras, leigos e leigas e até um monge budista aderiu. Esse manifesto foi lido por mim, acompanhado por Jether Ramalho, em 10 de outubro, no Teatro Casa Grande, juntamente com um manifesto de artistas e intelectuais pró Dilma, com cinco mil assinaturas. Temos, nestes dias de julho de 2014, um estranho debate em torno ao Cristo do Corcovado. A arquidiocese católica do Rio de Janeiro vetou um episódio, “Inútil paisagem”, do cineasta José Padilha, parte de um filme de vários autores, “Rio eu te amo”. Nele, o ator Wagner Moura dialoga com a estátua. Pelo que se sabe, ali não havia um atentado grave contra um credo religioso particular. A Igreja Católica já tinha censurado, nos anos oitenta, o filme “Je vous salue Marie”, de Jean-Luc Godard, que foi proibido em vários países. Pensemos nos Versos Satânicos de Salman Rushdie, que provocaram ataques violentos de grupos fundamentalistas islâmicos, que condenaram o autor à morte, à distância. Como disse o cineasta Miguel Faria Jr.: “O Cristo Redentor é um símbolo religioso associado à imagem da cidade. A cúria tem o direito de achar o que quiser, mas vivemos num país laico” (O Globo,9.7.2014). Esse é o tema, uma sociedade laica. Fim dos tempos de cristandade. A coordenadora jurídica da arquidiocese declarou: “a arquidiocese ficou detentora dos direitos patrimoniais de autor sobre o monumento, que não só é um símbolo do Rio e do Brasil, mas é um santuário que comporta uma capela” (idem). Esses chamados “direitos patrimoniais” fazem parte de um momento que tinha alguma dificuldade de aceitar a laicidade da cidade e de seus monumentos. O Cristo do Corcovado foi terminado em 1931, num tempo de compromisso entre dois poderes, um civil, o presidente provisório Getúlio Vargas e um religioso, o poderoso cardeal Sebastião Leme. Estávamos num país em que a separação desses poderes nem sempre era clara, com um presidente, não crente, mas recém-empossado, frente à força da Igreja Católica daquele momento. Esta, por exemplo, através da Liga Eleitoral Católica (LEC), iria intervir logo na política e proibir os católicos de votar em candidatos que fossem favoráveis ao divórcio ou contra o ensino religioso nas escolas. Mais adiante, o divórcio foi aprovado, apesar das fortes campanhas em contra, lideradas pelo então deputado monsenhor Arruda Câmara. Hoje o problema passou a ser a descriminalização ou a legalização do aborto, conseguidas em amplas situações em países de tradição católica, como a Itália ou Portugal. As leis e dispositivos legais são para todos e não

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deveriam ser feitos em função de um setor religioso determinado. Católicos que defendem a censura ao filme afirmam que não se pode ofender o sentimento católico brasileiro, sem saber em concreto qual seria o violento desacato dele à parte católica da sociedade. Não esqueçamos, também, que a figura de Jesus não é um patrimônio exclusivo da Igreja Católica, mas de todas as crenças cristãs que o invocam. Além disso, mais do que tudo, o monumento do Corcovado é um bem público, que foi declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Como afirmaram muitos durante essa discussão, é um ícone do Rio e do Brasil e não propriedade privada de uma religião particular. Já não estamos, repito, nos tempos da cristandade ocidental. Para Cora Rónai, “o Cristo é um dos principais símbolos do Rio, transcende a religião e, como tal, pertence a todos nós, à cidade inteira, sem qualquer distinção de credo” ( O Globo, 10/7/2014). E isso leva a articulista a considerar a Igreja Católica uma entidade retrógada, dando uma ideia negativa da mesma, que muitos gostaríamos de não aceitar. Esse incidente passa a imagem da Igreja com um sabor medieval, longe do pluralismo democrático e de um catolicismo pós Vaticano II. Em um livro que escrevi, “Uma Fé exigente, uma política realista” (EDUCAM, 2008), lembro que as autonomias das diversas esferas da realidade devem ser respeitadas, articulado-as, é claro, mas não as confundindo. O fundamentalismo – integrismo em jargão cristão – é um salto direto e no vazio entre uma fé e uma opção política ou técnica. Indico: “respeitemos as distinções de espaços, grande aquisição da modernidade” (p. 16), que rompe com projetos de cristandade ou de novas cristandades. No mundo islâmico vemos surgir, em direção oposta, projetos políticos religiosos com a aplicação direta do Alcorão, mais concretamente, de uma certa leitura dele. Um grande avanço no mundo de hoje é, porém, a norma da laicidade da sociedade e do estado, não feudatários de uma opção religiosa particular. Quando a Igreja Católica, no concílio Vaticano II, em 1965, aprovou o princípio da liberdade religiosa (Declaração Dignitatis humanae), não quis que fosse aplicado apenas onde os cristãos são minoria (o que seria uma posição oportunista), mas em qualquer sociedade.

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JUVENTUDE E POLÍTICA: LIMITES E ALCANCES DAS 'JORNADAS DE JUNHO DE 2013'. NOTAS PARA UMA ANÁLISE DE CONJUNTURA Por Regina Novaes Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais -UFRJ

“No volume das informações que é veiculado todos os dias nos jornais é necessário identificar os ingredientes, os atores, os interesses em jogo. Fazer isto é fazer análise de conjuntura”. As frases acima foram retiradas de um livro intitulado Como se faz análise de Conjuntura. Foi escrito por Herberto José de Souza - o Betinho- e publicado em 1984 pela Editora Vozes. Lá se vão trinta anos. De lá para cá foram várias edições e o texto mantém vigor. Neste pequeno artigo me proponho a iniciar um exercício de “análise de conjuntura” com o objetivo de refletir sobre o alcance e os limites dos movimentos e redes juvenis que hoje levam suas demandas ao espaço público. Para tanto, vou me guiar pelas categorias para a análise propostas por Betinho. Desta maneira, faço minha homenagem ao autor e, lançando mão dos ensinamentos do livro, espero contribuir para aumentar a compreensão das manifestações de junho de2013. 1. O acontecimento Lembrando a brilhante análise de conjuntura de Karl Marx no “18 Brumário”, Betinho (1984) considera um “acontecimento” aquele que adquire um sentido especial para um país, uma classe social, um grupo social ou uma pessoa”. Os acontecimentos indicam “sentidos” e revelam percepções. Para compreender as manifestações de junho de 2013, cuja interpretação de sentidos ainda está em disputa, vamos iniciar lembrando algumas manchetes de jornais: “TENSÃO URBANA. Atos do Movimento Passe Livre, que provocam quebra-quebras no Rio e em S.P., serão repetidos hoje (O globo, 13 de junho de 2013);O BRASIL NAS RUAS. Convocados nas redes sociais, protestos mobilizam pelo menos 240 mil pessoas em 11 capitais” (O Globo, 18 de junho de2013); Manifestações programadas para a manhã em 71 municípios. Planalto monitora movimento, que

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chega também a cidades médias” (O Globo, 19.6.2013);SEM CONTROLE. Em noite de novos conflitos , depredações e saques, Itamaraty e prefeitura do Rio de Janeiro são atacados. Partidos políticos tentam entrar nas manifestações e são expulsos”. (O Globo, 21 de junho de 2013). O “preço do transporte” se apresentou como a primeira causa. E com ela vieram à tona as contradições de um modelo de “transporte coletivo”,realizado através de concessões públicas com exploração privada,caracterizado pela sofrível qualidade. O transporte, entretanto, funcionou como um forte disparador de demandas que, em um movimento de espiral, foi puxando a educação, a saúde, a segurança. Além disto, a corrupção e o uso indevido do dinheiro público evocaram os gastos grandes eventos, em particular com a Copa do Mundo que viria a acontecerem 2014… No decorrer do processo,os nomes de Feliciano e Amarildo se incorporaram às palavras de ordem. “Fora Feliciano” e “Feliciano não me representa” remetiam às declarações homofóbicas e racistas do deputado evangélico, que - naquele momento - presidia a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Federal. Já Amarildo se tornou um símbolo de luta pela contra a violência policial. Com a pergunta “onde está Amarildo?” – repetida nas ruas e nas redes - se criticava os métodos violentos não só da polícia da Rocinha (favelado Rio de Janeiro) e frequentes em outras tantas periferias brasileiras. Também na área de segurança, a conjuntura agregou ainda mais uma causa:a rejeição da PEC 37 que daria o poder exclusivo de investigação criminal para as polícias federal e civis, retirando esta atribuição de alguns órgãos e, sobretudo, do Ministério Público (MP). 2. Os Atores em cena “O ator é alguém que representa, que encarna um papel dentro de um enredo, de uma trama de relações (...)” (Betinho, 1984). 2.1 O Movimento pelo Passe Livre (MPL) pode ser considerado o ator principal. O MPL, já fez 10 de anos. O marco inicial foi a “Revolta do BUZU” em Salvador, 2003, quando jovens do ensino médio foram às ruas para contestar o preço dos transportes. Hoje o MPL se define como “movimento social de transporte autônomo, horizontal e apartidário, cujos coletivos locais, federados, não se submetem a qualquer organização central. Consideram que “a organização descentralizada da luta é um ensaio para outra organização do transporte, da cidade e de toda a sociedade”. A independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc... (site/consulta 20 de maio de 2013). Entre suas formas de luta destacam-se: divulgação através de mídia independente, discussões nas

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escolas e aulas públicas; debates em comitês locais que se organizam em torno de Projetos de Lei) assembleias horizontais; como ação direta experimentam os catracaços (definidos como a implementação prática da Tarifa Zero por meio da abertura das portas traseiras do ônibus ou pulando as catracas), ocupação de Terminais de ônibus; bloqueios de vias urbanas. 2.2 Quem atendeu a convocação do MPL? Reportagens de jornais e das mídias alternativas identificaram entre os participantes: estudantes universitários, alunos do ensino médio, jovens de redes de mídia independente, de pastorais católicas, membros da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), grupos feministas, coletivos culturais, jovens ligados ao Movimento Mobilidade Urbana. No Rio de Janeiro também chamou a atenção a presença de jovens das favelas. Em São Paulo destacaram-se anarquistas e punks. Também nas imagens veiculadas pela TV e pelas novas mídias destacavam-se máscaras do personagem Anonymous, referida ao V de Vingança, filme considerado como um marco do anarquismo. Em certos momentos via-se, também,algumas bandeiras do PSOL, PCO, PSTU e PT que foram contestadas por grupos que se declararam “anti-partidários’. A partir de determinado momento, estiveram presentes jovens representantes da UNE e UBES. 2.3 Os blackbloc, (um ator ou uma tática?) As ações de blackblocs, contra os “símbolos do capitalismo”, já ocorreram em diferentes lugares do mundo. Por vezes classificadas como neoanarquistas, estas táticas já possuem inúmeras versões locais. Elas visam “causar danos materiais às instituições opressivas”. Livremente organizados por grupos de afinidades, de suas ações também participam indivíduos independentes que se dispersam ao fim das manifestações. No Brasil existem pequenos coletivos que adotam estas práticas, bem como indivíduos independentes que “tornaram-se blackbloc” apenas em uma ou mais manifestações. 2.4 Os estreantes. Reportagens de jornais assinalaram a presença dos “virgens em protestos”. Embora não tenhamos dados quantitativos, há várias indicações de que as Jornadas contaram com um significativo contingente de jovens que nunca tinham participado de atos políticos. Estes estreantes, via de regra, confirmaram presença pela internet. Jovens estudantes reuniam pequenos grupos, em casa escolheram suas “palavras de ordem” e confeccionavam seus cartazes com cartolina e pilots. Entre os estreantes estiveram também trabalhadores que saiam do trabalho e engrossavam os protestos. Assim jovens (sem partidos e sem movimentos) encontraram, naquela conjuntura, suas diferentes formas de participação.

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2.5 As Redes Virtuais. Noticiou-se que no dia 17 de junho, 131246 pessoas confirmaram participação pelo facebook. Com efeito, a internet pode ser considerada “um ator” fundamental. Seu papel foi decisivo não só na convocação, mas também na transmissões realizadas através das redes virtuais. Imagens - transmitidas ao vivo - revelaram de maneira contundente a violência policial e atestaram seu despreparo para garantir a segurança pública. Além disto, nestes acontecimentos, a disputa ideológica se deu também em ambiente virtual. Atuação de clones mudavam palavras de ordem, divulgavam uma pauta “de direita”, convocaram para uma manifestação para um “Brasil melhor”, usaram as redes para acirrar as críticas aos partidos e ao governo federal. O que obrigou o Movimento Passe Livre (MPL) a fazer modificações em seu planejamento imediato e a explicitar publicamente as diferenças entre se afirmar “apartidário” e ser “antipartidário”. 2.6 A polícia. As manifestações talvez não tivessem o mesmo nível de adesão sem as imagens da violência policial. Ao vivo e através de vídeos tais imagens circularam se contrapondo ao que era dito e mostrado pela grande mídia. Por isto podemos dizer que a violência policial funcionou como um fator altamente motivador para o espraiamento das manifestações. Naquela conjuntura, pesaram também as experiências anteriores dos jovens brasileiros com a polícia. Como aparece nas pesquisas qualitativas, a polícia “achaca” jovens de classe media, exigindo propinas, bem como humilha e agride fisicamente jovens moradores de áreas pobres e criminalizadas. 3. Os Cenários (o desenrolar do conflito) As ações da trama social e politica se desenvolvem em determinados espaços que podem ser considerados como cenários. (...) O cenário de um conflito pode se deslocar de acordo com o desenvolvimento da luta: passar das ruas e praças para o parlamento, daí para os gabinetes ministeriais e daí para os bastidores...”. (Betinho, 1984) 3.1 Nas ruas. No computo geral, falou-se que 2 milhões foram as ruas em junho de 2013... De fato, as ruas de muitas cidades brasileiras foram os principais cenários desta trama social. Como já foi dito, tudo começou com manifestações convocadas pela internet, pelo Movimento Passe Livre (MPL) para protestar contra o valor das tarifas do transporte em São Paulo. A partir daí vários grupos pelo país organizam protestos que acabam em confronto. Nas ruas, dias marcantes. O dia13 de junho – quinta feira - foi marcante: em São Paulo uma manifestação pacífica foi fortemente reprimida pela Tropa de choque da PM. O dia 20 foi considerado um ápice: foram contabilizadas 1.400.000 pessoas nas ruas de cidades brasileiras.

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Nos dias seguintes foram marcados por manifestações próximas aos Estádios de futebol onde ocorriam os jogos da Copa das Confederações. Neste cenário, nas ruas, ganharam notoriedade as ações blackblocs. Nas ruas, das periferias para a cidade política. O dia 25 de junho ficou marcado pela presença de cerca de 2 mil e quinhentas pessoas, na maioria jovens, saíram da Rocinha e do Vidigal (favelas cariocas) em passeata até a casa do governador Cabral. “Nós não precisamos de teleférico”; “Queremos saneamento básico”, “Precisamos de vagas em creches públicas”, “Fora a Resolução 013”39. Na mesma ocasião, jovens da periferia de São Paulo fizeram uma manifestação e o Movimento Passe Livre apoiam manifestações dos Sem Teto. 3.2 No ciber-espaço. Como já foi dito, transmissões ao vivo criaram uma nova relação de interação entre a rua e a casa. Quem estava transmitindo da rua, podia ver o que está pensando quem assistindo (e interferindo) em casa. Vários espaços ficaram conectados. Evidenciaram-se diferentes níveis e formas de participação. Além disto, as jornadas de junho mostram como redes de comunicação independentes podem pautar e questionar versões da grande mídia. A chamada Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) garantiu transmissões em fluxo de vídeo em tempo real, pela internet usando câmeras de celulares e uma unidade móvel montada em um carrinho de supermercado. 3.3 Nas Prefeituras, depois de 14 de junho, começam as revisões dos preços das passagens, cujos cortes foram proporcionadas por isenção das alíquotas da contribuição do PIS e do Cofins, publicada no Diário da União,bem como foi noticiado um repasse de verba do Ministério das Cidades para as prefeituras. Em 21de junho, o Globo publicou a seguinte manchete: “Quase 60 cidades já reduziram preço da tarifa”. 3.4 No Palácio do Planalto. Naqueles dias aconteceram várias reuniões com a presidenta Dilma. Ministros, governadores e prefeitos foram chamados para definir ações para melhorar os serviços públicos. Também aconteceu uma reunião com o Movimento Passe Livre. Em carta aberta o MPL declarou que essa reunião “foi arrancada pela força das ruas, que avançou sobre bombas, balas e prisões”. Posteriormente, o MPL declarou que embora reconhecessem uma

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Esta resolução - que proibia eventos culturais, esportivos e sociais sem autorização prévia do policiamento de determinadas áreas protestaram contra a violência nas ruas do Rio de Janeiro- foi posteriormente foi revogada.

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“abertura para o diálogo”, o governo não havia apresentado “nenhuma proposta concreta para mudar a realidade do transporte.” Quatro dias depois, Dilma recebeu 24 jovens Estavam presentes na reunião a Secretaria Nacional da Juventude, Severine Macedo e o presidente do Conjuve (Conselho Nacional da Juventude)40, Alexandre Melchior. Além deles estavam jovens que representavam Partidos, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira da Juventude (UBES), o Movimento Sem Terra (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), juventudes religiosas (Rede FALE e Pastoral da Juventude) Marcha Mundial de Mulheres, Marcha das Vadias do Distrito Federal, Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen). Também estiveram presentes outros coletivos como Levante Popular da Juventude, Fora do Eixo, Movimentos Enraizados, Fórum de Belo Horizonte, Agencia Solano Trindade. Muitos destes jovens tinham participado das manifestações e, na ocasião, fizeram intervenções sobre suas pautas e reivindicações. Aurea Carolina de Freitas, do Fórum das Juventudes de Belo Horizonte, publicou em seu blog, um belo relato do qual destaco um trecho: “Eu não falei, mas me senti bem representada na voz de Thiago (militante de cultura periférica de Capão Redondo, São Paulo), que trouxe sua própria narrativa e me emocionou ao lembrar a luta da juventude negra e pobre para escapar das estatísticas macabras do genocídio. Ele mencionou as estratégias de resistência nas comunidades, os saraus como tecnologias sociais que estão se espalhando pelo país, a urgência da desmilitarização das polícias, a centralidade da cultura. Thiago falou com o coração e foi o único a arrancar aplausos”. Esta reunião permite visualizar a existência de um conjunto significativo e diversificado de redes, grupos e movimentos juvenis no Brasil de hoje. E o relato de Aurea Carolina ajuda a entender o lugar que a questão da violência policial entre jovens negros, moradores de favelas e periferias, entre as demandas de políticas públicas voltadas para a juventude brasileira. 3.5 No Congresso e no Senado. Em 25 de junho, sem muita discussão, a Emenda Constitucional 37/2011 foirejeitada pelo plenário da Câmara dos Deputados, com por 430 votos contrários e 9 favoráveis, além de duas abstenções. Em 26 de junho, o Senado em votação

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A Secretaria Nacional da Juventude (SNJ) e o Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) foram criados em 2005 e estão ligados à Secretaria Geral da Presidência (SGPr).

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simbólica, o projeto de lei que torna a corrupção crime hediondo. Nos dois casos, as votações foram vistas como respostas “às ruas.” 3.6 No cenário internacional. Por um lado, vale destacar, o comunicado do Escritório de Direitos Humanos da ONU e do Conselho de Defesa dos Direitos Humanos que recomendaram o direito de reunião e a proibição de uso de armas de fogo. Por outro lado, destaco a página “Democracia não tem fronteiras”- consultada 16.6.2013 - onde quatro mil membros brasileiros residentes no exterior (Paris, Madrid, Londres, Lisboa, Berlim, Barcelona, Nova York, México) combinaram se manifestar. 4. Relações de Forças “(...) Qual a força de um movimento emergente? Como medir o novo, aquilo que não tem registro quantitativo?(...) A relação de forças sofre mudanças permanentemente” (Betinho, 1984). Para lembrar a frase de Karl Marx, no18 Brumário, as manifestações de 2013 não devem ser vistas como “um raio em meio a um céu azul”. Ou seja, os acontecimentos de junho não se deram em um vazio, eles se ancoram na história produtora de nossas desigualdades sociais e, também, nas lutas de resistência de diferentes atores. A questão da mobilidade urbana é ampla e envolve questões relativas à ocupação de nossos territórios, ao modelo de desenvolvimento econômico e social que vem prevalecendo, à nossa cultura política e, certamente, aos paradigmas que orientaram políticas públicas. Contudo,sem as mudanças que ocorreram no Brasil, e na juventude brasileira, nos últimos anos, as jornadas de junho não aconteceriam. Considerando a história e as mudanças recentes de nosso país, o que podemos falar sobre as repercussões das jornadas de junho? Pergunta difícil. Sem a menor pretensão de esgotar o assunto, aqui vamos tratar particularmente das juventudes brasileiras hoje. 4.1 Pontos de partida e Acúmulos No passado, falar em “participação juvenil” significava falar em movimento estudantil. A maioria dos jovens estava no mundo do trabalho e longe da política. Dos anos de1990 para cá mudou muito a face dos jovens que participam. Pelo Brasil afora ganharam destaque os grupos culturais (hip hop, grafite, dança, teatro, funk, entre outros) que trouxeram a voz da juventude das favelas e periferias para o espaço público. Além disto, novos coletivos se formaram seja como reação a discriminações de raça, de gênero, de orientação sexual, seja em torno de causas mobilizadoras

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como sustentabilidade socioambiental, transporte, acesso e qualidade às novas tecnologias de comunicação e informação. Além disto, há outra novidade. Pesquisas recentes também demonstram que os jovens de hoje têm se apresentado no espaço publico por meio de múltiplas causas e identidades. Diferentes experiências de discriminação podem se somar na vida de um mesmo jovem (ser estudante, ser trabalhador, ser jovem, ser negro, ser índio, ser favelado, ser homossexual, ser mulher, ser da área rural). Estas identidades são acionadas de acordo com as disputas em questão. Minha sugestão, embora as manifestações de junho tenham contado com uma grande quantidade de estreantes, não há como compreendê-las sem este lastro que vem sendo construído entre segmentos juvenis. Sem o Movimento Passe Livre, as jornadas de junho não teriam começado. Sem as redes sociais e o midiativismo, as manifestações não teriam se espalhado por diferentes cidades do país. Sem movimentos a favor do “direito à diversidade”, o pastor Feliciano não teria se tornado um personagem nacional. Sem os grupos culturais, as manifestações não teriam ganhado cores, sons e performances. Sem os grupos das favelas e periferias, e suas iniciativas para denunciar o racismo e a violência, a pergunta “Onde está Amarildo?” não teria ecoado pelo país. Neste ponto podemos indagar ainda se realmente se os jovens que hoje se identificam (em diferentes níveis) com Partidos políticos estiveram mesmo completamente fora das manifestações? Ou se a novidade foi, realmente, a inédita e ampla composição dos jovens manifestantes que se reuniram sem um palanque único. 4.2 Percepções sobre “direitos” e demandas por “políticas públicas”. Os jovens que foram às ruas em 2013, não viveram a ditadura, cresceram em tempos democráticos. Além do fato de que a demanda por transporte, por mobilidade urbana, ser comum a diferentes segmentos juvenis, teria havido algum sentimento ou palavra de ordem que tenha contribuído particularmente para juntá-los? Minha sugestão é que a palavra “direitos” tem um lugar especial no vocabulário desta geração. Após mais de 20 anos de democracia – incompleta e contraditória – a palavra “direitos” foi se espalhando pela sociedade e tem sido acionada por diferentes parcelas da juventude. Para este espalhamento contribuiu a Constituição de 1988; as Conferências Internacionais de Direitos Humanos e os avanços significativos em legislações ordinárias que se referem aos direitos. A discussão sobre cotas, a “lei Maria da Penha”, as denuncias sobre racismo frequentam

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os noticiários. É bem verdade que também há uma reação contrária e, na mesma sociedade, também circula percepções contraditórias que associam direitos humanos à proteção de bandidos. Mas, mesmo neste embate,a noção de “direitos” evoca o poder público. E, assim, desnaturaliza a lógica do favor, os clientelismos e outras formas de subserviência que tem caracterizado a chamada “cultura política brasileira”. Ou seja, evocar “direitos” faz diminuir a força de perguntas autoritárias que podem ser traduzidas: “você não conhece seu lugar?” ou “ você sabe com que está falando?”. Certamente, jovens de diferentes classes sociais com trajetórias, experiências e visões de mundo diversas incorporam esta noção de formas (e com conteúdos) diferentes. Mas o que há em comum? E aqui está uma novidade. Ao falar em direitos, focaliza-se o papel do Estado, evoca-se políticas públicas. As jornadas de junho evidenciaram este processo. “Fazer valer nossos direitos” tornou-se uma senha e, através dela, foram evocadas mais e melhores políticas públicas. “Não é por centavos, é por direitos”; “Transporte público decente é direito do trabalhador”, “Se o direito da favela não colar, o Brasil não vai mudar”, “Transporte: dever do Estado, Direito do cidadão”; “Estou aqui contra a corrupção e pelos direitos”. Nesta perspectiva, pode-se dizer que “fazer valer nossos direitos” tornou-se a senha comum ao conjunto heterogêneo de manifestantes. Como contrapartida, cresce a expectativa de políticas públicas a eles correspondentes. 4.3 “Análise de conjuntura é uma mistura de conhecimento e descoberta” (Betinho, 2014) Em síntese, as manifestações de 2013 iniciaram pelo preço do transporte e para a adesão dos manifestantes contaram as experiências, as causas e lutas anteriores levadas adiante por redes, grupos, coletivos e movimentos sociais. Para seu crescimento massivo, destaco pelo menos quatro fatores: a) a atuação das mídias alternativas; b) a ação violenta da polícia; c) a adesão de estreantes que acionaram sua percepção –atualmente espalhada pela sociedade - de que os brasileiros têm direitos e que o Estado tem obrigação de torná-los efetivos e; d) a oportuna atenção da imprensa internacional motivada pelos jogos da Copa das Confederações e pela proximidade da Copa do Mundo que aconteceria em 2014.

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Se é verdade que esta conjugação específica de fatores contribui para explicar os acontecimentos e sua “repetição” não deve acontecer. Outras conjunturas poderão produzir algo similar, ou até maior, mas os acontecimentos, atores, cenários e a correlação de forças serão diferentes. E, o que ficou depois das manifestações? Várias hipóteses são acionadas para explicar porque elas não se repetiram na mesma intensidade. Os confrontos com a polícia e a ação dos blackblocs são motivos sempre citados. Também a morte do cinegrafista no Rio de Janeiro tem sido considerada como um marco para a interrupção de um ciclo. A falta de uma organização centralizada, de direção, de táticas e estratégias comuns também justificaria a dispersão. No entanto, repercussões de junho podem ser observadas em diferentes espaços e dimensões. Por exemplo, as manifestações repercutiram nas greves dos professores em várias cidades do país, na greve dos garis - no Rio de Janeiro- e de motoristas - em cidades diferentes - que questionaram representações sindicais pouco combativas. Estas grevescontaram com apoio de vários segmentos juvenis que estiveram nas ruas em junho. Também podemos dizer que as manifestações contribuíram para aumentar o fôlego de movimentos por transporte, por moradia, das redes de midiativismo, de grupos que atuaram em torno das questões da Copado Mundo (por exemplo, o Comitê Popular dos Atingidos pelo Copa). Ainda que indiretamente, as manifestações também influenciaram assustaram os chamados “rolezinhos” de jovens pelo Shoppings da cidade. Não por acaso segundo encontro de jovens com a Presidenta Dilma, realizado em 2014, quem se destacou foi do Rolezinho. Recorro a um outro artigo/relato de Aurea Carolina de Freitas, presente na reunião: “Entre as mais de trinta pessoas da sociedade civil que participaram do encontro, destacou-se o jovem MC Chaveirinho, cantor de funk e organizador de rolezinhos em São Paulo. Ele falou sobre o histórico dos rolezinhos, que existem desde 2007, o crescimento da adesão de rolezeiros com a multiplicação das redes sociais, os ataques e agressões que sofreram por parte da mídia convencional e a falta de políticas culturais e de lazer na periferia. Explicou que a opção pelos shoppings foi, sobretudo, por uma questão de segurança e que os jovens têm medo de ficar nas suas quebradas. Sem alternativas seguras nos lugares onde moram, preferem se encontrar nos shoppings para tirar fotos, comer e beber, curtir um funk, namorar e se divertir. Enfatizou que as políticas para a juventude não chegam dentro da favela e que ações para jovens devem ser feitas com os próprios jovens, respeitando as suas linguagens: sem essa de “caros companheiros, caras companheiras”, porque o jovem desconfia desse papo de político. A presidenta riu. MC Chaveirinho fechou sua intervenção defendendo a valorização do funk e relembrando a morte do MC Daleste, assassinado em julho do ano passado”.

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Enfim, podemos dizer que depois de junho de2013, se ampliou ainda mais a face dos jovens que levam demandas ao espaço público. Hoje talvez caiba aos jovens participantes das redes, grupos, movimentos juvenis, pastorais e partidos políticos fazerem novas perguntas para encontrar novos caminhos de interlocução com aqueles que saíram às ruas pela primeira vez; com os jovens das favelas e periferias que querem ter “direito à cidade”; com os novos coletivos de midiativismo que se formaram recentemente. Para tanto, é preciso indagar “o que podemos fazer juntos?” para assim, estabelecer pautas comuns, sem pretensões de “unificação”, “direção” e “hegemonia”. Por outro lado, os gestores dos espaços institucionais de juventude podem se nutrir desta energia que veio das ruas. Isto porque, apesar de todos os esforços, ainda falta muito para que as demandas de juventude ganhem legitimidade no interior dos ministérios que definem políticas públicas gerais e específicas. Surge assim uma oportunidade para que se diminua o - o fosso entre a existência de “direitos” e sua vigência, entre o “país legal” e o “país real”.

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O BRASIL E A AGENDA RACIAL PASSADA A LIMPO Por Nuno Coelho Jornalista Coordenador Nacional dos Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APNs)

A realidade brasileira se mostra complexa, plural e em movimento constante. Diferentes aspectos conjunturais com características estruturais mais ou menos permanentes que se evidenciam com nuanças próprias conforme as dinâmicas sociais provocam movimentos nos diferentes atores sociais. Num país com dimensões continentais, como o Brasil, com suas desigualdades sociais faz com que questões conjunturais nacionais sejam percebidas de forma diferente pela pessoas e grupos sociais. Nesta perspectiva destaco a enorme dificuldade em se admitir que o Brasil ainda mantêm fortes traços de uma sociedade racista, pois, afinal, o racismo é um mal cruel e inaceitável, e ninguém quer ser identificado com tão perverso atributo. O Brasil foi o último país a finalizar o regime escravocrata e desumano. A abolição da escravidão não veio acompanhada de medidas de inclusão dos libertos como cidadãos tampouco contou com políticas voltadas à educação, moradia e trabalho, objetivando a inserção social dos ex-escravos. (POVESAN; RIBEIRO, 2008, p. 880) Já tornou-se comum entre nós a reflexão acerca de um passado que o Brasil faz questão de esquecer, que não aparece nos livros e não é contado nas escolas. Por muito tempo o disfarce da “democracia racial” escondeu a realidade das favelas, das disparidades no acesso à educação e ao mercado de trabalho. A partir da primeira Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, promovida pelo movimento social negro, em novembro de 1995, o Brasil começa a mostrar a sua cara com a gradual desconstrução da fantasia do “paraíso racial”. O documento que, na época, o movimento negro brasileiro apresentou ao Estado brasileiro listou um conjunto de políticas necessárias para a superação da desigualdade racial e enfrentamento do racismo. Este momento foi importante também para ampliar o debate sobre políticas de promoção de igualdade racial nos diversos ambitos da sociedade brasileira.

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Neste processo consideramos que a III Conferência contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e discriminações correlatas, que teve lugar na cidade de Durban, na África do Sul, contribuiu para o aprofundamento das políticas de ação afirmativa no Brasil. Considerando os resultados desta conferência devemos considerar que a declaração e o plano de ação de Durban constituíram-se ferramentas importantes para a instauração do processo de materialidade das políticas para a população negra no Brasil. Considero que a Conferência de Durban contribuiu para favorecer a ampliação das políticas de promoção de igualdade racial retirando das gavetas do Congresso os projetos, como o do Estatuto da Igualdade Racial, que há anos estavam engavetados. Devemos considerar também a importância da atuação do conjunto do movimento negro brasileiro em criar um novo ambiente de reflexão e de interferência na agenda político-social do país nos últimos anos. No momento cabe uma redefinição das táticas e estratégias de atuação e reabrir o diálogo com o governo federal sobre a política de igualdade racial. É hora de rever até onde chegamos, o como estamos e para onde iremos com as políticas para a população negra. Uma década de ações afirmativas Diante da realidade de luta social contra a omissão do Estado em relação à inclusão social dos exescravos na sociedade republicana e a necessidade de desvendar a realidade de exclusão da população negra nos dias atuais, as inúmeras ações propositivas do movimento negro brasileiro produziram efeitos mais efetivos a partir de 2002, com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De modo que não podemos negar os importantes avanços que o Brasil acumulou em diversos campos do desenvolvimento social, além de importantes instrumentos no combate ao racismo e na formulação de políticas de promoção de igualdade racial. Do ponto de vista da institucionalidade verificamos a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); o Conselho Nacional de Promoção de Igualdade Racial (CNPIR), a realização das três Conferências Nacionais e os inúmeros conselhos e departamentos executivos nos diversos Estados, no Distrito Federal e nas Prefeituras. Vale também destacar os diversos marcos legais com a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da História da África e da cultura afro-brasileira nas escolas, o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei 12.711/2012 que estabeleceu as cotas nas universidades públicas, as inúmeras titularidades em favor das terras das comunidades quilombolas, a presença real de ministros negros no governo de então, as diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola, etc. Mesmo sem uma priorização explicita das ações afirmativas como uma das suas bandeiras de gestão, muitas das medidas do governo anterior vieram produzir seus efeitos na gestão da

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presidenta Dilma Rousseff, como o ocorrido recentemente com a lei de cotas no serviço público. No entanto percebe-se que o grande desafio imposto ao Estado brasileiro e aos atuais governos federal, estaduais e municipais é dar conta da implementação dos Planos e Programas frutos das conferências, encontros, debates e mesas de diálogo. O que era muito presente e sistemático no governo anterior por sinal. Considerando os 10 anos de políticas de promoção da igualdade racial urge discutir e avaliar o que de fato se construiu até o momento, revendo a atuação da SEPPIR (e coordenadorias), do CNPIR (e diversos conselhos estaduais e municipais), a implementação da Lei 10.639/2003, do Estatuto da Igualdade Racial, da Lei de Cotas nas universidades públicas, a titulação das terras e os programas de desenvolvimento para as comunidades quilombolas, as políticas e as ações de enfrentamento do extermínio da juventude negra. No atual governo o que se percebe é que há uma inflexão na questão das políticas de Igualdade racial nos diversos âmbitos do Estado brasileiro, em razão das diversas dificuldades dentro do próprio sistema público. O atual modelo de gestão na promoção da igualdade racial no Brasil necessita de uma revisão e mecanismo mais eficientes. As dificuldades encontras pela SEPPIR para a implementação das políticas de promoção da igualdade racial esta relacionado à perspectiva da transversalidade que para se materializar depende de outros ministérios, bem como da estrutura ao órgão, que sofre com o contingenciamento constante do seu orçamento. As dificuldades que ainda verificamos em relação às políticas para a população negra estão relacionadas ao que afirmou Doudou Dienne41, que “muito depende do sucesso ou fracasso do Governo do Brasil em erradicar o racismo e a discriminação racial, não apenas em termos de fortalecimento da democracia e da harmonia social e Inter étnica no Brasil, mas também para todos os países da região sul-americana com similares legados históricos de racismo e desigualdades raciais”. A cor da política no Brasil A eleição de negros no Brasil sempre foi a exceção e nunca a regra. Segundo o sociólogo Clóvis Moura, em sua obra Rebeliões da Senzala, a eleição da Constituinte de 1823 garantiu os interesses

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Doudou Dienne foi relator especial da ONU sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas, que esteve em missão no Brasil no período de 17 a 26 de outubro de 2005. O relatório pode ser visitado em http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_relator_onu_doudou_diene_racismo.pdf

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das elites escravocratas e “sumariamente excluídos do direito de voto, os criados, jornaleiros, caixeiros, juntamente com todas as pessoas que tinham rendimentos líquidos inferiores ao valor de 150 alqueires de farinha de mandioca. Para os eleitores de segundo grau, que escolhiam os deputados e senadores, exigia-se um rendimento de 250 alqueires, e para que o cidadão fosse candidato a deputado se exigia a soma de 500 alqueires e 1000 para senadores, além da qualidade de proprietário, foreiro ou rendeiro por longo prazo”. Num ano de eleições importantes não se pode deixar de avaliar a representação política do povo negro no Brasil. Embora representem quase 51% da população brasileira, conforme o último censo do IBGE, os negros ainda estão sub-representados no legislativo. Só 8% dos deputados federais são negros (43 dos 513) e apenas dois parlamentares se declaram negros dentre 81 senadores. Essa baixa representatividade se repete nas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais de todo o país. E o que é pior, as relações raciais e o racismo têm muito pouco espaço na pauta do legislativo e não é vista como um problema pela maioria dos parlamentares. A população negra aparece também subrepresentada entre os empresários, entre os grandes proprietários rurais, nos postos de comando das Forças Armadas, não figuram nas propagandas, salvo em poucas exceções. Esta invisibilidade continua a ser o grande problema, o que contribui para a manutenção e perpetuação do racismo. A reforma política tão deseja interessa a nós, população negra, principalmente porque ela esta subrepresentação nas instâncias políticas brasileiras e esse momento é especial para aprofundarmos o debate, refletirmos, alterarmos o quadro político nacional, criando mecanismos legais e regulatórios para ampliarmos a representação política de negros e negras nas instâncias municipais, estaduais e federal. Trata-se de produzirmos mudanças efetivas e profundas no o sistema político brasileiro que sempre foi elitista, autoritário, censitário e excludente, que tem o que impedido a participação dos negros, dos indígenas, da juventude, das mulheres e dos trabalhadores em geral. Acredito, portanto, que o próximo governo deverá afirmar com veemência o principio básico da igualdade, da equidade e da diversidade como metas fundamentais promover a a emancipação social, econômica, política e educacional da população negra no Brasil.

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COMUNICAÇÃO, UM DIREITO A SER CONQUISTADO Por Camila Nobrega, Martha Neiva Moreira e Rogério Daflon Jornalistas do Ibase

O artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas estabelece que “toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão”. E informa que este direito “inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Embora a Declaração tenha sido publicada em 1948, até hoje, no Brasil, essa perspectiva da Comunicação como um direito humano não é legitimada pela sociedade e nem garantida por lei. O marco legal do setor é o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Em 1997, ele foi fragmentado pela Lei Geral de Telecomunicações e complementado por várias normas avulsas para serviços específicos (diferentes modalidades de televisão paga, por exemplo) que dificulta a aplicação porque algumas são, segundo especialistas, contraditórias. Além disso, há normas constitucionais que, em sua maioria, não foram regulamentadas pelo Congresso Nacional e, portanto, não são cumpridas. Não por acaso, nas Jornadas de Junho de 2013, quando milhares de pessoas ganharam as ruas do país protestando por maior participação social e a garantia de direitos básicos como Educação de qualidade, melhores serviços de Saúde, Transporte, entre outros, o tema da Comunicação como um direito humano entrou definitivamente na agenda. A luta pela democratização da mídia obteve, assim, maior espaço no debate público, apresentada como um processo fundamental para a garantia dos demais direitos. Manifestantes empunhavam faixas com dizeres como: “Pela democratização da mídia”, “Comunicação é um direito humano” e “Fora Globo”, em referência às Organizações Globo, que detêm a maior parte dos veículos de comunicação existente no país e grande expressão da mídia hegemônica, também chamada por muitos de mídia comercial. Trata-se de uma tomada de consciência em relação a um círculo vicioso: uma vez que os meios de comunicação são monopolizados, os discursos também o são, fazendo com que apenas uma parcela pequena da população tenha garantido o seu direito à expressão e seja representada pelas informações produzidas e divulgadas. Sem acesso à informação e ao direito à comunicação de

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uma forma geral, uma imensa parte da população brasileira encontra-se fragilizada e alijada de debates e processos de decisão do interesse da sociedade como um todo. O Estado do Rio de Janeiro é um exemplo desta situação, uma vez que a produção de informação está concentrada na capital, excluindo dezenas de municípios no contexto estadual. Além disso, é preciso atentar para o fato de que, mesmo dentro da cidade do Rio de Janeiro, há territórios excluídos do sistema de comunicação comercial, representados a partir de uma perspectiva dominante que não lhes dá voz direta e os trata como periféricos, embora estes territórios sejam moradia de mais de um milhão de cariocas. É o que ocorre com áreas de favelas e também nos chamados subúrbios, como a Baixada Fluminense, na Região Metropolitana. O monopólio da mídia A falta de uma legislação em sintonia com as novas demandas do setor, acabou por provocar uma situação bastante comum em países da América Latina: a concentração da mídia nas mãos de poucos grupos familiares. Aqui, a figura do 'magnata da mídia' é bastante conhecida. As condições que viabilizaram este monopólio foram dadas pelo próprio Estado brasileiro que, nos anos 1930, optou por um modelo de radiodifusão, que vigora até hoje, privilegiando a atividade privada comercial. Neste contexto, apesar de termos um território continental, com uma diversidade regional que resulta numa pluralidade de identidades culturais num mesmo país, a ausência de regulação resulta numa concentração da produção e veiculação da mídia na mão de poucos grupos, localizados, especialmente, no eixo Rio-São Paulo. Dez famílias, segundo o Coletivo Intervozes, têm o controle os órgãos de mídia no país. Segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), as quatro maiores e emissoras de televisão do país (Globo, SBT, Record e Band) controlam 57,71% do total de geradoras e 68,20% das retransmissoras. Trata-se de um domínio por parte desses quatro grupos da infraestrutura de produção de radiodifusão, que se reflete também em domínio de audiência. A consequência é uma oligopolização evidente da venda de espaços publicitários. O fenômeno não é novo. Em 1950, Assis Chateubriand, dono dos Diários Associados, fez um discurso na solenidade de abertura da TV Tupi, em São Paulo, em que enalteceu apenas os nomes dos anunciantes da nova emissora. O sociólogo Renato Ortiz, da Unicamp, considerou a fala “uma bela peça do surrealismo político latino-americano”. Para ele, “tratava-se de uma confissão pública de fé num modelo de radiodifusão alheio a qualquer tipo de preocupação com a cultura ou

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com a educação do país. Era mais um negócio voltado para a acumulação de riquezas materiais, associadas ao prestígio social e ao poder político, adquiridos por quem controlava as emissoras.” Complementaridade – Com uma legislação defasada que viabilizou a concentração dos órgão de mídia por poucos grupos, uma das formas de complementar o sistema privado de Comunicação seria fortalecendo os sistemas estatal e público de radiodifusão. No entanto, embora a Constituição Brasileira, em seu artigo 223, já previsse a complementaridade, apenas em 2007, com a criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), o país vislumbrou a possibilidade de ter um órgão articulador de um sistema público de Comunicação. Além de ter a missão de unificar e gerir, sob controle social, as emissoras federais já existentes, a EBC tem a tarefa de articular e implantar uma Rede Nacional de Comunicação Pública. A ideia é que esta Rede pública seja porta-voz da sociedade, oferecendo pluralidade de opinião e da diversidade cultural sem intermediação do governo ou de interesses da iniciativa privada. A prática, no entanto, é bem diferente. Segundo análise do Observatório da Radiodifusão Pública na América Latina, criado em 2011 pelo Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), “essa complementariedade nunca se efetivou e, historicamente, acabou por haver ainda um predomínio das emissoras privadas.” A estrutura do sistema público de radiodifusão, no Brasil, é formado por emissoras educativas concedidas pelo governo a universidades, fundações públicas de direito público, fundações públicas de direito privado, governos federal, estaduais ou municipais. A outorga para a execução de serviços de radiodifusão com fins exclusivamente educativos só pode ser pleiteada por entidades que não tenham finalidade lucrativa. Hoje, de acordo com dados do Observatório, são mais de 9.700 emissoras de rádios e TVs e retransmissoras em funcionamento no país, sendo que entre elas há 243 emissoras FM e TVs educativas. Dados de 2011 do Ministério das Comunicações dão conta que o segmento de emissoras educativas no país representa 2,5% do sistema de radiodifusão. Sendo assim, o contexto brasileiro da radiodifusão a presença pública ainda é fraca se comparada a iniciativa privada. A título de comparação, na Inglaterra, país que estabeleceu seu modelo de radiodifusão – seguindo modelo oposto ao nosso, privilegiando o Estado como operador e executor de radiodifusão - na década de 1930, há dois conglomerados. Ambos públicos: a BBC e o Chanel 4. Só a BBC tem oito canais regionais de programação, dez estações nacionais, 40 emissoras locais

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de rádio e um portal digital, além de um serviço de notícias internacional que produz conteúdos transmitidos por rádio, TV e internet em 33 idiomas (inclusive em português). Segundo o Coletivo Intervozes, 78,2% das fontes de financiamento da BBC são públicas (sociedade civil) ou governamentais. Aqui, o financiamento do sistema público é feito por um mecanismo criado pelo governo federal. Trata-se da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública. Ela foi instituída pela mesma lei que criou a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), em 2008, que determina o repasse de um percentual do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel) para emissoras do campo público, sobretudo a EBC. Os repasses, no entanto, foram alvo de questionamento pelas operadoras de telecomunicações e só começaram a ser liberados este ano. Rádios comunitárias – Apesar de ser uma das maneiras mais baratas e acessíveis de democratizar a comunicação, viabilizando, inclusive, o acesso à informação de pessoas que não são alfabetizadas, as rádios comunitárias foram fortemente reprimidas nos últimos anos. A legislação que rege o setor (9.612/1998) é considerada defasada em vários aspectos, o que inviabiliza a criação das rádios. O próprio conceito de 'comunitário', estabelecido a partir de critérios estritamente geográficos, dificulta, por exemplo, a criação de rádios de pequenas organizações e associações comunitárias. Outros aspecto que dificulta a operação das emissoras é o baixo alcance: elas só podem transmitir em até um quilômetro de raio e com potência máxima de 25 watts. Pela lei ainda, as rádios comunitárias não podem veicular publicidade também, o que prejudica a sustentabilidade financeira. Diante dessas exigências, já foram fechadas no país cerca de 11 mil rádios comunitárias. O caso da rádio da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, foi emblemático. Em 2011, a rádio, que veiculava à época 15 programas, foi lacrada pela Polícia Federal e pela Anatel. Marco Civil da Internet O Marco Civil da Internet o grande avanço na área de Comunicação nos últimos anos. Trata-se de uma espécie de Constituição da internet. Após tramitar durante dois anos no Congresso Nacional, foi aprovado em abril deste ano um marco regulatório para o setor estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para internautas e empresas. Foi uma vitória da sociedade civil que, ao lado dos coletivos que militam pela democratização da comunicação, fizeram uma ampla campanha, inclusive pelas redes sociais.

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Entre os avanços, está a chamada neutralidade da rede que impede provedores de internet de oferecer conexões diferenciadas a partir do conteúdo que o usuário for acessar, como e-mails, vídeos ou rede sociais. Outro aspecto previsto remete à privacidade. Pela nova lei, os provedores de conexão e aplicações na internet não serão responsabilizados pelo uso que internautas fizerem da web e por publicações de terceiros. Antes do Marco ser aprovado, não havia regras específicas sobre o tema e as decisões judiciais eram tomadas caso a caso. Muitas vezes puniam-se Facebook e Google, por exemplo, pela publicação de conteúdos ofensivos de terceiros. O Marco Civil também proíbe o marketing dirigido, ou seja, as empresas que viabilizam o acesso dos usuários à web, não poderão ver os dados transmitidos. Hoje, é comum essas empresas 'espiarem' o que os usuários transmitem com fins comerciais e publicitários para formação, por exemplo, de mailings de marketing dirigido. Coletivos O ano de 2013 ficou marcado na história recente brasileira e se tornou também um divisor de águas no que diz respeito à comunicação. Nesse contexto de agravamento da crítica à concentração dos meios de comunicação no Brasil, surgem centenas de grupos – atualmente mais conhecidos como coletivos – que apresentam uma multiplicidade sem precedentes de perspectivas sobre o mesmo fato. O que se viu foi uma verdadeira batalha de sentidos propagados especialmente em sites, blogs e nas mídias sociais, pluralizando discursos que nas últimas décadas passavam pelos filtros da produção convencional de notícias difundidas por canais de televisão, rádios dirigidas pelos grandes conglomerados de comunicação e jornais impressos. Paralelamente, também vem à tona uma grande diversidade de veículos de comunicação ditos alternativos, ou, em uma linguagem gramsciana, contra hegemônicos, já existentes anteriormente. Cresce o debate sobre a construção de um jornalismo cada vez mais crítico e também colaborativo, uma forma de contrapoder na produção e difusão alternativas. A busca por novas fontes de informação abre espaços no cenário da produção de informação nas capitais de estados brasileiros e fortalece uma visão crítica de movimentos sociais que posicionam a comunicação como um direito humano essencial, parte deles integrantes do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Embora haja visões diferentes entre os movimentos, há um pensamento que passa a constituir um discurso comum: a ideia de que uma sociedade só pode consolidar sua democracia, se as diferentes opiniões e culturas que a compõem tiverem espaço para se manifestar. Dessa forma, o direito à comunicação passa a ser indissociável do exercício da cidadania.

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Esta conjuntura, de ampliação do debate sobre o tema, posiciona o Brasil em uma discussão que vai do local ao global, em uma reflexão crítica sobre o poder da mídia, a cultura tecnológica, a comunicação globalizada e o jornalismo contra hegemônico em rede. No âmbito político, crescem debates sobre as políticas públicas voltadas ao direito à comunicação e a democratização da informação, especialmente no contexto da América Latina. Disputam-se sentidos, hoje sob o poder de máquinas dirigidas por dinastias familiares da comunicação que possuem posição privilegiada na circulação de discursos na sociedade, constituindo-se como locus privilegiado de produção dos sentidos e até de construção das identidades. Questiona-se também a retórica em favor da “liberdade de expressão” construída por estes conglomerados midiáticos, que impede mudanças na regulação do setor, dissimulando a intenção de fazer prevalecer a liberdade das empresas sobre aspirações coletivas, como aponta o livro “Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação” (Boitempo editorial), organizado por Dênia de Moraes, Ignacio Ramonet e Pascual Serrano. Um dos exemplos da pressão social que se fortalece é o Projeto de Iniciativa Popular por uma Mídia Democrática, construído por entidades da sociedade civil. Tendo como base a função social da comunicação, como meio para redução das desigualdades, pluralização de vozes e garantia de direitos, este projeto precisa atingir a marca de um milhão e trezentas mil assinaturas para ser levado

ao

debate

no

Congresso

Nacional

(mais

informações

no

site

paraexpressaraliberdade.org.br). A campanha pela aprovação do projeto de lei ressalta que, no dia 27 de agosto de 2012, o Código Brasileiro de Telecomunicações completou 50 anos. Ou seja, a lei que regulamenta o funcionamento das rádios e televisões no país é de outro tempo, antes da abertura democrática no país. Uma conquista da sociedade civil: Os Canais da Cidadania nos municípios O Canal da Cidadania, previsto no decreto que regulamentou o sistema de TV digital no país, em 2006, prevê a criação de quatro faixas na TV aberta (uma para o poder público municipal, uma para o estadual e duas para a sociedade civil). Serão quatro faixas de conteúdo: a primeira para o Poder Público municipal, a segunda para o Poder Público estadual e as outras duas para associações comunitárias, que ficarão responsáveis por veicular programação local. Os pedidos de outorga podem ser feitos por municípios, estados e fundações e autarquias a eles vinculadas. O Ministério das Comunicações apresenta o Canal da Cidadania como um instrumento que possa garantir o exercício da cidadania e da democracia, a expressão da diversidade social e o diálogo entre as diversas identidades culturais do Brasil. O decreto aponta também o fomento à produção audiovisual independente, de caráter local e regional, tendo entre os objetivos a prestação de

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serviços de utilidade pública. Até o momento, 319 municípios fizeram o pedido de outorga, segundo documento disponível no site do ministério. Nessas cidades, a grande questão no momento é como garantir que os dois canais disponíveis para a sociedade civil representem de fato uma pluralidade de vozes. No Rio de Janeiro, estão em debate as formas de financiamento para o canal, a construção da programação e a composição do conselho, além de outros pontos. Por força de mobilização de grupos ligados à Frente Ampla pela Liberdade de Expressão (FaleRio), o processo está adiantado, mas ainda são longos os passos até que os canais estejam no ar. A implantação do Canal da Cidadania pode significar um importante avanço democrático na televisão aberta dos municípios, uma vez que garante quatro novos canais não-comerciais de televisão. O grande desafio, porém, será a articulação dos diferentes atores interessados, para que os canais comunitários sejam capazes de veicular diversos pontos de vista dos movimentos sociais e das organizações populares da cidade. Como se trata de um tema alijado dos veículos de comunicação, a dificuldade é a inserção da sociedade civil como um todo neste debate, uma vez que o projeto, se implantado de forma amplamente democrática, será mais um instrumento de garantia da cidadania. O desafio da comunicação popular A definição de comunicação popular é sempre um desafio, dada a complexidade e multiplicidade do conceito. Aliás, os adjetivos dados à comunicação, na tentativa de apontar uma construção contra hegemônica e plural, são muitos. A pesquisadora Cicilia Maria Krohling Peruzzo aponta como elemento comum da comunicação popular, alternativa e comunitária que o sentido político é o mesmo, ou seja, o fato de tratar-se de uma forma de expressão de segmentos excluídos da população, visando a atingir seus interesses e suprir necessidades de sobrevivência e de participação política. Mesmo frente a todas as dificuldades apresentadas de concentração da mídia, falta de financiamento , entre outros, a comunicação comunitária é uma forma de resistência cotidiana nas cidades brasileiras. Ao contrário do que a falta de informação sobre o tema nos faz acreditar, ela não é periférica. Em alguns territórios, a comunicação popular é o único meio de expressão sobre assuntos locais de extrema relevância, porém ignorados pelos grandes veículos de comunicação, que concentram sua cobertura jornalística sobre as áreas de maior valorização imobiliária da cidade. Tomemos aqui como exemplo a cidade do Rio de Janeiro e territórios como favelas ou outras áreas do subúrbio, como a Baixada Fluminense. São locais menos favorecidos pelos noticiários

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convencionais do município. E, quando aparecem, não raro são criminalizados ou despojados de sua posição protagonista. O olhar vem de fora, verticalizado. Em resposta a isso, veículos de comunicação comunitária vêm enfrentando dificuldades financeiras e organizacionais para se manterem. Uma pesquisa de 2011 feita pela ONG Observatório de Favelas da conta de 104 veículos considerados comunitários apenas na região metropolitana do Rio, mais da metade deles surgidos nos últimos dez anos, no bojo do crescimento do acesso à internet. Entre eles estão veículos como o jornal O Cidadão, que completou dez anos este ano. Ele é feito por e para cidadãos do Complexo da Maré, onde habitam mais de 130 mil cariocas, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O jornal faz frente ao olhar da mídia comercial, sob o qual a Maré é frequentemente criminalizada, tratada como território violento e marginal. No jornal, editado pela ONG Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, o complexo de favelas ganha outros sentidos, explorando características da identidade e sociabilidade de seus habitantes. Se, sozinhas, estas iniciativas ainda são frágeis, em rede elas adquirem outro sentido. É exatamente esta palavra o ponto crucial e mais atual do jornalismo que propõe novas alternativas: rede. Dentro da mídia de características comunitárias e não comerciais, o tecido que liga essas iniciativas forma uma teia em que a colaboração dá o tom, e não a competição entre os veículos. O copyleft, nesse contexto, substitui o copyright, que limita o uso e o compartilhamento de informações, apenas para citar algumas características. Ao abrir mão da propriedade intelectual, apresentando-a como um bem comum, essas redes de comunicação popular ressignificam a produção de informação, levando em conta a função social do jornalismo. O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) abriga o Canal Ibase. O veículo se propõe a nunca perder de vista a função social da informação. Ele foi criado em 2012 pelo jornalista Augusto Gazir, como uma forma de disseminar artigos, análises políticas e pôr em rede produções de texto a partir dos movimentos sociais. Desde 2013, em meio à turbulência que tomou o Brasil no bojo da crítica aos megaeventos, o Canal Ibase passou também a se dedicar à produção própria de reportagens, adotando um viés crítico que tem como norte a noção ampliada de cidadania e democracia, tendo em vista a luta pela justiça socioambiental e pelos direitos sociais e humanos. O Canal Ibase tem como um dos objetivos apresentar abordagens e assuntos em uma perspectiva diferente daquela propagada pelos veículos de mídia comercial, dando atenção a territórios e temas alijados destes meios. Para tal, o Canal Ibase atua em rede. Possui um conteúdo copyleft, compartilhado por parceiros, e também trabalha com a utilização de conteúdos de outros veículos da comunicação popular, entre eles veículos de favelas, visando ao fortalecimento mútuo. Localmente, o objetivo do portal é a multiplicação de pontos de vista nos

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territórios. Já no âmbito nacional, a iniciativa integra a luta pela democratização dos meios de comunicação, entre outros obstáculos à cidadania plena. Numa sociedade consciente de seus direitos, a informação não deve ser nunca confundida com uma mercadoria ou commodity. Ela deve ser processada por um comunicador que pensa, basicamente, em dar subsídios aos cidadãos para exercerem sua própria cidadania. Portanto, a informação de mãos dadas com a democracia é aquela que visa a uma sociedade mais justa e mais igualitária. Quando o veículo de comunicação é direcionado a interesses de seus acionistas, em detrimento dos da sociedade como um todo, surgem os ruídos, a manipulação, a antinotícia e a falta de comprometimento com a população. Trata-se da informação como valor de troca, e não como valor de uso. A mídia comercial, dessa forma, se insere no contexto de acumulação de capital. Nela, a informação se perde, se fragmenta, se esvai. O mercado da informação desinforma, com o propósito de dar um ar homogêneo aos nossos tempos e espaços tão heterogêneos. A preferência é pela superfície, já que a profundidade não é amigável ao ambiente de negócios. O fetichismo da informação entra em campo, enquanto a realidade é rebatida ao escanteio. Aqui, revela-se uma forma de dominação. Informar na contracorrente passa a ser, assim, uma trincheira democrática.

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SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL Por Francisco Menezes Pesquisador do Ibase Foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) no período de 2004 a 2007

Os avanços obtidos pelo Brasil nos últimos doze anos no acesso aos alimentos, por parte da população em condição de maior vulnerabilidade social, constitui-se, reconhecidamente, em um dos campos aonde o país recolheu os melhores resultados. Diante disso, as políticas públicas aqui aplicadas tornaram-se uma referência para outros países. Cabe, assim, fazer uma revisão sobre o que foi realizado e, também, identificar quais são os grandes desafios que tem se evidenciado para que esses avanços prossigam na direção da garantia do direito a uma alimentação adequada e saudável para todos. Uma premissa importante para se compreender o que aqui ocorreu é levar em conta que a construção dessa situação aparentemente virtuosa não se deu pelo acaso, mas fruto de um processo bastante anterior, que se inicia com Josué de Castro nos anos cinquenta do século passado. Na década de noventa, a não aceitação da fome como um fenômeno natural, tese preconizada por Josué e a mobilização social que provocou o impeachment de Collor, criou as condições para a campanha liderada por Betinho e que mobilizou, a partir da Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida, milhões de pessoas em todo o país. Plantava-se a consciência do alimento como direito essencial, em um clamor nascido na sociedade. Em 2003, quando Luís Inácio Lula da Silva assume a presidência da república, a incapacidade de acesso aos alimentos, por parte significativa da população brasileira, persistia ainda como o maior problema de insegurança alimentar no país. Estimava-se, pelo critério da renda, que 36 milhões de pessoas viviam situações frequentes de carência alimentar. No meio urbano, essa situação era determinada principalmente pela incapacidade de aquisição dos alimentos, por aqueles que não dispunham de renda, ou cuja renda era muito baixa. Inexistiam políticas públicas que prestassem a devida assistência alimentar aos mais vulneráveis. No meio rural, a incapacidade de acesso aos alimentos pelos mais pobres ainda se mostrava mais grave. A não resolução do problema fundiário sempre figurou como determinante principal da pobreza e da insegurança alimentar, isto aliado ao fato de que a prioridade para as políticas em favor da grande propriedade foi uma

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constante em nossa história. Haja vista o tratamento concedido à divida dos grandes produtores, o que prosseguiu com os governos empossados após 2003. Nesse contexto, o combate à fome ocupou o centro da política de segurança alimentar no primeiro mandato do presidente Lula. Isto foi feito com ênfase principal na transferência de renda, encabeçada pelo Programa Bolsa Família. Mas outros programas cumpriram papel importante no enfrentamento do problema da incapacidade de acesso aos alimentos. Destaque-se, entre eles o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que possibilitou aliviar o peso dos alimentos no orçamento doméstico da população com menor poder aquisitivo, ao mesmo tempo em que propiciou garantir alimentação para um contingente da população em uma faixa de idade cuja exigência de alimentação adequada e em quantidade suficiente é vital para sua formação. Recorde-se que no período entre 2004 e 2010 o repasse do Governo Federal para a alimentação escolar teve uma correção de 131% em seu valor per capita, após dez anos sem qualquer alteração. Ao lado disso, em 2010 foi aprovada e sancionada a lei da alimentação escolar, que trouxe inúmeros progressos e inovações para esse programa, como a garantia de fornecimento mínimo de 30% pela agricultura familiar e a extensão do programa para o ensino médio, ampliando seu público de 36 para 45 milhões de alunos. Assinale-se, ainda, a importância dos programas de assistência alimentar voltados para as populações urbanas em condição de pobreza. No final de 2012 havia em todo o país um total de 700 equipamentos instalados e em funcionamento, entre bancos de alimentos, cozinhas comunitárias, restaurantes populares e unidades de apoio à distribuição de alimentos produzidos pela agricultura familiar. Merece menção ainda a parceria estabelecida entre a Articulação do Semi-Árido (ASA) e o governo federal, dentro da concepção do convívio com a seca e que se concretizou a partir do Programa 1 milhão de cisternas. Destinado às famílias cuja renda per capita é igual ou inferior a meio salário mínimo e que vivem na área rural, foram implantadas 800 mil cisternas voltadas para o consumo doméstico de água. Junto a isso, em 2009, foi criado o programa Uma terra, duas águas (P1MC +2), também em parceria com a ASA voltado para garantir água para a produção, com instalação de mais uma cisterna, cumprindo assim o objetivo de melhorar as possibilidades de convivência com o semiárido. Além dos programas sociais e de segurança alimentar, todo o processe de recuperação do salário mínimo e de crescimento da oferta de emprego trouxeram contribuição decisiva para o enfrentamento da incapacidade de acesso aos alimentos, tal como se enunciava anteriormente.

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No que se refere à produção de alimentos, também não há como negar, tomaram-se medidas efetivas de fortalecimento da agricultura familiar, desde a multiplicação de recursos destinados ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) a medidas inovadoras e substantivas quanto ao seguro rural e a retomada de uma política de extensão rural. No entanto, o destaque maior ficou por conta do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar. Este programa notabilizou-se por ligar as pontas da produção da agricultura familiar e do consumo de populações em condição de insegurança alimentar. Trouxe, ainda, a possibilidade de garantia de mercado para aqueles agricultores através das compras institucionais, inspirando o que depois seria também assumido com a garantia dos 30% de compras para a alimentação escolar. E a oportunidade de fortalecimento do associativismo, chamado a agregar os agricultores familiares em organizações com capacidade de fornecimento contínuo a essas compras institucionais. Mas a fragilidade na execução da reforma agrária constituiu-se em grande frustração, ante as expectativas geradas com a chegada ao governo do Partido dos Trabalhadores. Ao lado das medidas de estímulo à agricultura familiar, manteve-se intocado o forte apoio ao agronegócio, cujos interesses foram defendidos com veemência pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. De fato, o governo insistiu na conciliação de dois modelos de produção antagônicos, o do agronegócio e o da agricultura familiar, embora concedendo os maiores benefícios para o primeiro e, em muitos casos, permitindo a geração de pobreza face aos processos de exclusão perpetrados pelo agronegócio. Revelou-se por outro lado a urgência de formulação e aplicação de uma política nacional de abastecimento. A crise internacional de volatilidade dos preços dos alimentos, que se manifestou pela primeira vez em 2008, quando os preços experimentaram fortes elevações, demonstrou a necessidade dessa política, que não deve se limitar somente à questão do armazenamento, transporte e distribuição atacadista e varejista, mas que precisa ser concebida como um sistema integrado que vai da produção ao consumo. Registre-se ainda que no campo da saúde, se a redução da desnutrição ocorreu de forma significativa,, chegando a índices bastante próximos daqueles considerados aceitáveis, o sobrepeso e a obesidade tornaram-se um dos principais problemas na segurança alimentar e nutricional. De fato, esse problema vem se agravando de tal forma que já é considerado uma questão de saúde pública pelo Ministério da Saúde. Acentua-se o problema, na medida em que a população de menor renda, com menor acesso à informação e com menos recursos para se alimentar de forma mais saudável vem se tornando aquela aonde mais cresce o sobrepeso e a obesidade.

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Os resultados auferidos nesses doze anos não podem ser compreendidos sem que se considere um aspecto que foi diferencial para toda a elaboração e implementação dessas políticas. Trata-se da participação social. Como foi assinalado anteriormente, a sociedade brasileira acumulou uma forte experiência nesse tema, a partir da Campanha Contra a Fome, na década anterior. Em 1998 constituiu-se o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN)42, articulando um conjunto amplo de organizações que procuravam incidir sobre políticas públicas relacionadas com o tema. Durante a elaboração da proposta do Fome Zero, em 2002, o FBSSAN insistiu sobre as oportunidades oferecidas pela participação social. Como consequência, no primeiro ato do novo governo, em 2003, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)43 é recriado . Com 2/3 de sua composição pertencendo à sociedade civil, ele ficou diretamente ligado à Presidência da República, o que lhe conferiu especial importância na articulação de governo e sociedade. Grande parte dos programas e políticas aqui citados tiveram no CONSEA o espaço principal de debate, elaboração e acompanhamento. Foi o caso do PAA, proposto e discutida a base de sua formulação no Conselho. Da mesma maneira, o processo de recuperação do valor do per capita da alimentação escolar e seu projeto de lei que seria depois aprovado. Sucederam-se três conferências que reuniram milhares de pessoas desde os municípios mais remotos do país, trazendo suas demandas e construindo conjuntamente aquelas que se tornariam as diretrizes principais dessa política. Assim foi com a elaboração e aprovação no Congresso Nacional, em 2006, da Lei Orgânica de Segurança Alimentar, regida pelo princípio do direito humano à alimentação e que instituiu seu Sistema Nacional, à exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Também foi o CONSEA, em articulação com a Frente Parlamentar de Segurança Alimentar que desengavetou a Proposta de Emenda Constitucional do Direito Humano à Alimentação, em 2010, e incorporou a alimentação no Capítulo 6, dos direitos sociais da Constituição Federal. Do CONSEA nacional reproduziram-se conselhos em todos os estados e em um número significativo de municípios que, gradativamente, vão buscando romper uma das maiores dificuldades do estado brasileiro, que é a de implementar as políticas nacionais no plano local.

42

Em 2003 assume a denominação de Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

43

O Conselho foi criado pela primeira vez em 1993, mas deixou de existir em 1995, substituído pelo Conselho da Comunidade Solidária. Em 1994 liderou a realização da Ia. Conferência de Segurança Alimentar.

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Desafios Os próprios avanços ocorridos deixam mais claros novos desafios ou mesmo aqueles que antes não eram identificados em sua gravidade. Um primeiro deles, que ainda não encontrou um encaminhamento satisfatório, diz respeito à chamada “crise dos alimentos” ou “crise dos preços”, que inquestionavelmente tem uma natureza estrutural, de âmbito global e que vem provocando sérios efeitos sobre mercados locais, em especial naqueles países mais frágeis econômica e socialmente. Fruto da combinação de um conjunto de fatores, como a especulação com alimentos em Bolsas de Futuros, a dependência do modelo químico na agricultura, a produção de etanol e as mudanças climáticas, coloca a nu o processo de mercantilização dos alimentos e a ameaça crescente à soberania alimentar dos países. As repercussões dessa crise sobre a inflação são visíveis e não tem poupado o Brasil. Tal situação exige medidas reguladoras no plano internacional. O Brasil pode ter um papel de liderança nessa direção, mas até agora nada se concretizou em função dos interesses divergentes que aqui convivem, de um lado com a busca incessante do lucro pelo agronegócio, reforçado pelo que aparentemente resulta em nossa balança comercial e, de outro, com a mobilização pelo direito à alimentação e pela soberania alimentar. A crise dos alimentos realça, também, a urgência de uma Política Nacional de Abastecimento, que garanta ao estado a função reguladora a ser desempenhada nessa matéria. Há que se cuidar, também, da preservação daquilo que foi conquistado. Nesse sentido preocupa o fato da alimentação escolar estar novamente com seu valor per capita congelado já a alguns anos, como ocorreu no passado. Igualmente deve ser prestada atenção em relação ao Programa de Aquisição de Alimentos, não somente seguindo no esforço de fazê-lo chegar a um número maior de pequenos agricultores familiares, como também mantendo e avançando em uma de suas melhores características, que é o fortalecimento das organizações sociais que atuam nos lados da produção e consumo. Outro aspecto que exige permanente atenção é sobre a situação dos grupos populacionais mais vulneráveis, como indígenas e quilombolas. A situação dos indígenas, particularmente, cobra uma ação enérgica do estado, considerando-se que ainda se mantém em condições inaceitáveis de insegurança alimentar e desnutrição, em grande medida provocadas pela perda de terras para o agronegócio. Destravar no Superior Tribunal Federal os impedimentos na demarcação de terras indígenas é urgência que não pode ser adiada. Não custa relembrar que os direitos dos povos

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indígenas são considerados originários, no artigo 231 da Constituição Federal, ou seja, devem prevalecer sobre quaisquer outros direitos. A expansão agrária, madeireira ou mineral, com perda da biodiversidade, indispensável para a reprodução física e cultural desses povos é violação grave desse direito constitucional. Salvo casos como o dos indígenas e de outros grupos populacionais que não usufruíram dos avanços do país no acesso aos alimentos, o desafio maior que se apresenta para a segurança alimentar e nutricional passa a ser a questão da má alimentação geradora de sobrepeso e obesidade e, ao mesmo tempo, carências de nutrientes essenciais. O enfrentamento do problema não pode ser deixado apenas para o Ministério da Saúde, já que os determinantes são vários e somente uma ação coordenada pode reverter as atuais tendências. O aumento da disponibilidade de alimentos in natura, básicos e minimamente processados; ações de educação, comunicação e informação adequada para os diferentes públicos, a promoção de modos de vida saudáveis; a atenção integral à saúde do indivíduo com sobrepeso e obesidade na rede de saúde; o controle da qualidade e inocuidade de alimentos, com diminuição de teores de açúcares, gorduras e sódio e medidas fiscais que estimulem o acesso e aumento do consumo de alimentos saudáveis são iniciativas e medidas indispensáveis para o enfrentamento dessa questão. Ressalte-se ainda a necessidade de regulação da publicidade de alimentos, prática comum em inúmeros países e que no Brasil é cinicamente rotulada pelos grupos econômicos que lucram com este expediente como “atentado à liberdade de expressão”. Outro enorme desafio refere-se ao alto grau de contaminação dos alimentos. O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos, correspondendo a19 % do mercado mundial. Segundo dados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), realizada em 2010, 28% dos alimentos analisados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) tinham quantidade acima do limite permitido ou continham agrotóxicos proibidos. É enorme a pressão contra qualquer medida que amplie a frágil regulação existente sobre esses produtos, o que sugere que a resistência a este modelo de produção terá que contar com forte participação da sociedade. A boa notícia foi o lançamento do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica pela presidência da república em 2014, que trabalha na direção de estimular este modelo, dentro de um espectro que vai da produção ao consumo. Cabe agora observar sua aplicação. Por fim, há que se restaurar a disposição do governo em construir e executar a política de segurança alimentar e nutricional com ativa participação social, como ocorreu nos oito primeiros anos do período que é aqui analisado.

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Na ordem constitucional atual já colocamos o alimento como um direito. Avançamos, mas ainda restam muitas lacunas que precisam ser cobertas, direcionando as políticas públicas para garantirem de forma mais plena esse direito.

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TRANSPORTE E MOBILIDADE URBANA, PROBLEMAS E DESAFIOS Por Juciano Rodrigues Doutor em Urbanismo Pesquisador do Observatório das Metrópoles no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Bolsista de Pós-Doutorado nota 10 da Fundação Carlos Chagas Filho(FAPERJ)

Deslocar-se cotidianamente é uma necessidade comum a todas as pessoas. Mas a frequência, os motivos, os meios disponíveis e as condições de rapidez, conforto e segurança dos deslocamentos são determinadas e muitas vezes contingenciadas por atributos individuais, familiares, dos bairros e das cidades onde as pessoas vivem. A essa capacidade de deslocamento - determinada por tais características - deu-se o nome de mobilidade urbana. Uma das constatações clássicas dos estudos sobre transporte é que a situação socioeconômica de indivíduos e famílias têm uma grande influência sobre o deslocamento cotidiano. Isto quer dizer que pessoas com maior renda tem uma capacidade maior de se deslocar, ou de realizar mais viagens diariamente. Ou seja, têm mais mobilidade urbana. Recentemente, alterações nas formas e nas condições em que as pessoas se deslocam diariamente transformou a mobilidade urbana num dos temas mais discutidos recentemente no Brasil. Os meios de comunicação estão, todos os dias, repletos de conteúdo sobre esse assunto. Nas redes sociais, a cada dia,surgem mais perfis colaborativos que reúnem usuários dos diversos meios de transporte e os aplicativos que tem a função de ajudar as pessoas a fugir do trânsito fazem cada vez mais sucesso entre os motoristas. No caso brasileiro, em um contexto de profundas transformações urbanas, a constituição de um modelo específico de mobilidade urbana, marcado por anos de progressivo abandono do investimento em transporte público de massa e pelo aumento da motorização individual, determinou, de modo geral, a maneira como nos deslocamos atualmente. Agora, tem surgido evidências que caracterizam um piora nas condições de deslocamento, com indícios de uma espécie de generalização do mal-estar causado pelos graves problemas de transporte. Isso significa dizer também que problemas decorrentes da crescente precariedade do sistema de mobilidade passou a atingir os grupos de maior status socioeconômico, que,

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historicamente, encontraram no automóvel particular a solução para a falta ou ineficiência do transporte coletivo. Por essa razão, a importância política do tema atinge outro patamar. Além disso, nos últimos anos, outros dois motivos colocaram a mobilidade urbana no centro do debate sobre o futuro da sociedade urbana no Brasil. Em primeiro lugar, pela maior presença nos discursos políticos e promessas eleitorais, constada pela frequência com que o tema apareceu nas últimas eleições municipais e pela relevância dada nas propostas de governo apresentadas pelos três principais candidatos a presidente nas eleições de outubro de 2014. Em segundo, pelo protagonismo que o transporte urbano teve nas chamadas “Jornadas de Junho”, como ficou conhecida a série de manifestações que começaram em junho de 2013. Assim, tem se tornado necessário e urgente refletir não só sobre a capacidade de deslocamento das pessoas, mas sobre em que condições eles ocorrem e quais soluções estão sendo propostas pelos diversos níveis de governo. Em relação a essas condições tem se tornado cada vez mais importante observar não só as dimensões quantitativas, mas também aquelas qualitativas da mobilidade urbana relacionadas diretamente ao bem-estar da população urbana. No caso das soluções, a necessidade é questionar que tipo de saída estão sendo propostas para os graves problemas enfrentados nos últimos, questionando, principalmente, qual o modelo de mobilidade urbana está sendo implantado nas principais cidades brasileiras. O objetivo desse artigo é apresentar a questão atual da mobilidade urbana no Brasil, procurando refletir sobre suas raízes históricas, a origem e os efeitos do que poderíamos chamar de “crise da mobilidade urbana. Obviamente a intenção não é esgotar totalmente o assunto – e nem teríamos espaço para isso -, no entanto procurar-se-á focar em dois pontos principais: a dimensão metropolitana dos problemas e a conjuntura atual, procurando levar em conta também suas raízes históricas e algumas expectativas futuras. A dimensão metropolitana Ao longo do século XX, o Brasil se consolidou como um país metropolitano. Apesar de não crescerem como antes, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte continuam mantendo suas importâncias econômicas e demográficas, tanto na rede urbana regional do Sudeste quanto na escala nacional. No Sul, Curitiba e Porto Alegre polarizam com grande força as redes urbanas regionais. No Centro-Oeste, além de Brasília, que já desempenhava importante papel na gestão do território, Goiânia se desponta com um espaço metropolitano em processo de consolidação e com alta capacidade de polarizar uma grande região organizada a partir da economia do

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agronegócio. As regiões metropolitanas da Região Nordeste (Fortaleza, Recife e Salvador), cada qual com suas especificidades, continuam se expandindo com uma forte influência do chamado imobiliário turístico, levando alguns autores a criar inclusive o conceito de “Metropolização Turística”44. No Norte, Belém é um importante centro de serviços, que serve de base para os inúmeros projetos econômicos implantados no Estado do Pará. Enquanto Manaus constitui um importante polo econômico por conta da presença da Zona Franca. São nesses espaços que os problemas da mobilidade urbana se manifestam de maneira mais evidente. Nessas doze regiões metropolitanas estão 66 milhões de pessoas ou 34,1% da população do país, 47,2% do PIB e, já que estamos falando de mobilidade urbana, se concentram 43,6% de todos os automóveis do país e 23,3% das motos. O ponto de partida para se pensar essa questão no Brasil é considerar sua dimensão metropolitana, o que significa levar em conta, principalmente, um mercado de trabalho organizado nessa escala e que envolve milhares de deslocamentos diários entre as os municípios. Segundo o Censo 2010, nas doze principais regiões metropolitanas, mais de 13 milhões de pessoas se deslocam diariamente entre os municípios, para trabalhar ou estudar. Sem dúvida, o que acontece nesses espaços é representativo dos demais fenômenos urbanos do país. Além disso, as transformações experimentadas na metropolização brasileira são de especial relevância para a mobilidade urbana. Apesar da estabilização do crescimento demográfico e das diferenças entre elas, essas regiões metropolitanas experimentaram, nas últimas décadas, importantes mudanças em sua configuração espacial, de modo que é possível identificar uma tendência geral de expansão territorial. Em primeiro lugar, as periferias metropolitanas apresentaram ritmos de crescimento mais acelerados, com imigração ainda bastante expressiva. Simultaneamente, os núcleos apresentam um incremento populacional absoluto ainda muito considerável, além de continuarem concentrando também boa parte dos empregos. Além disso, em todas elas a tendência geral, ao longo das últimas décadas, aponta também para um aumento da mancha urbana, com uma diminuição considerável da densidade populacional e a formação de tecidos urbanos mais espraiados. A densidade do conjunto das principais regiões metropolitanas era de 5.839,1 hab/km² na década de 1980, passa para 5.438,5 hab/km² na década de 1990, cai para 4.980,7 hab/km² na década de 2000 e chega à década de 2010 com 4.516,6 hab/km².

44

(Dantas, Ferreira e Clementino, 2010).

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Obviamente, por estarmos falando de um sistema urbano altamente complexo, essa tendência geral pode subestimar ou mesmo esconder de alguma maneira características da diversidade espaço-temporal do processo de metropolização brasileiro. No entanto, entender o que há de comum no desenvolvimento espacial do conjunto dessas regiões metropolitanas pode contribuir no maior entendimento da relação entre configuração espacial e os diversos aspectos da vida urbana, entre eles as condições de deslocamento. Neste caso, duas características devem ser observadas em especial. Em primeiro lugar, persiste a concentração dos empregos nas áreas centrais, e, em segundo, o tipo de expansão urbana experimentada nos últimos anos favorece a dispersão residencial. Além disso, é preciso ressaltar que essas aglomerações conformam territórios cujas fronteiras políticas (os limites municipais) não coincidem com a estrutura funcional e econômica da mancha urbana. Essa fragmentação política assentada sobre um espaço urbano complexo e integrado, onde cada gestor municipal defende seus interesses, está por trás da questão metropolitana que nos coloca frente ao desafio de como planejar, financiar e gerir infraestruturas nessas áreas, inclusive as de transporte. Portanto, considerar a dimensão metropolitana da urbanização brasileira é o primeiro passo para a formulação de políticas públicas para a mobilidade urbana. A crise da mobilidade urbana no Brasil Não é de hoje que as cidades brasileiras experimentam problemas de mobilidade urbana. Um olhar ao longo prazo permite dizer, inclusive, que, nesse campo,vivemos uma crise permanente. No entanto, mais do que sua permanência, a situação atual pode ser considerada um agravamento do que sempre foi denominada como “crise da mobilidade urbana” a medida em que há evidências de uma piora nas condições de acessibilidade e circulação no espaço das grandes cidades. As origens dessa piora parecem estar relacionadas, sobretudo, ao crescimento da motorização e às deficiências do transporte coletivo, que inclui a falta de investimento em transporte de massa, a desregulamentação do setor de transporte público e a generalização de formas precárias e inseguras de transporte. Os efeitos principais são o aumento dos congestionamentos e do tempo de viagem, o crescimento dos acidentes de trânsito e a persistente desigualdade de condições de mobilidade entre os grupos sociais. Inicialmente, para entender a conjuntura da mobilidade urbana é necessário destacar a formação do que poderia se denominar de “modelo brasileiro de mobilidade urbana”, que está relacionado diretamente ao processo de desenvolvimento econômico e ao processo de urbanização. Como

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lembra Eduardo Vasconcellos, sociólogo e engenheiro de transporte que há anos dedica-se ao estudo do tema, as respostas à pergunta de por que chegamos ao ponto em que chegamos não estão somente no tipo de desenvolvimento capitalista que o país experimentou, mas também estão na forma como as cidades se desenvolveram e nas políticas de transporte e trânsito adotadas no passado45. Até 1940, havia uma relevante presença dos bondes nas grandes cidades brasileiras. Nesse período, medidas importantes tomadas pelo Governo Federal começam a moldar a políticas de transporte no Brasil que perduram até os dias de hoje, provocando grandes impactos principalmente nas principais RM’s. Nesse momento foi elaborado o Plano Rodoviário Nacional (PNR) e foram criados o Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNER) e o Fundo Rodoviário Nacional (FRN). É também nessa época que se inicia a substituição dos bondes pelos ônibus no transporte coletivo. A partir de 1950, começa de fato o declínio dos serviços de bonde, quando se inicia a transição para os veículos sobre rodas. É um momento em que ocorre também a municipalização do tema, com a ausência de atuação do Governo Federal. Com a saída paulatina dos bondes, aumenta-se a oferta dos serviços de ônibus, embora o serviço fosse realizado predominantemente por empreendedores individuais e de forma bastante precária. No início dos anos 1960, a demanda dos bondes no Brasil já era a metade daquela que havia sido registrada em 1950 e até meados da década o serviço desaparece por completo. Nesse período são criadas as primeiras empresas públicas de ônibus em algumas capitais, entre elas o Rio de Janeiro, em 1963, cidade que serve de exemplo perfeito para descrever o fim dos bondes. O serviço desaparece por completo em 1964, mas, somente após quatro anos, ou seja, em 1968, que o número de passageiros transportados por ônibus - serviço que a partir de então passava a predominar - conseguiu superar o volume de passageiros dos bondes no seu auge, em 1944. É nessa década também que passa a ocorrer o maior incentivo ao uso do automóvel no Brasil, com a relativa queda no preço e sua popularização enquanto “produto da indústria nacional”. Na primeira metade década de 1970, os ônibus, de fato, passaram a predominar nos serviços de transporte urbano no país. Nos primeiros anos dessa década, a participação do governo federal no setor de mobilidade urbana era praticamente nula, embora nos casos de Rio de Janeiro e São Paulo a situação fosse um pouco diferente, pois o governo federal tinha participação direta na

45

(VASCONCELLOS, 2013, p.12).

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rede ferroviária existente. No entanto, é uma conjuntura de piora nas condições de mobilidade que faz com que o tratamento dado à mobilidade urbana mude a partir desse instante. Tais mudanças são consequências diretas do crescimento urbano acelerado e da crise do petróleo. Apesar da entrada do Governo Federal na questão da mobilidade na maioria das regiões metropolitanas, o modo que continuou a prevalecer foi o transporte por ônibus e, no final dessa década, a população continuava altamente dependente desse tipo de transporte. Desde então, o transporte por ônibus passa a prevalecer na maioria das grandes cidades. Mas, em meados da década de 2000, começam a aparecer evidências de uma clara transformação estrutural, quando transporte público de fato passa a perder demanda e ocorre uma elevação da motorização individual. Na história do Brasil, a importância da indústria automobilística - assim como as políticas de incentivo à compra de carros - não pararam de crescer nas últimas décadas. Assim, temos postulado que a situação que se caracteriza como crise resulta também da preferência gradual pelo modo de transporte individual em detrimento das formas coletivas de deslocamento. Dessa forma, a crise da mobilidade e seu agravamento acontecem, antes de tudo, por uma crise do transporte coletivo e uma reafirmação do modelo rodoviarista que alcança seus limites com o grande aumento de automóvel e motocicletas. Especialmente em anos mais recentes, ocorreu um crescimento explosivo no número de veículos particulares no Brasil, sobretudo nas grandes cidades. Nas doze principais regiões metropolitanas o número de automóveis, entre 2001 e 2012, passou de 11,5 milhões para 21,9 milhões e o de motos passou de 1,1 milhão para 4,6 milhões, que representam crescimentos da ordem de 88,8% e 318,8%, respectivamente. No Brasil, no mesmo período, o crescimento dos automóveis foi de 104,5% e das motos foi de 339,5%. Obviamente, nesse cenário, o transporte público passa a perder demanda e ocorre uma elevação ainda mais radical da motorização individual. Citando mais uma vez o exemplo da região metropolitana do Rio de Janeiro, o uso do transporte público cai de 451 para 149 viagens por habitante por ano, ao passo que o uso do automóvel aumentou de 32 para 137 viagens por habitante por ano46.

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Segundo dados apresentados por VASCONCELLOS (2013, p. 23).

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Conjuntura: efeitos da crise da mobilidade urbana O intenso crescimento da motorização aparece acompanhado do aumento dos congestionamentos e do tempo de viagem, do aumento dos acidentes de trânsito (inclusive nos transportes público) e a disseminação de formas precárias e inseguras de transporte. Esse conjunto de efeitos se manifestam em diferentes graus e variam segundo as características próprias de cada cidade, provocando o agravamento do que se convencionou chamar de “crise da mobilidade urbana” Uma característica, porém, que compartilham as principais regiões metropolitanas brasileiras é o aumento nos tempos e tipos de deslocamentos diários, que decorrem, sobretudo, do aumento nas distâncias (residência-trabalho). No entanto, não é só um aumento nas distâncias que provocou um aumento no tempo que as pessoas levam nos trajetos cotidianos, já que os congestionamentos estão cada vez mais presentes em um número crescente de lugares. Nesse caso, mais uma vez é necessário destacar a explosão da motorização individual e a falta de investimentos em sistemas de transporte coletivo de massa. Assim, paradoxalmente, apesar da crescente motorização, têm ocorrido tanto um aumento no número de pessoas que levam mais tempo no trajeto entre seus locais de residência (mais de uma hora), como do tempo médio de deslocamento nas principais regiões metropolitanas47. Nesse contexto, se em décadas anteriores a posse do automóvel atendeu a um aspecto econômicoideológico, representado pelo modelo rodoviarista, e, ao mesmo tempo, propiciou o aumento da velocidade de deslocamento da classe média, já que este se desloca a uma velocidade bem superior à do ônibus, atualmente verifica-se o esgotamento deste modelo (ROLNIK; KLINTOVITZ, 2011). Dados coletados e sistematizados por diversas instituição têm mostrado, também, que crescimento da motorização provoca efeitos negativos para a saúde e o bem-estar da população. No Brasil, nos últimos anos, ocorreu um crescimento no número de acidentes de trânsito, inclusive aqueles com vítimas fatais. As tendências nacionais, segundo aponta o Mapa da Violência 2012 (Waiselfisz, 2012), estão marcadas pela queda na mortalidade de pedestres; pela manutenção das taxas de ocupantes de automóveis; por um incremento leve nas mortes de ciclis¬tas e um violento aumento na letalidade de motociclistas.

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Como mostrou o trabalho de SWHANEN e PEREIRA(2013).

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A motocicleta é um veículo que tem vantagens individuais, mas que, devido a vulnerabilidade dos usuários, se torna uma grande desvantagem social. Em 2012, segundo o Ministério da Saúde, morreram no Brasil 12.480 em acidentes de moto. Esse aumento é de 9,1% em relação ao número verificado em 2011. Neste caso, há uma razão ainda maior para acreditar que a população mais pobre está mais suscetível a essa vulnerabilidade, pois o aumento da motorização por motos se dá sobretudo nas áreas periféricas das RM’s, como aponta relatório elaborado pelo Observatório das Metrópoles (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2013). Além disso, os serviços precários de transporte cresceram desde a década de 1990, acompanhando a falta de investimento do Estado e a desregulamentação do setor empresarial.Se o automóvel individual é a saída para os grupos de maior renda, para os setores de renda mais baixa a saída são, por um lado, os meios formais de transporte público, mas já bastante precarizados e, por outro, meios informais, degradados e inseguros. É neste quadro que surge, em muitas cidades, o serviço de mototáxi e explodem, sobretudo nas periferias, os serviços oferecidos através de vans e kombis. Naturalmente, devemos ainda considerar que as mudanças no sistema de mobilidade se deu no contexto de profundas transformações econômicas, políticas e sociais experimentas pelo país a partir da década de 1990, e que, diga-se, não foi exclusividade do Brasil, pois é uma situação verificada em muitos países da América Latina. Tais mudanças podem também ser associadas ao processo de liberalização que, por sua vez, se expressa na abertura econômica, na redução do papel do Estado e na ênfase do papel do mercado na economia, que provocaram impactos relevantes nas políticas públicas de transporte. Nessa perspectiva, um dos principais impactos específicos foi a saída do Estado da função de provisão dos serviços de transportes, representada sobretudo pela privatização das empresas públicas. Política de mobilidade urbana, soluções e desafios Após anos de incentivos diretos e indiretos ao transporte individual por parte de todos os níveis de governo, o cenário mais recente inclui uma retomada no investimento em transporte coletivo. Essa retomada aparece com os investimentos previstos para o PAC 2, que prevê ações e projetos de infraestrutura em diversas cidades. A maioria dessas ações sequer começou a ser executada. Entretanto, os projetos de mobilidade listados como prioridade para a realização da Copa do Mundo de Futebol 2014 e para os Jogos Olímpicos 2016 são uma boa amostra dos tipos de ações que estão sendo (ou poderão ser) implantadas.

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Originalmente, em um documento chamado Matriz de Responsabilidade, onde Governo Federal, governos estaduais e municipais se comprometiam a prover a infraestrutura necessária para realização da Copa, foram listados mais de 60 projetos no campo da mobilidade. Como foi amplamente noticiado pela impressa, muitas das obras não ficaram prontas para a Copa, enquanto outros projetos foram simplesmente abandonados. Nesse cenário é preciso acrescentar que as promessas de melhoria no campo da mobilidade urbana desempenharam o papel mais central no discurso do “legado social”, justificando os esforços políticos, a mobilização social e a destinação de volumosos recursos público, inclusive aqueles em intervenções de pouco valor social, como muitos dos estádios. Afinal, toca-se numa questão social bastante sensível, como é o caso do transporte urbano no Brasil. A primeira impressão é que as intervenções que estão sendo feitas vão de alguma forma amenizar os problemas. No entanto, há sinais de que colocam em dúvida se são de fato as soluções mais apropriadas para regiões metropolitanas onde a população se desloca por grandes distâncias e, cada vez mais, de um município para outro.A amostra que temos a partir do que foi proposto para Copa revela que não há nenhum projeto de integração metropolitana, por exemplo. Outro sinal é que se por um lado há retomada no investimento em transporte coletivo, por outro há ainda muito investimento em infraestrutura rodoviária que privilegia o transporte individual. De tudo que estava para a Copa do Mundo, 134,1 quilômetros, ou 36,8%, são de infraestrutura exclusivamente rodoviária. O total de infraestrutura prevista para implantar o principal modelo de transporte coletivo, o Bus Rapid Transit (BRT) somava 155,4 km. Neste caso, é imprescindível dizer que a construção de infraestrutura para a implantação desse modelo sempre é acompanhada pela construção de infraestrutura rodoviária, desde vias que acompanham o leito do BRT até viadutos e trincheiras que visam essencialmente dar maior fluidez ao tráfego de veículos particulares. Há, ainda, dúvidas se o modelo BRT é a solução para regiões metropolitanas que ficaram anos e anos sem investimentos no transporte sobre trilhos, como é o caso do Rio de Janeiro. Além disso é fundamental questionar como esses investimentos estão localizados no território dessas cidades. A análise do que foi implantado até agora nas doze sedes da Copa mostra que eles estão majoritariamente concentrados em determinadas regiões, em primeiro em seus municípios núcleos e, em segundo, em regiões específicas. O cenário desenhado para o futuro também não deixa otimista aqueles que esperavam que, com a aprovação da Lei 12.587, a Lei da Mobilidade Urbana, houvesse maior investimento em

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transporte não motorizado. Não há praticamente nada previsto para a implantação de infraestrutura cicloviária, por exemplo. Ao contrário, as ações e projetos seguem o caminho inverso por ainda privilegiar o transporte sobre rodas, sobretudo o individual. Por fim, as políticas para a mobilidade urbana atuais uma vez ignoram a escala metropolitana em razão da desigualdade na distribuição das ações e projetos e da insistência no modelo rodoviário. Ou seja, em primeiro lugar, embora haja uma retomada nos investimentos, as práticas são baseadas em políticas concentradoras e antidistributivas, que mais uma vez podem contribuir para acentuar as características de desigualdade socioespacial de nossas regiões metropolitanas. Em segundo a política para mobilidade caminha para a manutenção do modelo rodoviarista que parece indicar a força inexorável do setor automobilístico e do setor das grandes obras públicas. Referência Bibliografia: DANTAS, E.W; FERREIRA, A; CLEMENTINO, M.L.M (2011). Turismo e Imobiliário nas Metrópoles, Rio de Janeiro, Letra Capital/Observatório das Metrópoles. OBSERVATÓRIO das Metrópoles (2013). Evolução da frota de automóveis e motos no Brasil 2001 – 2012 (Relatório 2013), Rio de Janeiro, Observatório das Metrópoles. Disponível em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/download/auto_motos2013.pdf RIBEIRO, L.C., SILVA, É.T., RODRIGUES, J.M (2011), Metrópoles brasileiras: diversificação, concentração e dispersão. Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curitiba, n 120. ROLNIK, R; KLINTOWITZ, D (2011). (I)Mobilidade na cidade de São Paulo. Estudos Avançados. São Paulo, v 25 n 71. SCHWANEN, T, PEREIRA, R (2013). Tempo de deslocamento casa-trabalho no Brasil (19922009): diferenças entre regiões metropolitanas, níveis de renda e sexo. Textos para Discussão, Brasília, IPEA. VASCONCELLOS, E.A (2013). Políticas de Transporte no Brasil: a construção da mobilidade excludente. São Paulo, Editora Manol.

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O IBASE E A ANÁLISE DE CONJUNTURA PARA O MOVIMENTO SOCIAL Por Fernando Cardim Professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Economia (UFRJ)

No seu retorno do exílio em 1980, Betinho trouxe consigo uma “visão” para o Brasil: a de que a apenas política partidária não bastava para fazer uma democracia funcionar verdadeiramente, era preciso que a cidadania mesma fosse capaz de se mobilizar para demandar seus direitos (incluindo-se neles o direito de cumprir os seus deveres). Mas para que a mobilização da sociedade pudesse ser conseguida, era preciso, fundamentalmente, democratizar a informação. O regime militar havia monopolizado por quase trinta anos, mas mesmo o período democrático que o precedeu era caracterizado pelo “domínio dos chefes”, inclusive nos agrupamentos de esquerda. Havia os que sabiam e os que seguiam. A grande visão de Betinho era que uma democracia real exige cidadãos, não seguidores de chefes, e que o acesso à informação relevante era condição essencial para que as “massas” do antigo discurso de esquerda se transformassem em cidadania. E assim, e para isso, nasceu o Ibase. Dos esforços originais de Betinho e Carlos Afonso resultou uma entidade cuja missão era menos mobilizar as “massas” que dar acesso à informação necessária para que grupos sociais assumissem a sua própria mobilização. Informação sobre o que? Sobre o Brasil, sobre a sociedade, sobre os seus recursos, sobre a estrutura social, sobre a natureza e as ações do governo e seu impacto sobre a vida de todos nós, sobre a educação, a saúde, a cultura e os meios de comunicação, sobre o que era feito no resto do mundo, sobre tudo, afinal. Tudo isso era necessário para que cada cidadão pudesse estar informado o suficiente para não ser manipulado por “chefes”, e fosse capaz de tomar suas próprias decisões. É claro que, dadas as dimensões do Ibase, que nos seus primeiros anos funcionou principalmente sobre a base do trabalho voluntário de muitas pessoas que perceberam a importância (e a novidade) da iniciativa, prioridades teriam de ser definidas, já que não haveria recursos materiais ou humanos para cobrir de uma vez todas as áreas que se reconhecia como importantes. Uma dessas prioridades era mais ou menos óbvia, tanto pelo lado da disponibilidade de recursos, quanto por sua importância, a análise de conjuntura. Os voluntários e os funcionários do Ibase

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constituíam uma ampla base bem qualificada para proceder a essas análises, dotados, no seu conjunto, de experiência longa e diversificada na analise social, política e econômica. Por outro lado, o início dos anos 1980 foi um período de grande turbulência, seja na economia, às vésperas da grande crise da dívida externa que atingiu os principais países da América Latina, seja na política, com os sinais cada vez mais evidentes de esgotamento da capacidade de controle da população pelo regime militar mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, pela radicalização dos grupos extremistas ligados aos “porões” dos quarteis, na resistência quaisquer medidas de abertura política. A análise de conjuntura no Ibase começou com a preparação e publicação de um periódico, Políticas Governamentais, conhecida à época como PG, predecessor da revista Democracia, cujo impacto foi amplo e imediato. Naturalmente, a análise de conjuntura não foi inventada no Ibase. O que a PG tinha de diferente? A meu ver, duas características: a diversidade de experiências e conhecimento que era canalizada para os textos publicados, resultantes da interação de debatedores de várias origens, e a perspectiva que inspirava a preparação da revista, a de subsidiar movimentos populares, o que determinava não apenas a seleção dos problemas a serem examinados, mas também moldava o produto final, tornando-o radicalmente diverso da análise de conjuntura dedicada, por exemplo, a subsidiar aplicadores em sua tentativa de maximizar seus ganhos no mercado financeiro. Nesse sentido, a análise de conjuntura nunca perdeu sua utilidade. Na verdade, ela é ainda mais necessária na democracia que nos estertores do autoritarismo militar. Quando há muitas alternativas sendo oferecidas para o debate, é preciso que o cidadão e a cidadã sejam capazes de julgá-las por si mesmos, sua substância, sua viabilidade, etc. Por um lado, a aproximação das eleições gerais de outubro deste ano reforça a necessidade de exame cuidadoso do que estará sendo proposto pelos diversos candidatos não apenas ao posto de presidente da república, mas também para os governos estaduais e postos legislativos federais e estaduais. Por outro, a situação atual da economia brasileira é difícil, ainda que não seja realmente crítica. Nos três anos anteriores, a economia brasileira nitidamente perdeu fôlego, atingindo taxas de crescimento muito mais baixas do que se esperava para o mandato da Presidente Rousseff. Todas as informações apontam para um 2014 igualmente desapontador, com a taxa de crescimento econômico prevista menor a cada nova safra de dados sobre o desempenho dos diversos setores da economia. Sem dúvida alguma, o setor mais problemático é a produção industrial. Até o presente, em todo o período posterior à criação do Real e da dramática redução da inflação, em

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1994, ainda não se encontrou uma resposta adequada ao dilema colocado pela sobrevalorização da moeda brasileira. Em linhas gerais, o dilema é simples: para manter os preços (e, assim, a inflação) controlados, é preciso poder importar produtos do exterior a baixo preço, para impedir que os produtores locais aumentem os preços que cobram por seus produtos. Quando mais forte for o Real (isto é, quanto mais dólares se puder comprar com uma dada quantia de reais), mais baratos serão os produtos importados e menores serão os preços cobrados pelos produtores locais. Para conseguir um Real forte, o governo mantem taxas de juros altas, porque taxas de juros altas atraem os aplicadores que tem dólares, que tentarão trocá-los pela moeda brasileira para aplicar e ganhar os juros mais altos pagos no país. O problema é que, com taxas de juros altas e câmbio sobrevalorizado, os produtores locais não conseguem produzir nem vender, nem dentro do país, nem fora (via exportações). Assim, desde 1994, o país tem se debatido entre as duas pontas do dilema: se o governo reduz os juros, o dólar se valoriza, os produtos importados ficam mais caros, os locais também, e a inflação sobe; se o governo eleva os juros, a inflação fica um pouco mais fácil de controlar, mas a economia, especialmente o setor industrial, fica estagnado. O baixo crescimento é um problema, porque torna mais difícil a melhoria de vida e ameaça o nível de emprego. Até esse ano, as firmas ainda aguentaram o nível de contratação de pessoal, levando muita gente a falar em pleno emprego, mas em 2014 a situação ficou nitidamente mais difícil. Como sair desse dilema? Há basicamente duas “propostas” na mesa, até agora. Uma delas seria “reformar” a economia, tornando os produtos brasileiros mais baratos, atenuando ou eliminando o problema da inflação. Desse modo, por exemplo, o corte de direitos trabalhistas, garantias de emprego, contribuições sociais para a previdência dos trabalhadores, etc, diminuiria o custo do trabalho e permitiria aos produtores locais melhorar sua competitividade e expandir sua produção. Do mesmo modo, a redução de impostos iria na mesma direção assim como o corte de despesas públicas, que faria sobrar mais recursos para serem usados pelo chamado setor privado. A liberalização dos mercados financeiros também tornaria a acumulação de capital mais atraente, fazendo aumentar a poupança e a acumulação de capital. Há alguns problemas, porém, com essa alternativa. O primeiro deles, não necessariamente o mais importante, é que suas principais linhas já foram tentadas nos anos 90, e não funcionaram. O país viveu nesse período mais uma de suas chamadas “décadas perdidas” e a produção nacional, ao invés de se tornar mais competitiva em grande medida desapareceu. Muitas firmas antes produtoras, tornaram-se importadoras. Outras fecharam ou foram vendidas a grupos estrangeiros. A acumulação de capital não se intensificou, antes pelo contrário, a economia

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patinou. A liberalização dos mercados financeiros não incentivou investimentos, mas em compensação, tornou a economia brasileira muito mais vulnerável a choques do exterior de modo que qualquer crise em qualquer parte do mundo sempre se refletisse numa crise do balanço de pagamentos brasileiro. Mas mesmo que funcionasse, essa estratégia implica concentração de renda (é o que foi aplicada nos Estados Unidos, por exemplo, no período posterior ao que se chamava na época de Reaganomia, em homenagem às reformas conservadoras do Presidente Reagan) e cria riscos de longo prazo que muitos associam à eclosão da grande crise de 2007, a maior conhecida pelos Estados Unidos, e pelo mundo, desde a Grande Depressão dos anos 1930. O fato, porém, de que a alternativa que está sendo revivida no debate eleitoral que se inicia não ser muito promissora em praticamente nenhum sentido, não deve obscurecer o fato de que a estratégia perseguida nos últimos anos também não tem oferecido os resultados que se esperava. A reativação dos investimentos públicos, especialmente em infraestrutura tem sido mais rica em drama que em resultados. Por um lado, há a óbvia necessidade de discussão mais ampla com a sociedade de projetos que afetem diversas comunidades, dos seus custos e dos seus ganhos esperados. Isso parece ser um caso especialmente importante na área de energia, particularmente na geração de energia elétrica, mas também afeta a rede de estradas, rodoviárias e ferroviárias, a construção de portos, etc. Por outro, a viabilização de projetos nessa área depende de avanços tanto na engenharia física quanto financeira. É preciso saber o que se quer e o que é possível em ambas as esferas. A indefinição, especialmente no que concerne ao financiamento de obras de grande porte, parece ter impedido por muito tempo a concretização de iniciativas nessa área. Além disso, subsistem pressões inflacionárias que, se nem de longe se comparam à situação pré1994, são suficientes para se tornar irritantes importantes na cena política. Uma taxa de inflação que gira em torno de 6% a 6.5% por três anos causa perdas importantes de renda real para todas aquelas categorias ou grupos sociais cujos rendimentos não acompanhem a desvalorização da moeda. Subestimar esse fator, especialmente em um país com a história de horrores inflacionários tão recentes é desconhecer o que afeta a sociedade. Finalmente, menos visível, mas também muito perigosa é a situação do balanço de pagamentos. Como um país que perde competitividade interna e externa como o Brasil compensa suas perdas? Com a entrada de capitais. Mas a entrada de capitais cria obrigações, seja de dívidas, seja de remessa de lucros ou de retorno dos capitais a seus pontos de origem. No caso brasileiro, temos acumulado déficits nas transações com bens e serviços (chamadas de “balança de transações correntes”), que se não são ainda críticos, são já preocupantes.

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Com tantos problemas no horizonte, como dizer que a situação é difícil, mas não é crítica? Aqui é preciso considerar que há alguns fatores em operação que podem atenuar as dificuldades e até, eventualmente, virar o jogo a tempo de evitar problemas mais profundos. Por um lado, há a Petrobras. Os problemas que a companhia vem enfrentando se mostraram muito mais sérios do que se imaginava quando se falava do seu futuro com o pré-sal. O pré-sal continua lá, embora em um mundo onde a competição do xisto vem se acentuando, e aguarda-se a virada da Petrobras para breve. Se isso se concretizar, não apenas os efeitos diretos de uma recuperação efetiva da maior empresa do país, mas seus efeitos indiretos sobre as expectativas e o otimismo da população deverão ser muito mais que desprezíveis. Por outro lado, há indícios que certos programas de governo, especialmente no que diz respeito a investimento público, possam finalmente dar resultados. Os dilemas com relação a cambio, juros e a produção industrial, porém, continuam tão difíceis e intratáveis como antes e não é claro como o governo pretende reagir a isso, para além de medidas pontuais e de eficácia limitada no tempo como dar incentivos a setores industriais específicos. Uma análise de conjuntura apropriada e eficaz para o movimento social não pode ignorar o que acontece no resto do mundo, e nesse lado, infelizmente, há mais razões para preocupação do que para alívio. A grande crise iniciada nos Estados Unidos em 2007, tornada internacional em 2008, mantem a reativação da economia daquele país mais tímida do que seria necessário para aliviar a nossa situação comercial, mas seus piores efeitos continuam se concentrando na União Europeia, onde mesmo a economia líder, a Alemanha, se expande a taxas reduzidas, quando se expande. O resto da região continua oscilando entre a estagnação, entremeada de oscilações entre contrações e expansões, nenhuma das quais muito expressiva. Para o Brasil, o impacto mais problemático, porem, vem da China e da Argentina. A China, grande comprador de matérias primas produzidas no Brasil até há poucos anos, resolveu reorientar seu modelo de crescimento e diminuiu suas compras. Isto pode ser bom para o Brasil no longo prazo, já que o país vinha se tornando novamente um mero provedor de matérias primas no mercado internacional, mas no curto prazo o efeito é ver suas vendas ainda mais diminuídas. Já a Argentina se debate com seus crescentes problemas de balanço de pagamentos e embora permaneça um parceiro importante, suas perspectivas são muito incertas para dar alguma tranquilidade. Em suma, a conjuntura brasileira não é mesmo confortável. Algumas de suas possibilidades mais promissoras demoram a dar os resultados esperados e o governo parece ter grande dificuldade em definir políticas econômicas com sentido estratégico. Surgem muitas medidas ad hoc, de impacto limitado ao período em que as medidas permanecem em vigor, sem dinamizar de modo

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mais permanente a economia brasileira. Se se quiser evitar a ressurreição de programas liberais será necessário examinar muito mais detalhadamente a conjuntura que se atravessa, completando esse exame seja com a definição mais precisa de quais os objetivos estratégicos que deve se colocar a sociedade brasileira e quais instrumentos de intervenção são compatíveis com esses objetivos estratégicos.

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