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Edição Especial

Meio ambiente e democracia

DEMOCRACIA VIVA

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JUN 2005 / juL 2005


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Dulce Pandolfi Diretora do Ibase e pesquisadora do Cpdoc/FGV

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sta edição de Democracia Viva está voltada para o meio ambiente.

Trata-se de uma questão central no processo de construção de um mundo mais justo e mais democrático. O problema é aqui analisado nas suas diferentes dimensões e através de distintas abordagens. Em entrevista, o assessor da Fase, Jean-Pierre Leroy, afirma que a questão ambiental precisa ser melhor compreendida por todas as pessoas que lutam por mudanças na sociedade. Para ele, falar de desenvolvimento é, necessariamente, falar de justiça ambiental. Sabemos que a desigualdade social é uma das marcas fundamentais da história do nosso país. Em um dos artigos da revista, Henri Acserald nos mostra que uma das expressões da desigualdade social é a desigualdade ambiental. As populações de baixa renda são as mais atingidas pelos riscos ambientais. Por isso, é fundamental articular as lutas por justiça social com as lutas por proteção ambiental. A ocupação desordenada da região amazônica é um dos objetos de análise da revista. Para que a floresta amazônica continue a exercer um papel fundamental na manutenção do clima do nosso país e do nosso planeta, é urgente que se adotem novos padrões na ordenação da sua ocupação espacial. O grande desafio para a região é conciliar desenvolvimento socioeconômico com a conservação dos recursos naturais. Críticas ao modelo de desenvolvimento adotado nas últimas décadas estão presentes em vários artigos. No caso da agricultura, por exemplo, é certo que a expansão da soja tem, por um lado, propiciado o aumento da entrada de grandes divisas para o país. Mas, por outro, tem contribuído para uma maior concentração fundiária e para desmatamentos na região amazônica. A relação entre democracia e fontes de geração de energia é o ponto central do artigo do pesquisador do Ibase Carlos Tautz. Nesse debate, no qual diferentes posições têm sido defendidas, Tautz afirma que, no Brasil, opções como as usinas nucleares e as termoelétricas movidas a gás natural devem ser descartadas. Uma análise sobre a transposição das águas do Rio São Francisco também não poderia estar ausente nesta edição. A questão é polêmica. Em dois artigos, são apontadas graves distorções econômicas e sociais presentes no projeto que está sendo apresentado pelo governo federal. Atualmente, existe uma percepção que a coleta seletiva do lixo e a reciclagem de resíduos sólidos produzem benefícios econômicos e podem gerar impacto positivo na imagem das empresas que trabalham com esses materiais, consideradas eco-responsáveis. Nesse campo, enquanto o mercado para os reciclados cresce a olhos vistos, catadores e catadoras de lixo continuam sendo alvo de forte preconceito. A equipe de Democracia Viva visitou três comunidades quilombolas. Em todas elas, estão em curso interessantes projetos de desenvolvimento sustentável. A luta pelo reconhecimento das terras, a preservação do meio ambiente e a valorização da cultura local são questões essenciais para aquelas comunidades. Numa edição especial sobre meio ambiente, não se poderia esquecer do Protoloco de Quioto.


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3 Artigo

Do lixo à cidadania Adriana Valle Mota

10 Especial quilombos

Da África para o Brasil 42 artigo

Novas articulações em prol da justiça ambiental Henri Acselrad

48 Nacional

Amazônia e o desafio do desenvolvimento sustentável

Entrevista

Jean-Pierre Leroy

Paulo Moutinho

54 variedades 56 internacional

Regimes internacionais e políticas de mudanças de clima Rubens Born

62 pelo mundo 64 entrevista

Jean-Pierre Leroy 78 Crônica Alcione Araújo Especial quilombos

Da África para o Brasil

80 Resenhas 84 Transposição das águas do rio são francisco Sérgio Pinheiro Torggler Carmen Silvia Maria da Silva 96

opinião ibase

Uma janela histórica está aberta Carlos Tautz

102 indicadores

Comportamento ecológico: chave para compreensão e resolução da degradação ambiental? Claudia Pato

108 Cultura

Para apoiar os projetos desenvolvidos pelo Ibase, escreva para amigos@ibase.br ou telefone para (21) 3852-6028. Doações de pessoas jurídicas podem ser abatidas do Imposto de Renda.

Arte, cidadania e samba no pé Luigi Zampetti

114 espaço aberto

Dinâmica da soja, o desmatamento na fronteira da Amazônia Weber A. N. Amaral, Silvio Ferraz e Roberto Smeraldi 123 sua opinião 124 Última página Nani

Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas Av. Rio Branco, 124 / 8º andar 20040-916 Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852-3517 <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>

Conselho Curador Regina Novaes João Guerra Carlos Alberto Afonso Moacir Palmeira Jane Souto de Oliveira

Direção Executiva Cândido Grzybowski Dulce Pandolfi Francisco Menezes João Sucupira

Coordenadores(as) Erica Rodrigues Fernanda Carvalho Iracema Dantas Itamar Silva João Roberto Lopes Pinto Leonardo Méllo Moema Miranda Núbia Gonçalves

DEMOCRACIA VIVA ISSN: 1415-1499 Diretor Responsável Cândido Grzybowski

Conselho Editorial Alcione Araújo Ari Roitman Cleonice Dias Eduardo Henrique Pereira de Oliveira Jane Souto de Oliveira João Roberto Lopes Pinto Márcia Florêncio Moema Miranda Regina Novaes Rosana Heringer Sérgio Leite

Coordenação Editorial Iracema Dantas

Subedição AnaCris Bittencourt

Revisão Marcelo Bessa

Assistentes Editoriais Flávia Mattar Jamile Chequer

Produção Geni Macedo

Estagiária Thais Zimbwe

Distribuição Maria Edileuza Matias

Projeto Gráfico Mais Programação Visual

Diagramação Imaginatto Design e Marketing

Capa Foto de Marcio R.M./Brasil Imagens

O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política.

Fotolitos Rainer Rio

Impressão Editora Lidador LTDA

Tiragem 5 mil exemplares


artigo

Adriana Valle Mota*

Do

lixo

Abordar a questão do lixo e suas principais e atuais problemáticas requer um mergulho no passado, para compreender melhor sobre qual tipo de lixo estamos falando. Afinal, o lixo faz parte da produção humana desde tempos ancestrais – foi se modificando e se transformando, assim como a própria vida de maneira geral. Se nos tempos pré-históricos a quantidade de lixo produzida por homens e mulheres era pequena e pouco variada, a evolução da ciência e da tecnologia possibilitou a transformação de matérias-primas naturais e a criação de novos produtos, totalmente estranhos ao meio ambiente, ainda que bastante úteis para a humanidade. Esses novos produtos, como os papéis, plásticos, vidros, metais e muitos outros, passaram a fazer parte do dia-a-dia da humanidade e também do lixo produzido. Mas, ao contrário do lixo primitivo, que se reintegrava naturalmente ao ambiente, esses novos materiais compõem um tipo de lixo diferente, um lixo que resiste, que não se deteriora com facilidade, que ocupa espaço e que incomoda a consciência ambiental

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artigo

1 CONCEIÇÃO, Márcio Magera. Os empresários do lixo: um paradoxo da modernidade. Campinas: Átomo, 2003, p.102-103. 2 Idem, ibidem.

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O lixo produzido por uma sociedade pode revelar aspectos importantes sobre seus hábitos de consumo e poder aquisitivo das famílias. Nas cidades do interior e áreas rurais, é comum encontrar uma quantidade maior de lixo orgânico (cascas de frutas e legumes, restos de alimentos) na composição do lixo doméstico do que a encontrada em grandes centros urbanos. Se pudéssemos fazer uma comparação entre o lixo doméstico produzido em nossa casa nos dias de hoje e o lixo doméstico produzido na casa de nossos avós, por exemplo, as diferenças seriam enormes. Um exemplo muito comum é o das fraldas descartáveis, um tipo de lixo muito comum hoje, mas considerado raro 30 anos atrás. Da mesma forma, o tratamento dispensado ao lixo pode revelar qual a importância que a sociedade dá ao tema, se existem marcos regula­t ó­r ios eficazes e técnicas eficientes pa­ra a coleta, transporte, armazenamento e destinação final dos resíduos sólidos. Entre as técnicas utilizadas para a des­tinação dos resíduos sólidos, uma em especial merece nos­s a consideração: a co­le­­ta seletiva. A coleta seletiva é aquela que recolhe somente os materiais recicláveis, aqueles que podem ser utilizados como matéria-prima na indústria da reciclagem. Papéis, vidros, plásticos, materiais ferrosos, alumínio e outros tipos de resíduos que seriam enterrados em aterros sanitários ou jogados em lixões ganham uma nova vida, deixam de ser lixo e viram matérias-primas. Com a coleta seletiva, o resíduo

que era lixo, que estava desorganizado e misturado, passa a ser organizado, selecionado, vira matéria-prima.

Aproveitamento da matéria-prima Para a indústria da reciclagem, a utilização de resíduos sólidos como matérias-primas é um grande achado. Há estudos econômicos que indicam que a utilização de produtos recicláveis como matéria-prima reduz significativamente os gastos dos processos de produção, além de reduzir em 74% a poluição do ar, em 35% a poluição da água, gerando um ganho de energia de 64%. 1 Há, ainda, uma sensível redução na quantidade de matéria-prima natural utilizada. Para citar o exemplo do alumínio, um dos materiais recicláveis mais coletados no Brasil, estima-se que a redução da utilização de bauxita seja da ordem de 90% para cada nova latinha produzida.2 Um reflexo da utilização dos resíduos sólidos como matéria-prima na indústria da reciclagem é, portanto, a diminuição da extração de matéria-prima virgem. Uma parte dos(as) economistas e pesquisadores(as) que trabalham com a temática dos resíduos sólidos é forte contesta­ dora da tese mencionada anteriormente e refuta os argumentos de que a indústria da reciclagem se beneficia economicamente com a utilização dos resíduos sólidos como matéria-prima. No entanto, a indústria da reciclagem segue crescendo e com espaço para crescer ainda mais, pois opera com capacidade ociosa no Brasil. E, certamente, o incentivo maior para que o empresariado do setor se sinta estimulado a seguir ou ampliar seus negócios não diz respeito unicamente aos ganhos ambientais, mas também – e principalmente – aos ganhos econômicos. Para além dos benefícios econômicos, a coleta seletiva e a reciclagem de resíduos sólidos podem gerar impacto na imagem das empresas que trabalham com esses materiais. Se, na década passada, poucos consumidores e consumidoras se sentiam atraídos por produtos reciclados, hoje o mercado para os reciclados cresce a olhos vistos. Várias marcas e empresas que tinham receio em ver seus produtos atrelados ao conceito de reciclagem hoje investem pesado na propaganda dessas qualidades, ressaltando seu “compromisso ambiental” e com o “desenvolvimento auto-sustentável”. Uma ampla gama de empresas nacionais e internacionais busca se beneficiar


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com a reciclagem, não apenas por meio da economia que a utilização de resíduos sólidos como matérias-primas pode proporcionar, mas também investindo pesado na propaganda e na imagem de uma empresa “ecorresponsável”. Em abril deste ano, a imprensa noticiou que o Brasil havia alcançado, pela quinta vez consecutiva, o melhor desempenho entre todos os países que reciclam o alumínio no mundo. Em outras palavras, o Brasil é, hoje, um líder do setor de reciclagem de alumínio. No entanto, diferentemente do Japão, o segundo colocado nesse ranking, ainda não existe uma lei nacional específica que obrigue e normatize a criação e manutenção de serviços de coleta seletiva nos municípios brasileiros. Também não existe ainda no Brasil uma lei que responsabilize produtores de embalagens recicláveis a investir em programas e projetos que diminuam o impacto ambiental causado pelo seu descarte inadequado. A coleta seletiva, que promove o recolhimento desse tipo de embalagem, poderia ser um desses tais projetos.

Apesar de ser uma prática interessante sob diversos aspectos – já destacamos aqui os aspectos econômico e ambiental –, a coleta seletiva ainda é uma atividade rara no Brasil e pouco incentivada pela legislação. Segundo dados do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre), 3 no ano de 2004, dos 5.566 municípios brasileiros, apenas 273 tinham programas oficiais de coleta seletiva de lixo. Isso indica que, de cada cem cidades brasileiras, apenas cinco tinham coleta seletiva de lixo realizada por um programa da prefeitura, que é o gestor das políticas relacionadas aos resíduos sólidos. A região Sudeste concentra 122 experiências de coleta seletiva das 273 conhecidas. São Paulo é o estado com mais cidades atendidas, 84 no total. No Rio de Janeiro, um estado com 92 municípios, apenas 13 cidades são citadas como alvo de programas de coleta seletiva.

Organizando e crescendo A participação de catadores e catadoras na

Em busca de uma identidade profissional Imaginar que apenas os programas oficiais e governamentais são responsáveis por todo o material que alimenta a indústria da reciclagem no Brasil seria um grande equívoco. Então, de onde vêm de 14 anos de idade na época da pesquisa. esses materiais? Quem são os trabalhadores Além dos catadores e catadoras que estão nos e as trabalhadoras responsáveis de fato pela lixões, a PNSB estima que existam mais 800 mil coleta, seleção, beneficiamento e comercialicatadores e catadoras de rua no país. No mesmo zação dos recicláveis no Brasil? Há pelo menos ano de 2000, o Fundo das Nações Unidas para 50 anos, catadores e catadoras de materiais a Infância (Unicef) realizou uma pesquisa que recicláveis vêm desenvolvendo, de modo inforidentificou a presença de catadores e catadoras mal, sistemas de coleta seletiva que atendem de materiais recicláveis em pelo menos 3.800 a pequenas comunidades, bairros ou cidades cidades, 68% do total de municípios brasileiros. inteiras. Até mesmo naqueles municípios onde Na região Sudeste, a mais desenvolvida econoexistem programas governamentais de coleta micamente, esses trabalhadores e trabalhadoras seletiva de lixo, podemos encontrar catadores estão presentes em 74% das cidades. É preciso e catadoras em atividade. Conhecidos no país ressaltar que tais números, ainda que sejam afora como garrafeiros(as), carrinheiros(as), oficiais, são considerados subestimados pelo catadores(as) de papel ou catadores(as) de Fórum Nacional Lixo e Cidadania, uma instância lixo, esses trabalhadores e trabalhadoras já organizada de discussão que reúne organizações avançaram em busca da construção de uma não-governamentais, instituições religiosas, identidade profissional e estão se organizando órgãos governamentais e instituições de ensino para conquistar o reconhecimento e a profissioe pesquisa que atuam nas áreas relacionadas à nalização da categoria, que agora faz parte do gestão dos resíduos sólidos e também na área Código Brasileiro de Ocupações,4 como catador social. O Movimento Nacional dos Catadores, ou catadora de materiais recicláveis. Dados da órgão criado por catadores e catadoras do Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), Brasil em 1999, que conta com representantes realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia em quase todos os estados brasileiros, também e Estatística (IBGE) em 2000, apontam que considera que o número de pessoas que trabaos lixões ainda são a alternativa mais comum lham atualmente em lixões é maior do que o para a disposição final dos resíduos sólidos nos apurado pela PNSB. municípios (59% dos casos). Nos lixões, 24.340 catadores e catadoras trabalham diariamente, retirando desses locais o seu sustento e o de suas famílias. Entre essas pessoas, pelo menos 7 mil moram nos lixões e 5.598 tinham menos

3 Essa e outras informações estão disponíveis em <www. cempre.org.br>. 4 CBO94 – Portaria 397, de 9 de outubro de 2002, do Ministério do Trabalho e Emprego.

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coleta seletiva de lixo das cidades tem sido uma grande contribuição dessas pessoas para o circuito da reciclagem e para a limpeza pública. É uma atividade econômica que integra outros aspectos importantes como a geração de renda, a proteção aos recursos naturais, a educação ambiental, a inclusão social e a prestação de serviços públicos. Somando-se aos serviços governamentais já existentes, estima-se que catadores e catadoras desviam para o circuito da reciclagem cerca de 20% dos resíduos sólidos urbanos, segundo pesquisa realizada pelo Unicef em 2000. Isso significa que, graças à participação de tais profissionais, a cada dia mais materiais recicláveis estão sendo selecionados, com um destino ambi­ en­talmente correto, economicamente viável e socialmente justo. Para realizar a coleta de recicláveis, catadores e catadoras têm atuado ao longo destes 50 anos em diversas frentes de trabalho. Algumas dessas pes­­­ soas atu­a m em li­ xões e aterros sanitários; outras atuam em cen­tros urbanos, ruas, empresas, comércios, escolas, igrejas etc. Algumas trabalham sozinhas, por conta própria, sem nenhum tipo de apoio ou parceria; outras trabalham organizadas em grupos (associações, cooperati­vas, grupos comu­ni­tários etc.). Para o trabalho desenvolvido pelos catadores e catadoras, trabalhar soli­t ariamente ou vincu­­lado(a) a um gru­po faz muita diferença. Por meio da experiência adquirida com o acompanhamento do trabalho de diversos grupos organizados de catadores e catadoras

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no Rio de Janeiro, é possível afirmar que a sua organização coletiva permite alguns avanços importantes. Em primeiro lugar, o trabalho em um grupo organizado favorece a construção da identidade dos catadores e das catadoras como trabalhadores e trabalhadoras, como uma categoria profissional. O sentimento de pertencimento a um grupo, a uma classe, pode resultar na valorização pessoal e profissional dessas pessoas. Em segundo lugar, o(a) catador(a) que trabalha vinculado(a) a uma cooperativa ou associação tem condições de estabelecer vínculos mais sólidos com a sociedade, viabilizando a construção de par­c e­r ias e a prestação de serviços. Para poder coletar os recicláveis gerados, por exemplo, por uma agência bancária, é preciso ter equipamentos, equipe e regularidade no atendimento. Uma cooperativa ou associação atende melhor a esses requisitos do que uma pessoa sozinha. Por outro lado, uma cooperativa ou associação de cata­d ores(as) pode ser alvo de investimentos por parte de empresas e instituições interessadas em projetos de economia solidária, geração de renda, melhorias so­c io­a mbientais etc. Em terceiro lugar, uma pessoa sozinha, por mais que se dedique à atividade de recolhimento dos materiais recicláveis, não conseguirá alcançar a quan­tidade, o volume e o peso necessários para conseguir os melhores preços no mercado. Para isso, é preciso ter escala, ou seja, ter recicláveis em grande quantidade. Além disso, os recicláveis precisam estar beneficiados, mesmo que primariamente, ou seja, separados por tipo, prensados, enfardados, pesados. A produção em escala e o beneficiamento dos materiais recicláveis irão fortalecer a participação das cooperativas e associações de catadores(as) no mercado dos recicláveis, gerando melhores oportunidades de comercialização, como preços e prazos mais favoráveis. Finalmente, o diálogo com governos e empresas com vistas à participação no processo de produção e definição de políticas sociais públicas também fica facilitado quando catadores e catadoras se organizam. Uma cooperativa ou associação pode firmar parcerias com o poder público para realizar coleta seletiva em algumas comunidades, ao passo que um(a) cata­d or(a) que trabalhe de forma individualizada não tem a mesma


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oportunidade.

Luta contra o preconceito Apesar de atuarem em uma atividade que, a um só tempo, gera emprego e renda, oferece serviços e reduz os gastos públicos empregados na coleta de lixo, nem sempre o trabalho de catadores e catadoras é reconhecido pelo poder público e pela sociedade como importante e fundamental. Ao contrário, em várias cidades brasileiras, catadores e catadoras enfrentam permanentes dificuldades e barreiras, lutando contra o preconceito e a falta de oportunidades. Além disso, outra disputa importantíssima está sendo travada em torno da coleta seletiva de lixo e da reciclagem nas cidades, a partir da construção de duas propostas diferentes para o seu desenvolvimento. Numa delas, encabeçada pelo setor empresarial, a coleta seletiva fica nas mãos de empresas particulares, excluindo catadores e catadoras e suas “empresas sociais”. Na outra, a proposta é a inclusão des­s es(as) trabalhadores(as), por meio de sua participação não apenas como pres­ta­d o­res(as) de serviços na coleta seletiva, mas também como co-gestores(as) da política de resíduos sólidos. Para levar adiante essa segunda proposta, catadores e catadoras devem se organizar, buscar par-

cerias e apoios, capacitar e profissionalizar as cooperativas e associações. Há vários anos, catadores e catadoras em diferentes cidades do Brasil estão se organizando, pela criação de cooperativas, associações e grupos comunitários. A Coopa­ mare (em São Paulo/SP), a Asmare (em Belo Horizonte/MG) e a CoopCarmo (em Mesquita/ RJ) são exemplos de organizações com mais de uma década de existência.5 No Rio de Janeiro, catadores e catadoras reuniram-se em uma rede, a Rede Independente de Catadores de Materiais Recicláveis (Ricamare), que conta com a participação de aproximadamente 25 cooperativas e associações de diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro: São Gonçalo, Petrópolis, Duque de Caxias, Mesquita, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, São João de Meriti, entre outros. É um espaço da sociedade civil, independente, no qual se luta pela defesa de interesses comuns dos catadores e das catadoras de materiais recicláveis. A rede nasceu do processo de mobilização dessas pessoas para o 1º Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, realizado em Brasília, no ano de 2001. Por meio da Ricamare, catadores e catadoras buscam participar ativamente nas diversas instâncias de decisão da gestão dos resíduos sólidos no Rio de Janeiro, in-

Movimento nacional Catadores e catadoras estão se organizando também nacionalmente, por meio do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), cuja trajetória teve início em 1999, no 1º Encontro Nacional de Catadores de Papel e Material Reaproveitável, em Belo Horizonte. O processo de articulação nacional de tais trabalhadores e trabalhadoras levou à realização do 1º Congresso Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, realizado em Brasília de 4 a 6 de junho de 2001, que contou com a participação de 1.600 congressistas, entre catadores(as), técnicos(as) e agentes sociais de 17 estados brasileiros. No congresso, foram eleitos os(as) representantes que assumiram a Comissão Nacional do Movimento, cuja secretaria executiva encontra-se na cidade de São Paulo.6 De 1999 até agora, o Movimento Nacional dos Catadores conseguiu alguns êxitos, realizou encontros e eventos, desenvolveu projetos e fez valer a voz de catadores e catadoras deste país. Entre as principais realizações estão as duas edições do Encontro Latino-Americano de Catadores (2003

e 2005), oficinas no Fórum Social Mundial (2003 e 2005), parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social, Fundação Avina e Fórum Nacional Lixo e Cidadania.O principal desafio que o Movimento Nacional dos Catadores tem pela frente no ano de 2005 é promover a realização de 14 Congressos Estaduais de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis, nos seguintes estados: Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Bahia, Rio Grande do Norte, Sergipe, Ceará, Pará, Paraíba, Pernambuco, Santa Catarina e Mato Grosso. No Rio de Janeiro, o congresso será realizado pela Ricamare, em parceria com a Nova Pesquisa e Assessoria em Educação e o Fórum Lixo e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, no dia 1º de outubro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

5 Contatos podem ser feitos por telefone: Coopamare (11) 3064-3976, Asmare (31) 3201-0717 e Coopcarmo (21) 2697-0545. 6 Contato com a secretaria execultiva do MNCR pode ser feito pelo telefone (11) 3399-3475 ou pelo e-mail <secretarianacionalcatadores@

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*Adriana Valle Mota Socióloga, pesquisadora da Nova Pesquisa e Assessoria em Educação e membro da Secretaria Executiva do Fórum Estadual Lixo e Cidadania do Rio de Janeiro amota@novapesquisa.

fluenciando na definição de políticas sociais públicas que tragam benefícios para as cooperativas e associações. Foi o que aconteceu no processo de formulação da Política Estadual de Resíduos Sólidos, Lei 4.191/03, cuja elaboração contou com a participação ativa da Ricamare.

Reconstrução de vidas É louvável o esforço feito pelas organizações de catadores e catadoras em vários estados do Brasil, no sentido de oferecerem melhores serviços à população em geral e melhores condições de trabalho aos(às) associ­a­ dos(as) e coopera­ dos(as). A esses es­ forços se soma o apoio prestado por organizações não-governamentais, instituições religiosas, movimentos populares, associações de moradores(as), governos municipais e instituições de ensino e pesquisa. No entanto, esse apoio não pode ser apenas fruto do voluntarismo ou da solidariedade pontual. Precisa ser a­poio planejado, que atenda aos reais interesses e necessidades de catadores e catadoras e de suas organizações. O apoio governamental por meio de programas e políticas públicas, por exemplo, pode propiciar avanços muito concretos e importantes: por meio da universalização da coleta seletiva no município, priorizando a inclusão de catadores(as) na sua gestão e execução; do incentivo à instalação de indústrias recicladoras no estado, ampliando as possibilidades de negociação dos materiais recicláveis; da promoção da

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organização e qualificação do trabalho de catadores(as); da oferta de linhas de financiamento público a juros populares para cooperativas de cata­d o­r es(as); ou até mesmo da destinação dos materiais recicláveis gerados pelas secretarias e órgãos públicos para cooperativas e associações de catadores(as). Por outro lado, o apoio de universidades e outras instituições de ensino e pesquisa também pode criar condições para o aperfeiçoamento do trabalho dessas cooperativas por meio do oferecimento de apoio técnico às organizações de cata­dores(as); do estudo de novas tecnologias que propiciem o avanço de catadores(as) diante da cadeia produtiva dos recicláveis; da inclusão da perspectiva de catadores(as) nas disciplinas de educação ambiental; da celebração de convênios para assessoria jurídica aos grupos organizados de catadores(as) por meio de escritórios-modelo; e da destinação dos materiais recicláveis para as cooperativas e associações de catadores(as). A questão do lixo conjuga aspectos técnicos, econômicos, ambientais, culturais, políticos e sociais que não podem ser tomados de forma isolada. Nenhuma proposta que considere apenas um desses aspectos será boa o suficiente para resolver a questão do lixo. Além disso, não é possível continuar a fazer propostas em torno dos resíduos sólidos desconsiderando a contribuição efetiva que milhares de catadores e catadoras vêm dando ao desenvolvimento da indústria da reciclagem no Brasil. Essas pessoas, que são qualificadas para a coleta seletiva, precisam ser vistas e ouvidas, não como uma curiosidade ou um subproduto do lixo, mas como uma categoria profissional que busca se organizar e reivindicar direitos. A coleta seletiva pode ser um importante instrumento para a valorização de catadores e catadoras e deve ser utilizada com essa finalidade. É por meio dela que tais profissionais podem dar sua melhor contribuição para a cidade e para todas as pessoas que nela habitam. Também é pela coleta seletiva que catadores e catadoras podem reconstruir sua trajetória de vida e de trabalho, do lixo à cidadania. Endossando a máxima do Movimento Nacional dos Catadores: coleta seletiva sem catador(a) é lixo!


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quilo fotos: arquivo ibase

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ombos O Artigo 68 da Constituição Federal obriga o Estado a reconhecer, regularizar e titular os territórios quilombolas de todo o Brasil – sua inclusão foi fruto da pressão exercida por lideranças quilombolas de todo o país durante o processo constituinte em 1988. Mas ainda falta um bocado para tal direito ser garantido de fato a essas populações. Segundo levantamento realizado pela Universidade de Brasília (UnB) e divulgado em maio, das 2.228 comunidades reconhecidas como quilombolas pelo governo federal, apenas 70 possuem registro no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O número total em si já é uma polêmica, pois a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) avalia que existam cerca de 4 mil comunidades no Brasil. Do que foi levantado pela UnB, grande parte dessas terras concentra-se na região Nordeste, são 1,4 mil territórios. Maranhão, com 642 comunidades, está em primeiro lugar; seguido da Bahia, com 396; e Pará, com 294. Para esta edição, a equipe da revista Democracia Viva visitou três dessas comunidades: Conceição das Crioulas, em Pernambuco; Ivaporunduva, em São Paulo; e São José da Serra, no Rio de Janeiro. O resultado desses encontros você confere nas páginas seguintes.

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quilo entrevista

Por Iracema Dantas

Givânia

Vereadora exercendo o segundo mandato pelo Partido dos Trabalhadores, em Salgueiro, sertão de Pernambuco, Givânia Silva, 37 anos, traz na sua trajetória pessoal a história da reconstrução da identidade de um povo – um povo quilombola. Nascida em Conceição das Crioulas, distante 50 km da cidade de Salgueiro, Givânia é referência para os(as) jovens que despertam para o exercício da cidadania. Para ela, a luta pela terra e a preservação do meio ambiente não podem estar distante da luta pela cidadania: “Enquanto algumas pessoas estão preocupadas com esse ou aquele animal que está em extinção, e nós também nos preocupamos com isso, estamos preocupadas com as pessoas que estão em extinção. O meio ambiente para nós não é descolado das pessoas, é a natureza com as pessoas dentro. Não adianta deixar o animal se a pessoa não puder mais existir”. Além de professora, formada em Letras, Givânia é uma política bastante atuante dentro e fora do estado de Pernambuco. É a única mulher, a única negra e a única pessoa de origem pobre eleita vereadora em sua cidade. Nesta entrevista à Democracia Viva, conta sua luta pessoal e o caminho percorrido até a atual consolidação do movimento quilombola e a criação da Associação Quilombola de

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ombos Democracia Viva – Qual a origem de Conceição das Crioulas? Givânia – Não temos registros escritos, mas a história oral nos diz que Conceição surge a partir de um grupo de seis mulheres negras que por lá fixaram residência. Na época, era bastante forte na região o plantio do algodão e elas seguiram essa tradição. Com a venda de rendas e do fio de algodão, tornaram-se donas da terra. As pessoas mais velhas dizem que o documento dessa terra data do ano de 1802. Acreditamos que as mulheres chegaram 40 a 50 anos antes.

Democracia Viva – E como surgiu esse nome? Givânia – Mais uma vez, só temos a história oral. Pelo que sabemos, depois da chegada das mulheres, veio um homem que trouxe uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Então, fizeram uma promessa: caso se tornassem donas daquelas terras, construiriam a capela para Nossa Senhora da Conceição. Não sabemos a data exata da construção dessa capela, mas foi por causa dela que temos o nome de Conceição das Crioulas, na verdade um distrito da cidade de Salgueiro. A construção foi um marco da conquista da terra.

Democracia Viva – Sua trajetória é bastante incomum para uma mulher negra, do interior de Pernambuco. Você cursou o ensino superior e é uma vereadora muito atuante. Pode contar um pouco da sua história? Givânia – Nasci em Conceição e fui a primeira mulher a chegar à universidade. Eu me formei em Letras, em 1996. Até o início da década de 90, normalmente as pessoas só estudavam até a quarta série. Para dar continuidade aos estudos, era preciso ir para a cidade e não tínhamos transporte regular. Algumas meninas até tentavam estudar na cidade, mas havia resistência por parte dos pais porque muitas acabavam sendo domésticas nas casas

das famílias brancas. Meu pai, que é agricultor, era um dos mais resistentes. Ele achava que, ao ir morar numa casa de família branca, poderia acabar grávida e não estudar. Já minha mãe pensava ao contrário, ela achava que, se fosse para engravidar, isso aconteceria em qualquer lugar, não era estudando fora, saindo de casa que isso iria acontecer. Ela é artesã e trabalhava com cerâmica. Era com esse recurso que ela comprava material para a gente estudar. Ela sempre defendeu que precisávamos estudar e sabia que esse era o meu sonho. Enquanto as meninas se animavam quando começavam a trabalhar com a agricultura, eu lamentava cada vez que ia para a roça. Isso me causava um sofrimento enorme, eu queria estudar, queria ir para a cidade, e meu pai não deixava porque dizia que a gente tinha que trabalhar para comprar uma casa.

Democracia Viva – Você tem irmãos e irmãs? Alguém seguiu uma trajetória semelhante a sua? Você tem filhos? Givânia – Tenho três irmãs e três irmãos. Quem não pôde estudar na época está estudando agora, mesmo com idade mais avançada. Não tenho filhos, mas tem uma carrada de gente de que eu cuido, são filhos dos outros. Meu filho é o trabalho.

Democracia Viva – Foi sua mãe que incentivou seu estudo? Givânia – Sim. Quando eu tinha 16 anos, surgiu a minha grande oportunidade. Uma funcionária da Secretaria de Educação foi lá em casa comprar artesanato, e a mamãe contou que meu sonho era estudar. Essa funcionária disse: “Realmente, é muito complicado levar uma pessoa para casa de uma família. Mas existe um programa na prefeitura em que ela podia tentar ingressar. Como contrapartida, vai ter que dar aula para crianças. Se ela passar num teste, será aceita”. Eu fui, fiz o teste, passei.

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iniciou seu trabalho como professora? Givânia – Sim, de 1984 a 1986 fiquei nesse programa da prefeitura de Salgueiro. De segunda a quinta-feira, eu dava aula. Na sexta e no sábado, estudava em horário integral. Quando terminei o que correspondia à oitava série, recebi o convite para continuar e fazer o segundo grau. Em seguida, em 1989, houve o primeiro concurso para a rede municipal de ensino. Resolvi fazer o concurso e fui aprovada, tornando-me efetiva no quadro de professores. Paralelo a isso, eu já atuava, estava bem engaja­ da na Pastoral da Juventude, nas comunidades eclesiais de base. Trabalhava até sexta-feira; aos sába­­dos e domingos, eu ia para as comunidades, reunia e animava os jovens para os encontros. Em 1991, tirei u m a lic en ç a s em vencimentos porque minha situação estava insustentável. Não era admissível que uma professora da rede municipal fizesse o que eu estava fazendo: questionando distribuição de merenda, debatendo os salários, discutindo as necessidades da comunidade... O povo começava a se organizar para vir para a cidade reivindicar carro-pipa, construção de estrada. E eu era servidora do município... Licenciada, fui trabalhar em um programa da Igreja Católica.

Democracia Viva – E como era esse trabalho? Givânia – Era um projeto financiado pela Misereor [agência de financiamento], da Alemanha, e tinha bastante recurso. Recebia salário, que não era ruim, e tinha boas condições de trabalho, inclusive dinheiro para viagens. Essa experiência me abriu novos horizontes. Meu

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trabalho era na Pastoral da Juventude, eu era liberada só para fazer articulações pelos municípios do sertão. Minha formação na Igreja Católica foi toda na linha do grupo que discutia política, as comunidades eclesiais de base eram um campo de debates, a Pastoral da Juventude era muito forte. Resolvi prestar vestibular e passei, comecei a faculdade enquanto trabalhava na Igreja.

Democracia Viva – Esse seu envolvimento já se refletia na sua comunidade? Givânia – No começo de 1992, foi quebrada a primeira corrente em Conceição. Uma família tradicional, ligada ao PFL [Partido da Frente Liberal], administrava a cidade de Salgueiro desde sempre e nem se preocupava em fazer campanha eleitoral. Para surpresa geral, um candidato da família perdeu pela primeira vez em toda a história de Salgueiro. Conseguimos eleger como prefeita uma professora da base da Igreja, catequista, coordenadora desse nosso movimento. O normal, até então, era que votássemos em quem o fazendeiro da região mandasse. Meu pai dizia que, se o fazendeiro votasse no cachorro, ele também votaria. Não precisava pregar um papel de propaganda, fazer comício, nada. Em 1993, eu já estava em Salgueiro fazendo faculdade e me tornava bastante conhecida na região. Foi justamente nessa época que os conflitos começaram; fui ameaçada de morte pela primeira vez. Eu era uma professorinha de 25 anos de idade.

Democracia Viva – O que representou essa mudança no cenário político? Givânia – Quando quebramos a oligarquia da cidade, disse à professora que a única coisa que eu queria era a construção de uma escola de quinta a oitava série em Conceição. Não queria nem voltar a ser funcionária do município, queria apenas que a nova administração olhasse para Conceição de forma diferenciada. Em 1995, a escola ficou pronta, e eu continuava a trabalhar na Igreja. A prefeita dizia para mim: “Discuta com a comunidade o nome da escola”. Foi nesse processo que começamos a discutir a história de Conceição por um olhar étnico. Nós nos perguntávamos se éramos todos negros. Começamos a assumir a nossa identidade, a nos assumir negros; até então todo mundo era moreno, eu inclusive. Demos à escola o nome de um professor que nem era da rede municipal nem do estado, mas era a pessoa que sabia ler na comunidade. Por isso,


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era tido como professor e era descendente direto das negras fundadoras. Depois de resolvida essa etapa, veio um novo desafio. A prefeita me disse: “Se a escola é para ser um apoio à comunidade, para dar continuidade a esse trabalho que vocês fazem lá, a diretora não pode ser de fora. Você deve retornar para o município e ser diretora da escola”. Eu ganhava três salários mínimos e passaria a ganhar um salário e meio, com a gratificação de diretora. Já no dia seguinte – acho que por amar muito o que faço, quando decido, decido de vez –, pedi demissão do projeto da Igreja. Meus amigos acharam que eu estava louca, faltava pouco para eu me formar na faculdade. Eu disse: “Não vou abandonar a faculdade, vou freqüentar as aulas pelo menos três dias por semana”. Pedi demissão e fui tomar conta da escola.

Democracia Viva – Como foi esse retorno à sala de aula? Givânia – Foi uma experiência maravilhosa. Consegui, com ajuda da Pastoral, selecionar professores que se afinavam com nossas idéias. Cheguei para eles no primeiro dia e disse: “Eu não sei ser diretora, nunca dirigi nada, nem minha casa”. As pessoas não acreditavam... Construímos essa escola juntos. Nos dois anos em que fiquei como diretora, em 1995 e 1996, a escola apareceu em uma pesquisa sobre educação e pobreza como uma das melhores propostas de educação da zona rural. Foi uma festa! A escola se firmou ainda mais. Antes de estudar qualquer coisa que estivesse nos livros didáticos, tinha que estudar primeiro sobre Conceição. Em 1996, já estava no PT e me candidatei pela primeira vez. Fui vitoriosa pela manhã e, de noite, já não estava mais eleita.

Democracia Viva – Como foi isso? Givânia – Fui eleita, mas o voto ainda era no papel... Foi uma grande surpresa, eu não tinha nem material, tinha saído candidata apenas pela conjuntura. Na minha cabeça, eu no máximo iria somar voto para outra pessoa se eleger e eu voltaria para a escola para fazer o que gosto. No dia seguinte à eleição, pela manhã, por um voto eu fiquei como suplente. Resumindo a história: na contagem final eu não estava eleita por um voto! A professora que era prefeita também não fez o sucessor. A nova administração demitiu todo mundo que trabalhava comigo na escola; eram contratados. Só ficou a merendeira, ninguém mais. Pior: colocaram no lugar dos antigos professores, os brancos, as filhas dos fazendeiros. Foi uma ocupação. Numa

comunidade negra, numa escola de negros, não tinha um professor negro. Como eu era concursada, me jogaram para a periferia. Continuei dando aula normalmente, fazendo o melhor que podia. Às sextas-feiras, eu voltava para Conceição, continuando o trabalho, não mais dentro da escola, mas do mesmo jeito.

Democracia Viva – Quando você se candidatou novamente? Givânia – Em 2000. Minha candidatura já era natural, meu nome estava consolidado na cidade, a discussão do Movimento Nacional das Comunidades Quilombolas virou uma referência. Não entendia muito de comunicação, como ainda não entendo, mas fizemos uma campanha do “só faltou seu voto”. Com esse slogan, eu me elegi vereadora, sem nada, sem um centavo. Eu estava há seis meses sem receber salário. Contrariando todo mundo, dentro e fora do grupo, fui a segunda mais votada.

Democracia Viva – Você se candidatou também em 2004? Givânia – Em 2004, eu me reelegi também sem grana, sem nada. Minha cabeça não consegue admitir algumas coisas, por isso é muito difícil para mim. Minha campanha sou eu, Deus e algumas pessoas que acreditam em mim. Ou esse mundo da política tem que melhorar, ou não é meu mundo. Não sei, alguma coisa está errada nesse casamento. Ou eu estou errada, ou o mundo está muito distorcido.

Democracia Viva – Refere-se à falta de apoio político dentro do seu partido?

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Givânia – Não é bem isso. Por causa do acirramento dos conflitos e da visibilidade que temos tido, o partido até tem apoiado bastante. O partido sabe que quem está falando por Conceição não é mais nenhum fazendeiro. Todo o processo que vivemos hoje não é só a questão da terra, tem um recheio político muito forte, de manutenção desse espaço comum, um espaço político-eleitoral de poder. A terra, como meio de produção, é o que menos importa para esses fazendeiros. O que importa é a propriedade da terra, o poder que significa estar ali naquele meio. A questão é que não concordo com alguns acordos que são feitos para garantir recursos para a campanha. Fiz minha campanha de moto-táxi, a pé, do jeito que dava... Outro ponto de tensão é quanto a alianças políticas. Havia uma possibilidade de aliança com a qual não concordava, que tinha fazendeiro no meio. Eu briguei dentro do partido, não é que não admitisse, mas defendi minha posição e acabei tendo o maior apoio dentro do partido. Isso trouxe, de certa forma, um problema: o outro grupo tinha muito dinheiro, e algumas pessoas do partido entendiam que era importante ter o dinheiro para fazer a campanha. Eu entendia de forma diferente: se o povo me quisesse novamente na Câmara, iria votar; se não votasse, paciência, eu iria continuar meu trabalho do mesmo jeito. Sem contar também que se trata de um partido de cidade pequena, as pessoas querem ajudar, mas não têm como. Por parte de quem tem dinheiro, não vem nenhuma possibilidade de aposta porque quem tem dinheiro quer lutar por outras coisas. É muito difícil, é uma expe-

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riência que cada pessoa tinha que viver para saber o que é: se manter numa postura de não se distanciar daquilo que acredita.

Democracia Viva – A AQCC também surgiu em 2000? Givânia – Sim, a AQCC surgiu num momento maravilhoso, quando a gente começou a discutir de forma mais forte a questão da posse da terra. Pelo instrumento do governo, a terra seria titulada em nome de uma organização. Só que a gente já tinha começado um processo de interação com todas as comunidades. Já que as comunidades eclesiais de base já não mobilizavam, as associações estavam cada uma em seu canto, 30 famílias, 25 famílias, começávamos a discutir uma estratégia de interação entre essas associações. Aí surgiu essa história, e nós só consolidamos um processo que já vínhamos discutindo, que era ter um instrumento que não substituiria as associações que já estavam lá e, ao mesmo tempo, pudesse interagir em todo o território, que não é pequeno. Era mais uma articulação, um modelo de instrumento que articulava todas, garantindo as especificidades locais, porque existem comunidades que estão a 22 km, a 34 km das outras. Como isso se daria pensando em um território? A gente nem chamava de território, mas como a gente pensava isso? A AQCC surgiu nesse contexto. Assim, surgiu essa história que terminou empurrando para tal modelo que seria uma associação. Até então, não tínhamos clareza do que seria, discutíamos, começávamos a construir nesse rumo. A AQCC surgiu em 2000, exatamente quando a comunidade seria titulada. A gente entendia que esse instrumento era bastante forte – como é –, mas era preciso que a gente não só criasse mais uma associação para ficar lá, mas era importante pensar a comunidade. Nesse mesmo ano, elaboramos um plano de desenvolvimento sustentável da comunidade, em que a AQCC assume várias tarefas.

Democracia Viva – A AQCC é composta por pessoas de diferentes associações? Givânia – Sim. A coordenadora-geral é de uma associação, o secretário já é de outra. Na prática, a AQCC atua através de comissões . As comissões são: Juventude, que é a mais nova, Educação, Comunicação, Saúde, Meio Ambiente, Patrimônio e Geração de Renda. Achamos que ainda precisamos avaliar e estudar mais esse modelo, de forma que se torne mais operativo, mas não passa pelas nossas cabeças uma nova mudança de perfil ou estrutura. A mudança que houve foi no estatuto,


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em 2004. Revisamos a missão, que antes era garantir a posse da terra para os moradores de Conceição; hoje, a missão é muito mais ampla, definimos nossos valores, nossas crenças. A AQCC luta pelo desenvolvimento da comunidade, levando em conta sua realidade e sua história, a valorização das suas potencialidades, a conscientização do povo negro da sua importância para construção de uma sociedade justa e igualitária.

Democracia Viva – Por que apenas a questão étnica está explícita? Por que não a questão das mulheres? Givânia – Quando discutimos a revisão do estatuto, o mais forte foi mesmo a questão do território. Debatemos muito o papel da AQCC para promover o desenvolvimento e fortalecer a identidade étnica. Creio que a questão das mulheres é tão natural que não tínhamos sentido falta disso, na prática. Algumas discussões em torno da questão de gênero em Conceição foram tão longe que hoje os meninos é que reivindicam ampliar as discussões sobre garantir os direitos dos homens! De qualquer forma, acho que a pergunta deve ser debatida coletivamente. Vou levar essa inquietação para discutir em Conceição.

Democracia Viva – E quais são os maiores desafios atualmente para as mulheres de Conceição? Givânia – Um desafio que envolve as mulheres – mas também toda a comunidade – é uma campanha para recuperar o maior prejuízo que já tivemos: a questão do estudo. Hoje temos muitas mulheres de 40, 50, 60 anos que estão retornando para a escola. Outro desafio para as mulheres – que mais uma vez é de todos – é nos mantermos lá. Isso significa não só a permanência na terra, mas as condições dessa permanência. É importante entender que em Conceição não temos ações sistematizadas exclusivas das mulheres. O que temos é essa liderança natural. Mesmo no caso do artesanato, que tem mais mulheres participando, também temos artesãos. Nossa metodologia – nossa tradição, jeito, cultura – nos tem feito caminhar juntos, homens e mulheres. A liderança feminina em Conceição é muito natural e não incomoda mais. Ao contrário, estamos lá e temos lideranças masculinas maravilhosas, importantes. Mas faz parte da nossa tradição as mulheres serem muito fortes, o próprio nome nos dá esse status de fortaleza. O que não fizemos ainda – e precisamos

fazer – é um debate de forma sistemática sobre questões de gênero. Sempre discutimos a saúde, a educação, a geração de renda etc. Acho que, por isso, esse recorte específico para a questão das mulheres acaba não acontecendo. Mesmo conhecendo as diferenças nos indicadores entre homens e mulheres de maneira geral, temos muito essa coisa do global, do conjunto. Estamos lutando juntos, mas sabemos que a voz de Conceição sai muito mais pela mulher que pelo homem.

Democracia Viva – Qual é o percentual de homens e mulheres na comunidade? Givânia – Não temos essas informações, mas creio que as mulheres são em maior número. Mas, quanto às lideranças da comunidade, a maioria é mulher.

Democracia Viva – Quantas pessoas vivem do artesanato em Conceição das Crioulas? Essa é a principal fonte de renda da comunidade? Quais os significados dessa atividade? Givânia – Essa não é apenas a nossa principal fonte de renda, é a principal fonte de renda, de resistência e de existência. As pessoas fazem artesanato, mas também plantam milho, feijão e batata e criam galinhas e algumas cabras. O artesanato é uma das possibilidades. O artesanato é muito forte porque carrega a marca e a história da comunidade, é por isso que é a principal, mas não necessariamente em termos financeiros. É mais do que a questão financeira, existem esses outros significados. No início, quem trabalhava com o

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caroá era apenas uma pessoa, a Júlia, que virou uma das nossas “bonecas”. Antes de morrer, ela teve a felicidade de ver tudo isso, ver aquele caroazinho, que ela só fazia um saco para guardar milho, transformado em uma boneca ou em uma bolsa maravilhosa. Hoje, as filhas dela estão no artesanato, além de outras cem pessoas. Às vezes, quando as vendas melhoram, o grupo aumenta; quando fica bastante tempo sem vender, algumas pessoas saem para cuidar da roça, depois voltam.

Democracia Viva – Quantos modelos de bonecas vocês fazem? Givânia – São dez, todas com nome e com história. A boneca nunca é vendida separadamente. A história é o mais importante. Já esta­m os em um segundo modelo de embalagem, sempre com o nome de uma mulher da comunidade e com informações sobre ela e sobre Conceição. Uma delas é Francisca Ferreira, umas das primeiras negras que chegaram à comunidade. Ainda não é suficientemente rentável para viver só do artesanato. Para produzir as bonecas e continuar tendo acesso ao caroá, é fundamental que a questão da terra esteja totalmente resolvida.

Democracia Viva – Como a AQCC tem atuado em relação ao meio ambiente? Givânia – Se tem alguma preocupação com a preservação do meio ambiente, de cuidado com a natureza, é porque as comunidades indígenas e quilombolas ainda estão naquela região. Temos um pertencimento muito grande da terra, mas existem coisas que precisamos debater mais. A questão é muito profunda;

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meio ambiente sou eu, é você, é uma planta. Enquanto algumas pessoas estão preocupadas com esse ou aquele animal que está em extinção, e nós também nos preocupamos com isso, estamos preocupadas com as pessoas que também estão em extinção. O meio ambiente para nós não é descolado das pessoas, é a natureza com as pessoas dentro. Não adianta deixar o animal se a pessoa não puder mais existir.

Democracia Viva – Qual sua opinião sobre a transposição do Rio São Francisco? Givânia – Prefiro acreditar que a transposição pode ser benéfica para o Nordeste. Essa é uma decisão política que já foi tomada, vai acontecer. Só não sei qual será a real contribuição para a vida das pessoas. O que sei é que a transposição não é e nem será a solução definitiva para a seca. A transposição tem que ser vista como uma obra que vai ajudar certos setores, mas que pode causar outros problemas. Não podemos achar que os pobres estão todos agrupados em tal lugar e que o canal vai passar e resolver tudo. Não é assim, na nossa lógica do sertão não é assim. Não é porque chegou água em uma roça que as pessoas da região podem ir trabalhar lá. Essa é a cultura da terra. Se a transposição passasse dentro de Conceição, por exemplo, seria muita confusão, porque essa água seria entendida como sendo de quem mora ali. No sertão, a lógica da água é outra...

Democracia Viva – Em que se diferencia a luta pela terra feita pelo movimento quilombola da luta feita pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)? Givânia – Na nossa perspectiva, quando discutimos terra, estamos discutindo território. O que é uma terra para um assentado e o que é uma terra para um quilombola? Pela ótica da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], do MST e de outros movimentos que legitimamente lutam pela questão da terra, o que se quer é que a terra seja produtiva. Para nós, as nossas terras não são as melhores terras, mas nós queremos aquela terra porque há, entre nós e a terra, um sentimento de pertencimento. Quando falamos de território, parece que algumas pessoas não compreendem que estamos falando de terra. Dentro da terra, existem as pessoas, a escola que queremos que seja afinada com a história da comunidade, com a história do povo negro. Precisamos pensar que a saúde tem de


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refletir as doenças que são específicas do nosso povo, o que significam os valores e os saberes populares e tradicionais da comunidade, as benzedeiras, os chás, as medicinas alternativas, os remédios que as mulheres fazem, as pessoas que rezam e curam, que não são curandeiras, mas são benzedeiras. Queremos muito mais do que o acesso a uma terra improdutiva que está nas mãos de um fazendeiro. Temos um pertencimento, uma relação de cumplicidade, é a terra onde meu bisavô nasceu, onde minha avó nasceu. Minha mãe é ceramista porque a avó dela também era. Cuidar da cerâmica não é só gerar renda, mas é também manter a história da comunidade viva. São esses aspectos que os movimentos que a gente citou não têm.

Democracia Viva – O pertencimento a que você se refere se dá por outros valores que não estão relacionados só à produção. Essa é a contribuição do movimento quilombola para o debate sobre questão agrária? Givânia – Para nós, a terra não só produz milho, feijão, batata, cenoura, tomate etc. Ela produz sentimento, produz história, produz cultura, saberes, muita coisa mesmo. São legítimos todos os movimentos que defendem e lutam pelo acesso à terra, mas não é o suficiente para nós. Se o governo diz: “Aqui está complicado por causa dos fazendeiros, mas existe uma área ali que é boa, tem água e vai dar tudo certo”, não aceitamos. Não vai dar certo porque nesse local tem muita coisa a ser vivida, é nesse local que queremos produzir. É por isso que até investimos em outras coisas, porque percebemos que só milho, feijão e tomate, se existisse água, não segurariam, não dariam sustentabilidade à comunidade. Este para nós tem sido o grande desafio: pautar esse tema pelo olhar de pertencimento. O aparelho de Estado está pronto para fazer a distribuição de terra a partir de uma área que será loteada por famílias. No nosso caso, não só existe um território comum, mas sim uma individualidade lá dentro. Não pense que a roça de Maria é a mesma que a minha, não. Eu tenho a minha roça, Maria tem a dela. Mas o nosso território é maior do que isso.

Democracia Viva – Não seria uma questão para debater com outros movimentos, além do governo? Givânia – Mas os outros movimentos pensam de forma diferente. O interessante é como garantir a união dessas lutas sem perder a identidade: não só eles, que têm uma cons-

trução diferente da nossa, mas também nós, que temos nossa identidade quilombola. É um entendimento de cada um olhar de um jeito, os princípios são comuns, caminhamos para o mesmo lugar, mas ora eles podem ir na estrada asfaltada e nós na estrada de chão, ora nós vamos numa bicicleta, e eles, num jumento. Enfim, os meios podem ser diferentes, mas estamos caminhando para um lugar só, para essa transformação. O certo para mim é que o governo tem que fazer a reforma agrária. Mas a reforma agrária a partir do pensamento do MST é uma; do pensamento da Contag é mais parecido com a do MST; das comunidades indígenas e quilombolas é completamente diferente, mas é uma reforma agrária. O modelo que está aí não cabe às comunidades quilombolas, portanto temos que ter um modelo de distribuição de terra para quem quer a terra para produzir milho, feijão, uma casa para morar e temos que distribuir terra para aqueles que estão lá há 300 anos e tiveram suas terras invadidas. No nosso caso, foi um movimento contrário: ocuparam as nossas terras. E não fomos só invadidos, não levaram só as terras, levaram a liberdade das pessoas, escravizaram as pessoas que lutaram mais de 200 anos por liberdade, e hoje ainda há restos dessa escravidão.

Democracia Viva – Qual a relação da AQCC com a Conaq [Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas]? e com o movimento negro? Givânia – Estamos na Conaq, foi uma das coisas que ajudamos a articular em 1995. Por

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sermos secretaria executiva, representamos Pernambuco na Conaq. Com o movimento negro, temos algumas articulações também por meio da Conaq. Em Pernambuco, o movimento negro é menos intenso, dadas algumas dificuldades que enfrentou, está em um processo de reestruturação. Entendemos que temos uma pauta comum: o combate ao racismo. Mas também com olhares diferentes. Nosso discurso é o combate ao racismo, mas o que é combater o racismo para uma pessoa urbana e o que é combater o racismo para nós que vivemos na zona rural?

Democracia Viva – Como é a aproximação com o movimento de mulheres? O fato de estar na zona rural limita o entrosamento com outros movimentos? Givânia – L i m i t a muito. A distância, as nossas condições e a nossa estrutura se transformam em algumas dificuldades de participação. Com a Internet, podemos acompanhar o debate um pouco melhor. Mesmo assim, um intercâmbio freqüente com o movimento feminista continua sendo difícil. Em relação à Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras, até tivemos uma avanço. Atualmente, a Conaq faz parte da Articulação, mesmo não sendo um movimento só de mulheres. Isso ocorreu porque, na Articulação, não existia a representação da mulher negra rural.

Democracia Viva – A cidade de Salgueiro ainda vive em conflito? Não conseguiram ainda a regularização da terra, não é?

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Givânia – Sim, ainda temos conflitos. O território já foi reconhecido, foi identificado. Existe um documento da Fundação Cultural Palmares reconhecendo Conceição das Crioulas como território quilombola. O que falta é o processo de desintrusão, ou seja, levantar o que os fazendeiros construíram de bens e indenizá-los para que possam sair do território.

Democracia Viva – Vocês sofrem ameaças? Givânia – Estamos sendo ameaçados desde muito tempo. Ameaça de morte é uma coisa já corriqueira. Os conflitos se intensificaram bastante não só entre as lideranças mais velhas, recentemente tiveram investidas muito fortes contra a juventude, o que nos deixou bastante preocupados porque os jovens têm outro temperamento, isso foi este ano.

Democracia Viva – Há muitas lideranças ameaçadas? Givânia – Que tenham recebido ameaças, direita ou indiretamente, são cerca de 15 pessoas. A gente tem tentado publicizar isso ao máximo, mas não existe um esquema de segurança. Eu hoje, por exemplo, tenho limitações. Nem sempre posso ir aonde quero; antes, eu andava de moto, já não vou mais. Eu ia para Conceição em qualquer caminhão de feira, hoje não posso mais. Na minha cabeça, isso é também uma forma de escravidão, não consigo lidar muito com isso. Por exemplo, houve uma festa de conclusão de curso na comunidade, e eu recebi uma recomendação da própria polícia de não ir, porque era uma festa grande no meio da rua, não havia controle. Foi muito difícil não estar lá naquele momento, é complicado explicar. Ao mesmo tempo, há uma sensação de “o que eu fiz, por que isso?”. Às vezes me sinto triste, depois me animo porque sei que só está acontecendo tudo isso porque nosso povo despertou, porque não queremos mais concordar com o que foi feito contra nós a vida toda. Se a gente estivesse concordando, estaria tudo bem. Não teria conflito.

Democracia Viva – Os dados recentes que o governo federal informou dão conta da existência de cerca de 2 mil comunidades quilombolas. Esse número está perto do real? Como vivem essas comunidades? Givânia – Na verdade, os dados da Conaq mostram que são cerca de 4 mil comunidades, o dobro do que o governo fala. Só no estado


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do Maranhão foram identificadas cerca de 700 comunidades. Há cinco anos, se dizia que havia quatro comunidades quilombolas em Pernambuco; hoje sabemos que são cerca de 60. Um problema comum é a questão da terra, a questão das políticas públicas, saúde e educação se constitui em um elemento. Enquanto nós, de Conceição, estamos discutindo de forma ampla e profunda a proposta de educação diferenciada em território, com possibilidade de até o fim do ano sistematizar isso, existem comunidades que ainda estão brigando para que a escola seja feita. São estágios diversos. Estive recentemente no Maranhão e percebo que há muito para ser feito. Mesmo em estados com um nível de vida diferenciado, com renda maior, com visibilidade maior, como o próprio Rio de Janeiro e São Paulo, a situação das comunidades não é melhor. Conceição significa hoje uma das comunidades que ousadamente podem ser consideradas bem-sucedidas, apesar de tudo isso.

Democracia Viva – Então o avanço das políticas sociais com relação aos territórios quilombolas está relacionado com o nível de organização política? Givânia – Tem tudo a ver. Se a comunidade, localmente, não tiver um debate, os prefeitos dizem que elas nem existem, são apenas negros rurais, elas não se constituem como elementos políticos, como segmento, como força, como grupo étnico. É claro que em algumas administrações isso é mais fácil de negociar. Uma situação assim não acontece com Conceição sem que pelo menos a gente discuta antes, se não pudermos barrar algo que não queremos, vamos pelo menos discutir algumas mudanças. Em outras comunidades, não é a mesma coisa porque as pessoas não estão no mesmo nível de organização. Os recursos passam pelos municípios e há uma tendência muito grande de invisibilidade dessas comunidades por parte das prefeituras. Por outro lado, está ocorrendo um movimento contrário agora. Algumas prefeituras têm procurado comunidades quilombolas porque sabem que existe dinheiro no governo federal para investir nessas áreas. Por exemplo, há uma norma no Ministério da Saúde que diz que as equipes de saúde da família que atuam em comunidades quilombolas têm 40% de incentivo; então, o médico, a enfermeira e toda a equipe que estiver lotada em uma comunidade quilombola vão receber 40% a mais que os profissionais que trabalham em outras áreas. Há uma corrida das prefeituras para garantir esses recursos. Precisamos fazer um debate

dentro da Conaq para fazer valer nosso direito. O município que receber esse recurso vai ter que aplicar onde realmente deve. Mas tudo isso tem muito a ver com a forma como a comunidade está organizada, com a forma como as forças políticas se dão.

Democracia Viva – Conceição das Crioulas é a maior comunidade quilombola de Pernambuco? Givânia – Sim, temos 3.700 pessoas na comunidade, não é uma comunidade pequena. Aqui em Pernambuco e no Brasil, em alguns campos, nós somos referência. Por exemplo, nessa temática da educação, somos a comunidade quilombola com maior acúmulo. Isso é um processo que vem se construindo há dez anos. A gente, que vem de uma cultura de base, discute e faz muito. Mas não temos tudo pronto, é preciso paciência. É claro que precisamos vencer isso, é um desafio porque muito tem sido feito. Nós acumulamos bastante coisa sobre essa temática, mas não é a realidade geral.

Democracia Viva – A AQCC está articulada com a Conferência Nacional sobre Igualdade Racial? Givânia – Sim, nós não só ajudamos a coordenar o processo da conferência regional, que aconteceu na nossa cidade. Mas também o que queremos é levar para a conferência estadual a afirmação de que promoção da igualdade racial é, para os quilombolas, antes de qualquer coisa, o direito à posse da terra, isso é promoção da igualdade racial. Essa questão da posse da terra vai aparecer bastante forte, dada a conjuntura. Também vamos estar numa consulta que acontecerá em Brasília que vai eleger um percentual de delegados para a conferência nacional e devem acontecer outros debates por lá.

Democracia Viva – Você tem acompanhado o debate sobre cotas nas universidades públicas? Qual é a sua opinião? Givânia – Tenho acompanhado como parte interessada. Aqui, o debate não tem a mesma intensidade que no Sudeste. Por outro lado, digo que ainda não estamos discutindo cotas porque o debate é sobre cotas nas universidades e ainda estamos brigando para fazer escolas nas comunidades, estamos realmente em níveis diferenciados. Conceição hoje pode dizer que vai brigar por cotas nas universidades porque já tem alunos para isso. Mas é uma realidade apenas de Conceição. No Maranhão, por exemplo, as comunidades ainda estão muito mais distantes das cidades e dessa realidade. Pessoalmente, falando como negra, acho

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que é uma política imediata, não pode se constituir em uma política definitiva, mas neste momento é estratégica, temos que apostar. Se o acesso à educação for no ritmo que vai, a gente não consegue chegar. Mas defendo as cotas como parte de um processo de transição. Melhorar a escola pública é o que nos interessa, porque aí vai sim melhorar a vida dos negros e a educação para a população negra. Chegará um momento em que nós mesmos vamos dizer: “Bem, não quero mais cota, não”. Mas isso vai levar muitos anos. Como quilombola, posso dizer que o movimento quilombola ainda não debateu o suficiente sobre cotas.

Democracia Viva – Como você avalia o processo Fórum Social Mundial? Givânia – Participamos do Fórum Social Nordestino, em 2004, em Recife, de uma forma um pouco complicada. A distância prejudicou nossa participação. Para vir à cidade, precisamos ter R$ 300, é o mínimo para pagar a passagem, hospedagem. Não tínhamos dinheiro para ir às reuniões preparatórias, acompanhamos o processo por e-mail, e isso termina prejudicando um pouco. Mas pautamos a nossa temática. Nós nos mobilizamos para que outras comunidades também participassem, conseguimos ter representações das cinco regiões, mas não foi uma presença maciça. Entendemos que nosso fortalecimento depende também da presença em encontros desse tipo. Em relação ao Fórum Social Mundial, só não fui ao da Índia e ao primeiro em Porto Alegre. Lá fizemos várias atividades da Conaq, discutimos a questão da regularização fundiária das terras de quilombo em parceria com o Cori, com a Rede Social de Defesa dos Direitos Humanos e o Instituto Pólis. Mas também participamos de outras ações, como o Fórum Mundial pela Dignidade Humana. Tive o privilégio de dividir a mesa com uma pessoa que tem muito a ver com minha história de formação de igreja: Leonardo Boff. Meus olhos brilharam quando lhe disse que, mesmo que não soubesse, ele tinha muito a ver comigo, com a minha formação. Essa foi uma indicação da Articulação de ONGs de Mulheres Negras para participarmos desse fórum, e junto com a Articulação coordenamos uma ação para os parlamentares, foi bacana, aconteceu lá na Assembléia Legislativa de Porto Alegre. Coordenamos uma mesa, lançamos um material da Articulação. Foi uma experiência muito interessante, muito importante. Só acho que o Fórum é muito grande. Claro que a diversidade tem que ser

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garantida, mas receio que a gente discuta muita coisa e não consiga alinhar aquelas discussões com o objetivo do Fórum. Tenho medo de que isso não aconteça.

Democracia Viva – E qual a contribuição do movimento quilombola para a construção de um outro mundo possível? Givânia – Normalmente, as pessoas nos procuram e dizem: “Ah, tem comunidade quilombola?”. Primeiro, é um suspense para perguntar se tem, depois também tem uma coisa que é interessante, a nossa visão sobre esse tema. A gente tem contribuído muito para esse debate. Se hoje o governo afirma e várias organizações estão concorrendo para trabalhar com os movimentos quilombolas, com as comunidades quilombolas, o governo principalmente, foi a Conaq que levou para dentro do governo essa temática. O desenho não está bom, a execução, muito pior. Mas seria impossível discutir comunidade quilombola no Ministério do Trabalho, no interior de todos os ministérios, se a gente não tivesse feito uma pressão e tivesse ido na construção do GTI. Claro que tem a determinação, tem a criação da Seppir [Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], mas a própria criação da secretaria já nasce com o apoio da Conaq. Temos críticas, mas é esse debate que estamos pautando, que temos levado e que achamos que é uma contribuição importante. Não é a partir de uma pesquisa acadêmica, de um olhar de alguém que foi lá fazer um relatório, uma visita, é de quem está lá no dia-a-dia, vivendo os problemas, tentando encontrar saídas. Inclusive eu acho que, para as organizações da sociedade civil, esse é um debate novo, não é algo claro ainda para todo mundo. Acho que a gente tem contribuído nesse sentido.

Democracia Viva – Como você avalia a questão quilombola no governo Lula? Givânia – Para avaliar o governo Lula é preciso fazer algumas considerações do que foi o governo Fernando Henrique. Passamos oito anos tentando mostrar que existiam comunidades quilombolas. No dia 13 de maio de 2002, com o aval da Fundação Cultural Palmares, o governo de FHC vetou, na íntegra, um projeto que reconhecia as terras quilombolas. Era um texto muito mal escrito, horroroso, mas era um primeiro passo. No governo Lula, começamos um novo debate. Começamos a dialogar com o gover-


entrevista givânia silva

no ainda na transição. Tivemos duas reuniões durante a transição para pautar essa história e disso o que restou foi a criação de um grupo de trabalho, do qual fizeram parte eu e outras lideranças no Brasil: o Ivo, do Maranhão; o Silvano, do Pará; a Gonçalina, do Mato Grosso; o Ronaldo, do Rio; o Oriel, de São Paulo; e o Potássio, do Rio Grande do Sul. Com esse grupo de trabalho (GT), construímos o Decreto 4.887, que foi sancionado pelo governo no dia 20 de novembro de 2003. A partir disso é que começou a existir uma política mais desenhada para a questão dos quilombos. O desenho ainda não está bom, mas é alguma coisa, pelo menos temos uma política. O que está sendo muito complicado é a implementação desse decreto e das outras ações. Percebo que há muita fragmentação, há muito recorte no sentido de fazer coisinhas e não encarar o foco, a garantia da terra. Não temos um saldo muito bom, esperamos que seja esse um dos debates da conferência sobre igualdade racial. Foram tituladas apenas três comunidades no Pará, não foi nenhuma das comunidades que listamos como prioritárias, que são as que têm conflitos atuais: no Rio de Janeiro, Marambaia; no Maranhão, Alcântara; e no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Morro Alto. Enfim, não temos um saldo tão bom, esperamos que dê tempo de melhorar alguns indicadores que, para nós, não são satisfatórios.

modelo na cabeça das pessoas. Ou se pensa uma forma de flexibilizar isso, ou estaremos fora. Os conceitos deles estão formados, tem muita coisa para ser quebrada, é uma mudança radical de paradigma. O Estado nunca pensou nada para nós mesmos. Nós somos excluídos desse Estado que está aí, não há nada, não há política nenhuma, não há lei nenhuma, não há quase indicador nenhum que fale da gente. Como poderemos querer estar dentro de um negócio em que não existimos? O nosso grande desafio, não só com o governo Lula, é dizer a esse Brasil – que ajudamos a fazer – que existimos. Essa é a grande comunicação que temos a fazer. E dizer que existe significa fazer com que as ações voltadas para esses grupos sejam pauta das decisões políticas, e não ações fragmentadas.

Participaram desta entrevista: Janaína Jatobá, coordenadora do Programa de Mobilização de Recursos da Oxfam-GB; Márcia Laranjeira, coordenadora de Comunicação do SOS Corpo; e Rosângela Bueno, assistente de Relações Institucionais do Ibase

Democracia Viva – Você diz que o saldo não foi bom, mas seu relato não mostra uma maior participação? Givânia – Sem dúvida. Na Conaq, temos representação em grande parte dos conselhos e espaços políticos. Nossa participação aumentou e conseguimos gerar uma política. O que falta é a parte do Estado, é a questão da operacionalização. Por exemplo, temos representação no GT de Educação, no Conselho de Desenvolvimento Sustentável, assento no GT de Infra-estrutura, no Conselho da Mulher etc. Houve, sim, um crescimento qualificado da nossa participação no governo. Na nossa luta, passamos oito anos explicando o que são as comunidades tradicionais, e as pessoas não conseguiam compreender. Agora, estamos há dois anos e meio explicando, e outras pessoas também não conseguem compreender. Estão sempre querendo nos colocar dentro de um modelo que está na cabeça deles, na lógica deles. Não conseguem compreender que as coisas podem acontecer, mas não por aquela lógica que está pensada há 500 anos. Essa é uma dificuldade real. É um

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Crioulas de O nome da comunidade é Conceição das Crioulas, mas, diante da força da liderança feminina, a inversão no título desta reportagem faz todo sentido. Distante 500 km de Recife, Pernambuco, o município de Salgueiro, no Sertão, abriga o maior território quilombola do estado. São aproximadamente 17 mil hectares, onde vivem 4 mil pessoas em dez diferentes sítios, com 30 a 50 famílias cada. Sem dados oficiais sobre essa população, moradores e moradoras da comunidade acreditam que o número de mulheres é maior que o de homens. Mas não só a atualidade é marcada pela forte presença feminina. A própria origem de Conceição das Crioulas está absolutamente ligada a seis mulheres negras que chegaram à região ainda no fim do século XVIII. Foram elas que, com a venda do algodão, juntaram dinheiro para comprar a área que hoje é conhecida como Conceição de Crioulas. Na origem do nome, a participação de Francisco José – um negro que chega a essas terras trazendo consigo uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Ao oferecê-la às mulheres, resolvem construir uma capela para a santa. Começa, assim, a história de uma república

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ombos mulheres à frente do desenvolvimento Conceição das Crioulas tem uma forte expressão no movimento quilombola e tem na luta pela terra sua principal atuação. Fundada em julho de 2000, a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC) – ONG criada e dirigida por lideranças da comunidade – tem dado visibilidade à empreitada. Encrustada em uma área de conflitos agrários, Conceição das Crioulas é reconhecida como território remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares. Mesmo assim, a região ainda desperta a cobiça de fazendeiros que vêem na organização popular um entrave para seus desmandos. A AQCC conta com os apoios da Universidade Federal de Pernambuco, por meio do projeto Imaginário Pernambucano, da Oxfam-GB, da ActionAid Brasil, do Centro de Cultura Luiz Freire, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgueiro, do Movimento de Mulheres trabalhadoras Rurais do Sertão Central e da Prefeitura Municipal de Salgueiro. A AQCC tem como objetivos o desenvolvimento da comunidade – levando em conta sua realidade e sua história –, a valorização das suas potencialidades, a conscientização do povo negro da sua importância para construção de

uma sociedade justa e igualitária, a quebra da barreira do preconceito e da discriminação racial. Atualmente, além da luta pela terra, a AQCC está voltada para a implantação de um projeto político-pedagógico para regiões quilombolas – realizado em parceira com a Comissão dos Professores Indígenas de Xukuru (Copixu), a Prefeitura Municipal de Salgueiro e o Centro de Cultura Luiz Freire. Outra iniciativa em curso é a geração de renda por meio do artesanato feito com fibra de caroá – uma planta nativa. A preservação do meio ambiente e o resgate e valorização da cultura local também fazem parte da atividade. Uma das maneiras encontradas para isso é bem inovadora: as principais peças desse artesanato são bonecas que receberam o nome de dez mulheres consideradas “especiais” pela comunidade. Uma delas é Francisca Ferreira, uma das seis negras que fundaram Conceição das Crioulas. Em cada embalagem, além do nome e história da personagem, estão informações gerais sobre a comunidade. Outro cuidado é quanto ao manejo da planta que dá origem à fibra, sendo sempre respeitado o tempo da colheita. Aparecida Mendes, a Cida, 34 anos, é

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coordenadora executiva da AQCC e divide seu tempo como estudante de Pedagogia, em Salgueiro. É ela quem enfatiza o aspecto de resgate da cultura quilombola: “Quan­do Conceição surgiu, o artesanato veio junto com o plantio de algodão. As mulheres negras que aqui chegaram faziam diferentes tipos de renda. Hoje fazemos bonecas e outros objetos com a fibra do caroá e do catulé e com o barro, mas não se trata apenas de venda. Cada uma dessas peças conta nossa história”. O artesanato feito a partir do algodão foi abandonado no fim da década de 1980, por conta da praga do bicudo, da popularização dos fios sintéticos e também da dificuldade em manter as terras para plantios. “Ficamos à mercê do nada. As pessoas iam embora para a cidade grande e quem aqui ficava dependia da aposentadoria dos mais velhos ou das frentes emergenciais contra a seca”, conta Cida. O grupo de pessoas – cerca de 200, na maioria mulheres – envolvido com o artesanato ainda não pode viver exclusivamente da atividade mas nem pensa em abandoná-la: “As pessoas não recebem salário. O pagamento depende da encomenda e das vendas. Mas a atividade tem contribuído muito para manter nossa identidade, a história da comunidade. Temos muito orgulho das nossas peças”, explica a coordenadora executiva. Apesar da origem católica, Cida não esconde que o sincretismo religioso presente em Conceição das Crioulas também aflorou nos últimos tempos: “Na medida em que fomos redescobrindo, vimos influências que não são da Igreja. Passamos a observar as influências das religiões de matriz africana. Só não temos isso aprofundado. É uma pena que a Igreja Católica tenha colocado na cabeça do nosso povo que tudo que vem das religiões africanas é coisa do demônio”. Um exemplo vem do poder exercido pela Mãe Magá, também homenageada em forma de boneca. Segundo Cida, ela era uma espécie de líder espiritual e conselheira. Além disso, Mãe Magá era uma experiente parteira e sempre “sentia” o que ia ou não dar certo. Cida garante que até hoje essas influências estão presentes com as rezadeiras e mesmo com alguns rituais de religiões de origem africana:

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“É meio escondido, como se algo estivesse errado, mas que resistiu assim como o próprio povo. Uma contradição nisso tudo é que todo mundo se diz católico”. A busca pelo resgate da cultura africana também está presente por meio da educação: “Para nós, educador não é só quem está na sala de aula com o quadro e giz. As lideranças contam muito. Hoje a escola já está bem voltada para a nossa realidade, mas ainda falta resgatar a nossa origem como povo do continente africano. Sonho o dia em que possa dizer de qual país africano eu sou descendente”. Luiza Maria de Oliveira Silva tem 37 anos e representa essa herança. Nascida em um sítio próximo à Conceição, Nívia mudou-se para a comunidade logo após seu casamento. O exercício de benzedeira surgiu da necessidade: “Minha filha mais velha vivia doente e eu tinha que ficar na dependência de outras pessoas. Então, resolvi aprender e hoje me orgulho de poder ajudar a manter essa tradição”. Outra atividade desempenhada por essa benzedeira é o artesanato, cuja renda é gasta integralmente para a criação de seus quatro filhos e duas filhas. “Quero muito poder ensinar a reza para outra pessoa, mas mulher só pode ensinar para homem. E homem só pode ensinar para mulher. Quem sabe um dos meus filhos tem o dom?”. Sobre a mais forte característica dessa comunidade – a liderança feminina –, a coordenadora executiva da AQCC explica: “Em Conceição, as mulheres sempre acreditaram primeiro nas possibilidades. É claro que os ho-


reportagem Crioulas de Conceição – mulheres à frente do desenvolvimento sustentável

mens também participam das nossas iniciativas e projetos, de todas as conquistas, mas são elas se engajam e acreditam primeiro nas mudanças, mesmo quando as coisas são mais difíceis.” De novo, o artesanato é um exemplo. No início, apenas as mulheres trabalhavam e iam buscar a matéria-prima nas matas e foram elas também que viram na atividade a possibilidade de gerar renda de forma mais sistemática. Na hora de buscar parcerias e divulgar o trabalho, foram as mulheres que fizeram isso. Mas se inicialmente os homens, não participavam hoje fazem parte ativamente do grupo dedicado ao artesanato. Numa realidade assim, era de se esperar que a violência contra a mulher não acontecesse. Surpreendentemente, acontece. E é discutida de forma corajosa. Em Conceição, as mulheres fazem questão de lembrar que o racismo também é uma forma de violência. Cida resume o que sentem sobre o assunto: “A diferença é que encaramos esse fato como mais um desafio que temos a vencer; é mais uma barreira que enfrentamos. E não é só a violência doméstica. É a violência da discriminação racial também. É mais fácil valorizar algo feito por um homem do que por uma mulher. Percebemos claramente que algumas das barreiras e violências que enfrentamos no trabalho da AQCC com outras instituições vêm do fato de sermos mulheres e negras. A agressão moral é maior”. Ela própria já passou pela experiência, quando, no meio de um debate, um fazendeiro disse: “Você é uma menina que não sabe o que diz”. Ela lembra que, logo em seguida, um homem disse a mesma coisa com outras palavras e foi respeitado: “Eu chamo isso de violência; é uma tentativa de fazer calar. Sofremos violência que, infelizmente, não vem só dos machistas. As mulheres que começam a se destacar em reuniões e representações começam a ter problemas. A questão racial às vezes é tão forte que, por isso, defendemos os educadores da comunidade e esperamos que percebam a importância da valorização da diversidade racial para a auto-estima”. São barreiras que acabam transpostas. A fala de Cida não deixa dúvida: “Fico lembrando de um tempo em que éramos tão isoladas que imaginar dar uma entrevista era impossível! Hoje tanto me sinto segura a falar da minha história pessoal como da situação da comunidade. Aprendi e ganhei muito ao fortalecer o carinho que tenho pela minha comunidade. Teve uma época em que sonhava em ir para São Paulo. Agora, não me imagino longe daqui. Outro ganho pessoal é o direito de falar, de me colocar, mesmo com

as barreiras que temos que enfrentar. Não abro mais mão da minha fala”. A AQCC possui seis comissões – Juventude e Educação; Comunicação; Saúde; Meio Ambiente; Patrimônio; e Geração de Renda – formadas pelas lideranças da comunidade, cada qual responsável por levar adiante a discussão e a execução de diferentes iniciativas. Integrante da Comissão de Educação, Márcia do Nascimento, 31 anos, diretora da Escola José Néu, de primeira a quarta série, na Vila de Conceição das Crioulas, explica o papel do grupo: “Discutir, a partir da educação que temos, qual a educação que queremos para a nossa comunidade, que tem uma especificidade étnica. Temos discutido um refererencial de educação para a comunidade tendo como base a história e a cultura do nosso povo, nossos valores”. Em todo o território, existem dez escolas públicas, que ainda seguem o currículo tradicional, mas que fazem parte da construção de um projeto político-pedagógico inovador. Há dez anos, em 1995, quando foi inaugurada a única escola de quinta a oitava série, os debates sobre educação foram iniciados incentivados pela então diretora Givânia Silva (leia mais na entrevista). O projeto Edu­cação e Etnia, consolidado em 2003, já desenvolveu três das etapas previstas: oficinas de leitura e escrita, um diagnóstico e uma pesquisa sobre as histórias contadas pelas pessoas mais velhas. A última etapa, a edição de um livro didático para escolas quilombolas e não-quilombolas, ainda depende de financiamento. Nele haverá temas como a luta pela terra, as festas e tradições, além da própria história de Conceição das Crioulas. Márcia resume toda essa trajetória: “Uma coisa é a gente imaginar o que é melhor; outra é ouvir o que as pessoas da comunidade pensam. Por isso, em 2004, fizemos um mapeamento dentro do território quilombola de Conceição das Crioulas”. Foram realizadas entrevistas com lideranças, pessoas mais velhas e tam-

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Boneca viva A idéia de recriar em bonecas algumas das mulheres de Conceição surgiu em 2000, justamente quando era iniciado o projeto pedagógico. Cida conta que a história de Conceição era totalmente oral, sem registros escritos: “Nossa preocupação era que essa riqueza se perdesse nas gerações mais jovens. As bonecas são uma forma de fortalecer a identidade e homenagear as mulheres que fizeram e que fazem esta comunidade e que têm se doado com muita intensidade”. Mas as bonecas são também uma forma de homenagem às atuais lideranças femininas. Lourdinha, que também cursa pedagogia, é uma das mulheres transformadas em bonecas. Professora e artesã, foi escolhida por seu trabalho de valorização da beleza e auto-estima da mulher negra. Indicada pelos(as) jovens(as) para virar boneca, Lourdinha considera que esse é um grande reconhecimento: “Valorizo mesmo a minha cor e falo para meus alunos que devemos nos valorizar e nunca aceitar a discriminação. Tentaram nos impedir de ter educação e não conseguiram,

somos fortes”. Ela acredita que as bonecas representam também uma forma de combate ao racismo, já que cria uma referência positiva para os(as) mais jovens: “As crianças agora dizem que somos famosas e se orgulham. Minha filha fica encantada quando dizem que a mãe dela é uma boneca. As que estão vivas e as que não estão mais aqui são todas símbolos da nossa luta contra qualquer discriminação”.

bém com a juventude; além de questões sobre o currículo programático, o perfil de professores e professoras foi altamente discutido. Segundo Márcia, baseado nessa “fala coletiva”, está sendo construído um projeto político-pedagógico para escolas quilombolas. Enquanto todo o processo não está sistematizado, a AQCC faz questão de participar dos mecanismos tradicionais de educação: “Nós construímos o atual currículo com a Secretaria Muncipal de Educação de Salgueiro, colocamos nossas ações e propostas para contemplar a nossa história. O que não está lá, nós colocamos”, afirma Márcia. No diagnóstico, a questão do currículo foi ressaltada pela maioria das pessoas ouvidas, sendo apontada a necessidade de que os mais jovens aprendam seus costumes, seus valores, suas histórias e que sejam preparados para a realidade local. Segundo Márcia, ao mesmo tempo em que é citada a importância de crianças, rapazes e moças aprenderem a trabalhar na roça, por exemplo, é bastante enfatizada a necessidade de “ler e escrever bem”. Nascida a 12 km de Conceição das Crioulas, a própria Márcia tem, na sua história pessoal, a prova de quanto o resgate da identidade cultural na educação é capaz de mudar as pessoas. “Vim para Salgueiro para poder estudar; na época só tínhamos escola até a quarta série. Trabalhava em casa de família para poder ter onde ficar na cidade. Me formei e fiz concurso para o magistério, em 1995. Quando fui lotada

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em Conceição, não tinha uma ligação forte com essa história de um povo. Hoje, sei que aprendi mais do que ensinei. Não tinha essa consciência de ser uma quilombola. Não me considerava uma quilombola.” Dez anos depois de chegar à escola mais antiga da Vila, Márcia se sente pertencente a essa comunidade: “Foi com a chegada da escola de quinta a oitava série, pelas mãos da Givânia, que começamos a buscar essa história que nos era negada. Hoje sei da minha história e da história de resistência de um povo e me identifico com isso. Sou uma quilombola. Somos ensinados que ser negro é feio, e não queremos ser feios; negamos nossa identidade. Só quando entendemos nossa história, passamos a nos orgulhar da nossa raça. É muito importante saber que faço parte de um povo que há mais de 500 anos foi massacrado, assassinado e ainda está aqui resisitindo. Que estamos firmes e fortes. Me sinto muito orgulhosa de pertencer a esse povo“. Além da escola de ensino fundamental, que tem mais de 220 estudantes, a Vila tem a Escola José Mendes, que vai de quinta a oitava série e também oferece ensino médio a mais de 800 pessoas. Além dos(as) morado­res(as) locais, as unidades atendem estudantes de toda a região. “Mesmo estando dentro de uma área quilombola, valorizamos a diversidade cultural. Quilombola e não-quilombolas podem aprender juntos.” Adaumi, de 24 anos, estuda Pedagogia


reportagem Crioulas de Conceição – mulheres à frente do desenvolvimento sustentável

e integra a Comissão de Juventude e Educação. Um dos projetos implementados por essa comissão é o jornal Crioulas. “Fazemos da reunião de pauta à redação; só a diagramação e a impressão são feitas fora daqui. Mas nós é que aprovamos o produto final”, explica. São os(as) jovens que se encarregam de fazer as fotos, entrevistas e matérias, escolhendo cada um(a) o tema de sua preferência; a produção gráfica é assinada pelo projeto Imaginário Pernambucano, da Universidade Federal de Pernambuco. Editado a cada três meses, o jornal Crioulas já está na sétima edição e é distribuído para 4 mil pessoas em todo o Brasil. O mais novo empreendimento da Comissão é o Crioulas Vídeo – feito em parceria com o Centro de Cultura Luiz Freire, de Recife, e com a Universidade de Lisboa. O primeiro vídeo conta a própria história da comunidade e está sendo exibido em encontros dos quais o grupo participa. Outros dois já foram filmados e estão em fase de finalização: um sobre as quebradeiras de

coco do Maranhão e outro sobre um encontro entre educadores indígenas e quilombolas, que aconteceu em abril deste ano. “As filmagens com as quebradeiras foram feitas recentemente num intercâmbio que fizemos com a Associação em Áreas de Assentamento do Estado no Maranhão (Assema). O outro fala do encontro com os indígenas e também sobre o que significa a educação”. Para Adaumi, a liderança feminina de Conceição das Crioulas, como disse Cida, é algo natural: “Somos gratos pelas mulheres não serem acomodadas e nem alienadas. Elas sempre procuram formar as pessoas de comunidade para o mundo. Elas pensam no bem de Conceição das Crioulas. Mesmo que os homens tenham também papel de liderança, as mulheres fazem isso de uma maneira mais forte e mais voltada para o coletivo”.

*Iracema Dantas Coordenadora de Comunicação do Ibase iracema@ibase.br

Artesanato e preservação do meio ambiente Os(as) moradores(as) de Conceição das Crioulas têm grande consciência da importância do manejo na retirada dos recursos naturais. Prova disso é que pessoas mais experientes sempre ensinam a iniciantes o “tempo certo de colher”. Além de não retirarem plantas em fase de crescimento, fazem questão de manter um rodízio nas áreas de extração das diferentes matérias-primas usadas no artesanato local. Outra consciência ecológica vem de uma campanha para impedir o banho no açude da região. Mesmo diante de um “convite ao oásis”, os(as) moradores(as) de Vila da Conceição, especialmente os(as) mais jovens, fazem questão de debater freqüentemente a importância de manter a qualidade da água disponível para a comunidade. Diante de um quadro como esse, a inexistência de uma rede de saneamento básico é algo a lamentar. Por enquanto, a comunidade conta apenas com energia elétrica. A conquista para muitos acabou por inibir as rodas de conversa nas portas das casas, como conta Tia Marina, uma das mais antigas moradoras da Vila: “Agora todo mundo tem parabólica e fica vendo novela. Antes, a gente fica conversando e olhando o céu”. Entre os recursos naturais mais utilizados estão o caroá, o barro e o catulé. O caroá é uma bromélia que fornece a fibra para a confecção das bonecas. De caule curto, a planta possui espinhos em sua borda, com folhas que lembram o formato de uma rosa. Em meado do século XX, uma fábrica de caroá foi instalada na região, mas foi desativada com a concorrência do sisal. O barro está presente até os dias atuais nos

utilitários do povo de Conceição. Até a década de 1950, aproximadamente, usavam-se apenas louças de barro. Muitas dessas peças eram vendidas em feiras e lojas de cidades próximas como Cabrobó, Floresta e Salgueiro, em povoados e por encomenda. As mulheres que trabalham com esse tipo de artesanato são conhecidas como louceiras e pertencem todas a mesma família consangüínea. O catulé, uma palmeira silvestre bem comum no sertão, fornece uma amêndoa de onde se extrai óleo. Sua palha é aproveitada no artesanato, sendo transformada em chapéus, cestas, bolsas etc. A palha de catulé sempre esteve presente na produção de vassouras e esteiras, sendo considerada uma atividade tipicamente das pessoas mais velhas. Para a coordenadora executiva da AQCC, é importante que o artesanato seja visto como algo além de geração de renda. “No caso do Caroá, uma planta nativa, por exemplo, a cada extração a força da planta aumenta. Sabemos que não podemos tirar aleatoriamente.” O artesanato de Conceição das Crioulas revela uma outra questão: “Precisamos das plantas nativas para o nosso trabalho. Temos que preservar a natureza. O problema é que muitos fazendeiros tocam fogo nas plantações só para impedir que a gente retire a fibra; outros simplesmente arracam as plantas. Alegam que estamos tendo muito dinheiro com isso”.

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AnaCris Bittencourt*

No extremo sul do estado de São Paulo, no Vale do Ribeira, no interior do município de Eldorado, vive uma das mais antigas populações quilombolas do Brasil. A comunidade de Ivaporunduva é um exemplo de convivência saudável entre os seres humanos e o meio ambiente. Todos os projetos de desenvolvimento sustentável, que vem implementando nos últimos cinco anos, levam em conta a preservação e a utilização dos recursos naturais sem danos à natureza. A defesa dos direitos coletivos, muito bem sedimentada, tem sido combustível vital para o funcionamento das engrenagens de uma organização que tem contribuído decisivamente para a garantia de conquistas como a titulação da terra e servir de exemplo às outras 53 comunidades quilombolas do Vale. Formada há mais de 300 anos, por um grupo de pessoas que se rebelou contra a escravidão e cuja resistência garantiu sua liberdade muito antes da abolição da escravatura, hoje a comunidade se depara com novos desafios: garantir o êxito desses projetos e impedir que seja construída uma barragem no Rio Ribeira do Iguape, uma ameaça às populações daquela região.

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ombos A Associação Quilombo de Ivaporunduva existe informalmente desde a década de 1980, mas seu estatuto só foi colocado no papel recentemente, há 11 anos. Envolve cerca de 300 pessoas de 80 famílias e tem acumulado vitórias: a região conta com abastecimento de água e luz elétrica, melhorou estradas dentro da área do quilombo e garantiu a permanência de canoeiros para fazer a travessia dos(as) moradores(as) no Ribeira; tem desenvolvido projetos de geração de trabalho e renda; reformou a casa onde funciona a escola de primeira a quarta série; construiu uma praça que se tornou ponto de encontro em torno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos – construída no século XVII e tombada como patrimônio histórico pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e também recententemente restaurada; e construiu uma pousada para receber visitantes dispostos(as) a fazer ecoturismo e conhecer a história local. Mas a grande mudança está vindo como resultado de três projetos de desenvolvimento sustentável, implementados a partir de 2001 em parceria com o Instituto de Estudos Sociambientais (ISA), sediado na capital paulista. O estreitamento das relações entre a organização e as comunidades quilombolas da região começou em 1996, quando o ISA elaborou o Diagnóstico Sociambiental Participativo do Vale do Ribeira. E se intensificaram na luta contra as barragens (leia boxe sobre o assunto). Hoje, os projetos contam com apoio do PD/A Consolidação, do Ministério do Meio Ambiente, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). No início, tiveram também o apoio da Fundação Ford. Durante a realização do diagnóstico, o ISA constatou a existência de 50 comunidades quilombolas, hoje o movimento já fala em 54. As comunidades têm em média 50 famílias, cada uma com seis integrantes. Boa parte das conquistas de Ivaporunduva deve-se a um diferencial que salta aos olhos

na visita à comunidade: seu poder de liderança. “Um problema notório nas comunidades quilombolas é a ausência do serviço público. Se nossa comunidade está indo bem é porque as próprias pessoas de lá correram atrás para suprir suas deficiências. Oxalá todas as comunidades tivessem informação para isso. A história dos quilombolas não é fácil de contar. O Vale do Ribeira tem um movimento consolidado e minha comunidade se destaca por concentrarmos um maior número de lideranças. Isso tem nos favorecido no desenvolvimento de projetos, se reflete na busca pela segurança alimentar, pela sustentabilidade”, explica Oriel Rodrigues, 34 anos, advogado, professor de História no pré-vestibular da comunidade e representante das comunidades do estado de São Paulo na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Se as lideranças mais velhas não tiveram oportunidade de estudar, foi a participação intensa em movimentos sociais que contribuiu na sua formação, atitude seguida pelas pessoas mais jovens. Foi o caso de José Rodrigues da Silva, 43 anos, uma das principais lideranças no quilombo e coordenador da associação: “Quando falamos de liderança e conhecimento, sempre digo que existem dois tipos de faculdade, a formal e a faculdade da vida, do mundo. Esta, onde aprendi, é a mais difícil porque temos que aprender tudo ao mesmo tempo. Muito cedo percebi que, se quisesse ajudar a resolver as necessidades do nosso povo, precisava aprender mais em menos tempo. Por isso, fui conhecer movimentos, tentar participar para aprender a nos organizar”, diz ele, que estudou até a sétima série do ensino fundamental. Para Zé Rodrigues, outro fermento que faz com que a comunidade se desenvolva é a noção muito forte de coletividade. “Ficamos aqui isolados até há algum tempo e nossos ancestrais sempre valorizaram a idéia do parentesco, da amizade, do trabalho conjunto. Eles achavam que esse era o melhor caminho

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para um grupo que já vivia isolado, se não nos uníssemos, se ficássemos dispersos, nada daria certo. Essa linhagem continua até hoje, somos todos parentes, vivemos em família. Se alguém tem um problema, todos ajudam. Abrimos mão da ascensão individual em prol da ascensão coletiva, preferimos trabalhar e lutar juntos para alcançar os mesmos objetivos.” Para se ter idéia de até onde vai essa noção de conjunto, as terras do quilombo não têm divisas, cada pessoa planta onde quer, cria seus animais em pasto comunitário, até existem roças individuais, mas, na hora da colheita, todo mundo participa. “Ninguém aqui é rico nem miserável, temos o suficiente para viver, terra para trabalhar, rio para pescar, temos muita coisa boa para usar coletivamente”, enfatiza.

Elas ganham mais A população de Ivaporunduva tem mais homens que mulheres (60% contra 40%, segundo levantamento realizado em 2001 pelo ISA). Mas também conta com lideranças femininas. É o caso de Maria da Guia Marinho da Silva, 43 anos, casada com Zé Rodrigues. Ela participa do grupo de produção e comercialização do artesanato da palha da bananeira – um dos projetos de desenvolvimento citados – e também é membro da Pastoral da Criança. Uma vez por mês, realiza visitas mensais de orientação às famílias dessa e de outras comunidades, a respeito de saúde, higiene e alimentação, cuidados com grávidas e crianças, fazendo ainda a pesagem de bebês e ensinando a multimistura, complemento vitamínico de combate à desnutrição. Para Maria, oferecer um melhor atendimento de saúde é ainda um desafio na região. “Temos em Eldorado um posto

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que presta os primeiros-socorros, contamos com agentes comunitários de saúde toda semana, mas ainda é pouco. Gostaríamos de ter um atendimento específico para o povo quilombola, um médico que ficasse aqui e acompanhasse nosso cotidiano. Hoje, quando procuramos um hospital fora da comunidade, somos respeitados, mas já fomos bastante discriminados e sofremos muito com isso, eram horas de fila de espera para nada. Agora, somos mais reconhecidos até pela nossa atitude”, afirma. O grupo de artesanato, do qual Maria faz parte, formou-se em 1997, depois de um curso de capacitação oferecido pela Esalq. Da turma de dez pessoas, a maioria era homem, mas aos poucos as mulheres lideraram o projeto. “Como se tratava de um trabalho detalhado e que precisava ter paciência para fazer e vender, os homens se afastaram e nós tomamos conta. Nessa época, as mulheres não tinham uma fonte de renda, sempre trabalhamos na roça, só para sobreviver, não havia dinheiro. Por isso, nos interessamos pelo artesanato”, conta Araci Atibaia Pedroso, 61 anos, que coordena o grupo. O aprendizado foi passando de uma para outra. Hoje, cerca de 20 mulheres, de 14 a 70 anos, estão envolvidas na atividade que já rende uma média de R$ 300 por família. Depois do primeiro, outros cursos, em parceria com o ISA, foram organizados, e a quantidade de artesãs aumentou. A matéria-prima é o tronco da bananeira, de onde se tiram filetes, mais grossos ou mais finos, trançados com a ajuda de um tear e ornamentados com sementes locais para se transformar em pulseiras, colares, bolsas, carteiras, tapetes, esteiras, caixinhas e cestas. Cada peça tem uma etiqueta, com a história resumida da comunidade. Recentemente, foi construída uma casa para servir de oficina, armazenamento e venda das peças. Porém, por ser um local onde não bate sol e a palha da banana ser um material sensível à umidade, elas só usam o espaço para venda, fazendo e guardando os produtos em casa. Esse é um obstáculo a galgar, aprender a livrar a palha dos fungos, o que as tem impedido de estocar material. “Estamos fazendo um curso para resolver isso, assim poderemos aumentar bastante a produção. Temos tido bons resultados e o nosso esforço tem sido recompensado. Muita gente que não conhecia o quilombo acaba conhecendo nossa história através desse trabalho”, diz Araci. As vendas são feitas na própria sede,


Bruno Dias Weiss/ISA

Arquivo Ibase

reportagem ivaporunduva, terra de lideranças e conquistas

Maria da Guia e o grupo de mulheres do artesanato: o trabalho tem garantido uma renda de R$ 300 mensais às famílias da comunidade de Ivaporunduva. Recentemente, foi construída uma sede para expor e vender os trabalhos

para visitantes, mas também em exposições, feiras e eventos na capital. Para ela, a atividade transformou a vida das mulheres. “Alguns homens não gostaram quando deixamos o trabalho nas roças em troca do artesanato, mas não dá mesmo para fazer as duas coisas. Depois, aos poucos, eles perceberam que passamos a ajudar no sustento da família, a melhorar as condições da casa, comprar material de escola para as crianças e, às vezes, até fazer um passeio. O que mudou muito na vida da gente é que o tempo todo dependíamos dos homens e, a partir do momento em que começamos a ter renda também, eles nos deram mais valor”, enfatiza. Um ponto a destacar é que o trabalho artesanal vem dando mais lucros que o cultivo da banana orgânica, outro projeto de desenvolvimento sustentável, coordenado pelos homens da comunidade. “Esta é uma atividade em fase de estruturação, mas já tem significado importante geração de renda para algumas famílias locais. Os cursos realizados motivaram o ingresso de outras pessoas na atividade, aumentando o número de artesãs e a quantidade de peças produzidas, assim como as possibilidades de comercialização. A criação da identidade visual, logomarca e de etiquetas para identificação foi de fundamental importância para a maior visibilidade dos produtos e para agregar valor às peças. Atualmente, uma peça do artesanato produzido com a palha, um produto secundário da atividade agrícola, chega a ser comercializada por até três ou quatro vezes o preço de uma caixa de bananas orgânicas”, explica o coordenador dos projetos

no ISA, Nilto Ignácio Tatto.

Turismo e educação Buscando um futuro menos acidentado para a juventude do quilombo, o que não falta é incentivo para estudar, aprender, participar de cursos, seminários e eventos dentro e fora da comunidade. Mas sempre com a consciência de que esse aprendizado precisa ser aplicado ali. O curso pré-vestibular comunitário, organizado em 2004 com apoio da rede Educafro, levou, no início deste ano, 13 estudantes para a universidade. “Tentamos mudar a idéia de que negro não serve para pensar, não serve para ser intelectual. Das pessoas que entraram na universidade agora, quatro estão fazendo Direito. Aqui no Brasil, Medicina e Direito ainda são cursos para elite, temos que quebrar esses privilégios. Tenho certeza de que essas pessoas, quando terminarem os estudos, vão trabalhar com a nossa comunidade, a simbiose que temos favorece isso”, afirma Oriel. Sua trajétoria é um exemplo da dedicação de quem faz parte dessa família. Nascido em Ivaporunduva, teve que deixar a comunidade ainda pequeno para acompanhar seu pai que arrumou trabalho na capital. Voltaram quando ele estava com 12 anos. Oriel continou estudando em outro município, Itapeúna, decidido a fazer um curso técnico de contabilidade. “Nesse período, já participava como militante da causa quilombola, fosse contra as barragens ou pelo registro da terra. É difícil conciliar a militância com o estudo, queria muito ter o curso superior. Cheguei a fazer História, Biologia e Antropo-

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Arquivo Ibase

especial

Arquivo Ibase

Lideranças jovens desenvolvem o projeto de parceria com estudantes para preservar a história quilombola. Da esquerda para a direita, Ladio dos Santos, Paulo Pupo e Denildo

A escola de primeira a quarta série foi recentemente reformada para atender às demandas locais

logia, mas terminei o curso de Direito, no ano passado. Isso tudo me serviu de aprendizado, porém meu conhecimento maior vem mesmo da militância em movimentos sociais”, conta. As representações em instâncias fora da comunidade, como no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), na Pastoral da Criança e na Conaq, são uma mostra da força da comunidade de Ivaporunduva. As representações também possibilitaram a participação nas discussões durante o processo constituinte que resultou na inclusão do Artigo 68 na Constituição Federal – este obriga o Estado a reconhecer, regularizar e titular os territórios quilombolas de todo o Brasil. Ivaporunduva está entre as poucas já tituladas, mas essa titulação só alcançou um terço das terras originais, são pendências a

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resolver no futuro. “Antes das comunidades quilombolas terem o direito garantido pela Constituição, era comum as pessoas saírem daqui por falta de oportunidades, elas se dirigiam à capital ou às cidades vizinhas para tentar a sorte. Depois que tivemos esse direito garantido, a comunidade se organizou, nos estruturamos em um sistema coletivo de trabalho. Hoje, é comum a pessoa sair para fazer um curso, temos oportunidade de nos preparar pensando em dar esse retorno para a comunidade”, anima-se Paulo Silvio Pupo, 25 anos, uma das vozes jovens envolvidas no trabalho de preservar a história da comunidade. Ele é um dos três monitores que acompanham estudantes e professores(as) de escolas particulares da capital e de outros municípios em visitas semanais à comunidade. Trata-se de uma verdadeira aula de educação ambiental e cidadania. Dentro da igreja, os grupos assistem a uma palestra sobre a história do quilombo – dura cerca de 30 minutos, com ênfase nas lutas que enfrentaram, na questão do preconceito, o convívio com a terra, a corrida pelos direitos e a organização comunitária como chave dessas conquistas –, conhecem os projetos que estão sendo desenvolvidos e almoçam uma comida tipicamente quilombola – como frango caipira com mandioca, arroz e feijão mulatinho, verduras e legumes, suco de lima e doce de banana, tudo cultivado no local, sem agrotóxicos. “Desenvolvemos com os estudantes uma atividade turística mais voltada para o étnico e o cultural. São estudantes a partir da quinta série que querem conhecer como vivemos. Mas se torna uma oportunidade de repassar informações sobre a população quilombola no Brasil e também mudar uma visão distorcida que a maioria tem a nosso respeito. Em geral, as escolas passam informações bem equivocadas sobre o assunto, é algo que não está em livro nenhum, daí ser tão importante essa troca. Com certeza, eles também serão disseminadores dessas informações”, afirma Paulo. Críticas como essa culminaram em um projeto de construção de uma escola coletiva para as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. A escola, de ensino fundamental e médio, está sendo instalada na comunidade de André Lopes – fundada por famílias que vieram de Ivaporunduva. A idéia é facilitar a ida das crianças, já que hoje as comunidades só dispõem de escola até a quarta série e, a


reportagem ivaporunduva, terra de lideranças e conquistas

partir daí, elas têm que estudar fora. A intenção também é permitir um ensino diferenciado. Quem explica é Maria da Guia: “Essa foi uma reivindicação das comunidades porque nossos filhos têm que sair de casa muito cedo, 3h30, 4h30 da manhã, para estudar em outros municípios. Percebemos que, com essa dificuldade, eles não vão conseguir concluir os estudos, queremos que eles estudem em uma escola com horários melhores, que descansem mais. Queremos também formar as crianças dentro dos nossos costumes, uma educação voltada para o trabalho que fazemos para que, no futuro, eles possam administrar a comunidade”. O projeto de intercâmbio com as escolas foi discutido por dez anos e colocado em prática há três. Isso porque abrir a comunidade para o público externo é algo tratado com particular cuidado. “O estatuto da associação reza o que pode o que não pode. Aqui não entram drogas, não há problemas de roubo. Nossos filhos estudam na cidade, mas têm essa consciência, não trazem nada disso para cá. Pessoas estranhas quase não entram aqui, fica mais fácil controlar. Trata-se de um bairro rural de uma cidade no interior e na nossa cultura não tem essas coisas”, explica Zé Rodrigues. Por esse motivo, a pousada, construída em parceria com o governo do estado ano passado para estimular o ecoturismo na região, não começou a funcionar. A idéia não é abrir o prédio para hospedagem comum, mas incluir a estadia em um pacote no qual a história quilombola e a preservação da natureza sejam o prato principal. E como o projeto ainda não foi acertado, as portas da pousada continuam fechadas ao público.

Banana para dar e vender Um dos projetos que mais têm movimentado a comunidade de Ivaporunduva é o de manejo orgânico da banana. A idéia é aprimorar a produção e a comercialização e agregar valor à banana produzida, visando independência e autonomia da comunidade com relação ao mercado. O projeto possibilitou a aquisição de um caminhão, o que tem possibilitado aos produtores alcançarem mercados mais vantajosos, sem a interferência de atravessadores – que ficavam com a maior parte do lucro. “Os produtores orgânicos têm recebido até R$ 5 pela caixa de 20 quilos da fruta verde (não-climatizada). Se estivessem comercializando com os atravessadores, estariam recebendo

em torno de R$ 1,50 a caixa”, defende Nilto. Outro resultado importante foi a certificação de 35 produtores pelo Instituto Biodinâmico (IBD). A certificação atesta que o produto foi feito dentro de padrões orgânicos de produção, sem uso de adubos e defensivos agrícolas químicos. O padrão de certificação orgânica IBD inclui critérios sociais e ambientais, tais como não-utilização de trabalho infantil, estímulo à preservação e à recuperação de áreas nativas. Trata-se de um selo de qualidade e pureza do produto, que acaba se tornando também um cartão de visita no momento da venda. “Antes de conhecer o ISA, já estávamos buscando projetos de geração de renda, mas essa parceria ajudou a fortalecer os projetos, eles têm um corpo técnico que nos ajuda bastante. De seis anos para cá, nossa situação começou a mudar, a idéia é buscar uma qualidade de vida cada vez melhor”, diz Zé Rodrigues. O próximo desafio é comer­cia­­­lizar a fruta já ma­dura (climati­za­da), cujo valor chega a ser o dobro da fruta verde. “Para isso, já foi adquirida uma câmara de clima­ti­z ação. No momento, estamos trabalhando na capacitação téc­nica da comunidade”, anima-se Nilto. Também es­tá sendo instalada uma unidade de processamento de frutas para a produção de derivados orgânicos como banana-passa e doces.

Da devastação à preservação O terceiro projeto de desenvolvimento é de repovoamento do palmiteiro juçara. A iniciativa, além de resolver um problema ambiental grave, já que a espécie corria risco de extinção, vem solucionando um aspecto social relevante – o retorno de boa parte da força de trabalho masculina para a comunidade. Durante muitos anos, era comum a re-

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felipe leal/ISA

tirada clandestina do palmito, entregue por qualquer dinheiro a atravessadores. Para fazer esse trabalho, alguns homens da comunidade se embrenhavam na mata por semanas, deixando abandonadas suas famílias em atividade perigosa para eles, danosa ao meio ambiente e praticamente sem retorno financeiro. “Essa devastação acontecia por falta de informação da população e também porque não estávamos preparados para receber tanta restrição ambiental. A partir da década de 80, nossa região passou a sofrer uma repressão forte por parte dos órgãos de fiscalização do estado por guardar uma porção rara de mata atlântica, não podíamos desmatar para sobreviver. Por exemplo, se vinha o guarda florestal e dizia que não podíamos fazer roça em determinada área, a população começava a ver aquele guarda como inimigo, não tínhamos senso crítico para trabalhar de forma cooperada com o

Felipe leal/ISA

O projeto de replantio do palmiteiro juçara se estende por 200 hectares do território quilombola

Plantula do palmiteiro juçara: o projeto de repovoamento da espécie envolve todas as famílias de Ivaporunduva e salvou-a do risco de extinção

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meio ambiente, como acontece hoje. Assim, muitos partiram para a clandestinidade, cortando palmito para sobreviver”, esclarece Denildo Rodrigues, 23 anos, irmão de Oriel. Segundo informações do ISA, o Vale do Ribeira, onde fica a comunidade de Ivaporunduva, abriga um valioso patrimônio ambiental. São 2,1 milhões de hectares de florestas, que representam 21% dos remanescentes de mata atlântica do Brasil, 150 mil hectares de restingas e 17 mil hectares de manguezais. Em 1999, a Reserva de Mata Atlântica do Sudeste, formada por 17 municípios do Rio Ribeira do Iguape, entrou para o time das seis áreas brasileiras tombadas como Patrimônio Natural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). O projeto tem possibilitado a reintrodução da espécie em 200 hectares do território quilombola de Ivaporunduva, por meio da coleta e dispersão das sementes. Até o momento, a atividade viabilizou a dispersão de cerca de 3 mil quilos de sementes, coletadas na própria comunidade. O trabalho é feito em mutirões, com o envolvimento e mobilização de grande parte das famílias. A iniciativa trabalha com a perspectiva de manejo da espécie no futuro, seja o palmito, a semente ou a polpa. Além de ser mais uma fonte de renda para a comunidade, é importante considerar o seu papel na manutenção da biodiversidade da região. “O potencial ecológico da espécie está na interação com a fauna local, pois funciona como fonte de alimento de grande parte dos animais. Isso indica que o palmiteiro é uma espécie estratégica para a manutenção da dinâmica dos ecos­s iste­m as”, esclarece Nilto.


reportagem ivaporunduva, terra de lideranças e conquistas

Interesses empresariais ameaçam o Vale

* AnaCris Bittencourt

Há cerca de dez anos, as comunidades quilombolas do Vale

Subeditora da revista Democracia Viva. Agradeço a colaboração

fotos: arquivo ibase

de Fábio Graf Pedroso, engenheiro agrônomo, e Fábio Zanirato, engenheiro florestal, pesquisadores do ISA, que me acompanharam na visita à Ivaporunduva e forneceram informações valiosas incluídas neste texto anacris@ibase.br

do Ribeira têm se articulado para tentar impedir a liberação do licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto – prevista para ser construída entre os municípios de Ribeira/ SP e Adrianópolis/PR, no Rio Ribeira do Iguape. Se concretizada, sua instalação está prevista para acontecer no alto Vale do Ribeira, mas, segundo os estudos já realizados pelo ISA e publicados na cartilha Tijuco Alto Saiba porque ela não interessa ao Vale do Ribeira, em 2002, a usina vai prejudicar, direta e indiretamente, vários outros municípios situados no médio e baixo Vale. A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto faz parte de uma proposta de construção que engloba pelo menos mais três usinas a serem construídas ao longo do rio – é o que consta no estudo de inventário do Rio Ribeira de Iguape, aprovado em 1994 pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) e pela Eletrobrás. Se essas barragens forem construídas, uma área de 11 mil hectares será inundada para sempre – a área, equivalente a 11 mil campos de futebol, inclui várias comunidades quilombolas, entre elas Ivaporunduva, dois parques estaduais e áreas urbanas como o centro histórico da cidade de Iporanga. O projeto foi planejado pela Companhia Brasileira de Aluminío (CBA), que pertence ao Grupo Votorantim, com a intenção de aumentar a oferta de energia elétrica para sua indústria de alumínio. Segundo dados do Ibama de 1997, essa energia extra seria exclusivamente destinada ao aumento da produção da empresa. Nem mesmo no período da construção da barragem – um arco de concreto de 150 metros de altura, comparável a um prédio de 15 andares –, as pessoas das comunidades do Vale do Ribeira seriam beneficiadas, já que, do conjunto de 1.500 trabalha­do­res(as) necessários(as) à empreitada, apenas 10% seriam da região. Tampouco vai gerar empregos locais quando estiver funcionando, a previsão é de ter uma equipe de apenas 123 pessoas.

“Quando surgiu o boato com relação à construção das barragens, tentamos nos articular com outras comunidades e, aos poucos, criamos uma consciência crítica com relação às barragens. De acordo com experiências de outras comunidades, acontece tudo ao contrário do que as empresas falam. Diziam que as barragens levariam desenvolvimento para as regiões atingidas, quando na verdade elas ficaram muito mais pobres. As pessoas que antes viviam da terra agora passam fome”, lamenta Denildo Rodrigues, liderança jovem em Ivaporunduva, integrante do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), em Brasília, e do Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab), que se organizou no Vale do Ribeira. Denildo se referiu à construção de barragens para atender aos interesses do empresariado fazendo uma comparação com o problema da terra, as barragens seriam latifúndios de água: “Hoje temos uma imensidão de água represada, são 2 mil barragens em todo o Brasil, isso representa o território do estado do Tocantins. Em geral, as populações atingidas, que antes moravam às margens dos rios, perdem o acesso à água de qualidade e passam a ter que disputar uma água barrenta com animais, como está acontecendo na Paraíba. É muito doído perceber que hoje o dinheiro está acima dos direitos humanos”, conclui. Nilto Tatto, do ISA, tem uma visão mais otimista: “Acredito que a articulação das comunidades quilombolas com outros setores da sociedade conseguirá impedir a construção das barragens. A sociedade civil organizada também pode contribuir com essa luta, participando do processo de mobilização já em curso no Vale e exigindo que sejam realizados estudos de impacto de toda a bacia antes de iniciar qualquer obra”, incentiva.

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quilo reportagem

Thais Zimbwe*

Resistência

e cultura em Valença

Preservar a memória é uma das maneiras de construir a história. Com esse objetivo, a comunidade quilombola São José da Serra realiza todos os anos a Festa de Jongo, para comemorar o Dia dos Pretos Velhos e a abolição da escravatura. No dia 14 de maio deste ano, cerca de 600 pessoas puderam conhecer a cultura e as tradições africanas preservadas numa comunidade quilombola. O quilombo São José da Serra, localizado na cidade de Valença, no interior do estado do Rio de Janeiro, existe há cerca de 150 anos e é composto por aproximadamente 200 negros e negras. A comunidade é referência pela preservação das tradições africanas mantidas por moradores(as) e pela divulgação de seus patrimônios culturais, tais como a umbanda e o jongo. A comunidade recebeu, este ano, a medalha estadual de direitos humanos Austregésilo de Athayde, pela importância do trabalho social e cultural local.

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ombos “Foi muito importante para nós recebermos essa medalha. Nós aqui da comunidade procuramos manter nossas tradições vivas, podendo mostrá-las e ensiná-las para quem vem nos conhecer. Em dias de festa, procuramos dançar melhor o nosso jongo, cantar melhor as nossas cantigas, para que todas as pessoas saiam daqui melhores do que entraram”, comenta Toninho Canecão, presidente da Associação de Moradores do Quilombo São José da Serra. “Eu vou tocar minha viola, eu sou negro cantador. O negro canta, deita e rola lá na senzala do senhor. Tem que acabar com essa história de negro ser inferior, o negro é gente como o outro, quer dançar samba e ser doutor. O negro mora em palafita, não é culpa dele, não, senhor. A culpa é da Abolição, que veio e não o libertou”, diz a letra da cantiga cantada na missa afro que abriu a Festa de Jongo. Para festejar o Dia dos Pretos Velhos, divindades cultuadas pelas religiões de matrizes africanas, moradores e moradoras realizam anualmente a Festa de Jongo, quando são praticadas diversas manifestações culturais africanas, preservadas no quilombo desde a época da escravidão. Uma missa afro, na qual se mescla o catolicismo com a umbanda, abriu a festa, e todo o público pôde participar da celebração. “É muito bonita toda essa festa, nunca pensei que a cultura africana fosse tão forte e bem representada, como estou vendo aqui no quilombo. Sou presença garantida ano que vem”, afirma Amélia Santtana, que foi para a festa numa excursão de São Paulo. A folia de reis, a marujada, o calango, a capoeira, o jongo, entre diversas outras manifestações culturais, puderam ser conferidas pelo público nos dois dias de festa no quilombo. As pessoas que lá compareceram conheceram também o trabalho de agricultura de subsistência, a crença religiosa, o artesanato tradicional, as casas construídas de adobe

(tijolo de barro) e cobertas de sapê, o ferro à brasa e o fogão à lenha, que fazem parte do cotidiano dos(as) moradores(as) do quilombo desde a chegada de seus antepassados, por volta de 1850. Dona Joanna, uma das moradoras mais antigas, nunca saiu da comunidade. “Não pre­ ciso ir até a cidade, tudo que preciso tenho aqui e está tudo muito bom. Os jovens que sentem vontade de ir lá para fora a todo tempo querem aprender outras coisas, estudar e trabalhar”, diz.

Protagonismo juvenil No quilombo São José da Serra, a juventude tem papel importante, pois é responsável por grande parte das tarefas dentro da comunidade. Como acontece na liturgia, a maioria dos(as) integrantes é composta de mulheres jovens. Elas organizam as celebrações religiosas, regem as missas afros, entre outras atividades. “Temos que nos preocupar com nosso futuro, e o futuro da comunidade será definido pelo nosso comportamento. Amamos nossa cultura e temos a obrigação de preservá-la para que não morra ou seja absorvida pela modernidade. É complicado para nós, jovens, que temos acesso às informações do mundo lá fora, não nos influenciarmos pelas outras coisas, mas mesmo assim temos que trabalhar na cultura, plantar e fazer nosso artesanato, cantar nossas músicas e tocar o atabaque. Dessa maneira, a cultura do quilombo não acabará”, explica Maria de Lourdes, de 24 anos, uma das integrantes da liturgia do quilombo. Uma das manifestações mais características do quilombo São José é o jongo, considerado um dos mais tradicionais do Brasil. Ele permanece intacto desde os tempos do Brasil colonial, já teve suas cantigas gravadas em CD e sua história contada em livro. O CD-livro Jongo do Quilombo São José foi gravado em outubro de 2004, registrando a música, a história e a cultura do jongo local.

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* Thais Zimbwe Formanda de Jornalismo pela Centro Universitário da Cidade, estagiária de Comunicação do Ibase. Correspondente do Portal Mundo Negro e colunista dos sites Hip Hop BR, Epidemia Urbana e do Afro Reggae

O jongo é uma dança trazida da África pelos escravos e escravas. Também conhecido como caxambu, foi uma das poucas possibilidades de diversão e manifes­­­t a­ç ão religiosa dos(as) escravos(as), reunindo can­t o e dança em uma grande festividade. “Dançar e cantar o jongo é preservar a cultura de nossos antepassados, posso tocar uma noite inteira, sempre fico muito feliz e agradecido de ter herdado essa dança e poder passá-la para meus filhos e todos os que querem aprender”, expressa Jorge, ao lado de seu atabaque, antes de iniciar uma roda de jongo. Em todo o estado do Rio de Janeiro,

existem 14 comunidades remanescentes de quilom­bos, nas quais vivem cerca de 770 famílias. No caso do quilombo São José da Serra, os(as) ne­gros(as), após a libertação, permaneceram na fazenda, constituindo sua comunidade. O quilombo de Valença não tem a característica de um sítio de escra­vos(as) fugiti­vos(as). Ele ocupa duas áreas demar­cadas, num total de 25 hectares. A comunidade foi reconhecida há seis anos como remanescente de quilombo, abrindo caminho para a titulação de suas terras. Entretanto, esse processo é bastante lento e ainda não está concluído, acarretando sérios problemas. “A demora das autoridades em resolver a questão sobre a desapropriação das terras que nos pertencem dificulta muito nossa sobrevivência. As cercas espalhadas ao nosso redor furam as bolas quando jogamos futebol e são um perigo para nossas crianças. Elas impedem o plantio dos nossos alimentos, dificultando muito nosso dia-a-dia”, desabafa Toninho. Motivados pela forte identidade cultural, a comunidade do quilombo São José da Serra consegue se manter como uma das mais belas do país, sendo um relato vivo da história de negros e negras no Brasil.

Pretos velhos A comemoração em homenagem aos pretos velhos ocorre no dia 13 de maio, data em que foi assinada a Lei Áurea, razão pela qual a umbanda comemora esse dia. Os pretos velhos são considerados guias ou protetores somente pelos(as) umbandistas, seguidores(as) da umbanda, religião de matriz africana cultuada no Brasil. Representam todos os espíritos de humildade, de serenidade e de paciência, que, como escravos, chegaram ao Brasil, para onde foram trazidos negros e negras de todas as nações africanas, reis, rainhas, príncipes, além de religiosos(as) de várias culturas. Essas divindades são originárias dos(as) escravos(as) no cativeiro, que eram submetidos(as) a condições desumanas e implacáveis de trabalho forçado e a torturas. A vida sofrida nas senzalas, onde somente mais fortes sobreviviam, reservava-lhes, entre tantas humilhações, comer os restos de comida dos senhores. Esse fator originou a feijoada, um prato da culinária bastante apreciado hoje. Apesar de tudo, esses povos renegados pela sorte trouxeram em seus espíritos a ciência e a

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sabedoria de ancestrais, empregando seus dotes no uso das ervas, plantas, raízes e tudo o mais que estava disponível na natureza. Depois de mor­ t o s ( a s ) , passaram a surgir em lugares adequados, principalmente para se manifestarem. Esses espíritos se comprometiam com a alta espiritualidade a ajudar todas as pessoas necessitadas, independentemente de cor ou credo. No dia 13 de maio, os(as) adeptos(as) da um­ban­ da comem feijoada com as mãos, como uma forma de reverenciar os pretos velhos.


resistência e cultura em valença

A Festa no Quilombo São José teve a apresentação da Folia de Reis, uma manifestação cultural de origem portuguesa que ainda sobrevive em cidadezinhas brasileiras

A missa afro do Quilombo São José é liderada pela juventude. A celebração é animada com cantigas ao som de atabaques, violão e cavaquinho

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artigo Henri Acselrad*

Novas articulações em prol A morte de uma criança, ocorrida em agosto de 2004 em Barra Mansa, no Rio de Janeiro – quando brincava em um terreno baldio onde produtos químicos entraram em combustão –, chamou mais uma vez a atenção para o descalabro do lançamento descontrolado de resíduos industriais perigosos nos espaços públicos, notadamente nos bairros habitados por populações de baixa renda. Diante de ocorrências trágicas como essa, cabe abrir espaço para a discussão mais geral sobre a desigualdade social na exposição da população aos riscos ambientais em nosso país. Esse debate parece estar apenas em seu começo entre as forças empenhadas no processo de construção democrática. E poderia partir da pergunta: como os movimentos sociais no Brasil poderiam melhor articular a questão dos riscos ambientais com o debate sobre as condições de existência da população e com o processo de construção de direitos no país? Como evidenciar a dimensão ambiental do projeto de construção democrática da sociedade brasileira? Como fazer entender que os incêndios florestais em Roraima, a seca no Nordeste, a desigual exposição dos grupos sociais aos riscos da poluição são a expressão do mesmo processo de produção da desigualdade ambiental que distancia pessoas ricas e pobres, brancas e negras em nosso país? É da experiência dos próprios movimentos sociais que esperamos

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A desigualdade ambiental é uma das expressões da desigualdade social que marca a história do nosso país. As pessoas pobres estão mais expostas aos riscos decorrentes da localização de suas residências, da vulnerabilidade das moradias a enchentes e desmoronamentos, além da ação de esgotos a céu aberto. Há, assim, forte correlação entre indicadores de pobreza e a ocorrência de doenças associadas à poluição por ausência de água e esgotamento sanitário ou por lançamento de rejeitos sólidos e emissões líquidas e gasosas de origem industrial. Essa desigualdade resulta, em grande parte, da vigência de mecanismos de “privatização de fato” do uso de recursos ambientais. Seu enfrentamento requer dar visibilidade a processos pouco visíveis ao senso comum. Ante os indicadores do que o pensamento dominante considera como principal problema ambiental – o desperdício –, empresas e governos costumam propugnar ações da chamada “modernização ecológica”, destinadas essencialmente a promover ganhos de eficiência e a ativar mercados. Trata-se, nessa perspectiva, de agir exclusivamente dentro da lógica econômica, atribuindo ao mercado a capacidade institucional de resolver a degradação ambiental, economizando o meio ambiente e abrindo mercados para novas tecnologias ditas limpas. Nenhuma referência é feita, por certo, por esses atores dominantes, à associação entre degradação ambiental e injustiça social. Por sua vez, os atores sociais que percebem a importância de tal relação lógica, ao contrário, não confiam no mercado como instrumento de superação da desigualdade ambiental e promoção de justiça ambiental. Para eles, o enfrentamento da degradação do meio ambiente é o momento da obtenção de ganhos de democratização, e não apenas de ganhos de eficiência e de mercado, pois há uma ligação lógica entre o exercício da democracia e a capacidade de a sociedade se defender da injustiça ambiental. Nas conjunturas recessivas, o crescimento

do desemprego tende a ser acompanhado de uma redução da capacidade de organização e resistência da população trabalhadora, acarretando, conseqüentemente, uma diminuição dos cuidados empresariais com a manutenção dos equipamentos, uma intensificação dos ritmos de trabalho das pessoas que não perderam seus empregos, o crescimento dos acidentes de trabalho e da irresponsabilidade ambiental das empresas. A democratização do controle sobre os riscos é, portanto, muito mais viável de ser conquistada nos períodos de menor incidência do desemprego e de maior capacidade de mobilização dos atores sociais.

Distribuição desigual As conjunturas históricas podem explicar a maior ou menor propensão de os atores sociais mobilizarem-se na denúncia da irresponsabilidade ambiental de mercado. Não há nenhuma lei natural que imponha que as populações destituídas coloquem-se automaticamente ao lado dos propósitos ambientalmente danosos de empreendedores pouco responsáveis. Os movimentos por justiça ambiental vêm, ao contrário, mostrando como as ligações entre as lutas por justiça social e por proteção ambiental podem se articular. O movimento de justiça ambiental constituiu-se inicialmente nos Estados Unidos, na década de 1980, fruto de uma articulação criativa entre lutas de caráter social, territorial, ambiental e de direitos civis. Já a partir do fim da década de 1960, redefiniu-se em termos ambientais um conjunto de embates contra as condições inadequadas de saneamento, de contaminação química de locais de moradia e trabalho, e contra a disposição indevida de lixo tóxico e perigoso. Na década de 1970, sindicatos preocupados com saúde ocupacional, grupos ambientalistas e organizações de minorias étnicas articularam-se para elaborar em suas pautas o que entendiam por “questões ambientais urbanas”. Alguns estudos apontavam já a dis-

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tribuição espacialmente desigual da poluição segundo a raça das populações a ela mais expostas, sem, no entanto, que se tenha conseguido mudar a agenda pública. Em 1976 e 1977, diversas negociações foram realizadas, tentando montar coalizões destinadas a incluir na pauta das entidades ambientalistas tradicionais o combate à localização de lixo tóxico e perigoso, predominantemente em áreas de concentração residencial de população negra. A constituição de um movimento afirmou-se a partir de experiência concreta de luta inaugurada em Af­ton, no condado de Warren, na Carolina do Norte, em 1982. Ao tomarem conhecimento da iminente contaminação da rede de abastecimento de água da cidade, caso fosse nela instalado um depósito de policlorinato de bifenil, a população do condado organizou pro­testos maciços, deitando-se diante dos caminhões que para lá traziam a perigosa carga. Com a percepção de que o critério racial estava fortemente presente na escolha da localização do depósito daquela carga tóxica, a luta radica­ li­zou-se, resultando na prisão de 500 pessoas. A população de Afton era composta de 84% de negros e negras; o condado de Warren, de 64%; e o estado da Carolina do Norte, de 24%.1 Diante de tais evidências, estreitaram-se as convergências entre o movimento dos direitos civis e dos direitos ambientais. Nascido de lutas de base contra iniqüidades ambientais locais, o movimento culminou elevando a “justiça ambiental” à condição de questão central na luta pelos direitos civis. Ao mesmo tempo, induziu a incorporação da desigualdade ambiental na agenda do movimento ambientalista tradicional. Como o conhecimento científico é correntemente evocado em estratégias de redução das políticas ambientais em meras soluções técnicas, o movimento de justiça ambiental estruturou suas estratégias de resistência recorrendo, de forma inovadora, à própria produção de conhecimento.

1 HARTLEY, Troy W. Environmental justice: an environmental civil rights value acceptable to all world vies. Environmental Ethics, vol. 17, p. 278, outono, 1995. 2 LAITURI, Melinda; KIRBY, Andrew. Finding fairness in America’s cities? The Search for environmental equity in everyday life. Journal of Social Issues, vol. 50, n. 3, p. 125, 1994. 3 PINDERHUGHES, Rachel. The impact of race on environmental quality: an empirical and theo­ re­tical discussion. Sociological Perspectives, vol. 39, n. 2, p.

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Racismo ambiental Notadamente, o movimento recorreu aos resultados da pesquisa multidisciplinar que promoveu sobre as condições da desigualdade ambiental no país. Momento crucial dessa experiência foi a pesquisa realizada em 1987, a pedido da Comissão de Justiça Racial da United Church of Christ, que mostrou que “a composição racial de uma comunidade é a variável mais apta a explicar a existência ou inexistência de depósitos de rejeitos perigosos de origem comercial em

uma área”.2 Evidenciou-se, então, que a proporção de residentes que pertencem a minorias étnicas em comunidades que abrigam depósitos de resíduos perigosos é igual ao dobro da proporção de minorias nas comunidades desprovidas de tais instalações. O fator raça revelou-se mais fortemente cor­relacionado com a distribuição locacional dos rejeitos perigosos do que o próprio fator baixa renda. Portanto, embora os fatores raça e classe de renda tenham se mostrado fortemente interligados, a raça apresentou-se como um indicador mais potente da coincidência entre os locais onde as pessoas vivem e onde os resíduos tóxicos são depositados. Foi a partir dessa pesquisa que o reverendo Benjamin Chavis cunhou a expressão “racismo ambiental” para designar “a imposição desproporcional, intencional ou não, de rejeitos perigosos às comunidades de cor”.3 Entre os fatores explicativos de tal fato, alinham-se a disponibilidade de terras baratas em comunidades de minorias e suas vizinhanças, a falta de oposição da população local por fraqueza organizativa e carência de recursos políticos das comunidades de minorias, a falta de mobilidade espacial das “mino­rias” em razão de discriminação residencial e, por fim, a sub-representação das “minorias” nas agências governamentais responsáveis por decisões de localização dos rejeitos. Ou seja, tornou-se evidente que forças de mercado e práticas discriminatórias das agências governamentais concorrem, de forma articulada, para a produção das desigualdades ambientais. A partir de 1987, as organizações de base começaram a discutir mais intensamente as ligações entre raça, pobreza e poluição, e grupos de pesquisa iniciaram estudos sobre as ligações entre problemas ambientais e injustiça social, procurando elaborar os instrumentos de uma “avaliação de equidade ambiental” que procurava introduzir variáveis sociais nos tradicionais estudos de avaliação de impacto. Nesse novo tipo de avaliação, a pesquisa participativa envolveria como co-produtores do conhecimento os próprios grupos sociais ambientalmente desvantajados, viabilizando uma apropriada integração analítica entre processos biofísicos e processos sociais. Procurava-se postular, assim, que aquilo que trabalhadores e trabalhadoras, grupos étnicos e comunidades residenciais sabem sobre seus ambientes deve ser visto como parte do conhecimento relevante para a elaboração não-discriminatória das políticas ambientais.


Novas articulações em prol da justiça ambiental

Mudanças ocorreram, então, no próprio Estado. Pressionado pelo Congressional Black Caucus, em 1990, a Envi­ronmental Pro­tection Agency do governo dos Estados Unidos criou um grupo de trabalho para estudar o risco ambiental em comunidades de baixa renda. Dois anos mais tarde, esse grupo concluiria que havia falta de dados para uma discussão da relação entre equidade e meio ambiente e reconheceria que os dados disponíveis apontavam tendências perturbadoras, sugerindo, por essa razão, maior participação das comunidades de baixa renda e minorias no processo decisório relativo às políticas ambientais. Em 1991, 600 delegados e delegadas presentes à 1ª Cúpula Nacional de Lideranças Ambientalistas de Povos de Cor aprovaram os “17 Princípios da Justiça Ambiental”, estabelecendo uma agenda nacional para redesenhar a política ambiental dos Estados Unidos de modo a incorporar a pauta das “minorias”, comunidades ameríndias, latinas, afro-americanas e ásio-americanas, tentando mudar o eixo de gravidade da atividade ambientalista naquele país. 4 O movimento de justiça ambiental consolidou-se, assim como uma rede multicultural e multirracial nacional – e, mais recentemente, internacional 5 –, articulando entidades de direitos civis, grupos comunitários, organizações de trabalhadores e trabalhadoras, igrejas e intelectuais no enfrentamento do “racismo ambiental” como uma forma de racismo institucional, buscando fundir direitos civis e preocupações ambientais em uma mesma agenda e avançando na superação de 20 anos de dis­sociação e suspeita entre am­bientalistas e o movimento negro.

Tempo de denúncia A luta pelo reconhecimento da desigualdade ambiental nos Estados Unidos tem constituído um passo importante para a contestação do modelo de desenvolvimento. O lema do movimento tem sido “poluição tóxica para ninguém”, e não simplesmente o de deslocar a poluição de lugar ou “exportar a injustiça ambiental” para países onde as classes trabalhadoras estejam menos organizadas. Trata-se de discutir a pauta da chamada “tran­sição justa”, de modo que a luta contra a poluição desigual não destrua simplesmente os empregos das pessoas que trabalham nas indústrias poluentes ou penalize as populações dos países menos industrializados para onde as transnacionais tenderiam a transferir suas

“fábricas sujas”. O movimento de justiça ambiental vem procurando se internacionalizar para construir uma resistência global às dimensões globais da reestruturação espacial da poluição, ou seja, para barrar a lógica perversa do conhecido Memorando Summers, 6 no qual, em 1991, o então economista-chefe do Banco Mundial, Law­rence Summers, justificava a transferência de riscos técnicos e industriais para os países menos desenvolvidos. Tal mecanismo, dizia ele, seria perfeitamente lógico do ponto de vista econômico, pois os baixos salários da periferia tornam o custo da vida humano mais baixo. A subpoluição dos países pobres é, por essa lógica, a expressão de uma ineficiência a ser corrigida. Embora Summers tenha, em seguida, desmentido a seriedade de sua as­ serção, sabemos que tal processo já existia e veio ganhando mais realidade desde o apro­f undamento do processo de libe­ rali­z ação das economias periféricas. A d e s l o­c a­l i z a ç ã o industrial tem se mostrado meio estratégico pelo qual as grandes corporações impõem a regressão dos diretos sociais e a desregulação das normas ambientais. Resistir à chantagem da deslocalização é uma das motivações centrais dos movimentos por justiça ambiental. Se, por um lado, sabemos que os mecanismos de mercado trabalham no sentido da produção da desigualdade ambiental – os mais baixos custos de localização de instalações com resíduos tóxicos apontam para as áreas onde pessoas pobres moram –, não podemos desconsiderar, por outro lado, que

241, 1996. 4 BRADEN, Anne. Justice environnementale et justice sociale aux États Unis. Ecologie Politique, n. 10, p. 10, 1994. 5 Seis representantes do movimento dos Estados Unidos e das Filipinas estiveram no Rio de Janeiro em 1998, desenvolvendo contatos com ONGs (como o Ibase) e grupos acadêmicos (como o Ippur/UFRJ).

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6 The Economist, 8 fev. 1991. 7 RANCIÈRE, J. La nuit des

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é a omissão das políticas públicas que permite a ação perversa do mercado. A experiência do movimento de justiça ambiental mostra como é possível organizar as populações para exigir políticas públicas capazes de impedir que também no meio ambiente vigore a desigualdade social e racial. Constituída em setembro de 2001, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental tem denunciado a segregação socioespacial como o mecanismo pelo qual se faz coincidir a divisão social da degradação ambiental (os riscos ambientais sendo destinados às pessoas mais pobres) com a divisão espacial da degradação ambiental (o local de implantação das atividades perigosas e contaminantes coincidindo com os locais de moradia de população de baixa renda). De um lado, as empresas evitam investir em tratamento e incineração de resíduos, dadas as possibilidades de lançá-los em áreas desvalorizadas, abandonadas pelos investimentos públicos em infra-estrutura urbana e habitadas por populações pobres e menos organizadas. Elas usufruem, assim, de uma sobreposição de benefícios que lhes permite maximizar sua liberdade de escolha locacional: economias técnicas (eliminação de etapas dos processos físico-químicos), economias regulatórias (desconsideração de normas técnicas, urbanísticas e ambientais) e economias transferenciais (transferência de custos de tratamento e controle ambiental para o Estado e população). Mas a realização dessas “economias”

conta também com a formação de um circuito de autoconsumo e um “submer­ca­do” de sucata, materiais e utensílios contaminados para uso doméstico e construtivo: uso de tonéis com traços tóxicos para armazenar água (dada a falta de abastecimento de água), uso de areia e materiais contaminados para aplainar terrenos e construir moradias (dada a falta de infra-estrutura urbana e habitacional) e uso de produtos tóxicos como brinquedo (falta de escolas e áreas de lazer). Ou seja, à sobreposição de benefícios para as empresas, soma-se uma sobreposição de condições de destituição para as populações que residem em áreas periféricas: insuficiência de renda, insuficiente acesso a serviços públicos, a infra-estrutura e a capacidade de influência sobre o poder regulatório/fiscalizatório. Assim, a eficiência alocativa empresarial é construída pela mediação de processos sociopolíticos espaciais concretos. Tais processos são também dotados de uma temporalidade específica, privilegiados que são os períodos noturnos para o lançamento clandestino de material tóxico. No livro A noite dos proletários, sobre os primórdios da condição operária, Jacques Rancière assinala como, à noite, em seu tempo de não-trabalho, os proletários procuravam experimentar uma reversão do mundo, buscando o contrário do trabalho “onde a vida se perde” e tentando retardar o sono reparador das forças requeridas pela máquina fabril. Buscavam interromper a hierarquia que subordina trabalhadores e trabalhadoras manuais àquelas pessoas que receberam o privilégio do trabalho intelectual: investiam, então, em noites de estudo, embriaguez, aprendizado, sonho, discussão ou escrita. Pretendiam mostrar que eram outras pessoas, indicando a quem tinha o poder que almejavam ser tratados como alguém a quem várias vidas são devidas, fazendo-se reconhecer, em que pese o discurso sobre identidade operária, uma dignidade diferente daquela do simples pertencimento à categoria salarial.7 Ao contrário, com sua atividade noturna, as empresas aqui referidas não buscam mostrar-se outras, mas, ao contrário, iguais a si mesmas, otimizando as condições espaciais e temporais da acumulação, dada a inativação noturna das determinações jurídicas. Assim como a literatura econômica fala de “sistemas produtivos locais” designando “arranjos produtivos cuja interdependência, articulação e vínculos consistentes resultam em interação, cooperação e aprendizagem,


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possibilitando inovações de produtos, processos e formatos organizacionais, gerando maior competitividade empresarial e capacitação social”,8 poderíamos sugerir aqui a vigência de espécies de “sistemas locais de poluição” – arranjos produtivos cuja interdependência e vínculos resultam em uma articulação espacial dos impactos negativos da produção, otimizando os investimentos pela distribuição dos riscos ambientais para os agentes menos dotados de recursos econômicos e políticos. O lixo tóxico – é o que denunciam os movimentos sociais – costuma não ser visto como uma ameaça a cidades comprometidas por sua própria poluição, desde que estejam azeitados os mecanismos que destinam os danos às pessoas mais pobres. 9 Colocadas à parte do mercado, mesmo que dispostas a integrar o fluxo de riqueza pela oferta de suas competências, essas pessoas “excluídas” descobrem-se parte integral do circuito de troca,10 como objeto da imposição do consumo forçado dos produtos invendáveis da atividade capitalista. Mas, para que tal descoberta se dê, elas precisam desconstruir todo o arcabouço discursivo que “finge emancipação, simula abundância num cerimonial que não visa somente ‘distrair’ o trabalhador, mas dar-lhe o sentimento de que ele participa de um mesmo ideal, que ele pertence a um gênero humano único, quan­do se encon­tra mais isolado que nunca, deportado para longe de qualquer verdadeiro mundo comum”.11 Expondo a sobreposição de desiguais benefícios e destituições, certos agentes da denúncia evidenciarão esse “lado noturno do capital”, no qual vigoram a desinformação sistêmica, a irresponsabilização organizada e a política de subestimação sistemática dos riscos (a política chamada por Beck de “destoxificação simbólica”12). Por meio desses expedientes, a penalização das pessoas mais desprotegidas torna-se regra, e o controle democrático dos riscos, a exceção. “No capitalismo <convencional>”, lembra-nos Luiz Gonzaga Belluzzo, as regras do jogo são as da acumulação de riqueza monetária obtida no mercado, isto é, mediante a competição feroz entre empresas, Estados e indivíduos. Em sua roupagem neoliberal, esse jogo pressupõe a violação sistemática das regras. As relações entre o político e o econômico estão configuradas de modo a remover quaisquer obstáculos

à expansão da grande empresa e do capital financeiro internacionalizado, apoiados na força militar e política do Estado Imperial. Trata-se da emergência na esfera jurídico-política, da exceção permanente, na consolidação da lei do mais forte, para desgosto dos que se imaginam descendentes do Iluminismo e de seu programa de garantias da liberdade e da igualdade.13 A ciência política já definia o soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção”. A soberania sobre o ambiente desregulado aqui em pauta é aquela exercida por forças que condenam moradores e moradoras de áreas pobres ao estado permanente de exceção. Grande parte das denúncias sobre os depósitos de lixo tóxico visa à normalização do ambiente, à aplicação das normas ambientais onde elas não vigoram. Mas parte desses conflitos – sejam aqueles que são politizados, sejam aqueles em que se recorre à violência – põe em pauta o caráter discriminatório desse estado de exceção localizado. Para essas vítimas de um estado de exceção que é regra, segundo Agamben, “a vida nua atinge sua indeterminação mais extrema”. 14 Pela alocação preferencial dos riscos tóxicos industriais sobre as classes mais destituídas, o capital instaura uma ordem ambiental, ainda que não se trate de uma ordem jurídica formal. Nela, define-se um regime da lei no qual a norma jurídica formal vale (ambiental, no caso), mas não se aplica (porque não tem força), e atos que não possuem o valor de lei (a penalização ambiental das pessoas pobres) adquirem força impositiva.15 Cria-se, assim, um espaço vazio de direitos, uma zona de anomia na qual todas as determinações jurídicas são desativadas, confirmando a oitava tese sobre a filosofia da história, de Walter Benjamin,16 para quem a tradição das pessoas oprimidas ensina que devemos ter sempre em mente concepções da história em que o estado de exceção é a regra, ainda que, como vimos aqui, se tratem de estados de exceção socioespacialmente circunscritos.

* Henri Acselrad Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (Ippur/ UFRJ), pesquisador do CNPq e organizador do livro Conflitos ambientais no Brasil (Relume-Dumará, 2004).

proletaires. Paris: Fayard, 1981, p.7-10. 8 CNPq/FINEP/SEBRAE. Interagir para competir – promoção de arranjos produtivos e inovativos no Brasil. Brasília: Sebrae, 2002, p.13. 9 “À medida em que a preocupação pública com os danos infligidos pelas emissões radioativas, por resíduos tóxicos e envenenamento por pesticidas cresce, o capital encontra sua liberdade ‘exter­nalizando’ seus custos, impondo os venenos para as comunidades periféricas, desafiado que é por formas não familiares de resistência” (DYER-WITHERFORD, N. Cyber-Marx: cycles and circuits of struggle in High Technology Capitalism. Chicago: Illinois Press,1999, p. 233). 10 CÉLIS, R. De la Ville Marchande à l´Espace-temps. ALEXANDER, R. et alii. Le temps et l´espace. Bruxelas: Ousia, 1992, p. 97 e 103. 11 Idem, ibidem, p. 102. 12 BECK, U. From Industrial to Risk Society: questions of survival, social structure and ecological enlightenment. Theory, Culture & Society, 9:97123, 1992. 13 BELLUZZO, L. G. Democracia e capitalismo. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. B2, 4 ago. 2002. 14 AGAMBEN, G. A zona morta da lei. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 mar. 2003. Caderno Mais!, p. 5. 15 Idem, ibidem, p. 6. 16 BENJAMIN, W. Thèses sur la philosophie de l´histoire. In:

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nacio

nacional Paulo Moutinho*

Amazônia eo desafio do

A Amazônia abriga a última grande floresta tropical contínua do mundo. Berço de um quarto da biodiversidade do planeta, a região ainda exerce um papel importante na manutenção do clima regional e global e, apesar do desmatamento alarmante (aproximadamente 2,4 milhões de hectares por ano), 85% de suas florestas ainda estão em pé. É uma condição ímpar e desafiadora. Se considerarmos o destino dado a outras florestas no mundo ou mesmo no Brasil, como a floresta atlântica, a Amazônia representa a última chance de se pôr em prática um desenvolvimento capaz de conciliar crescimento socioeconômico com a conservação dos recursos naturais. Está, portanto, nas mãos do povo da região e do governo uma oportunidade única (e última) de se promover o tão sonhado (e falado) desenvolvimento sustentável.

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onal Para que esse desenvolvimento seja alcançado, são necessárias, contudo, mudanças drásticas de rumo. Nas últimas três décadas, a ocupação da Amazônia brasileira tem sido caracterizada pela exploração intensa e desordenada do capital natural da região – florestas, rios, solos, fauna e flora. Assumiu-se um modelo baseado na implementação de grandes projetos de colonização (como o Pólo Noroeste em Rondônia), em investimentos na mineração (como Carajás) e na construção de longas estradas (como a Transamazônica) e grandes usinas hidrelétricas (como Tucuruí). Até agora, 60 milhões de hectares de floresta (uma área equivalente a duas vezes a área do estado de São Paulo) foram derrubados para a implementação de pastagens extensivas de baixa produtividade e geradoras de poucos empregos. Atualmente, um terço da área coberta por essas pastagens encontra-se abandonado (cerca de 20 milhões de hectares) e, ainda hoje, a maior parte do desmatamento (de 60% a 70%) resulta da conversão de florestas em pastos de uso extensivo (Inpe, 2003). Apesar de todos os investimentos históricos (equivocados ou não) para a ocupação da região, pouco resultou em melhoria efetiva na qualidade de vida e na distribuição de renda para a população. Atualmente, cerca de 43% da população da Amazônia possui renda per capita abaixo da linha de pobreza (Pnud, 1996; IBGE, 2000) e 10% da riqueza regional está concentrada em 1% da população (50% das pessoas mais pobres ficam com apenas 15% dessa riqueza) (IBGE, 2000). A atual ocupação da região está, assim, pautada pela exploração, a todo custo – e no menor espaço de tempo possível –, dos recursos naturais (pouco valorizados), pelos investimentos em grandes obras, especialmente o asfaltamento de rodovias, e pela ausência do Estado. O resultado tem sido a abertura de novas fronteiras preenchidas por sistemas extensivos de produção de alto impacto ambiental e baixa rentabilidade e recheadas de conflitos agrários. O desafio do

povo brasileiro é, portanto, o de reorientar essa trajetória de desenvolvimento predatório para um de bases mais sustentáveis. Para que o desenvolvimento sustentável na Amazônia ocorra não será necessário abrir mão do desejo de crescimento econômico, como é alardeado, mas sim que se alterem os princípios vigentes de ocupação dos espaços. Essa alteração passa pela adoção de um novo modelo sustentável de desenvolvimento que esteja centrado em uma perspectiva de governança da fronteira. Para que isso ocorra, é preciso que os governos federal e estaduais e a sociedade local revejam seus programas e anseios de desenvolvimento. A chave para um desenvolvimento mais sustentável está na adoção de novos padrões de ordenamento da ocupação do espaço com base em critérios fortes de sustentabilidade, e não apenas por estabelecimento de planos de zoneamentos ecológicos, que, muitas vezes, são de aplicação complicada. Para isso, é preciso que se dê garantia de participação ativa da sociedade civil na discussão de políticas para a região. Ainda, será fundamental que políticas ambientais eficientes sejam implementadas e que o fortalecimento das instituições locais seja garantido.

Riscos ambientais Num cenário de Amazônia desmatada, por exemplo, qualquer vantagem social ou econômica vislumbrada hoje pode se transformar em uma grande ilusão no futuro. O custo do desmatamento ilegal e descontrolado na região vai além da perda da biodiversidade. Inclui a mudança do clima regional. Reduzir a cobertura florestal implica reduzir os índices pluviométricos na região. Quase a metade da chuva que cai na Amazônia é produzida pela floresta (Nobre et al., 1991). Ao transpirar, a vegetação lança milhões de toneladas de vapor de água que formarão as nuvens. Cientistas já chamam a Amazônia de “oceano verde”,

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nacional

pois o processo de formação de nuvens é similar àquele que ocorre sobre os oceanos. Sem a floresta, ou mesmo sem parte dela, a precipitação poderia sofrer reduções significativas impondo à região períodos de seca mais prolongados e intensos (Nobre et al., 1991; Nepstad et al., 2004, 1999). Além dos prejuízos ambientais (perda de biodiversidade, incêndios florestais, emissão de gases de efeito estufa, de­gradação do solo etc.), vários pre­juízos econômicos resultariam de tal mudança climática regional. Os incêndios comprometeriam os estoques de madeira, e, ironicamente, as principais e atuais atividades econômicas de terra firme (pecuária e agroindústria) estariam comprometidas (Men­donça et al., 2004). Isso sem falar na falta de reposição da água dos reservatórios das hidrelétricas a um nível satisfatório. Ressuscitaríamos, assim, os “apagões”, mesmo com investimentos em novas hidrelétricas. A falta de chuvas atingiria não somente a Amazônia, mas também as regiões Sul e Sudeste, já que parte do vapor gerado pela floresta é carregada pelas correntes de ar que se movem para essas regiões. O planejamento correto dos investimentos na região é, portanto, fundamental para a sustentabilidade da região. Um dos exemplos mais críticos do efeito negativo de investimentos mal planejados sobre a região amazônica é o asfaltamento de estradas. A simples construção e pavimentação de rodovias visando apenas a um propósito – como a criação de corredores de exportação de bens ou a integração entre grandes centros

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urbanos, como é o caso da BR-163 que liga a cidade de Santarém, no Pará, a Cuiabá, no Mato Grosso – pode resultar em elevados custos ambientais (desmatamento) e, de quebra, não trazer benefício algum para uma parcela considerável da população local que vive ao longo desses eixos de transporte. Isso ocorre porque estradas abrem acesso a áreas remotas e ainda sob conservação passiva. Para se ter uma idéia, 70% da degradação ambiental na Amazônia gerada pelo desmatamento está concentrada ao longo das rodovias pavimentadas (Alves, 1999). Se todas as rodovias que estão sendo planejadas para a região fossem implementadas seguindo os moldes atuais, isto é, o asfalto vindo antes da governança, a área desmatada pularia dos atuais 15% para 30% ao fim de 35 anos (Nepstad et al., 2000, 2001). Ocupar a Amazônia, portanto, tem custos ambientais de diversas ordens. Ignorá-los poderá gerar um “progresso” aparente ou imediato, como até agora, mas não sustentável.

Amazônia sustentável A sustentabilidade do desenvolvimento amazônico só será garantida se, de uma vez por todas, for reconhecido que a Amazônia, com suas florestas e rios, representa uma oportunidade para uma nova economia, em que a preservação e o uso racional de seus recursos naturais conferem uma vantagem futura (e sustentável) diferenciada (Santilli et al., no prelo). Para tanto, é necessário que os investimentos na região avaliem os seus custos socioambientais. Assim, o estabelecimento de uma governança local ou regional é fundamental e deve anteceder os grandes investimentos em infra-estrutura, especialmente o asfaltamento de rodovias. Por governança, poderíamos entender o aumento da capacidade combinada do Estado, da iniciativa privada e da sociedade civil na articulação de seus interesses, no exercício de seus direitos legais e no cumprimento de suas obrigações, como forma de solucionar possíveis diferenças (Bandeira, 1999). Tudo isso sob uma presença forte do Estado e suas instituições fundamentais como garantia do cumprimento da lei e amparo a cidadãos e cidadãs. Não se trata, assim, de estagnar a abertura de novas estradas, mas sim de ordenar o processo de sua implementação. Sobre um desenvolvimento que prima pela sustentabilidade e pelo estabelecimento de governança local antes dos investimentos com alto risco ambiental poderiam ser aplicados mecanismos efetivos de gestão e fiscalização,


Amazônia e o desafio do desenvolvimento sustentável

com a participação dos diferentes setores da sociedade, para reprimir o avanço de novas fronteiras em áreas remotas onde a governança ainda é baixa (Nepstad et al., 2002; Carvalho et al., 2002, 2001). Esse processo conduziria a uma redução na quantidade de terras disponíveis e, portanto, no aumento do seu valor de mercado, o que incentivaria a implantação de culturas perenes, o manejo florestal de baixo impacto e outros sistemas mais sustentáveis de produção, como o plantio direto levando a um desenvolvimento socioeconômico das populações locais. Concomitantemente, seria preciso que as estradas vicinais, que partem das grandes rodovias, recebessem investimentos em pavimentação e manutenção para facilitar a comercialização dos produtos locais e o acesso da população rural à saúde, à educação e aos serviços técnicos. Mais amplamente, um desenvolvimento socioeconômico da Amazônia com baixo custo ambiental poderia ser conseguido, entre várias alternativas, por meio da promoção de uma agricultura intensiva em terras já alteradas ou desmatadas ou em regiões onde essas atividades são inadequadas (solos pobres, por exemplo). Ainda, a criação de incentivos para implementação de tecnologias que melhorassem a produtividade e a sustentabilidade agrícola poderia minimizar os impactos ambientais, assim como o desenvolvimento de mecanismos que incentivassem a extração de produtos não-madeireiros e o manejo florestal de baixo impacto por parte de pequenos(as) e mé­dios(as) produtores(as) poderiam fornecer uma alternativa a esse setor produtivo. Seria também de fundamental importância que houvesse linhas de crédito que compensassem produtores(as) da região por comportamentos ambientalmente sustentáveis, bem como a promoção de atividades econômicas de vocação florestal, como a extração de borracha, castanhas, óleos e exploração madeireira de baixo impacto, como uma estratégia para reprimir a conversão de floresta para expansão de pastagens. Ainda, a floresta deveria ser, definitivamente, reconhecida como um recurso prestador de serviços ambientais (equilíbrio do clima, por exemplo) capaz de receber compensação (Santilli et al., no prelo). Finalmente, seria preciso uma abertura no processo de decisão política para que fosse possível envolver grupos locais que são raramente consultados nos estágios prévios do planejamento – tais como pequenos(as) agricultores(as), organizações de base e municípios –, assim como atores com poder econômico, como produ­tores(as) de soja e construtoras

de rodovias, que possuem acesso garantido no processo. O potencial de esse cenário de governança da fronteira se tornar realidade está crescendo na Amazônia brasileira. O processo de articulação da sociedade civil residente ao longo da BR-163, que receberá em breve asfalto, é um exemplo claro nesse sentido. Esta sociedade, que depende das riquezas naturais da região para sobreviver, foi capaz de construir um plano de desenvolvimento sustentável para a BR-163 e sua área de influência. Tal proposta foi apresentada ao governo federal por meio de um consórcio chamado “Desenvolvimento socioambiental da BR-163”, que agora discute com dirigentes os rumos para um desenvolvimento mais sustentável da região. 1 Ou seja, ao contrário do passado, o planejamento da BR-163 se torna um caso de “governança antes do asfalto”. Um outro impressionante caso de aumento da capacidade de governança local na Amazônia pode ser ilustrado pela construção do Proambiente. Trata-se de um programa, agora encampado pelo governo federal, de créditos ambientais oferecidos a peque­ nos(as) produtores(as). Por iniciativa própria das associações, as Federações de Trabalhadores na Agricultura (Fetags) da Amazônia, o Proambiente, que teve sua concepção dentro do Grito da Amazônia de 2000, busca incluir em sistemas de crédito a compensação por serviços ambientais prestados para a sociedade quando um produtor assume o uso de sua propriedade de acordo com critérios agroambientais e ecológicos. Outras iniciativas governamentais também lançam esperança de aumento de governança na

1 Ver http://www.ipam.org. br/programas/cenarios/br163/ consorcio.php.

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nacional

* Paulo Moutinho Pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) moutinho@ipam.org.br

Amazônia. Por exemplo, o caso do sistema de licenciamento de desmatamento, que foi implementado em Mato Grosso, demonstrou ser possível reduzir a taxa de desmatamento estadual. O programa, contudo, no atual governo, parece não ter o mesmo fôlego, já que as taxas de desmatamento atuais em Mato Grosso subiram e já correspondem a 50% do total para a Amazônia. Um outro exemplo, digamos, clássico é o programa de combate ao fogo do governo federal (Programa de Prevenção e Controle de Queimadas e Incêndios Florestais na Amazônia Legal/ Proarco), que, de 1999 a 2000, conseguiu reduzir o número de focos de incêndio na Amazônia, mostrando que o estado pode interferir no uso de fogo na região. Mais recentemente, o Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia foi lançado pelo governo federal e, de maneira inédita, reúne 11 ministérios e tem a coordenação da Casa Civil. Também de maneira inédita, o plano tem dado ênfase à questão fundiária e ao combate à grilagem de terras públicas, dois fatores importantes na produção de degradação ambiental. Embora sejam frágeis esses e outros avanços recentes na capacidade de governar a Amazônia, eles mostram que é possível contemplar o cenário de governança da fronteira agrícola da Amazônia. Um indicativo dessa fragilidade e do desafio imposto pelo desenvolvimento sustentável é o fato de que as taxas de desmatamento na região seguem a todo vapor. Na década passada, a taxa de desmatamento girou em torno de 1,7 milhão de hectares por ano. Desde o início da presente década, essa taxa está ao redor de 2,3 milhões (um aumento de 40% nos últimos

quatro anos). A redução do desmatamento virá não apenas pelo aumento da governança, mas também por uma efetiva busca de mecanismos que valorizem a floresta em pé. Floresta é mais do que madeira. Será preciso trabalhar com mecanismos que possam compensar aqueles governos que reduzem desmatamento tropical ou conservem florestas. Além disso, qualquer atividade sustentável na Amazônia precisa adaptar-se ao contexto ecológico da região. Os conhecimentos científicos sobre essa dinâmica acumulam-se constantemente, apesar de ainda existirem muitas áreas de ignorância. Na verdade, muitos desses conhecimentos já estavam presentes na década de 1970, quando se desatou o modelo de ocupação predatório.

Referências bibliográficas ALVES, D. An analysis of the geographical patterns of deforestation in Brazilian Amazonia the 1991-1996 period. In: WOOD, C.; PORRO, R. (Eds.). Patterns and processes of land use in Amazon forests. Gainesville: University of Florida Press, 1999. BANDEIRA, P. Participação, articulação de atores sociais e desenvolvimento regional. Brasília: Ipea, 1999. (Texto para Discussão 630). CARVALHO, G.; MOUTINHO, P.; BARROS, A. C.; NEPSTAD, D. Sensitive development could protect Amazonia instead of destroying it. Nature, 409, p. 131, 2001. CARVALHO, G.; NEPSTAD, D.; McGRATH, D.; DIAZ, M. C.; SANTILLI, M.; BARROS, A. C. Frontier expansion in the Amazon, balancing development and sustainability. Environment, v. 44, n. 3, p. 34-45, abr. 2002. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censos demográficos 1970 e 2000. 2000. Disponível em: <www.ibge.gov. br>. INPE. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. 2003. Disponível em: <http://www.obt.inpe.br/prodes/index.html>. MENDONÇA, M. J. C. de; DIAZ, M. C. V.; NEPSTAD, D.; et al. The economic cost of the use of fire in the Amazon. Ecological Economics, 49, p. 89 – 105, 2004.

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O Jornal da Cidadania é distribuído para pessoas que têm pouco ou nenhum acesso à informação crítica e comprometida com a democracia. Nossos leitores e leitoras são, especialmente, estudantes e professoras e professores de escolas públicas de todo o país. Mas também trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais, líderes comunitários, moradoras e moradores de comunidades pobres. São 60 mil exemplares distribuídos gratuitamente. Participe de mais esta iniciativa do Ibase. Você pode ajudar com contribuições financeiras ou organizando um núcleo de distribuição.

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Flávia Mattar Colaborou: Alfredo Boneff

Riqueza musical

Guardiães da terra

O projeto Música, Memória e Sociabilidade da Maré, coordenado pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Samuel Araújo, ganha novo fôlego: foi contemplado com uma bolsa “Cientistas do Nosso Estado”, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), para o período de março de 2005 a fevereiro de 2006. O objetivo da iniciativa – que durante 2004 ficou restrita às comunidades de Nova Holanda e Morro do Timbaú – é mapear gêneros musicais existentes na comunidade da Maré. O projeto está registrando a relação entre gêneros musicais – como forró, funk, hip hop, pagode, rap, char­me, samba, gospel, rock, entre outros – e as diferentes etnias e identidades sociais presentes: baia­nos(as), paraibanos(as), minei­ ros(as), negros(as), brancos(as) etc. O trabalho investiga, ainda, de que modo a violência permeia estilos musicais como funk, rap e heavy metal. O comércio de fitas, CDs e LPs independentes, lançados e vendidos na localidade por músicos da região, também é estudado. A idéia é estender o projeto, em um futuro próximo, para a Mangueira, o Morro da Serrinha, a Rocinha e outras comunidades conhecidas pela sua riqueza musical.

Facetas da condição feminina e da exclusão social. Este é tema do documentário Sentinelas do tempo – mulheres quilombolas, do pesquisador e cineasta carioca Sergio Brito. Como personagens principais estão as remanescentes do Complexo Quilombola Mata Cavalo, localizado no município de Nossa Senhora do Livramento, a 50 quilômetros de Cuiabá, Mato Grosso. Lançado em Cuiabá, o filme será exibido no Projeto Cinema Circulante Arni Sucksdorf, que leva produções a periferias e municípios da capital mato-grossense. Elaborado a partir de dois trabalhos acadêmicos de Sergio na área de saúde pública, Sentinelas do tempo mostra, em 23 minutos, depoimentos de mulheres a respeito de sua relação com a terra e a percepção que têm de si próprias. O documentarista aborda essa vivência e o significado de ser, ao mesmo tempo, mulher, quilombola e negra na sociedade brasileira. “Chamo o filme de documentário-processo, pois ele não se esgota em si mesmo, está em desenvolvimento. Fizemos as entrevistas sem uma preparação prévia, pois queria dar um caráter de conversa mais informal”, diz o diretor.

Solicitação de cópias: (21) 2290 4745

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Campo brasileiro em foco A Comissão Pastoral da Terra (CPT) lança mais uma edição de seu tradicional relatório Conflitos no Campo Brasil, com dados relativos a 2004. A publicação é a única do país que apresenta estimativas sobre os conflitos por terra (violências como despejos e expulsões) e os números da violência (como assassinatos, ameaças de morte e prisões). Há, ainda, dados sobre trabalho escravo e conflitos em virtude da seca, entre outras informações. Desde 2002, conflitos gerados pelo uso da água passaram a fazer parte dos levantamentos. A publicação é reconhecida como científica pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e é referência internacional para as questões agrárias no Brasil. A documentação é realizada por agentes da CPT no campo e nas secretarias regionais. Os dados de cada estado são enviados para a sede nacional da entidade em Goiás, onde são organizados.

www.cpt.org.br


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Negócio coletivo Está prevista para agosto, durante os festejos em homenagem a Nossa Senhora da Assunção, a inauguração do Centro de Produção Artesanal de Conceição das Crioulas. A iniciativa tem como objetivo abrigar a produ­ ção artesanal da comunidade. Além disso, o centro terá salas de aula e uma loja, onde serão vendidos os produtos confeccionados. Moradores e moradoras de localidade – cerca de 3.800 – sobrevivem da agricultura familiar de subsistência e do artesanato. Além de fonte de renda, a produção artesanal mantém viva a história da comunidade e gera visibilidade à causa do povo quilombola. O projeto conta com a doação de 25 mil libras, obtidas por meio do Programa de Mobilização de Recursos, com o apoio do Departamento de Marketing da Oxfam, em Oxford. A construção será coordenada pela Associação Quilombola de Conceição das Crioulas, em parceria com o Imaginário Pernambucano e o Centro de Cultura Luiz Freire.

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Mandando fechado em saúde e sexualidade Estatísticas revelam o aumento do número de gravidezes indesejadas na adolescência e da incidência do vírus da Aids entre meninas com menos de 24 anos. O Cemina – Comunicação, Educação e Informação em Gênero e a Redeh aproveitam o potencial mobilizador da cultura hip hop para dar visibilidade ao debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Acaba de ser lançado site pelo qual podem ser baixadas, distribuídas e remixadas dez músicas do CD Mandando fechado em saúde e sexualidade, que trata de temas como corpo e violência, gravidez na adolescência, aborto e diversidade sexual. Para ampliar o alcance das músicas, o CD foi gravado e distribuído gratuitamente para DJs, integrantes da Rede de Mulheres no Rádio, rádios comunitárias, programas voltados para o público jovem, organizações de cidadania ativa, conselhos municipais e estaduais e para o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e da Juventude.

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Cultura e saúde Instrumentos de percussão, cor, fantasias e dança. É com essa vibração que o grupo teatral Companhia da Saúde, iniciativa da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) coordenada pelo dentista José Marmo da Silva, se apresenta em escolas públicas, comunidades carentes, terminais rodoviários, praças públicas, seminários e congressos. O grupo é formado por jovens de terreiros de candomblé e de favelas. A proposta – que, de início, se limitava à utilização de técnicas circenses em esquetes teatrais para abordar a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e Aids – atualmente abarca saúde da infância e da adolescência de forma geral. Recentemente, por exemplo, a companhia montou esquetes sobre racismo na saúde. Para obter mais informações, basta entrar em contato com a Abia. As apresentações, dependendo da necessidade de quem as solicita, são gratuitas.

(21) 2223-1040 abia@abiaids.org.br

www.hiphopdsdr.org.br

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intern internacional Rubens Born* Colaboração: Mark Lutes e Délcio Rodrigues1

Regimes internacionais e políticas de mudanças de

O regime multilateral de mudança de clima, conhecido por meio da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) e seu Protocolo de Quioto, é, além de sua função para a sustentabilidade do desenvolvimento e proteção do sistema climático, um importante processo para a construção de governança, justiça e cooperação no sistema internacional. Não obstante, fruto dos contextos em que foi gerado e é operacionalizado, esse regime apresenta enormes desafios para se lograrem, de maneira efetiva e justa, os objetivos e princípios nele inseridos. O regime2 de mudança de clima é considerado um dos legados do processo da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD, também conhecida como Rio 92), realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992 e notabilizada por três grandes aspectos: a necessidade de transformação do modelo de

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acional com base então nos conceitos e idéias do desenvolvimento sustentável, a fim de se protegerem as condições e dinâmicas ecológicas que viabilizam a existência de vida no planeta; a necessidade de que as transformações e medidas correspondentes sejam concretizadas mediante crescente e mais justa cooperação entre países e organizações; e, finalmente, a ampla participação de diversos segmentos da sociedade na formulação de políticas e programas de ações, nas esferas global, nacional e local, mesmo no âmbito das Nações Unidas. De fato, a Agenda 21, o ambicioso acordo de programa de ações, assinado na Rio 92 por mais de 170 países, tem seção especial sobre a participação de segmentos da sociedade considerados relevantes (indígenas, organizações civis, agricultores e agricultoras, mulheres, jovens, autoridades locais) e reitera, ao longo de seus 40 capítulos, a importância do envolvimento de todos os setores na construção e consolidação das ações para o desenvolvimento sustentável. A Rio 92 foi, como dissemos, marco da crescente participação de tais setores em regimes e conferências da ONU, sendo que, nos anos seguintes, houve aprimoramento dos mecanismos e formas de participação de representantes de organizações da sociedade civil em diversos processos e regimes vinculados às Nações Unidas.

Convenção de Clima e Protocolo de Quioto O regime está assentado na Convenção-Quadro – negociada entre 1991 e 1992, assinada durante a Rio 92 e em vigor a partir de 1994 – e no seu Protocolo de Quioto. O regime é marcado por uma longa série de impasses e abordagens distintas para o enfrentamento do problema do aquecimento global. Entre eles, citamos: • a ênfase na busca de reduções absolutas

das emissões de gases de efeito estufa (GEE), especialmente nos países industrializados, isto é, a mitigação de principais causas antrópicas, ou alternativa e complementarmente valorizar a contribuição da captura de gás carbônico da atmosfera por atividades de reflorestamento, contabilizando isso nos esforços globais. Em outras palavras, se políticas e ações devem estar voltadas para a redução absoluta de fontes, ou também para a importância, inequívoca, de florestas, sumidouros e reservatórios de carbono; • se o regime deve fundar-se mais em abordagem que valorize políticas de Estados e respectivos instrumentos de comando e controle (caso da Convenção) ou em mecanismos econômicos, para estimular a adesão dos agentes do mercado em torno de instrumentos de flexibilização de metas e compromissos mensuráveis (caso do Protocolo de Quioto); • o ônus das medidas de adaptação ou mitigação às mudanças climáticas nos países em desenvolvimento, em especial nos países mais pobres; • a adoção de mecanismos efetivos de monitoramento e medidas de penalidades para o não-cumprimento de metas e compromissos; • a resistência à mudança de padrões econômicos, tecnológicos e institucionais de produção e consumo nos países industrializados, com a argumentação de seu relativo custo e indicando-se que medidas mais baratas podem ser implementadas em países em desenvolvimento para alcançar as mesmas metas globais de redução da concentração de gases de efeito estufa. De fato, do ponto de vista ambiental e mais geral, não importa onde sejam feitas as reduções de emissões ou captura de carbono atmosférico. Mas tal fato tem as implicações

1 Mark Lutes é mestre em sociologia e tem estudos e doutorado em políticas de mudança de clima. Tem mais de 13 anos de experiência em atividades e pesquisas de ONGs em questões de mudança de clima. Atuou como diretor executivo da organização canadense Conservation Council of New Brunswick. É autor de publicações acadêmicas sobre políticas ambientais e mudança de clima, bem como sobre acordos e políticas globais em meio ambiente. Canadense, reside no Brasil há dez anos e tem atuado como pesquisador associado do Vitae Civilis, representando-a no Conselho de Coordenação Internacional do Climate Action Network. Délcio Rodrigues é bacharel e mestre em física. É ambientalista, pesquisador associado do Vitae Civilis e membro dos grupos de trabalho de energia e clima do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais. Foi assessor do Ministério do Meio Ambiente para a realização da 1 a Conferência Nacional do Meio Ambiente (2003), global team leader do Greenpeace Internacional, diretor de campanhas do Greenpeace Brasil, coordenador do Instituto Akatu pelo Consumo Responsável, analista de Planejamento Energético e Relações com Meio Ambiente da Jaakko Poyre e Cesp, além de pesquisador do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. 2 Uma formulação, entre várias, de regime internacional refere-se como o conjunto de objetivos, princípios, regras, processos decisórios e instâncias operativas que buscam articular ações e políticas dos diversos atores em torno de um problema ou desafio, visando obter resultados que beneficiem todas as partes envolvidas.

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políticas, econômicas e sociais às questões associadas a alguns desses impasses e esquemas alternativos de formulação e implementação do regime. A partir do choque desses enfoques, não necessariamente mutuamente excludentes, surgiram questões (e opções) como: devem ser mudados prioritariamente os padrões de produção industrial ou agrícola nos países industrializados, que respondem por cerca de três quartos das emissões de GEE? São baratas e politicamente factíveis tais mudanças ou seria melhor dar prioridade a ações nos países em desenvolvimento, com custos menores, e eventualmente dando ênfase na captura de carbono ou crescimento de emissões projetadas pelo atual estilo de desenvolvimento não sustentável? Esperava-se que os países industrializados aceitassem incluir na Convenção metas claras e específicas para a redução de emissão de gases de efeito estufa, posto que alguns deles já haviam anunciado, em 1990 e 1991, a adoção unilateral de metas de corte de emissões. Como tais metas não foram então definidas, a 1ª Conferência das Partes (COP), realizada em Berlim em 1995, deliberou a fixação de um mandato (o Mandato de Berlim) para o grupo especial, no âmbito da Convenção, negociar um protocolo, que foi finalizado na cidade de Quioto. Em 1997, foi finalizado o Protocolo de Quioto a partir da referida convenção. O Protocolo de Quioto contém diretrizes para a redução das emissões de gases de efeito estufa para países industrializados, relacionados no Anexo l do documento. Importante notar que hoje os países em desen-

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volvimento não têm qualquer obrigação no sentido de reduzir suas emissões, em função do princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Mais de 130 países ratificaram o Protocolo de Quioto, incluindo o Brasil, superando, dessa forma, a marca necessária de 55 países para sua entrada em vigor. Porém, há um requisito adicional para a entrada em vigor do Protocolo que exige que a ratificação por países industrializados corresponda a pelo menos 55% das emissões dos países industrializados relatadas no Anexo I do Protocolo, limite que só foi possível atingir com a ratificação da Rússia. Embora os Estados Unidos e a Austrália tivessem anunciado em 2001 que não pretendiam ratificar o Protocolo, este entrou em vigor a partir de 16 de fevereiro de 2005, uma vez que a Rússia o ratificou no fim de 2004. Nesse período, foram muitas as barganhas e pressões políticas para lograr ou evitar a ratificação russa, uma vez que a vigência do Protocolo, nessas condições, cria “constrangimentos” políticos aos Estados Unidos, por um lado, mas permite a viabilização legal de mecanismos com relativo impacto econômico e ambiental nos países que decidiram cumprir o Protocolo. O objetivo da convenção é o de alcançar a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático. Esse nível deverá ser alcançado num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adap­taremse naturalmente à mudança do clima, que assegure que a produção de alimentos não seja ameaçada e que permita ao desenvolvimento econômico prosseguir de maneira sustentável. Importante notar também que, hoje, os países em desenvolvimento não têm qualquer obrigação no sentido de reduzir suas emissões, em função do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, o que também ficou inscrito no Protocolo de Quioto. Esses países têm o “direito” de aumentar suas emissões, mas tal crescimento deve ser em ritmo menor do que aquele que ocorreria se o país não tivesse ratificado a Convenção. É que o seu artigo 4.1 estabelece compromissos para todos os países, para que sejam adotadas medidas variadas, mas que, na essência, apontam para a incorporação dos desafios de prevenir, mitigar ou se adaptar às mudanças de clima nas várias políticas e esferas da vida cotidiana de nossa sociedade: energia, transporte,


Regimes internacionais e políticas de mudanças de clima

urbanismo e habitação, florestas, agricultura e desenvolvimento agrário, combate à desertificação, gestão de recursos hídricos etc. O artigo 4.2 estabelece os compromissos para os países industrializados, até mesmo os de contribuir financeiramente para fundos de adaptação dos países mais pobres e vulneráveis. De fato, está claríssimo o objetivo da alínea (b) do artigo 4.1 da Convenção-Quadro de Mudança de Clima, que indica compromissos de todos os países para “formular, implementar, publicar e atualizar regularmente programas nacionais e, conforme o caso, regionais, que incluam medidas para mitigar a mudança do clima, enfrentando as emissões antrópicas por fontes e remoções antrópicas por sumidouros de todos os gases de efeito estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal, bem como medidas para permitir adaptação adequada à mudança do clima”.

Hostilidades e desafios O Protocolo de Quioto funda-se, então, na perspectiva de se lograr o atendimento de metas líquidas e específicas de redução das emissões de gases de efeito estufa por países industrializados, listados no Anexo I da Convenção, e no uso de três mecanismos, conhecidos como mecanismos de flexibilização: execução conjunta (Joint Implementation – JI), comércio de “certificados” de redução de emissões e mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL). Todos se baseiam na contabilidade de emissões absolutas de GEE deduzindo-se carbono capturado da atmosfera ou emissões evitadas, segundo critérios especiais. Os dois primeiros só podem ser usados entre os países do Anexo I. O MDL e o JI vinculam-se a pro­­jetos especiais, em que se dará a redução líquida, mensurável e certificada, de emissões de GEE, que sejam implementados em um país hospedeiro e apoiado financeiramente por um país industrializado que obterá parte dos créditos da redução de carbono obtida. O MDL deve ser exclusivamente aplicado em projetos em países em desenvolvimento. O Protocolo estabeleceu metas e regras para o período de 2008 a 2012, sendo que sua continuidade para além desse período deve ser objeto de negociações, cujo início foi marcado para 2005. Pelo Protocolo, se todos os países industrializados cumprissem integralmente suas metas, poder-se-iam alcançar cerca de 5,2% de

redução, em 2012, das emissões de GEE comparadas ao nível existente em 1990. A ratificação do documento pela Rússia, em 2004, deu novo estímulo à sua implementação, baseado em metas de redução para certos países industrializados, mecanismos de afe­rição do cumprimento de tais metas e negociações de compromissos progressivos, mais amplos e exigentes de redução de emissões gases de efeito estufa. Entretanto, com a reeleição do presidente George W. Bush, há expectativa generalizada de que o atual governo d o s E stados Unidos continue hostil às ações e compromissos multilaterais, impondo, assim, desafios e limites aos esforços que contribuem pa­ra a redução das emis­s ões globais. Certamente, a ausência dos Estados Unidos nos esforços globais de cumprimento do Protocolo causará ônus adicional para todos os países que aderiram ao regime, nos períodos subseqüentes. O fato de que os Estados Unidos, o país com mais alta emissão de gases de efeito estufa, “pega carona” (é um “free rider”, isto é, vai se beneficiar dos esforços de outros apesar de nada fazer – ou fazer até o contrário do estabelecido no regime da Convenção de Clima) torna muito mais difícil um novo acordo entre os países industrializados (Anexo I do Protocolo) e os países em desenvolvimento para reduções mais significativas, especialmente após 2012. Isso tornará também mais difíceis as negociações para a adoção de metas de redução por alguns países em desenvolvimento, embora haja pressão enorme para que alguns deles,

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notadamente China, Brasil e Índia, venham a ter metas obrigatórias em algum período logo após 2012. É necessário identificar, no regime global, uma forma de evitar que o governo George W. Bush tenha, na prática, o poder de veto que impeça esforços internacionais de proteção do sistema climático. Alguns países podem e devem continuar a exercer liderança no processo internacional, com a esperança de que, a partir da adoção e implementação de políticas domésticas e o cumprimento efetivo das metas do primeiro período (2008–2012) do Protocolo de Quioto, possamos ter a adesão dos Estados Unidos em um futuro próximo. Por isso, dependendo de quão ativo os Estados Unidos sejam para bloquear a implementação da Convenção-Quadro de Mudança de Clima

e do Protocolo de Quioto, países importantes, incluindo o Brasil, que se fizeram lideranças nas negociações internacionais deverão continuar a exercer um protagonismo para manter viável o regime de cooperação global.

O caso do Brasil O país tem tido um papel significativo e construtivo nas negociações internacionais, inclusive no G-77 o grupo de países em desenvolvimento, o que se evidenciou também com a apresentação da chamada “Proposta Brasileira” para alocar metas e compromissos com base na responsabilidade histórica de cada país para o aquecimento global do planeta. Há ainda grande expectativa de como o governo federal lidará, no longo prazo, com a questão

Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) Nas negociações internacionais do Protocolo de Quioto, ficou estabelecido o uso de MDL para projetos novos (adicionais) de desenvolvimento sustentável, mas no caso de captura de carbono restrito a reflorestamento e aflorestamento, ou seja, criar uma floresta onde antes ainda não havia. Por ser um instrumento de mercado, o MDL não reúne condições suficientes para ser usado a fim de implementar e gerir políticas públicas. Da maneira que está atualmente regulamentado, o MDL é instrumento que permite projetos e negócios privados, com base no propósito público de redução efetiva de emissões existentes ou futuras. Isso cria, então, oportunidades para projetos diversos, que não necessariamente atendem a demandas ou expectativas locais ou nacionais de recuperação ou gestão da qualidade ambiental, por estarem voltadas ao foco específico, que é a redução líquida de emissões equivalentes de carbono. Como conseqüência, uma das possibilidades de uso do MDL é na expansão de monocultivos arbóreos, para produção de madeira, papel e celulose ou de carvão vegetal. Sabe-se que são necessários plantios de espécies vegetais para a obtenção de tais produtos, como forma de se diminuir a pressão antrópica sobre as florestas na-

de mudança de clima. O projeto Brasil em Três Tempos, em formulação pela Presidência da República desde o fim de 2004, pretende indicar planos de desenvolvimento para o país em cenários de longo prazo: 2015 e 2022. Entretanto, com base nas informações disponíveis à época da redação deste texto (maio de 2005),

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turais. Certamente, ainda há muito em que se avançar, do ponto de vista ambiental e social, para o aprimoramento de modelos e técnicas que nos libertem das mazelas associadas aos monocultivos arbóreos e agrícolas, em geral fundados na grande propriedade de terra. Entretanto, na comunidade ambientalista, há expectativa de que o MDL possa servir para a recuperação de áreas ambientalmente degradadas e que deveriam estar sujeitas a algum tipo de proteção, gerando empregos e benefícios sociais. Por exemplo, no estado de São Paulo, o Fórum Paulista de Mudanças Globais de Clima e Biodiversidade fez recentemente instigante discussão sobre como usar o MDL para recuperar áreas de preservação permanente (APPs). Mas a eventual indução pública para projetos “voluntários” de MDL, sujeitos aos interesses de mercado, dependerá do aprofundamento da discussão e de maior engajamento da sociedade civil e dos diversos níveis de governo.

o projeto contemplava como prioritário, para o país, deter o controle de uma fatia considerável do mercado de MDL, ecoando setores governamentais e privados que ou negligenciam ou resistem à adoção de uma política nacional que organize e articule as medidas brasileiras de cumprimento dos compromissos obrigatórios


Regimes internacionais e políticas de mudanças de clima

da Convenção. Entretanto, fatos recentes do fim de 2004 e início de 2005 parecem indicar que maior atenção será prestada aos desafios correspondentes (por exemplo, a reativação do Fórum Brasileiro de Mudança de Clima – FBMC; a criação de grupo de trabalho sobre o tema no Ministério do Meio Ambiente – MMA). Em dezembro de 2004, foi divulgada, pela primeira vez, a Comunicação Nacional, o relatório que cada país deve apresentar à Convenção, com seu inventário de fontes e sumidouros de carbono. Pelo relatório, elaborado para o período de 1990 a 1994, 73% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa estão associadas a desmatamento, queimadas e mudança no uso do solo, especialmente na Amazônia e no cerrado; 23% estão associadas à matriz de produção e consumo de energia (notadamente combustíveis fósseis) e o restante a outros processos e atividades (aterros sanitários e lixo, atividades de segmentos industriais etc.). Os dados de desmatamento recente na Amazônia, como o de cerca de 26 mil quilô-

metros quadrados em período de um ano entre 2003 e 2004, permitem inferir, segundo alguns especialistas, que o Brasil é um dos cinco países do mundo com maiores emissões de gases de efeito estufa. O governo brasileiro tem programas nas áreas e eficiência energética e fomento de energia por fontes renováveis, mas a prioridade continua sendo a expansão da geração de energia a partir de grandes hidrelétricas e da termoeletricidade em vez de expandir mais ainda as fontes renováveis de energia.

*Rubens Born Coordenador executivo da Vitae Civilis; engenheiro civil, com especialização em engenharia ambiental; mestre em saúde pública e ambiental, e doutor na área de regimes internacionais; coordenador do Grupo de Trabalho de Mudanças de Clima do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBMOS) para Desenvolvimento e Meio Ambiente. Participante da delegação brasileira em diversas etapas da Convenção de Clima e do Protocolo de Quito. Foi coordenador da delegação do FBOMS na Rio 92 e na Cúpula de Johannesburgo. rborn@ vitaecivilis.org.br

Política nacional de mudança de clima No nosso entendimento – e também no de várias entidades do Grupo de Trabalho de Mudança de Clima do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (FBOMS) –, além de organizações de outros países, o cumprimento do Artigo 4.1 da Convenção deve ser levado muito a sério por todas as nações, incluindo o Brasil. Devemos contar com uma Política Nacional para Mudança de Clima para, por um lado, cumprir com seus compromissos internacionais, já ratificados pelo Congresso Nacional e, por outro, fortalecer a liderança e protagonismo global nas negociações do regime multilateral da Convenção Quadro de Mudança de Clima e seu Protocolo de Quioto. Para essas negociações, o governo brasileiro deve ter uma postura ativa e de liderança quanto ao respeito aos princípios da Convenção, mas, internamente, preparar o país para os próximos períodos do regime. Entendemos que urge uma discussão pública dos objetivos, critérios e instrumentos gerais de tal política, que deveria envolver as várias áreas de atuação do governo, bem como articular as competências e ações dos estados e municípios em questões como transporte urbano e intermunicipal, zoneamento territorial ecológico-econômico, conservação de florestas, eficiência energética e fomento de fontes limpas, sustentáveis e renováveis de energia, entre outros. Enfim, essa Política Nacional de Mudança

de Clima deve: a) considerar todos os princípios e compromissos assumidos pelo Brasil no regime internacional, especialmente aqueles delineados no artigo 4.1 da Convenção; b) definir os marcos gerais que permitam o envolvimento das várias esferas de governo e, portanto, que estimulem todas as unidades da Federação a desenvolver programas e iniciativas compatíveis com os objetivos do regime, tendo em vista o previsto na Constituição de 1988 e o princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas; c) estimular a internalização dos objetivos e considerações previstas no regime internacional em políticas e programas setoriais, nas áreas de energia, habitação e cidades, transporte, agricultura e desenvolvimento agrário, conservação ambiental, resíduos, mineração etc. d) ser flexível para poder considerar a evolução do regime internacional e, assim, deixar abertas para o país oportunidades para a adoção de instrumentos e iniciativas que forem acordadas no âmbito das negociações.

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MUNDO

P ELO MUNDO Jamile Chequer

Ensaios internacionais

Flashs que mudam

Passo à frente

O Programa Globalização, Cultura e Transformações Sociais do Centro de Investigações Pós-doutorais (Cipost) da Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais (Faces) da Universidade Central de Venezuela (UCV) está promovendo o concurso Cultura e Transformações Sociais. A idéia é estimular e difundir investigações que analisem, a partir de uma perspectiva cultural, os processos sociais contemporâneos. Serão aceitos ensaios que tenham entre 10 mil e 16 mil palavras, escritos em espanhol ou em português e que não tenham sido publicados em nenhum tipo de meio impresso ou virtual. Vale lembrar que o programa considera “cultura” uma perspectiva de análise também de estudo de todos os aspectos simbólicos que orientam e tornam possíveis as ações sociais nos mais variados âmbitos políticos, econômicos e sociais. Três eixos de análise serão aceitos: representações, discursos e políticas de identidades e diferenças sociais; representações, discursos e políticas de cidadania e sociedade civil; representações, discursos e políticas de economia, ambiente e sociedade. As inscrições devem ser feitas até o dia 15 de setembro.

Há alguns anos, ser jornalista em uma guerra ou conflito era quase garantia de vida. Não eram consi­ derados(as) alvos, e sim vis­tos(as) como pessoas neutras que estavam no fogo cruzado cumprindo o papel de dar visibilidade aos fatos. Mas isso mudou. Na guerra recente no Iraque, pelo menos 29 jornalistas foram raptados(as) e 56 mortos(as). Para se ter uma idéia, durante os 20 anos da Guerra do Vietnã, as mortes contabilizaram 63. Recentemente, o Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ) analisou que a morte, seguida de impunidade, é a maior ameaça para jornalistas no mundo. Países como Filipinas, Iraque, Colômbia, Bangladesh e Rússia – nessa ordem – lideram a lista de “mais perigosos” para se exercer a profissão. Eles abarcam, no período de 2000 a 2005, 48% das mortes desses e dessas profissionais no mundo. E, pasmem, nenhum caso foi solucionado. “Por falharem na investigação e na punição dos assassinos, os governos desses cinco países encorajam aqueles que perseguem o silêncio da imprensa por meio da violência”, alerta Ann Cooper, da diretoria executiva da CPJ. E continua: “A violência se perpetua e o fluxo livre de informações é cortado”. É duro ser jornalista.

O Chile deu um passo à frente no que diz respeito aos direitos homossexuais. O Projeto de Lei contra a Discriminação foi aprovado por 41 votos a sete. Isso significa que a Câmara dos Deputados reconhece que, nos últimos anos, graves delitos foram cometidos contra as pessoas por causa de sua orientação sexual. Além disso, entende que as discriminações se explicitam em ações que afetam direito ao trabalho, educação e saúde. Para o presidente do Movimento de Integração e Liberação Homossexual (Movilh), Rolando Jiménez, essa foi a principal conquista alcançada pelo movimento homossexual chileno. “É histórico porque conseguimos que o Estado, pela primeira vez, faça um pronunciamento sobre uma discriminação que existe desde sempre”, comemora. O projeto foi idealizado pela Movilh em resposta aos variados casos de discriminação sexual, de gênero, racial, cultural etc. Já era hora.

www.globalcult.org.ve/Program. htm

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PE


LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO

Ranking de desprestígio

Chamado nominal

Bafafá climático

Qualquer semelhança com uma barra de chocolate, recheada de coco, não é mera coincidência. A Nestlé é uma das poderosas internacionais que ganhou o prêmio de empresa mais irresponsável por conflitos trabalhistas na Colômbia. Mas não fez apenas isso. A empresa conseguiu a proeza de promover substitutos do leite materno, aumentando o desmame de bebês e expondo-os a riscos de saúde importantes em países da América Latina. Não, não é boato. Haja campanha de conscientização da amamentação para desbancar o NAN 1. Não satisfeita, a Nestlé está envolvida com a exploração predatória de água no Brasil e em outros países. “Prêmios dessa natureza são importantes como contraponto a um crescente número de premiações que mostram o lado bonito das ações empresariais. Em geral, relatórios e seminários tendem a esconder os problemas e conflitos com os quais as empresas multinacionais estão envolvidas”, revela o pesquisador do Ibase, Ciro Torres. O prêmio foi “entregue” no fórum alternativo Olho Público em Davos e “contemplou” outras empresas, como Shell e Wal-Mart.

Em janeiro deste ano, um acordo de paz deu fim a uma guerra civil de 21 anos no Sudão. Certo? Não exatamente. Embora o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) tenha concentrado esforços na região, a situação no país continua grave. Segundo a organização International Crisis Group (ICG), ainda serão necessárias firmes medidas para restaurar a segurança e prevenir mortes, que somam cerca de 10 mil por mês. O ICG convoca organizações internacionais e governos para agirem urgentemente e fazerem o que for possível, sem se preocuparem com prerrogativas institucionais para sanar o problema. Para isso, produziu documento indicando os principais problemas e formas necessárias de atuação. Entre as questões mencionadas, faz um chamado especial para a proteção de civis e manutenção de mantimentos em Darfur, nomeando organizações como a ONU, a União Européia (UE) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) como capazes de fazer a diferença. Também é necessário construir um processo de paz efetivo na capital, implementar um acordo de paz entre as partes e prevenir novos conflitos no Sudão.

O Encontro do G-8 que vai acontecer na Escócia entre os dias 6 e 8 de julho já está dando o que falar. As duas prioridades de discussão serão as mudanças climáticas e o desenvolvimento da África, dois tópicos quentes. Mas o que realmente está chamando a atenção é que, na última semana de maio, um documento com as indicações dos acordos feitos entre os países no que diz respeito ao clima foi colocado anonimamente na internet. Com o material na mão, confirmado por Tony Blair, a organização Amigos da Terra declarou que, substancialmente, pouco progresso aconteceu. “O documento é fraco, ineficaz e carece de urgência”, critica. Acusações de dedo dos Estados Unidos e um chamado de pressão para que o país entre no grupo dos assinantes do Protocolo de Quioto, à parte, a organização pede a inclusão de acordo sobre a evidência de que a mudança climática já está acontecendo, em determinar prazos na diminuição doméstica dos “gases estufa”, entre outros. É torcer ou comprar uma máscara de oxigênio.

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ENTRE VISTA Entrevista Por Iracema Dantas*

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Jean-Pierre

Atual assessor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no programa Amazônia Sustentável, o francês Jean-Pierre está no Brasil desde 1971: “Era a época da ditadura. O governo dava muito mais facilmente vistos para pastores americanos. Dizia-se que, de cada 300 vistos concedidos, apenas um era para a Igreja Católica”. Iniciou sua trajetória como religioso no Pará e, hoje, é reconhecido como um dos mais atuantes defensores do direito ao meio ambiente. Antes, esteve à frente de importantes momentos como a criação do Fórum Global de ONGs, evento paralelo à Rio 92, e do Projeto Brasil Sustentável e Democrático, iniciado em 1997 e ainda em curso. Escolhido em 2003 como um dos relatores da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Plataforma Dhesc), iniciativa que teve o apoio do Programa de Voluntários das Nações Unidas e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Jean-Pierre garante: “Muita gente neste país é considerada invisível, são grupos sociais que não interessam a ninguém ou porque já foram descartados ou porque nunca serão alvo desse desenvolvimento”. O meio ambiente sempre foi entendido como bem coletivo, mas para Jean-Pierre, quando se trata de injustiça ambiental, as pessoas atingidas são sempre as mesmas: mulheres, pobres, trabalhadores e trabalhadoras, negros e negras: “Os custos desse desenvolvimento para eles chegam da pior forma, agredindo sua saúde, suas águas, tirando suas terras...”. Jean-Pierre afirma que uma das grandes questões da luta ambiental é não mostrar o que ela tem a ver com o cotidiano: “Mas um dado além é que não temos grandes expoentes, pessoas que são capazes de pensar o que significa esse dia-a-dia do meio ambiente. Na Índia, temos a Vandana Shiva, mas no Brasil não temos uma pessoa assim. Eu, depois desses anos trabalhando com a justiça ambiental, vejo que tropeço todo dia, o tempo todo, no meio ambiente...”. Não tínhamos, Jean-Pierre...

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entrevista

Você nasceu na França. Em que momento e por que resolveu vir para o Brasil? Jean-Pierre – Eu era religioso na França, era de uma congregação presente em vários países e regiões do mundo. Sempre dizia que, se fosse para sair da França, minha preferência era o Brasil. Não estava nada a fim de ir para a África e sempre acompanhei a conjuntura latino-americana. Em 1968, eu estava motivado a deixar a França desde que houvesse essa oportunidade. Como ela não surgia, fiquei na França mesmo, trabalhando no meio operário, lidava com migrantes no norte da França, portugueses e norte-africanos, vindos da Argélia, do Marrocos. Fui trabalhar no meio operário enquanto esperava uma vaga no Brasil.

E o que o levou a se tornar padre? É uma tradição na sua família? Jean-Pierre – Venho de uma família bastante religiosa, tanto do lado do meu pai como do lado da minha mãe. Já criança, queria ser padre. Vivi no oeste da França e depois no norte. Minha família é basicamente da roça: meu pai era ferroviário, mas todos os meus tios eram pequenos agri­cultores. Tem também a questão da militância, meu pai era sindicalista, eu freqüentava, quando adolescente, a militância operária. Isso também fazia parte do meu universo. Participei da Juventude Operária Católica, tinha uma grande motivação social. Sempre fui muito motivado, muito empolgado para fazer algo no social, tanto que, quando decidi dar o passo além, definitivo, ninguém se intrometeu.

Quando você deixou a França? Jean-Pierre – Em 1970, uma equipe de colegas que estava no Pará me convidou para ir para lá. Era para morar no litoral, com os pescadores. Eu me lembrei de que, quando criança, morava à beira-mar. Então, antes de vir para o Brasil, resolvi rever como era viver da pesca e convidei uns amigos para pescar de arrastão no oeste da França; só ao chegar aqui me dei conta do quanto era diferente... Mas a viagem demorou, deveria ter vindo em 1970 e só cheguei ao Brasil no fim de 1971. Era a época da ditadura, e a concessão de vistos para quem era religioso ou ligado à Igreja Católica era complicada. O governo dava muito mais facilmente vistos para pastores americanos, mas para a Igreja Católica, não. Dizia-se que, de cada 300 vistos concedidos, apenas um era para a Igreja Católica.

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Como foi sua chegada ao Brasil? Jean-Pierre – Fui para a região do Salgado, localizada no litoral do Pará. Como eu achava que não sabia nada da realidade – e não sabia mesmo –, decidi não atuar como padre, mas ir à pesca e à roça para conhecer um pouco dessa vida. Passei oito meses assim: no domingo, acompanhava a missa calado, não fazia nada. Também passei um tempo no Rio de Janeiro em um curso de aculturação para, além de aprender português, ter estudos sobre a história, a cultura e a arte.

No Pará, em que cidade você ficou? Jean-Pierre – Em Magalhães Barata. Na época, não existia luz e só havia um carro, da prefeitura. Vi carne duas vezes nesse período: no casamento da filha de um comerciante e numa festa envolvendo política. Senão, era só peixe, caranguejo, siri, nada de carne. Também se comia farinha d’água com um pedaço de peixe seco e, às vezes, açaí. Não era uma região produtora, mas tinha um pouco de açaí. Depois, fui para Belém, ainda como religioso. Um colega decidiu ser técnico agrícola porque chegou à conclusão de que só ser padre e rezar missa não levava a nada; e eu não quis ficar sozinho. Fui padre em Belém durante um ano, depois comecei a fazer pesquisa de campo. Foi assim até 1974.

O que foi mais difícil nesse processo de adaptação? Jean-Pierre – O calor. Quanto ao restante, eu me adaptei bem. Era um ambiente muito diferente do que estava acostumado na França, evidentemente. Mas a diferença entre mim e os brasileiros de outros estados que também chegaram à Amazônia é que eu era estrangeiro e sabia que não entendia nada de Amazônia. Eles, por serem do Brasil, achavam que sabiam e, na verdade, eram tão estranhos à região quanto eu. Foi um período em que as migrações eram pouquíssimas, era realmente um outro mundo. Não só pela pujança da natureza, que por si só impressiona muito, mas eram também as pessoas, os costumes, a cultura, as tradições, as comunidades, era tudo muito diferente. Se eu não tivesse tido esses meses de convivência antes de começar a trabalhar, teria feito muito mais besteiras do que fiz. Realmente, era preciso aprender aquele modo de viver, de ser, de se relacionar daquelas pessoas e comunidades. Para mim, foi uma experiência fantástica.

Quanto tempo foi padre?


Jean-Pierre Leroy

Jean-Pierre – De 1962 a 1974. Decidi deixar a congregação religiosa por problemas pessoais. Viver sozinho no Brasil não era nada fácil, vi que realmente não era por aí que eu poderia ajudar. Como religioso, achava o trabalho muito limitado. Mesmo atuando nas comunidades de base, faltava alguma coisa. Quando decidi deixar a congregação, os colegas me deram seis meses de salário, era o tempo que eu tinha para encontrar um trabalho que correspondesse às minhas aspirações ou voltar para a França. Depois de um mês e meio, Mateus, um colega da Fase do Pará, soube da minha decisão e me convidou para trabalhar para a Fase em Santarém. Foi meu primeiro trabalho sem ser padre.

Como foi esse primeiro trabalho na Fase? Jean-Pierre – A Fase tinha na época dez ou 12 programas no Brasil todo. No Pará, eram quatro ou cinco. Em Santarém, o trabalho era em torno de pequenos agricultores, na verdade, eram semi-extrativistas. A Fase trabalhava também com as comunidades ribeirinhas, em Tapajós. Hoje, uma parte dessas comunidades se reconheceu como indígena, mas, na época, não queriam ser índios. Quando perguntávamos: “Vocês são índios?”, eles respondiam: “Índios, não!”. Outra parte do trabalho era feito no Rio Amazonas, na região do Ituqui em uma comunidade quilombola, que na época também não se considerava assim, e outra cabocla, formada pelas populações ribeirinhas. Em meio a tudo, duas coisas me atraíam mais: a possibilidade de reorganizar o movimento sindical rural e a questão da defesa da terra. No Ituqui, meses antes da minha chegada, as comunidades já tinham sido avisadas de que a terra seria comprada por uma grande empresa. Nosso trabalho, então, se dirigiu imediatamente para ajudar na re­sistência dessas comunidades. Foi uma experiência interessante e me permitiu ver que, no fundo, essas comunidades tinham uma relação com a terra que não era baseada na propriedade, isso não existia. Eles veneravam a memória ancestral da posse, dos pais, dos avós, bisavós. Essa relação com a terra, com a sua realidade, chamou a minha atenção. Era a evidência de uma relação que combinava várias formas de sobrevivência, a pesca, a terra, as casas. Apoiamos muito essa luta.

E conseguiram resistir? Jean-Pierre – Sim, mas não foi fácil. Eu

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entrevista

e uma colega da Fase, Cristina, fomos denunciados. Correu um boato de que a Polícia Federal tinha dito que seríamos presos por subversão. Isso em um lugar pequeno, imagina! A conclusão é que, durante três meses, onde a gente sentava ninguém sentava perto, ninguém ficava onde a gente estivesse. Até hoje, as pessoas lembram da gente e desse trabalho, foi uma ação muito interessante. Além dos laços de amizade que fizemos, que foram muito profundos.

Nessa época, ainda havia a movimentação de tropas por causa da Guerrilha do Araguaia? Jean-Pierre – Sim, mas naquela região a maior presença era a do Batalhão de Engenharia, por causa da Transamazônica. Mesmo assim, o Serviço Secreto foi pesquisar sobre nosso trabalho na região. Dissemos que a questão da terra era deles e não da Fase, que estávamos ali para fazer hortas. A isso eles não atribuíam nenhuma importância. Outra coisa em que me envolvi muito no Pará foi a organização sindical. Como já estava motivado para isso desde a França, fiz um convênio com pelegos e trabalhadores rurais para ajudar na formação das delegacias sindicais. Fizemos uma cartilha que correu o Brasil inteiro chamada O que é sindicato. Contribuímos para a formação dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais do país. Mas essa é uma outra história, foi depois que eu saí de Santarém.

Você deixou Santarém para ser diretor nacional da Fase? Jean-Pierre – Não, deixei Santarém para ir ao Maranhão. A Fase estava estudando um grande projeto, financiado por uma multinacional suíça. Essa empresa dizia ter uma preocupação com o social e veio negociar com a Fase. Só que eu saquei imediatamente que a coisa não iria para frente e que dali surgiriam contradições profundas muito rapidamente.

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O trabalho seria na região de Pindaré, onde viveu o sindicalista Manoel da Conceição, uma região em que ainda havia gente do PCdoB na clandestinidade. Era um clima barra pesada. Fiquei lá pouco tempo, menos de três meses, mas organizamos um encontro de lideranças de agricultores e tirei uma foto. Das pessoas fotografadas, duas morreram assassinadas, uma desapareceu e duas tiveram que fugir, ou seja, significa que mais da metade sumiu. Foi uma época muito difícil e estranha, tinha a grilagem por parte da família Sarney. Só assumi a direção da Fase em junho de 1978.

Você foi diretor durante quanto tempo? Jean-Pierre – Fiquei sozinho até 1983. De 1984 até 1986, dividi a direção com o Jorge Eduardo Durão, que permanece até hoje. Tínhamos combinado que eu deixaria a direção e assumiria um novo programa a partir de 1987: eu seria o coordenador do programa de meio ambiente e desenvolvimento. Eu já havia convidado o Cândido Grzybowski, que também era da Fase, para que trabalhasse comigo, mas o dinheiro do programa não veio. Nessa época, o Betinho vinha me cantando para que eu fosse para o Ibase. Eu respondia: “Nem pensar, agora que deixei a direção da Fase, não estou louco para assumir a direção do Ibase”. Ele convidou o Cândido, que veio conversar comigo, e eu disse: “Aceita!”. Acho que tive mesmo um papel importante na história do Ibase. Antes mesmo de ser criado, fiz parte de um grupo que deu apoio coletivo à idéia. Eram pouquíssimas as ONGs na época, tínhamos muita credibilidade, e esse foi um apoio de peso. Conversei e também discuti muito com o Betinho, inclusive sobre nossas trajetórias pessoais, mas creio que ajudei bastante. Depois disso, trabalhei vários anos como consultor na Novib [agência financiadora holandesa] e participava das avaliações do Ibase. Tinha ajudado também a criar a AS-


Jean-Pierre Leroy

-PTA [Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa], que, a princípio, era um programa da Fase voltado para a agricultura orgânica – na época era o que se trabalhava, depois é que começamos a trabalhar a agricultura alternativa. Era uma preocupação minha desde o tempo do Pará, achava que a agricultura, tal como eu conhecia, não dava. As pessoas não tinham capital técnico, conhecimento para criar um modelo. Eu tinha visto muitas pequenas experiências que considerava interessantes. A minha idéia era encorajar as pessoas envolvidas nessas experiências a se reunirem para propor alternativas à agricultura. Isso foi em 1982, 1983, hoje é conhecido como agroecologia.

Como foi sua participação na Rio 92? Jean-Pierre – Só em 1990 soubemos que ocorreria a Rio 92, até então apenas as entidades mais ligadas à questão ambientalista sabiam. Não lembro como, mas passou nas minhas mãos um comunicado que se constituiria num coletivo de organizações. SOS Mata Atlântica, Vitae Civilis e o Centro de Defesa da Amazônia já estavam nessa articulação. Soube que haveria um encontro em Nova Friburgo e achei que seria interessante participar. Encontrei um clima horroroso de disputa, que não entendi bem, porque se tratava de criar uma coordenação, assumir responsabilidades. Acabei intervindo e me pediram para assumir a coordenação do encontro para que não terminasse mal. Tive sorte porque, como não era do meio, foi mais fácil apaziguar as coisas. Depois, me pediram para entrar na coordenação desse fórum.

Trata-se do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para Meio Ambiente e Desenvolvimento? Jean-Pierre – Sim, mas na época se chamava Fórum Preparatório à Conferência da Sociedade Civil à Rio 92. A idéia era fazer uma conferência paralela à conferência oficial e fizemos o Fórum Global das ONGs. Era um fórum bastante abrangente; na coordenação, eram cerca de 12 entidades. Estavam lá as principais organizações dos movimentos de mulheres, os vários setores do movimento negro, todos do movimento ambientalista, ONGs do campo mais social, ONGs ligadas ao desenvolvimento e à agricultura... A CUT [Central Única dos Trabalhadores] esteve presente desde o começo, mas as suas bases participaram menos. O MAB [Movi-

mento dos Atingidos por Barragens] entrou, mas outros poucos movimentos participaram. O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] não entrou, a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] participou mais ou menos. Mas, para a época, foi um leque bastante aberto que fez com que o termo socioambiental ganhasse peso. Era um encontro sobre meio ambiente e desenvolvimento, mas já com a perspectiva socioambiental. Obviamente, isso não era muito evidente, os ambientalistas não tinham es­sa tradição, a preocupação deles era específica com a natureza. Muitos dos integrantes desse fórum não tinham essa percepção socioambiental, isso surgiu durante as discussões sobre a importância das populações em relação ao meio ambiente. Mui­t os defendiam a Mata Atlântica e a existência de parques e de sistemas de conservação, subestimando a importância das comunidades e populações tradicionais. Quando falavam de biodiversidade, falavam apenas da biodiversidade da natureza, mas nunca pensavam, por exemplo, nas sementes do pequeno agricultor. Foi durante os debates da Rio 92 que essa percepção mudou. Essas pontes que se criaram talvez sejam uma das coisas mais interessantes...

Que outros resultados teve o Fórum Global das ONGs? Jean-Pierre – Ocorreram avanços em vários setores para além do ambientalismo. As feministas começaram a pensar sobre a sustentabilidade e sobre o meio ambiente, o movimento negro também passou a pen-

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entrevista

sar além das suas questões. Começaram a pensar a sua relação com o meio ambiente sustentável. Outro resultado foi que todos acabaram questionando o que era esse modelo de desenvolvimento vigente. Mas o fato de tornar inseparável a questão ambiental da questão social foi a experiência mais interessante. O Fórum Global foi um marco. Dentro dele, fizemos também o Fórum Internacional, que discutiu os tratados. Tivemos muita abertura para essas discussões, tivemos diálogos intensos sobre o marco social, o marco do meio ambiente e desenvolvimento, o marco da desigualdade... Ao olhar os tratados, hoje, vemos que ficaram coerentes, interessantes, reuniu gente de todo o lugar. Acredito que foi algo único, ficou como referência para vários encontros internacionais que vieram depois. Fizemos também, na época, um pequeno livro que colocou as posições do coletivo: Meio ambiente e desenvolvimento: uma visão das ONGs e movimentos sociais brasileiros. Lembro muito bem de que a maioria das pessoas que estavam na coordenação não acreditava em tantos resultados, mas passou por cima e se envolveu diretamente, o Ibase também participou. Isso mostrou que, coletivamente, a gente podia produzir algo e com uma coerência razoável.

A própria existência, até hoje, do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para Meio Ambiente e Desenvolvimento é um resultado dessa articulação. Você continua na coordenação? Jean-Pierre – Não, eu fiquei na coordenação do fórum só até 1993 porque fui contra a sua continuação depois da conferência. Dizia que não podíamos viver de lembranças, mesmo que fossem boas, mas fui voto vencido. Continuei a participar, mas o fórum

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ficou um pouco esvaziado. Mais recentemente, houve um encontro importante em Belo Horizonte, que mostrou que ainda há centenas de instituições motivadas. Acho que formamos uma geração de pessoas com um determinado perfil e modo de pensar o meio ambiente.

Antes da Rio 92, havia uma luta de especialistas ou de alguns grupos, como a luta pela terra. O próprio Chico Mendes se dizia um defensor da terra, não usava o termo ambientalista. Jean-Pierre – É verdade, Chico Mendes nunca se denominou ambientalista, ele se denominava sindicalista. Só depois o termo ambientalista se tornou positivo e bem-aceito. Eu também nunca tinha me definido como ambientalista e fazia questão de dizer que não era um.

Mas hoje você se define como ambientalista? Jean-Pierre – Eu não me defino como tal, mas no fundo acho que sou. Tenho uma trajetória ligada à pequena produção, ligada a várias regiões. Assessorei o Fórum PTA, um fórum de entidades que têm projetos alternativos para a agricultura. Acompanhei a trajetória de entidades que caminhavam na direção da agricultura ecológica, das associações de base.

Considera que o conceito de socioambientalismo já foi absorvido pela sociedade civil? Jean-Pierre – Acho que sim, hoje encontramos dentro da sociedade pessoas que têm intuitivamente o raciocínio de que a questão ambiental é importante para o Brasil e que ela tem a ver diretamente com as nossas vidas. A questão é que o socioambientalismo precisa ser mais bem percebido pelos que estão nas lutas pelas mudanças. Foi um marco termos esse conceito na Rio 92, e me preocupava com sua durabilidade. Quando houve a Rio+5, descobri que seria duradouro ao retomar o contato com algumas pessoas para animar um grupo e montar um relatório. Todo mundo topou, foi fácil juntar o grupo – foi um sinal de amadurecimento enorme. O marco era claríssimo, o socioambientalismo estava como referência. Porém, mais uma vez ficaram de fora os conservacionistas. Para eles, conservação é conservação, e o povo nada tem a ver com isso. Eles nunca abriram mão disso e estão evoluindo devagar. Mas também não entraram certos movimentos sociais que fazem um trabalho interessante, mas que nunca


Jean-Pierre Leroy

colocaram o conceito socioambiental como estratégia central. Eu me refiro especialmente, à época, ao MST e à Contag. Hoje, no caso do MST, suas lideranças já absorveram esse conceito, mas não está consolidado, e existem setores que não internalizam. Na Contag, isso se deu por setores, mas efetivamente, há limites.

E o movimento feminista incorporou esse conceito? Jean-Pierre – Não, a situação é a mesma que de outros movimentos. Hoje estamos querendo fazer uma ponte para tentar recuperar o debate feminista sobre a sustentabilidade, mas não sabemos onde nem quem procurar. Esse foi um dos movimentos que fez um refluxo. Precisamos estar entre mulheres, precisamos do Planeta Fêmea. Há momentos em que é importante discutir entre si, mas há momentos também em que conseguimos avançar justamente porque nos abrimos para o diálogo, para o confronto com outros setores. E acho que o movimento feminista não fez isso de maneira suficiente. Internamente, pode ser que tenha debate, mas falta efetivamente ampliar essa visão. A esse respeito, no primeiro Fórum Social Mundial, encorajei a ONG Ser Mulher a organizar uma oficina sobre o que cunhei como a luta contra os transgênicos e mercantilização do corpo da mulher, um só combate. A oficina teve quatro pessoas: as organizadoras e eu, que fui dar minha solidariedade. Em 2005, com o apoio da Fundação Böll, fizemos uma oficina do mesmo tipo, aí vieram cem pessoas, estava cheio mesmo. Então, isso mudou. Mas veio uma liderança de uma organização feminina e disse: “Jean-Pierre, eu fiquei muito preocupada porque a gente nem conseguiu se entender no nosso campo e você já quer que a gente faça alianças”. Ela expressava como era difícil para a organização da qual fazia parte refletir sobre essas questões e, portanto, entrar para o debate público. Sabe que nos Estados Unidos um embrião de mulher branca e intelectual custa US$ 40 mil? Esse debate é uma forma de trabalhar o feminismo e a questão ambiental, mas veja como é difícil. Outro exemplo vem do movimento negro, que foi bem atuante na Rio 92. Quem é ligado ao candomblé sabe que não tem nada mais próximo da natureza: os orixás são energias da natureza. Mas isso ficou só em um grupo, depois a gente não mais ouviu esse debate. Agora, é como se a questão negra só fosse ligada aos quilombos. Houve um afastamento, o debate

não mais se aprofundou. É claro que a sensibilidade ficou, o movimento sabe que o tema é importante, mas a luta concreta não tem a ver com isso, não chegou a se incorporar como uma agenda de trabalho permanente.

E do que se trata o conceito de racismo ambiental? Jean-Pierre – Em 2001, organizamos um seminário em Niterói com uma pesquisadora da UFF [Universidade Federal Flumi­nense] e pesquisadores do Ippur [Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional] sobre justiça ambiental. O pesquisador Robert Bul­lard, dos Estados Unidos e especialista no assunto, veio a esse encontro, onde nós criamos a Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Existem estatísticas que mos­tram como os negros são afetados pelo racismo ambiental. Por exem­­­­plo, se a maioria dos moradores de favela é negra, esse grupo sofre mais as mazelas desse tipo de ambiente. Discutimos também sobre a situação do Quilombo de Alcântara e em que medida seus moradores eram vítimas de um racismo ambiental. O que ficou nesse seminário foi a idéia de que deveria existir no Brasil o racismo ambiental, mas que não era um conceito assumido pelo movimento negro. Tanto que, neste ano, vamos fazer uma oficina de trabalho com várias organizações sobre isso. Queremos saber o que o movimento negro tem a dizer sobre isso.

Qual a sua avaliação dos impactos do processo Fórum Social Mundial sobre o sociambientalismo? Jean-Pierre – Eu achava que a questão ambiental teria mais presença no Fórum Social Mundial, retomando desde o primeiro. Para mim, meio ambiente somos nós dentro desse universo, somos nós dentro desse território e como nos relacionamos com ele e que projetos temos para esse território, que cidadania para amanhã e cidadania para além do Brasil. Sempre achei que a questão ambiental é central. Culturalmente, filosoficamente ou

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espiritualmente, isso nos ajuda a repensar a relação com o outro e os impasses do desenvolvimento. Acho tão chocante o modo como o território está sendo apropriado, privatizado, acho que isso é uma questão central e pensei que já haveria uma compreensão mais avançada sobre isso. Portanto, quem quisesse discutir democracia, desenvolvimento, paz colocaria a questão ambiental dentro. E não foi o que aconteceu, não é o que está acontecendo. Sempre foi um tema à parte no Fórum Social Mundial. Quem trabalha com a questão ambiental tem dificuldade também de relacionar isso com as outras questões, é recíproco. Este ano, fiquei chateado ao perceber que o principal evento ligado à questão ambiental – não lembro o nome, era um evento brasileiro, com a ministra [Marina Silva], meio governamental, do qual participaram muitas pessoas – teve destaque por causa de algumas personalidades, e não por causa do tema. Foi um evento brasileiro, em que havia algumas pessoas estrangeiras, mas não discutiu propostas para o desenvolvimento do Brasil, para o futuro do país. Isso marca, é um limite muito nítido. Mas indo por dentro, em pequenos eventos, dava para achar muitos que faziam conexões, que ligavam uma coisa com a outra. Mas mesmo assim o tema não conseguiu se impor como uma idéia-força para o coletivo. Acho que a referência para pensar o futuro ainda é esse debate, a referência ainda é muito esse desenvolvimento que temos. Não conseguimos nos deslocar ainda para pensar com liberdade.

Dentro da questão do meio

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ambiente, um tema que tem se destacado é a questão da água. Jean-Pierre – Isso é porque existem grandes lutas pela água atualmente. É um debate no qual muita gente está antenada. Além disso, existem os processos em curso em Cochabamba e, no Brasil, a questão da transposição do São Francisco. O problema é que a discussão tem sido apenas técnica, no caso da transposição. Não se discute o futuro, temos essa dificuldade. Discutir a água é sair um pouco da água; discutir bacia não é falar de água. Para discutir o Rio São Francisco, é preciso falar de qual projeto serve para a agricultura no Brasil, que futuro para a gestão do território teremos. Discutir apenas a água é mais fácil como gancho, mas também não teremos controle das conseqüências. Não temos outro projeto, outra proposta, talvez também por estarmos tão vencidos que seja desanimador. Minha sensação é de que as pessoas têm medo de ser acusadas de utópicas, de não ter os pés no chão.

Os primeiros debates ambientais falavam de problemas evidentes, por exemplo, da poluição dos rios, do lixo. Hoje, fala-se de coisas como efeito estufa, um tema que não é tão visível. Existe um debate conceitual que faz com que riscos reais não sejam percebidos? Jean-Pierre – O tema do efeito estufa e a questão do clima é o campo onde se constitui um corpo científico que trabalha com técnicas extremamente sofisticadas de projeção, avaliações de futuros. Há um campo internacional de cientistas que já vem de duas ou mais décadas e que faz um lobby extremamente forte. Esse debate geral é supersofisticado, mas abstrato. Já a biodiversidade avançou menos porque não tem o mesmo suporte científico, não há um corpo científico tratando disso, é mais complicado. Mas é verdade que algumas questões parecem tão distantes da nossa realidade que não sabemos como encará-las. Há efetivamente um descompasso muito grande, e esse foi um dos motivos que nos levaram a criar a Rede de Justiça Ambiental. Meio ambiente tem a ver com a nossa vida. Quando discutimos clima com o pessoal do Pará, por exemplo, temos que mostrar que a época de chuvas, que já foi de sete meses, é hoje de apenas cinco meses; simplesmente dois meses sumiram, isso é muito, muda muita coisa. Vi, em Santarém, cupuaçu secar mesmo embaixo de árvores, não rendeu nada porque há seca que antes não havia. Não dá para falar simples-


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mente do efeito estufa, mas das mudanças que não se percebem a não ser quando acabam em catástrofe, por exemplo, quando faltou energia elétrica. A grande questão é mostrar efetivamente às pessoas que o meio ambiente é mais próximo do que elas pensam e que pensar a cidade, pensar água e energia é pensar a relação da cidade com o meio ambiente, pensar no entorno, na questão agrícola, nas áreas de preservação, o tipo de agricultura, e por aí vai. Uma das grandes questões é justamente não mostrar o que essas discussões têm a ver com a nossa vida cotidiana. Mas um dado além é que não temos grandes expoentes, pessoas que são capazes de pensar o que significa esse dia-a-dia do meio ambiente, isso não se traduz em grandes cabeças, em porta-vozes. Na Índia, temos a Vandana Shiva, mas aqui no Brasil não temos uma pessoa assim. Essa compreensão de meio ambiente não é algo automático para as pessoas em geral. Eu, depois desses anos trabalhando com a justiça ambiental, vejo que tropeço todos os dias, o tempo todo, no meio ambiente...

Parte das suas reflexões tem um lado de militância, mas parte tem a ver com a sua atuação no projeto Brasil Sustentável e Democrático. Pode contar quando surgiu esse projeto e por quê? Jean-Pierre – Na Europa, também como fruto da Rio 92, a instituição Amigos da Terra, de Paris, começou a se perguntar o que seria uma ação sustentável num país que vivia afogado em seu lixo, no estrume. Eles nos perguntaram algo assim: “E se a gente parasse de

importar para mudar os padrões de produção e consumo no país, quais seriam as conseqüências para o Brasil?”. Minha resposta foi: “Que tal consultarmos outras entidades para ver se juntos encontramos uma resposta?” Foi a mesma filosofia que apliquei na Rio 92, no lugar do ‘eu sozinho’, vamos tentar nos consolidar, nos fortalecer; é uma questão metodológica que sempre persegui. Acho que a produção individual pode ser mais brilhante e mais aprofundada, mas a produção coletiva tem a vantagem de ter mais solidez, de representar conceitos de forma mais ampla e de ter um conceito político mais forte. Considerei mais interessante perguntarmos o que seria um Brasil sustentável, pois poderíamos dialogar com outros países a partir de uma posição nossa e, assim, não estaríamos apenas respondendo às perguntas deles. Então, decidimos ter um programa para refletir sobre o país numa perspectiva de pensar o que seria um Brasil viável no futuro e como pensar de outro modo a sustentabilidade, o desenvolvimento, mais includente, e que garantisse o futuro do território. Essa foi a perspectiva da criação desse programa, que juntou a AS-PTA, o Ibase, o Pacs [Instituto Políticas Alternaticas para o Cone Sul], o Ippur, o Instituto de Economia da USP [Universidade de São Paulo] e a Fase. Con­fesso que, com o tempo, ficou mais associado à Fase porque não conseguiu se manter como debate coletivo. Mas a idéia é essa. O Brasil tem que responder a algumas grandes questões. A questão do trabalho é uma. Não dá para refletir nada que tenha

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a ver com o meio ambiente se não incorporarmos o que isso vai levar, o que isso vai ajudar em termos de trabalho. A questão da exportação, levando em conta o perfil internacional do Brasil, é fundamental. Não dá para pensar o que significa desenvolvimento se não refletirmos sobre exportação em termos de uso dos recursos, em termos de degradação do meio ambiente. A qualidade da vida, a questão da igualdade, a questão da pobreza, como isso está relacionado com o meio ambiente? Nossa idéia era dar uma visão transversal, tentando responder a alguns desafios para o Brasil, e avançamos um pouco nessa linha. Só que, no fundo, a gente acabou mostrando a incompatibilidade entre esse desenvolvimento tal como é hoje e qualquer possibilidade de sustentabilidade, de igualdade e de democracia para o futuro. Cada documento que fizemos – e trabalhamos a questão da energia, da água, das florestas, mineração, questão urbana, cerrado, Amazônia – e qualquer tema misturado a essas questões transversais nos levaram a esse impasse. As reflexões que fizemos mostram que são simplesmente inviáveis esse modelo, esse desenvolvimento, essa agricultura, es­ se tipo de industrialização para o Brasil. São contraditórios a qualquer tipo de projeto que queira possibilitar a sustentabilidade do território.

Quais os principais impasses nesse modelo de desenvolvimento? Jean-Pierre – Primeiro, se você quer partir da necessidade de o Brasil dar conta dos seus compromissos internacionais, a exportação é sempre o valor central; não há nenhuma reflexão sobre que exportação, como e para quê. É só crescer e exportar, isso é dado como um fato. Como vamos discutir agricultura familiar

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se isso não tem a menor importância nesse contexto? No governo, há quem pense que a economia dos caseiros é muito mais importante do que a agricultura familiar, o rodeio é mais importante, então pronto, o agrobusiness deu certo e vai em frente, e é isso o que acontece. Nos últimos anos, o crescimento industrial que tivemos é contraditório com qualquer projeto sensato para o futuro do país. Ninguém pensa o custo de energia embutido nisso, é tão inviável, não há perspectiva. E a energia vai para onde, para quem e para quê? Todos dizem que o Brasil tem ainda um enorme potencial de água, só que isso significa a expulsão de milhões de pessoas. Estive em Minas, onde foram feitas 13 barragens; isso significa que 30 mil pessoas vão perder suas terras. Em agosto do ano passado, em Belo Horizonte, fizemos reuniões, e cada representante de comunidade vinha dizer o que significavam para eles essas barragens. Algumas pessoas choravam do começo ao fim da reunião. Além disso, todo o agrobusiness, incluindo os usineiros fraudadores e falidos do Nordeste, agora falam de energia renovável, dizem que “o futuro está conosco”. O pior é que isso não é urgente de verdade porque a economia é um debate mais urgente do que o desenvolvimento democrático. Só depois podemos discutir, participar. Refletir sobre o futuro do Brasil é chegar a um impasse.

Quais alternativas seriam viáveis? Jean-Pierre – Por exemplo, a agricultura ecológica. Há três anos, houve um encontro nacional na Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] que reuniu 1.500 pessoas, com uma vitalidade tremenda e, agora, certamente há muito mais, muito mais. Se a agricultura ecológica ainda não tem a capacidade de mostrar impacto suficiente é porque não há políticas para isso. Se pegarmos a questão do transporte, temos alternativas, sabemos que existem caminhos, mas não interessam. Construção popular para resolver o déficit habitacional? Há vários modos de encarar isso, existem formas de sustentabilidade com aproveitamento de materiais locais. O Brasil tem escolas de arquitetura e engenharia que vêm pensando em soluções baratas, tem mutirões, tudo para fazer, mas a legislação para fazer não sai. Em cada setor, vemos acúmulos fantásticos, mesmo no caso da energia. Energia com biomassa é possível, assim como articular sistema diversificado de produção, criar uma descentralização maior... Mas nada disso acontece, não há políticas para isso.

Mas o projeto Brasil Sustentável serve também para vermos a


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urgência de retomarmos essas reflexões, em termos estratégicos. Qual perspectiva você vê? Ou você está abandonando essa linha do Brasil sustentável? Jean-Pierre – Eu quase abandonei, pensei em ficar só na luta pelos direitos, mas percebi que ela era muito ligada à questão ambiental e ao desenvolvimento. As pessoas lutam e são vítimas porque não têm qualquer projeto de futuro. Então, voltamos às velhas questões. Acho que temos que mostrar que o que estamos dizendo é que esse modelo não vai para frente, que por aí vamos quebrar. Mas é importante mostrar que, sim, há alternativas, elas existem, têm potencial. Temos que mostrar isso com mais força porque atualmente uma entidade tem duas experiências, outra tem três ou quatro, e não aparece como algo substancial. Devemos voltar a fazer conexões e mostrar, por exemplo, que esse projeto de 1 milhão de cisternas não vai resolver sozinho o problema da água, porque tem que se basear em um outro tipo de agricultura para o sertão. Esse tipo de conexão mostra que outra gestão de água é possível. Com o investimento que seria usado para a transposição, poderíamos dar uma injeção para mudar muita coisa. A produção, a microprodução, pode não parecer nada, mas pode permitir não só que a pessoa permaneça no mesmo local, mas também que dinamize a microeconomia local. Esse é apenas um exemplo, mas, em muitas áreas, temos que recuperar isso.

Como foi a experiência de ser relator nacional de direito humano ao meio ambiente da Plataforma Dhesc? Jean-Pierre – É muito cedo para avaliar. Mas a primeira coisa que vi com essa função é que existe um direito humano ao meio ambiente, mas isso não é evidente. A Constituição diz que todos têm direito ao meio ambiente brasileiro. Mas, conversando com os outros relatores, começou a ficar confuso. Um dizia: “Sou relator para a alimentação, vou pegar a questão rural e a água”; o outro com a saúde, saúde do trabalho. Fiquei pensando o que iria sobrar para o relator de direito humano ao meio ambiente, senão o direito de visitar parques nacionais? Eu não sabia, decidi ir logo à luta para ver se aquilo fazia sentido. Fui pelo mais fácil, pelo que conhecia melhor, o Pará. Justamente na época em que havia problemas sérios lá. Em Porto de Moz, os moradores, apoiados pelo Green­peace, tinham bar­rado o

rio por onde passava a madeira que saía de várias posses. Tinha ocorrido um conflito muito grande, um grupo tinha queimado um barco do movimento, uns tinham levado surra, e por trás estava o prefeito. Além disso, na Tran­samazônica tinha sido assassinado o Ademir Alfeu Fede­ricci, o Dema, coordenador do movimento pela sobrevivência da Transamazônica e do Xingu, e a morte estava ligada, evidentemente, a sua liderança e proposições no movimento por uma colonização diferente, uma outra agricultura, mais amigável, contra os grileiros, contra a invasão das grandes fazendas e contra a Usina de Belo Monte. Tomei isso como ponto de partida. Também havia a Dorothy em Anapu.

Uma luta parecida, não? Jean-Pierre – Sim, em Anapu tinham criado o projeto de desenvolvimento sustentável com apoio do Ministério do Meio Ambiente, mas que também não estava se viabilizando. Também eram madeireiros, mas o ponto principal eram os grileiros. Em Anapu, conseg u i mo s f a z e r u m encontro secreto, porque o clima de medo era muito grande, mas, nos outros lugares, em Porto de Moz, por exemplo, conseguimos reunir 600 pessoas, todas se manifestando publicamente. Acho que isso teve um papel. Em Altamira, também tivemos bons resultados. Acho que demos ânimo às comunidades e despertamos o sentido da luta pela justiça ambiental. Um exemplo foi que o GTA [Grupo de Trabalho Amazônico] lançou a campanha “Na floresta têm direitos, justiça ambiental na Amazônia”. Estou

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falando do Pará, mas isso ocorreu em várias outras regiões. O primeiro passo foi mostrar às pessoas que elas têm esse direito, trazer essa visibilidade. Por baixo da questão do direito, existem muitas pessoas e comunidades que se tornam invisíveis, e não falo só dos que estão no mato. Os atingidos, por exemplo, pelo amianto, em Osasco, são invisíveis, quem fala deles? Eles nem têm acesso aos seus prontuários médicos, isso lhes foi negado, não têm história de doença. A justiça não resolve nada, e eles vão morrendo. O pessoal da Associação dos Atingidos pelos Produtos Clorários, vítimas da multinacional francesa Rhodia, em Santos, é outro exemplo dessa invisibilidade. Durante 10, 20 anos, a Rhodia gerou um enorme impacto ambiental sobre os operários e sobre a população. Muita gente neste país é considerada invisível, são grupos sociais que não interessam a ninguém ou porque já foram descartados ou porque nunca serão alvo desse desenvolvimento. A luta pelos direitos é uma luta pela dignidade das pessoas, pela cidadania. A luta pela justiça ambiental, pelo direito humano ao meio ambiente pode ser forte porque coloca em questão que a vida da pessoa é a sua relação com seu futuro e com o desenvolvimento do país. Quando se fala em injustiça ambiental, são sempre os mesmos que pagam os

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custos desse desenvolvimento, o pobre, o trabalhador, o negro, a mulher. Os custos desse desenvolvimento para eles chegam da pior forma, agredindo sua saúde, suas águas, tirando suas terras e por aí vai. Foi o que aconteceu com os negros nos Estados Unidos, eram pessoas frágeis, e o lixo tóxico era enviado para onde eles moravam. Nós estamos fazendo a mesma coisa, são os municípios sacrificados. São lugares onde tudo é possível, quem vai reclamar? São pessoas pobres em lugares onde ainda predomina a lei da pistolagem, quem vai reclamar? Vi que efetivamente era esse o caminho, e conseguimos muita mobilização ao mostrar que o meio ambiente tinha relação estreita com toda essa situação. O projeto da Plataforma Dhesc, com seus relatores nacionais, foi apropriado principalmente por esses grupos atingidos e permitiu que lutassem pelo resgate de sua dignidade, que voltassem a ser sujeitos de direito, cidadãos. Além disso, permitiu, em vários lugares, fazer encaminhamentos com o Ministério Público federal ou estadual ou órgãos de fiscalização.

Poderia citar alguns exemplos? Jean-Pierre – Em Pernambuco, denunciamos uma fazenda que estava avançando sobre um manguezal. O Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] nos mandou um


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relatório sobre as vistorias que fizeram no local e as decisões que foram tomadas para mudar aquela situação. No interior de Mato Grosso, um grupo de pequenos agricultores foi deslocado de uma área que virou reserva indígena, Ouro Branco, para um assentamento chamado Liberdade. Só que, quando chegaram lá, o assentamento estava ocupado por grileiros, produtores de soja. Eles viviam em condições atrozes, não tinham organização, não tinham condições básicas de higiene, não tinham nada. Fizemos denúncias e demos coragem à turma de se mexer e também interpelamos o Ministério Público. A questão dos cinta-largas é emblemática. Estive lá em 2003 e escrevi um relatório informando as coisas graves que poderiam acontecer. Só não sabia que matariam brancos... Esses índios estavam em um isolamento de dar dó, com processo nas costas, com medo de sair. Uma das coisas que mais me chamaram a atenção em todo lugar foi como as pessoas acham que são livres para circular, mas não são. Há comunidades inteiras ameaçadas que não podem sair do seu pedaço porque têm medo de morrer. Era o caso não só da Dorothy, mas também dos índios, a mesma situação... Mas o que a gente vê também é a dificuldade da Promotoria Pública para realmente poder agir. Se isso não mudar, podemos tirar o cavalo da chuva, essa idéia de buscar o desenvolvimento sustentável para a Amazônia não vai ocorrer. A força do poder público, se não for articulada, nada vale.

A questão que precisa ser debatida é séria. Além de repensar o país, de mostrar caminhos de desenvolvimento, precisamos recuperar o sentimento de indignação com tanto desrespeito. Quando vi os 30 mortos na chacina da Baixada Fluminense, pensei: “Como a situação é a mesma, seja nos rincões do Brasil e aqui em nossa porta”. É a mesma lógica do desmando e do mando, aqui e lá. As populações mais pobres, mesmo aqui do Rio de Janeiro, estão tão distantes do poder e da classe média como a Dorothy estava lá em Anapu, a distância é a mesma. Aliás, quando estive com a Dorothy, em Anapu, na tal reunião secreta que já falei, ouvi relatos impressionantes sobre a ação de grileiros. Ouvi coisas como: “ele tentou me atropelar no caminho, me joguei no mato porque escutei o carro”, “queimaram meu barraco, mas felizmente, a gente tinha saído com a família algumas horas antes”. Dentro do possível, até contava que fosse ouvir isso. Mas o único momento em que me vieram lágrimas nos olhos foi quando ouvi: “Sabe como os grileiros derrubam nossos lotes? Vão derrubando a partir da periferia, em direção ao centro e, quando chegam no meio, deixam uma moita e colocam fogo. O fogo vai se aproximando da moita, de longe, a gente escuta o grito dos macacos, dos bichos todos, morrendo asfixiados e queimados”. Para esses moradores, é como se os grileiros estivessem dizendo: “Olha como temos poder, somos os donos da vida e da morte”. Isso é realmente de dar lágrimas nos olhos.

*Iracema Dantas Coordenadora de Comunicação do Ibase Participaram desta entrevista: Cândido Grzybowski, diretorgeral do Ibase, e AnaCris Bittencourt, subeditora da Democracia Viva.

Mas o Ministério Público Federal não tem atuado? Jean-Pierre – É uma situação muito grave, mas percebemos que é possível. O exemplo do enfrentamento do trabalho escravo mostra que há caminhos possíveis e que existe gente a fim de colaborar em todos esses ministérios, órgãos, na Polícia Federal etc. Basta dar condições para essas pessoas agirem, o que não ocorre hoje. Quanto mais o poder público se ausenta de propósito, mais mostra sua fraqueza, mas, de outro lado, mostrando que a força está conosco. Outro dia, vi uma reportagem em que madeireiros ilegais diziam que não aceitam uma dada demarcação indígena. Como não aceitam? São pilantras, que praticam o contrabando de madeira, e, com a cara mais lavada do mundo, dizem que não aceitam a lei! Sabem que a lei existe, mas sabem que não terão problemas. Esse tipo de violação fica parecendo a coisa mais normal do mundo.

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Quatro séculos do maluco Há exatos quatrocentos anos, Dom Quixote de La Mancha encanta mortais de todas as partes do mundo. Herói da literatura de cavalaria andante, criado pela imaginação delirante do fidalgo Alonso Quijano, um voraz leitor da literatura de cavalaria andante, ele próprio fruto da delirante imaginação do marinheiro Miguel de Cervantes, que pretendeu escrever uma paródia para ridicularizar a influência, para ele nefasta, da cavalaria andante. Obra de gênio, tomou as rédeas do autor, frustrou sua intenção e se eternizou como a apoteose da literatura de cavalaria andante e primeiro romance moderno. Desde a infância as proezas de Dom Quixote de La Mancha habitam minha imaginação – confissão, aliás, que serve aos que pretendam, como Cervantes, usar meus delírios para provar que a literatura de cavalaria andante é nefasta às crianças. Malgrado eventual dano à minha

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saúde mental – do que não o culpo nem me queixo, visto não ser exemplo para ninguém – afirmo que ler o Dom Quixote estimula a imaginação de qualquer pessoa, em qualquer idade, entre outros prazeres. Quatro séculos como o livro mais vendido do mundo, exceto a Bíblia, provam sua universalidade. A primeira parte de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha foi escrita em sete anos. Surgiu em Madri em janeiro de 1605, a segunda, dez anos após. Na sábia, feliz calma em que o escreveu, Cervantes jamais sonhou um tal futuro para o livro – a condição para se escrever uma obra eterna é não se propor a tal. Tolerante quando a Inquisição assava gente na fogueira, foi um escritor atento ao sonho humano. Freud perdeu por ignorá-lo. Nos transes de delírio que assombram a sua pacata vida de leitor, Alonso Quijano


torna-se Dom Quixote. De lança e escudo, sai pelas poeirentas trilhas da Mancha sobre o esquálido Rocinante, seguido pelo fiel Sancho Pança. Movem-no a heróica vontade de fazer justiça, a emoção da aventura, o desejo de se apaixonar. Seu sonho é restaurar o Paraíso Perdido ou construir o paraíso na terra – sonho inaugural que a história humana apagou, mas que ecoa no mais profundo da nossa consciência como valor eterno. O homem real, egoísta, ganancioso individualista e violento fez da meta de Quixote uma utopia; do nome, o ridículo. O cínico posa de realista e chama de quixotesco o sonho de Quixote. Para Cervantes, só um louco pode encarnar um ideal que o ser humano sonha, mas sua vida nega. E metamorfosear Quijano em Quixote é concretizar, na própria ficção, o que imaginamos ao ler. Quijanos sonhando ser quixotes, não nos identificamos com o pobre Quijano, mas com a fantasia dele, Quixote. Alonso Quijano convence o vizinho a ser seu escudeiro em troca de imaginária ilha a ser conquistada. Com Sancho, a dupla inaugura a contrastação para representar as contradições e ambigüidades humanas, com a antinomia entre mundo real e ideal. Quixote, alto e magro, Sancho, baixo e gordo; Quixote idealista, Sancho materialista; sonhador, realista; destemido, cauteloso; aventureiro, acomodado; perdulário, sovina, etc. Homem real, o leitor sabe que Quixote e Sancho coexistem nele; ora curva-se à

vontade de um, ora à de outro, e toca a vida, sem pensar em síntese. Vem daí o humor, para sublimar as angústias do existir. Quando Quixote ataca gigantes com três braços, Sancho avisa que são moinhos de vento. O escudeiro convence o amo de que são moinhos e não gigantes? Jamais! Nem mesmo ferido, após o ataque, se rende: inventa o mago que transformara gigantes em moinhos para privá-lo da glória de vencê-los. No que Sancho jamais acreditará. Eis a metáfora da radical diferença de percepções de mundo, que remete à dificuldade de comunicação e irremissível solidão. O que não impede que o mundo gire, Quixote mande e Sancho obedeça. A tragédia se insinua entre risos, e sutilmente redesenha o herói como o Cavaleiro da Triste Figura. Quixote encanta pela loucura da luta por ideais dos quais a razão desistiu – os humanistas, domesticados pela razão cínica, viraram técnicos em acomodação. Quixote, como Cervantes, foi-se em agitação criativa e penúria material: “Alonso Quijano, entre lágrimas e quejas de quienes lo rodeaban, dio su espiritu; quiero decir que se murió”. Quatro séculos após a sua vinda, restam o quixotesco de anedota, frases divertidas, fugaz admiração. Do ideal, apenas a glória do derrotado. Venceu o pragmatismo de Sancho. Mas vale a pena ler, quimeras são sempre divertidas; a infância – ou a loucura – ainda mora na alma deste quixotesco cronista.

Alcione Araújo alcionaraujo@uol.com.br

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Socioambientalismo e novos direitos Juliana Santilli Editora Peirópolis 303 págs. O livro Socioambientalismo e novos direitos surgiu de projeto de pesquisa da autora para obter o título de mestre em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Sua publicação é uma realização conjunta do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) e o Instituto Socioambiental (ISA), duas organizações com trajetórias e experiências distintas, mas cujos objetivos se unem na promoção do desenvolvimento sustentável na perspectiva socioambiental. A autora traz uma análise sobre a influência do socioambientalismo no sistema jurídico constitucional e infraconstitucional brasileiro, enfocando especificamente os dispositivos constitucionais referentes à cultura, ao meio ambiente, aos povos indígenas e quilombolas (minorias étnicas) 80

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e à função socioambiental da propriedade. No âmbito infraconstitucional, enfoca a lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), em especial as categorias essencialmente socioambientais por ela delineadas (reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável), bem como esboça alguns elementos fundamentais à construção de um regime jurídico sui generis de proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. O livro começa com uma análise do desenvolvimento histórico e do contexto político e social do surgimento do movimento socioambientalista no Brasil. Inicialmente, discorre sobre as origens do ambientalismo brasileiro e traça um breve panorama de sua evolução histórica e de seus principais marcos, essencial para uma melhor compreensão da trajetória de alianças com os movimentos sociais, que culminou no socioambientalismo – movimento que desenhou a sua história e definiu os conceitos e paradigmas que lhe são próprios. Segundo Juliana, o socioambientalismo desenvolvido a partir da segunda metade da década de 1980 e consolidado na década de 1990, principalmente após a Eco-92, foi estabelecendo seus próprios conceitos e paradigmas, que, por sua vez, foram sendo incorporados cada vez mais ao discurso e à prática política e jurídica. Quando, posteriormente, a autora analisa o processo constituinte brasileiro e o seu significado para a democratização da América Latina, abre reflexões críticas sobre as grandes inovações em relação à tradição constitucional anterior e a inserção, na Carta Magna, de capítulos e artigos que plantaram as sementes dos chamados “novos direitos” e lançaram as bases constitucionais dos “direitos socioambientais”. Esses direitos se inserem no contexto dos


novos paradigmas jurídicos, com base nos quais ela discorre sobre os dispositivos constitucionais dedicados ao meio ambiente, à cultura, aos povos indígenas e quilombolas e à função socioambiental da propriedade, interpretando-os de forma sistêmica e integrada. A autora analisa a legislação infraconstitucional para demonstrar que a síntese socioambiental permeia todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que privilegia a interface entre biodiversidade e sociodiversidade, influenciada pelo multiculturalismo e pela plurietnicidade. Juliana afirma que os “novos” direitos socioambientais impõem a superação de conceitos velhos e surrados, como o direito de propriedade absoluto e ilimitado, que não admite restrições e limitações em face de direitos socioambientais. Impõe-se a superação do paradigma individualista e economicista dos direitos consagrados pelo chamado direito “moderno”. Não só a propriedade, materialmente considerada, deve cumprir a sua função socioambiental, mas também a propriedade imaterial, conhecida como “propriedade intelectual”, que até agora se limita a proteger as inovações geradas pelo saber considerado científico, tecnológico. A propriedade intelectual deixa, dessa forma, de cumprir qualquer função social ou ambiental. Os “novos” direitos socioambientais rompem com os paradigmas da dogmática jurídica tradicional, contaminada pelo apego ao excessivo formalismo, pela falsa neutralidade política e científica e pela excessiva ênfase nos direitos individuais, de conteúdo patrimonial e contratualista, de inspiração liberal. Para a autora, os “novos” direitos, conquistados por meio de lutas sociopolíticas democráticas, trazem novos desafios à ciência jurídica, tanto do ponto de vista conceitual e doutrinário como de

sua concretização. São direitos histórica e democraticamente conquistados, e não se enquadram nos estreitos limites do dualismo público–privado, mas se inserem num espaço público não-estatal. Os aplicadores e intérpretes dos direitos socioambientais devem ser capazes de compreender o seu caráter inovador e a sua enorme generosidade conceitual. Insiste a autora em que a efetividade dos direitos socioambientais exige um papel proativo do Estado na sua promoção, por meio de políticas públicas apropriadas e específicas. Distinguem-se, portanto, dos direitos “clássicos”, em que o papel do Estado se dá apenas na sua garantia, por meio de instrumentos repressivos quando são violados. Os direitos socioambientais só se efetivam mediante a ativa promoção de políticas públicas. Apesar de o trabalho fazer uma análise de instrumentos normativos, procura se referenciar e se socorrer de conhecimentos produzidos por outras áreas, especialmente as ciências sociais e biológicas, além de estudos antropológicos. Socioambientalismo e novos direitos é uma viagem pelo processo de luta e de reconhecimento da diversidade cultural brasileira realizada por índigenas, seringueiros(as), quilombolas, pescado­res(as), agricultores(as) familiares e outros segmentos sociais que emergem no cenário pós-democratização como atores políticos contemporâneos. Essa viagem ainda está em curso, em processo de afirmação de direitos sobre a biodiversidade e sobre os conhecimentos tradicionais a ela associada. Alejandra Leonor Pascual Professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB)

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Direitos humanos no Brasil – Diagnósticos e perspectivas Cláudio Moser e Daniel Rech (Orgs.) Ceris – Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais 412 págs. Durante muitos anos no Brasil, principalmente a partir da década de 1960, a luta pelos direitos humanos esteve ligada exclusivamente à Igreja Católica. No início, a luta era por direitos políticos e civis e depois se voltou para toda uma gama de direitos que garantem a dignidade humana: direitos econômicos, direitos culturais e direitos sociais, entre outros. Com o fim da ditadura militar, esses direitos foram parar em nossa Constituição Federal e muitos até possuem uma legislação específica (direito à saúde e direito à moradia, por exemplo). Porém, mesmo hoje, quando o Brasil já possui uma Secretaria Especial de Direitos Humanos, vinculada diretamente ao gabinete do presidente da República, ainda estamos longe de ver as 82

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pessoas que têm seus direitos violados (em sua maioria, pessoas com baixo poder aquisitivo) serem atendidas pelas leis existentes, pois faltam estrutura e recursos para garantir esse acesso. A questão dos direitos humanos no Brasil possui elementos que agravam, ainda mais, a situação de alguns grupos. Se olharmos a questão dos direitos humanos pelo viés étnico, por exemplo, vamos descobrir que a desigualdade no Brasil possui cor, ela é negra. Essa parcela da população não só é excluída de seus direitos, mas também é a principal vítima da violência institucional. E a história recente do país nos mostra isto: chacina de Vigário Geral, chacina na Baixada Fluminense; massacre em Eldorado dos Carajás, massacre no Carandiru, o caso da favela Naval em São Paulo, entre outros. A partir da Constituição de 1988, o movimento social brasileiro ganhou fôlego. Por meio da Carta Magna do país, foram abertos novos canais de participação (resultado de muita luta por parte dos movimentos sociais da época) e, dessa forma, foi possível ampliar a capacidade da sociedade civil de monitoramento e controle social aos governos – principalmente em conselhos. Mas não foi só a Constituição, outros documentos puseram na ordem do dia a defesa dos direitos humanos, e todos eles tiveram ampla participação popular. Contudo, o simples fato de termos uma legislação específica para a área de direitos humanos não quer dizer que concretamente eles serão respeitados. Exemplo disso é que, no Brasil, assistimos à execução de muitas lideranças de movimentos sociais e de organizações populares que apenas queriam ver esses direitos respeitados. São estes 45 anos de luta no Brasil que o livro organizado por Cláudio Moser e Daniel Rech analisa, mostrando o que já foi feito e o que ainda está por fazer. A divisão dos capítulos do livro não segue a mesma linha adotada pelo Pacto Internacional dos Direitos


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Civis e Políticos (PIDCP) e nem pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIEDSC). O conteúdo do livro tem como base a junção desses documentos e trata de analisar as condições necessárias para que haja respeito, proteção e promoção dos direitos humanos no Brasil. O primeiro capítulo trata da questão do desenvolvimento e meio ambiente, escrito por José Augusto de Pádua, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O autor diz que um meio ambiente degradado trará como conseqüência uma vida social degradada. Demonstra, ainda, que o meio ambiente deve ser pensado não só como algo a ser preservado, ele deve ser visto como direito e que o caminho que queremos seguir (para algumas pessoas, já estamos nesse caminho) rumo ao desenvolvimento tem que ser sustentável também do ponto de vista ambiental. Nesse capítulo, enumera-se uma série de problemas que afetam diretamente o meio ambiente, tais como: espaços urbanos com grande contingente populacional, falta de saneamento básico, falta de acesso à energia, um número ainda grande de pessoas que migram para as cidades, contaminação por agrotóxicos, desmatamento, lixões, enchentes etc. Todos esses problemas, segundo o autor, devem ser enfrentados para que se possa garantir o direito humano a um meio ambiente saudável. Já o terceiro capítulo trata da realidade agrária brasileira e foi escrito por Daniel Rech, técnico do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris). Ele aponta como problema crucial da área o seguinte item: trabalhadores e trabalhadoras rurais não têm direito à terra, à liberdade e ao trabalho. O estudo assinala que no Brasil ainda persistem as grandes propriedades, e isso influencia diretamente a luta pela posse da terra, diminui a capacidade produtiva, favorece a especulação imobiliária e aumenta o número de pessoas sem terra. Além disso, mostra que o país carece de uma política agrícola – a qual existiu somente no fim da

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década de 1960 – que privilegie o pequeno produtor em vez da produção voltada para exportação. Ainda figuram como problemas da realidade agrária brasileira esvaziamento do campo, baixa remuneração da agricultura, trabalho escravo, elevação dos custos de produção, perda da diversidade e muitos outros que comprometem uma gama de direitos. Para termos esses problemas resolvidos, o autor aponta como solução uma reforma agrária ampla, o fortalecimento da agricultura familiar, ampliação da produção de alimentos ecológicos e desenvolvimento local sustentável. Essas políticas públicas transformarão as relações no campo, que hoje se apóiam no clientelismo, e passarão para uma nova fase na qual homens e mulheres do campo conduzirão seus próprios destinos. Além de sete capítulos, o livro traz ainda uma sessão especial com enfoques específicos nas seguintes áreas: afrodescendentes, crianças e adolescentes, idosos e idosas, povos indígenas, migrantes, pescadores e pescadoras e pessoas portadoras de deficiência. Vale ressaltar que, embora apareçam num capítulo separado, esses temas estão presentes nos primeiros capítulos do livro, pois todos(as) os(as) au­tores(as) acreditam que, para resolver o problema dos direitos humanos no Brasil, é necessário trabalhar cada item transversalizado pela questão de gênero, raça-etnia etc. O livro é uma obra imprescindível para aquelas pessoas que se ocupam das questões de direitos humanos no Brasil, atores da sociedade civil e integrantes dos governos, pois, somente trabalhando unidos, esses dois grupos serão capazes de criar soluções para as políticas públicas na área de direitos humanos, contribuindo para a melhora substancial da qualidade de vida da sociedade brasileira. Luciano Cerqueira Cientista político, pesquisador do Ibase

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O projeto de transposição das águas do Rio São Francisco é um dos carros-chefes do presidente Lula e também uma das maiores polêmicas em seu governo. Nos últimos grandes encontros realizados pela sociedade civil organizada – como o Fórum Social Mundial 2005, em janeiro, ou o Fórum Social Nordestino, em novembro de 2004 –, debates, passeatas e manifestações fizeram ecoar um rotundo “não!” à idéia. Até mesmo dentro do governo, as opiniões estão divididas. Agora, existe a possibilidade de a população contribuir com esse debate, por meio de um plebiscito popular que seria realizado no primeiro domingo de outubro de 2006, simultaneamente ao primeiro turno das eleições. O Projeto de Decreto Legislativo (PDC) foi apresentando em maio e aguarda votação. A proposta de transpor as águas do Rio São Francisco como saída aos problemas causados pela seca no semi-árido nordestino é histórica, surgiu na época do imperador Pedro II e voltou à tona com força na década de 1980, mas sem sucesso. O projeto atual está em tramitação na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e deverá passar também pelo crivo das Comissões de Minas e Energia e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Nesta edição, a revista Democracia Viva busca contribuir para este debate, trazendo os olhares do engenheiro agrônomo Sérgio Pinheiro Torggler, que aborda os aspectos econômicos do projeto; e da feminista Carmen Silvia Maria da Silva (da ONG

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Perpetuação do assistencialismo Sérgio Pinheiro Torggler Engenheiro agrônomo A defesa do projeto de transposição do Rio São Francisco está baseada na alegação de que tecnicamente o projeto pode ser feito, devendo gerar um pólo de agricultura irrigável no polígono das secas, fixando e gerando renda no sertão do Nordeste, e que esses benefícios justificam por si sós os investimentos de R$ 4,5 bilhões (US$ 1,67 bilhões). Já as críticas ao projeto apontam apenas os aspectos ligados ao volume de água retirado do rio e seus efeitos no aspecto de potencial hidráulico, de irrigação e de natureza ambiental na porção a jusante do desvio. Esta análise busca demonstrar que os efeitos econômicos do projeto são relevantes e que os malefícios econômicos serão enormes para a sociedade brasileira, representando uma transferência de recursos de contribuintes para o beneficiamento de poucas pessoas, que serão subsidiadas com esse projeto por décadas. Como tem sido debatido, a destinação maior do projeto é a criação de núcleos de agricultura irrigável. Assim, o que procuraremos demonstrar é a viabilidade de se cobrar o custo real da água transportada da atividade agrícola e verificar, desse modo, a viabilidade da iniciativa. Ou seja, o processo será comparar os custos da água transportada como fator de produção agrícola, apurando a participação desse custo na receita bruta de agricultores e agricultoras. Para que se possa demonstrar inequivocamente a tese levantada, é preciso conhecer os custos do projeto, mais particularmente o funcionamento dos processos físicos de transposição e suas grandezas. O cerne do projeto é representado por dois números: o primeiro é a capacidade nominal projetada de transportar 60 m3/s, ou seja, o volume a ser desviado, e o segundo e mais importante número é a altura de recalque (metros) – uma vez que essa água será bombeada morro acima para transpor a barreira geográfica entre as bacias hidrográficas, no caso 160 m de altura (475–315 m). No entanto, haverá recuperação de parte da energia despendida no bombeamento pela geração de energia hidroelétrica na descida, sendo que as colunas de água úteis na geração somam 92 m (472–380 m). Mas como há perdas na conversão da ordem de 30%, pode-se dizer que a energia recuperável equivale a um desnível de 64 m, permitindo, assim, calcular que a altura líquida total a ser bombeada será de 96 m (veja figura a seguir). Quando o projeto estiver em funcionamento, teremos dois custos a serem analisados. O primeiro grupo é dos variáveis, basicamente for-

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mado pelo custo da energia consumida, ou seja, custo aplicado ao processo. O segundo grupo é constituído dos custos fixos, representados pelos custos administrativos operacionais, depreciação e juros; esses custos fixos independem do volume de água transposta, existindo mesmo que o projeto não opere. Sempre que possível procuraremos trabalhar com unidades que permitam comparação, ou seja, reais por metro cúbico (m3), metro cúbico/hectare (m3/ha), e, assim, no fim, será possível avaliar diretamente os efeitos nas atividades beneficiadas pela água – agricultura ou consumo humano.

Análise do custo variável O custo da energia consumida para o bombeamento da água é praticamente a totalidade do custo variável dessa atividade, uma vez que o bombeamento é a única atividade realizada com relação direta e proporcional ao produto. A quantidade de energia consumida na atividade pode ser calculada utilizando-se o padrão teórico da quantidade de energia para erguer água, no caso utilizaremos o quilowatt-hora (kWh), sendo que 1 kWh corresponde à energia necessária para elevar 1 m3 de água a 360 m de altura, ou 360 m3 de água a 1 m de altura. Na transposição, cada metro cúbico transposto deverá ser recalcado (erguido) 96 m de altura, ou seja, teoricamente consumirá 0,27


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kWh (96 m/360 m). No entanto há de se aplicar um fator de eficiência da conversão, uma vez que no bombeamento há perdas por meio de calor e atrito, devendo ser aplicada mais energia que o cálculo teórico, sendo que o índice normal das bombas de mercado apresenta 70% de eficiência (índice para calcular a potência real de saída usando a potência nominal de consumo motor). De outra forma, o índice pode ser de 142% quando se calcula a entrada (motor) a partir da saída (água transportada). Assim, cada metro cúbico transportado com consumo teórico de 0,27 kWh exigirá uma demanda real de energia de 0,38 kWh (0,27 x 1,42 ou 0,27 / 0,70). Conhecido o consumo de kWh para cada metro cúbico transportado, precisamos transformar esse consumo de energia em custo monetário. A discussão será a determinação do valor do kWh, podendo seguir diversos caminhos: um deles é apurar o custo real da concessionária geradora e distribuidora; outro é adotar o valor aplicado a outros consumidores de mesma atividade (tarifa diferenciada da agricultura de outras regiões) ou também usar o valor-padrão de custo internacional. A primeira alternativa, cálculo do custo da concessionária, é difícil e complexa, não cabendo seu uso aqui. As atividades que rece bem energia elétrica com custo diferenciado, tais como indústria e irrigação, pagam uma média de US$ 0,05 por kWh consumido (fora

do horário de pico). O padrão internacional do custo de kWh (sem diferenciação) é da ordem de US$ 0,10 por kWh. Portanto, para nosso raciocínio, utilizaremos doravante o menor custo (US$ 0,05/kWh). Resta agora apurar o custo do metro cúbico transposto, multiplicando-se o consumo de kWh/m3 pelo custo. O resultado é igual ao produto de 0,38 kWh/m3 por 0,05 US$/kWh, dando custo de 0,019 US$/m3. Quando se faz bombeamento em pequenos projetos, quase a totalidade da água bombeada é utilizada na irrigação, mas em projetos desse porte, que utilizam canais construídos e naturais por longas distâncias, é preciso considerar as perdas por evaporação, vazamento e infiltração. No caso, para facilitar os cálculos, mas não sendo muito fora das perspectivas reais, consideramos que as perdas serão de 50%, ou seja, de cada 100 m 3 bombeados apenas 50 m3 serão utilizados em agricultura irrigada comercial. Assim, para se cobrar a energia gasta no sistema, o custo de energia da água utilizada será de 0,038 US$/m3. Agora devemos apurar o impacto desse custo na atividade agrícola, para uma unidade de área-padrão de 1 ha, ou seja, comparar a receita bruta de 1 ha de milho com a despesa de água gasta nessa mesma área. Para facilitar os cálculos, admitimos os seguintes parâmetros da lavoura de milho em estudo: cem dias de irrigação, produtividade 150 sc/ ha (saca por hectare), consumo de água de 50 m3/

Figura

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dia. A receita bruta de 1 ha será o produto de 150 sc (alta produtividade, 9.000 kg/ha) vezes preço de 8,52 US$/sc, totalizando US$ 1.278. A despesa de água será calculada pelo produto do consumo de 50 m3/dia (média da região do São Francisco) por cem dias e pelo preço de custo de 0,038 US$/m3, totalizando 190 US$/ha, equivalente a 14,9% da receita bruta. Esse custo é aparentemente suportável, mas implica uma perda de competitividade permanente da atividade perante as demais áreas agrícolas que tenham alta produtividade e não utilizem irrigação. Também é relevante constatar que esse custo é apenas da energia e que projetos normais de irrigação trabalham com recalques hidráulicos muito menores, da ordem de algumas dezenas de metros, e trabalham próximo da eficiência máxima de utilização da água, ou seja, apenas uma fração do custo energético desse projeto. Essa energia está sendo dispensada apenas para dis­ponibilizar a água para as propriedades ribeirinhas da bacia recebedora. Para que essas propriedades se utilizem dessa água para irrigação, ainda haverá a necessidade de recalques adicionais até a área de cultivo. Dos cálculos energéticos podemos retirar uma crítica secundária, mais relativa ao efeito dessa obra no sistema elétrico regional, que seguiria o seguinte raciocínio: cada metro cúbico bombeado consumirá diretamente 0,38 kWh do sistema regional de geração mais a perda da energia que o mesmo metro cúbico produziria se fosse utilizado na geração, calculado em

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mais 0,24 kWh (a altura útil da usina de Paulo Afonso é de 85 m), totalizando uma perda de 0,62 kWh/m3. Se o sistema de transposição operar um mês a plena carga, representará um “aumento” de consumo de energia do sistema da ordem de 95 milhões de kWh.

Análise dos custos fixos Nesse projeto, identificamos três grandes grupos de custos fixos: os operacionais administrativos, a depreciação da obra e os juros do capital investido. Os custos fixos são, por natureza, proporcionais ao tempo, e não à produção, isso implicando que existirão se o sistema operar em plena carga ou não funcionar. Nesta análise, utilizaremos como unidade de tempo o ano, apurando-se as despesas anuais, e depois dividiremos pelo volume de água transportada. O custo operacional administrativo anual deverá ser da ordem de R$ 30 milhões, sendo suas premissas calculadas seguindo este raciocínio: haverá de ser constituída uma empresa pública para gerir as atividades, com os devidos cargos de confiança políticos, os cargos técnicos gerenciais e os cargos operacionais de administração e manutenção. Em virtude do caráter público e do tamanho da obra, além das pressões políticas, estimamos que a atividade terá 500 funcionários(as) diretos(as) a um custo médio de R$ 3.000 (lembramos que englobam os custos indiretos), totalizando despesa anual de R$ 18 milhões. Acreditamos que haverá uma despesa adicional de R$ 12 milhões para manutenção das bombas, frota de veículos, maquinários, despesas administrativas, viagens, refeições etc. A cobrança do custo de depreciação no preço do produto entregue representa a recuperação do capital investido ao longo da vida útil estimada do projeto. Nesse sentido, seria a forma de o governo recuperar os impostos que investiu no projeto sem subsidiar consumidores e consumidoras finais do produto ou serviço oferecido. No caso desse projeto, em que a maior parte do investimento é para a construção de canais, aquisição das bombas e linha de transmissão, a vida útil média foi estimada em 30 anos e o investimento total apontado pelo governo é de R$ 4,5 bilhões. Assim, calculamos que a despesa anual de depreciação seria de R$ 150 milhões. O cálculo dos juros pressupõe que o governo recuperará a depreciação, cobrando na tarifa de usuários e usuárias, e assim o saldo médio


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devedor nos 30 anos é estimado pela média do saldo devedor inicial e final, R$ 4,5 bilhões e zero, ou seja, R$ 2,25 bilhões. Aplicamos juros anuais de 12% sobre esse saldo, resultando em uma despesa de R$ 270 milhões. Lembramos que a taxa de 12% ao ano é inferior à taxa básica de financiamento da dívida pública, mas entendemos que 12% são uma boa estimativa para prever a média dos próximos 30 anos. Somando os três grupos de despesas fixas, chegamos ao valor de R$ 450 milhões ou US$ 167 milhões anuais, que deveremos apropriar ao volume de água transportado para apurar o custo na unidade US$/m3. Caso o projeto opere o ano inteiro na capacidade plena, teremos um volume de água transposto de 1.892 milhões de metros cúbicos, resultando em um custo fixo por metro cúbico de US$ 0,09. No entanto, sabemos que o bombeamento não poderá operar o ano inteiro, devendo haver um período em que não se poderá retirar água do Rio São Francisco, digamos quatro meses por ano, e também, mesmo no período normal de operação, nos horários de pico (3 h/ dia), as máquinas deverão ser desligadas para não sacrificar o sistema de geração de energia com sua demanda extra. Aplicando-se a capacidade nominal de 60 m3/s sobre as horas efetivamente operadas, o volume a ser transportado será de 1.088 milhões de metros cúbicos, resultando em um custo fixo de 0,15 US$/m3. Apurados os prováveis custos fixos por metro cúbico, podemos avaliar o impacto no custo de produção do milho, que tem um consumo estimado de 5.000 m3/ha, ou seja, o custo fixo, se cobrado na água transportada, representará uma despesa de 440 a 765 US$/ha, comprometendo de 34,5% a 59,9% da renda bruta do hectare de milho. Esses cálculos estimam que toda água transportada será utilizada em atividade produtiva, sem haver qualquer perda, fato que na vida real será impraticável. Acreditamos que, dificilmente, 50% da água transportada será utilizada na agricultura, pois o transporte na porção posterior ao bombeamento se utilizará em grande parte de canais naturais e percorrerá longas distâncias, com perdas por evaporação e infiltração. Assim, considerando a perda estimada, o custo fixo subiria para US$ 0,30/m 3, implicando que a água utilizada na lavoura de milho consumiria 880 a 1.530 US$/ha ou 69% a 119,8% da renda bruta da cultura.

Quando somamos os custos variáveis aos custos fixos, a situação fica pior, o custo do m3 sobe para 0,338 US$/m3, fazendo com que as despesas de água atinjam a cifra de 976 a 1.353 US$/ha. Isso corresponde somente o custo água, sem com­putar os custos de semente, adubo, ma­quinário, mão-de-obra, diesel, manutenção, administrativa, juros, defensivos etc. Assim, na vi­da real, a cobrança do custo da transposição a usuários e usuárias finais inviabilizará a atividade agrícola, atividade que justificaria o projeto por propiciar a redução da miséria e faria a inserção da área na economia competitiva, criando empregos e melhorando a renda do(a) trabalhador(a). Críticos desta análise poderão ques­ tionar afirmando que a cultura do milho é uma atividade de baixa rentabilidade e que fruticultura e outras culturas poderiam proporcionar maior rendimento por área e, assim, serem mais viáveis mes­mo com o custo de irrigação. Realmente, a participação do custo da água sobre o rendimento da cultura pode ser melhor na fruticultura, mas afirmamos, sem precisar fazer conta, que o custo não será inexpressivo e será sempre uma fonte de risco e perda de competitividade da atividade.

Subsídio da sociedade Mas o que significa a não-cobrança dos custos ao(à) usuário(a) final? Significa subsídio que o restante da sociedade pagará por meio de impostos para cobrir o déficit público. No caso dessa obra, se a população economicamente

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ativa for de 60 milhões de brasileiros e brasileiras, cada um(a) terá de recolher US$ 2,70 anuais, apenas para custear esse projeto de irrigação, pelos próximos 30 anos. Quem se beneficiará, primeiramente, serão proprietários de terra: calculamos que, se 60% da água transportada for utilizada em irrigação (653 milhões m 3) e que sejam feitos dois ciclos culturais na mesma área ao ano, esse projeto proporcionaria uma expansão da área agrícola de 65 mil ha. Proprietários dessas terras ganharão a valorização imobiliária, pois suas terras passarão a ser “competitivas” com as melhores terras do país, proporcionando um ganho de US$ 1 mil a US$ 5 mil /ha. Além disso, políticos da região ganharão mais cargos políticos para preencher, e as construtoras ganharão grandes obras para executar. Não cabe discutir a lisura dos ganhos desses agentes ou das possibilidades de ganhos fraudulentos nas obras, pois muitos deles são passivos na história, tais como fazendeiros que serão subsidiados e construtoras que terão o ganho com essa ou outra obra mais “eficiente”. O que é pertinente é a responsabilidade de se decidir por uma obra que perpetua o assistencialismo, cria e pereniza uma atividade deficitária para ser custeada pela sociedade brasileira como um todo. A decisão de fazer uma obra inviável economicamente é o mesmo que construir uma pirâmide, acreditar que contribuintes po-

dem bancar qualquer capricho de governantes. O erro, nesse caso, é gerado pela falta de consulta ao seu corpo técnico, seguindo uma orientação com isenção política e financeira. A eficiência do investimento, proporcionando retorno positivo para a sociedade, deve ser o parâmetro que norteie os investimentos públicos. Deve-se procurar identificar um ganho de longo prazo maior que o custo de desenvolvimento. Podem-se enumerar diversos projetos, das mais diversas naturezas, que poderiam melhorar essa mesma região, com custo menor e retorno que proporcione a independência da região das tetas federais, tais como: investimento em turismo temático do interior nordestino, pesquisa agropecuária para desenvolver técnicas ou culturas próprias para o clima, melhoria da infra-estrutura de transporte para baratear o custo de insumos e de escoamento da produção das atuais áreas irrigadas ribeirinhas do São Francisco. A obra de transposição nesse aspecto está condenada ao fracasso: ou se tornará um grande elefante branco ou se tornará um mecanismo de transferência de riqueza que beneficiará poucas pessoas.

Lógica do absurdo Os projetos de irrigação viáveis são aqueles que, por atribuição, conseguem transportar água pelo menor custo. Os parâmetros que condicionam são distâncias e alturas de recalque. Áreas próximas ao rio e de topografia plana são as áreas ideais em termos de custo/ benefício, constituindo a já parcialmente explorada margem ribeirinha do São Francisco. Existem vários pequenos projetos (em relação à transposição) nas margens do São Francisco paralisados por falta de recursos, mas que reúnem ótimas condições para projetos agrícolas competitivos que, somados, suplantam em área irrigável o projeto de transposição, gastando-se uma fração do investimento. O excedente de recursos poderia ser utilizado na melhoria das demais infra-estruturas de transporte e escoamento da safra com fins de aumentar a competitividade dos produtos dessa região. Outro aspecto estranho do projeto é o custo do hectare irrigado criado, encontrado quando

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dividimos o investimento de R$ 4,5 bilhões por 65 mil ha, que chega a um custo de R$ 69.230/ ha (25.641 US$/ha), custo superior às melhores terras do Brasil e equiparando-se ao custo de terras agrícolas nos Estados Unidos. Não ficaria mais barato comprar terras no Paraguai ou no Centro-Oeste, transportar os nordestinos que seriam beneficiados pela irrigação para lá constituírem suas atividades agrícolas de subsistência e transformar parte do polígono das secas em um imenso parque nacional? Se a eficiência do uso da água transposta for de 100%, a área irrigável será de 130 mil ha, passando a relação investimento por hectare a valores de R$ 34.615 ou US$ 12.820, valores ainda muito expressivos e maior que muitas terras agricultáveis do sul do Brasil.


água não é mercadoria, é um direito

Água não é mercadoria, é um direito Carmen Silvia Maria da Silva Educadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, organização que atualmente assume a secretaria executiva da Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB). De dentro do casebre, sob a luz do candeeiro, assim que o rio baixa, vê-se a torre da igreja apontando no espelho d’água, ela é tudo que restou do povoado, aqui onde esta comunidade viveu de plantar, onde aquela mulher aprendeu a dançar o coco e aquele menino enterrou o avô... Essa desolação que toma conta do espírito das pessoas dos povoados cobertos pelas águas, em função das barragens que sustentam o setor elétrico brasileiro, também poderá ser sentida por quem vive nas terras por onde poderão passar os canais da transposição do Rio São Francisco, que o governo insiste em chamar de “integração de bacias”. E o que é pior: o projeto não foi montado nem para fins energéticos, nem para viabilizar água encanada para as casas do povo do semi-árido nordestino. As mulheres continuarão a carregar as latas d’água na cabeça para abastecer precariamente as suas casas, os políticos tradicionais continuarão a fazer circular os carros-pipas, a produção da agricultura familiar continuará definhando, e as crianças do Nordeste seguirão subnutridas e sem perspectivas. As mulheres não querem esse futuro. “Não queremos a transposição do Rio São Francisco! Queremos, sim, que o governo fortaleça a pequena agricultura, que invista nas alternativas de convivência com o semi-árido e que escute os movimentos sociais do Nordeste sobre os projetos com os quais diz querer enfrentar os problemas da região!” Esse foi o grito que ecoou no Fórum Social Nordestino (FSNE), em novembro de 2004, e que se manteve na reunião regional da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), que congregou todos os fóruns de mulheres dos estados do Nordeste, em abril de 2005. Mas, enfim, por que a transposição do Rio São Francisco interessa tanto ao movimento de mulheres? Em primeiro lugar, porque as mulheres – e em especial as mulheres negras – são a parte mais pobre da população brasileira. Portanto, todos os projetos de desenvolvimento que se proclamam como mecanismo de ‘combate à pobreza’ ou para sanear graves problemas sociais, que atingem as pessoas submetidas a essa abissal desigualdade econômica, interessam ao movimento de mulheres. O feminismo, em sua

luta contínua pelos direitos das mulheres, há muito denunciou que a estrutura econômica à qual estamos submetidos(as) inviabiliza a autonomia das mulheres. A situação de pobreza mantém a falta de acesso a bens e serviços, a quase total ausência de renda, o confinamento às suas casas e a trabalhos precários em áreas próximas e inviabiliza até o inalienável direito de ir e vir, de ter contato com a vida para além da esfera privada. É também o movimento feminista que traz à tona a problematização sobre o trabalho doméstico. Infelizmente, às mulheres ainda é imputado todo o trabalho doméstico, os cuidados com as crianças e com aquelas pessoas que não têm condições de cuidarem de si mesmas, mesmo que essas mulheres realizem uma extensa jornada de trabalho fora da residência. Isso também ocorre na zona rural, com a agravante de que, além do trabalho doméstico e de sua participação no roçado, as mulheres assumem as tarefas do entorno da casa, como cuidados e alimentação de pequenos animais, hortas ou canteiros, beneficiamento de produtos, entre outros. 1 E todos esses trabalhos requerem água, bem escasso que, no semi-árido nordestino, não chega às suas casas por meio de adutoras e canos, mesmo que elas morem próximo de um açude. Quando a família não tem um lombo de animal para transportar água, na maioria das vezes são as mulheres – e também as crianças – que fazem o serviço, andando longas distâncias, desde o açude mais próximo até os seus quintais, transportando pesadas latas d’água ou trouxas de roupas.

Legado imperial O governo diz que a transposição do Rio

1 “Mulher e trabalho na agricultura familiar”, de Ana Paula Portella, Carmen Silvia Maria da Silva e Simone Ferreira. Recife: SOS Corpo, 2004.

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2 Estados doadores: Minas Gerais, Bahia, Alagoas e Sergipe. Estados receptores: Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Pernambuco é ao mesmo tempo doador e receptor. 3 “Geografia da sede e hidronegócio”, artigo de Roberto Malvezzi, Gogó, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicado no site da Inter-redes. 4 Divulgado no boletim Ações (ano 4, n. 21, jan./mar. 2005), do Centro de Cultura Luís Freire.

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São Francisco tem como objetivo enfrentar o problema da seca no Nordeste, favorecer a produção agrícola e mudar o cotidiano de sofrimento das famílias do semi-árido. Com isso, a elite nordestina se dividiu entre “estados doadores” e “estados receptores”, para serem respectivamente contra e a favor da transposição. 2 A Organização das Nações Unidas (ONU) considera que há es­tresse de água quan­do a oferta é abaixo de 1.000 m3 anuais por pessoa. Pernambuco, o estado mais carente, tem uma disponibilidade média de 1.270 m3 anuais por pessoa. Tem, portanto, 270 m 3 acima do mínimo. Como afirma Malvezzi,3 “média é uma abstração, não significa o a c e s s o efetivo das populações à água, mas significa que a disponibilidade de água existe”. Os movimentos sociais não funcionam na mesma lógica do governo. Eles vêem o Nordeste como um todo e como região inserida dentro de um projeto de nação, por isso questionam o modelo de desenvolvimento que está em curso e estranham profundamente que seja exatamente Lula, que emergiu de um vínculo estreito com a luta social, o presidente da República a retomar a idéia que foi um legado do Império. O povo Truká, comunidade indígena que tem suas terras próximas a um dos trechos fundamentais para o projeto da transposição, acredita que a retirada das águas do rio pode vulnerabilizar ainda mais o seu território e, com isso, a sua cultura e a saúde de toda a população. Esse foi o

tom da fala de Pretinha Truká durante a videoconferência sobre a controvérsia da transposição do Rio São Francisco, promovida pela coordenação do FSNE, no dia 2 de maio, em todas as capitais nordestinas. Reu­ nidos(as) no 1º Encontro dos Povos Indígenas Ribeirinhos da Bacia do São Francisco, em março, na Bahia, indígenas de Sergipe, Alagoas, Bahia e Pernambuco manifestaram-se contra a transposição, pois acreditam que o megaprojeto, assim como outros semelhantes, só trazem desmatamento, desvio de águas para irrigação de grandes fazendas e o despejo de dejetos, esgotos e agrotóxicos. 4 O movimento ambientalista e as organizações da sociedade civil que trabalham com agroecologia informam que o Rio São Francisco não tem condições de fornecer água até que seja completamente revitalizado, tenha suas matas ciliares recompostas e as cidades ribeirinhas tenham esgotamento sanitário. Hoje, muitas das populações do entorno do Rio São Francisco já não se beneficiam de suas águas, em parte porque não há tratamento e distribuição; em parte porque as condições de assoreamento já não permitem navegação e a pesca fica cada vez mais difícil. Significa que a revitalização do Rio São Francisco é indispensável e deve ser realizada a partir de um projeto construído com participação popular, o que poderá gerar empregos e impulsionar a economia das pequenas cidades da região. Em encontro nacional, em novembro de 2004, a Articulação do Semi-Árido (ASA) reuniu representantes de 11 estados, que também manifestaram sua posição contrária à transposição. A ASA chama a atenção para o fato de que a população do semi-árido é dispersa no território e que as experiências demonstram que é possível alcançar a descentralização do acesso à água. Um exemplo é a realização de pequenas obras de baixo custo para captação e armazenamento, construídas a partir da participação ativa das comunidades e com uso de tecnologias apropriadas. As experiências a que a ASA se refere são as cisternas de placa, barragens subterrâneas, bombas d’água manuais, entre outras. Pelos dados do projeto de transposição, as águas do São Francisco só atingirão 5% da população do semi-árido, e, além disso, os cem municípios mais pobres, isto é, com menor índice de desenvolvimento humano


água não é mercadoria, é um direito

(IDH), não constam entre os beneficiados. A população brasileira ainda lembra que, no primeiro semestre de 2004, choveu bastante no Nordeste, mas para onde foram essas águas? As mulheres que vão aos açudes buscar água ou lavar roupas sabem exatamente como funciona o sistema de armazenamento na região. Grande número de açudes vazou porque a qualidade da obra não comporta a quantidade de água com a qual o Nordeste foi brindado nesse ano. Outros, que se mantiveram firmes nas bordas, deixaram a água evaporar porque não possuem nenhum sistema de proteção sob o sol escaldante. Problemas semelhantes já foram resolvidos com tecnologia simples em várias partes do mundo que enfrentam condições semelhantes.

Interesses camuflados O projeto visa captar água do São Francisco e deslocá-la para os rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN), Piranhas-Açu (PB e RN), Moxotó e Brígida (PE), por meio da construção de dois canais: o Leste, que levará água para Pernambuco e Paraíba, e o Norte, que chegará ao Ceará, Rio Grande do Norte e também Paraíba. Segundo o Fórum de Mulheres do Ceará, “para a sociedade cearense, passa-se a idéia de que esta será a grande beneficiada, principalmente as populações que vivem no sertão, mas não se diz que as águas do São Francisco serão transportadas para o Rio Jaguaribe para alimentar o Canal do Trabalhador (já privatizado) e o Açude Castanhão, que servirá aos interesses das megaempresas que se instalarão no Porto de Pecém”. 5 O próprio governo afirma que levará água aos grandes centros urbanos do Ceará e Rio Grande do Norte, o que é realmente “chover no molhado”, já que nesses estados estão as duas maiores represas do Nordeste, Castanhão (CE) e Armando Ribeiro Gonçalves (RN). A AMB considera que a transposição do Rio São Francisco faz parte de um projeto para o país, um projeto que não rompe com o lugar estabelecido para o Brasil pelos países centrais: o de exportador de produtos agrícolas. Em função do equilíbrio de contas, o país investe muito mais na agricultura de exportação do que na produção para consumo interno, que é garantida pela agricultura familiar. A transposição do rio visa também levar água para beneficiar o

agronegócio, para alavancar a produção da fruticultura irrigada, a monocultura da soja, entre outras, além de favorecer os novos pólos industriais, como o vinculado ao Porto de Pecém e à crescente produção de camarões nos estados do Ceará e Rio Grande do Norte, o que tem se mostrado como uma atividade altamente predatória para o meio ambiente. Essas perspectivas econômicas, aliadas ao turismo de litoral (baseado em grandes empreendimentos) e a retomada da monocultura de cana-de-açúcar, fazem parte do que os governos atuais entendem como sendo uma proposta de desenvolvimento para o Nordeste. Especialistas em política energética dizem que o projeto de transposição não traz também nenhum benefício para o enfrentamento da crise no setor, o que, de an­temão, já compromete mesmo a perspectiva governamental de desenvolvimento. O pesquisador João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), lembrou, na videoconferência promovida pelo FSNE, a crise de fornecimento de energia de 2001, provocada pela estiagem, e a solução apresentada pelos setores governamentais, as termelétricas, que são quatro ou cinco vezes mais caras que as hidrelétricas. Cálculos do próprio governo federal dão conta de que só poderão ser captados 25 m3 de água, e que o restante a ser atingido só será possível quando a Barragem de Sobradinho estiver vertendo, o que infelizmente não ocorre todo ano. O governo calcula

5 Manifesto contra a transposição das águas do Rio São Francisco. Fórum de Mulheres Cearenses, maio de 2005.

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6 Dados fornecidos por Egídio Serpa, assessor especial de imprensa do Ministério da Integração Nacional, em entrevista concedida ao boletim Ações (ano 4, n. 21, jan./mar. 2005). 7 Palavras de João Suassuna, no boletim Ações, (ano 4, n. 21, jan./mar. 2005).

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também que a água deve chegar aos estados a R$ 0,11.6 Hoje, a água chega no lote de um irrigante ao custo de R$ 0,023 o metro cúbico, cerca de quatro vezes menos. Diante dessa situação, as políticas de incentivos e subsídios à agricultura irrigada adotadas pelo governo federal podem transferir os custos da água para as áreas urbanas, ou seja, o aumento do custo da água pode atingir sobremaneira as populações pobres e, em especial, as mulheres – que, além de serem o contingente mais pobre, ainda são responsabilizadas por gerir a escassez de água nas residências. Ao retomar o projeto de transposição do Rio São Francisco, o governo brasileiro agudizou uma das principais polêmicas nacionais, mas essa situação nos possibilita colocar na agenda política o debate sobre a gestão das águas e o caráter do projeto de desenvolvimento para o país. A transposição é polêmica e realmente divide até os próprios movimentos sociais, mas a revitalização do Velho Chico é consenso, unifica todos os movimentos e até o governo. Por que, então, o debate é todo sobre a transposição, ou integração de bacias, e não sobre os procedimentos e recursos para revitalizar o rio? A dotação orçamentária mostra a diferença entre a transposição e a revitalização na agenda de prioridades governamentais: estão sendo destinados cerca de R$ 100 milhões para revitalização e R$ 1 bilhão para a transposição em 2005. 7

Questão de seca ou de cerca?

Como se pode concluir, o problema do Nordeste não é apenas de falta de água, e sim do risco, cada vez maior, de privatização do uso e da dificuldade de acesso à água de qualidade. O movimento de mulheres considera que a água é um direito humano fundamental, sem o qual não podemos ter a garantia da vida, da saúde e da produção de alimentos. Entretanto, parece que o governo federal está prenhe das idéias da política tradicional brasileira, que foram chamadas de “indústria da seca”, ou seja, a manutenção da velha po­l ítica de grandes obras hídricas que favorecem empreiteiras e grandes latifundiários. Tratar a água como moeda de barganha política é um risco não apenas para a vida das populações do semi-árido nordestino, mas também para o próprio sentido da construção da democracia e da justiça social no nosso país. Neste momento em que estão em curso as negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC), em especial as discussões sobre agricultura e as possibilidades de abertura do setor de serviços, causa-nos profunda preocupação que o governo possa pôr a privatização do tratamento e distribuição de águas no território nacional, a serviço do capital estrangeiro, na mesa de negociações. A privatização, na verdade, já está em curso, porém perder o controle nacional sobre as águas pode vulnerabilizar sobremaneira o país na disputa política internacional, além de aprofundar ainda mais as precárias condições de vida das pessoas que não tenham renda suficiente para garantir o acesso. A água é um bem escasso no mundo. Todos os estrategistas dos países ricos sabem disso e, por esse motivo, têm feito manobras políticas e militares para poderem usufruir de territórios com aqüíferos. Se a água for compreendida mundialmente como um bem comum, ao qual homens e mulheres do mundo devem ter direito, a forma de desenvolver a política de águas será uma; já se for entendida como uma mercadoria, a ser controlada pelo mercado, no futuro a humanidade verá as pessoas no semi-árido nordestino e também nas periferias das grandes cidades morrendo à mingua, muito mais do que nas épocas de estiagem no sertão. Nos debates ocorridos entre governo e sociedade civil, como a recente videocon-


água não é mercadoria, é um direito

ferência do FSNE, a posição oficial tem sido a de desdenhar das preocupações apontadas pelos movimentos sociais, colocar a questão no âmbito do debate técnico e argumentar no sentido de que as críticas estariam vindo de quem nunca passou sede, uma vez que o projeto visa resolver o problema da água no semi-árido. Essa forma de o governo conduzir a discussão, por um lado, parece buscar desqualificar a crítica elaborada por diversas pessoas especializadas e também de várias experiências de convivência com o semi-árido que têm sido estimuladas pelas organizações. Por outro lado, tenta tirar da área da política – e, portanto, do espaço público de negociação de interesses – um projeto bastante controverso, não enfrenta o problema a que se propõe e aponta possibilidades de inúmeros impactos sociais negativos sobre vários setores da população. Como disse Roberto Malvezzi,

tentável do Nordeste é preciso democratizar a gestão da política de recursos hí­dri­cos, dentro da com­preensão de que a água é um direito humano, e não mercadoria. Para mudar o cotidiano das pessoas que vivem no semi-árido, é necessário democratizar o acesso à água, o que não será feito com os canais de transposição do São Francisco, que não chegam às populações dispersas nos territórios, mas sim com pequenas obras próximas às comunidades como as cisternas, ao lado das casas, que podem possibilitar um trabalho planejado e distribuído entre as pessoas adultas da família para uso e gestão domiciliar da água.

é preciso politizar a sede como Josué de Castro politizou a fome e Paulo Freire a educação. Sem a politização da sede é impossível entender uma obra como a transposição do Rio São Francisco com todos os interesses subjacentes à sua insana implantação. A crise planetária da água, a sua privatização, a sua mercantilização, seu uso intenso na irrigação, indústria e carcinicultura também estão incluídas na busca alucinante por seu controle. 8 O projeto de transposição do Rio São Francisco e o discurso sobre ele, oriundo do governo, reforça um imaginário sobre o Nordeste calcado na idéia de seca e pobreza, o que o mantém como uma região a ser “ajudada” por grandes obras negociadas em Brasília. O debate que os movimentos sociais vêm construindo segue outra direção. É muito cara aos trabalhadores e às trabalhadoras rurais a idéia de que “o problema não é a seca, é a cerca”, e que a solução para isso é um processo de reforma agrária capaz de garantir terra, condições de produção e de comercialização de alimentos de qualidade. Os movimentos já apontaram também uma outra perspectiva para o problema da água com as inúmeras experiências de convivência com o semi-árido que têm enfrentado o problema do consumo humano e podem aportar con­dições para a produção agrícola. Para promover o desenvolvimento sus-

8 “Geografia da sede e hidronegócio”, artigo de Roberto Malvezzi, Gogó, disponível no site Inter-Redes.

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Uma janela

histórica está aberta

Há uma janela histórica aberta para o povo brasileiro elaborar estratégias de desenvolvimento nacional e democrático que resgatem dívidas de centenas de anos com diversos setores da sociedade. O momento é especial: estão dadas as condições, interna e externamente ao Brasil, para que essas estratégias sejam elaboradas sob os valores que expressam o tremendo avanço político que a sociedade brasileira conseguiu nos últimos 40 anos. Entre esses valores estão a eqüidade de gênero e de etnia, e a justiça em suas vertentes social e ambiental. Ter claro quais são alguns desses valores sociais já significa um passo importante na definição de prioridades das estratégias, que devem atender a carências históricas e, por isso mesmo, urgentes da maioria do povo brasileiro. A opção pelo pagamento das dívidas históricas também confere a essa ação alguma qualidade perto de um projeto ou de uma estratégia.

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Ser democrático e republicano na aplicação dos novos valores é um bom primeiro passo da caminhada. Ela, entretanto, só irá se materializar à medida que forem sendo colocadas em prática políticas públicas para a distribuição do saber, da renda, do conhecimento, do acesso à justiça e, também, de uma relação em novos patamares com os recursos naturais do país, em especial com os recursos naturais cujo acesso e uso expressam mais fortemente os tipos das estratégias que se pretenda realizar. E, mais particularmente, no tocante às fontes de geração de energia. Elas são capazes de sintetizar os paradigmas escolhidos para se realizar o desenvolvimento. A conjuntura internacional nos favorece. Desde 16 de fevereiro de 2005, começou a vigorar o Protocolo de Quioto, o acordo internacional para diminuir as emissões dos gases que causam as mudanças do clima no planeta. Sem se propor a resolver por inteiro o problema das emissões, o Protocolo, ao menos, cria um ambiente favorável para se pensarem formas de superar os paradigmas tecnológicos, políticos e econômicos que orientaram as opções, vigentes até aqui, por modelos de desenvolvimento com base no uso intensivo de combustíveis fósseis (grandes emissores daqueles gases) em modelos de geração de energia extremamente desperdiçadores. Neste contexto, além da oportunidade, temos também uma grande responsabilidade. Foi o nosso país quem mais contribuiu na elaboração do principal instrumento de implementação do Protocolo, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Ao definir sua política energética, o Brasil precisa ter um olho nas opções tecnológicas que adotará, para evitar as emissões causadas pelos combustíveis fósseis e, também, para fazer com que essa política seja consoante com uma estratégia de desenvolvimento econômico dirigida ao pagamento das dívidas históricas. Também pode se olhar a importância do

momento histórico em que vivemos sob o ponto de vista da conjuntura interna. Mais de 30 anos após o Brasil ter tomado a decisão política de tornar viável econômica e tecnologicamente o aproveitamento do álcool combustível, naquele instante histórico em um contexto de ditadura, sem que a sociedade fosse consultada, outra vez o governo federal resolve colocar a biomassa no centro de um projeto energético. Deveria, portanto, aproveitar a oportunidade para fazê-lo no bojo de uma estratégia de desenvolvimento democrático, nacional e renovável. Dessa forma, ele contribuiria para estabelecer uma relação de aproveitamento dos recursos naturais em níveis renováveis – distantes, portanto, da escala e dos objetivos de mera predação que vigoram no Brasil há 505 anos. É bom estabelecer uma diferença do que aqui é proposto – projetos ou estratégias, como se queira chamar – de desenvolvimento dos potenciais desta quase-nação. Um linguajar semelhante a esse já foi assumido em outros momentos da nossa história por forças reacionárias, ditatoriais até, em sua marcha pela introdução do Brasil no cenário internacional, sob a condição de um desenvolvimento cujas benesses fossem canalizadas quase exclusivamente para uma elite. Não podemos cair na armadilha de efeito retardado que essas forças nos deixaram. Elas se apoderaram desse discurso do projeto e da estratégia de maneira tão forte que muitas pessoas ainda hoje confundem a idéia em si com quem, em determinado momento histórico, se apoderou dela. E erram ao rejeitá-la a priori. O que se propõe é, em primeiro lugar, observar que esse discurso deve ser retomado agora na perspectiva da conclusão de projetos de nação – ela só está ainda apontada, uma vez que não se completou para a maioria do povo. E, em segundo, sugerir a reapropriação dessa necessidade de ter estratégias de desenvolvimento para elaborá-las sob o império dos

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novos valores sociais que criamos e também dos quais somos produto. Como já foi dito, o mundo, e em especial a América Latina, nos proporciona condições para realizar um debate público sobre quais seriam essas estratégias. Em boa medida, o impulso para a eleição de governos comprometidos com plataformas originalmente antineoliberais na Argentina, Brasil, Equador, Peru, Venezuela, Uruguai – e aqui sem entrar no mérito de eventuais apagamentos dessa plataforma eleitoral por parte dos(as) elei­ tos(as) – demonstra a viabilidade de repatriar para dentro das fronteiras desses paí­­ses a capacidade de definição de prioridades nacionais, al­g o inviável sob o neo­­liberalismo triun­­ fante nas décadas 1980 e 1990. Quioto igual­ mente fortificou o caldo de cultura em que se devem valorizar opções menos impactantes de fontes geradoras de energia e que revelem novos paradigmas civilizatórios diferentes daqueles que orientam a civilização do petróleo – com todas as suas conseqüências nos campos militar, diplomático, tecno­ ló­g ico, econômico e ambiental. Nesse contexto, o Brasil surge com vantagens comparativas, por exemplo, o de possuir amplo território agricultável, o que lhe confere possibilidade de aproveitar a enorme insolação que recebe (é uma das cinco maiores do planeta) para transformá-la em biomassa, fonte de energia incomparavelmente menos poluidora do que a da queima do carbono fóssil. Em associação, deve-se pensar em uma ocupação do território para a produção dessa biomassa sob a perspectiva de um novo desenvolvimento rural,

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que pense a atividade agrícola de forma mais sistêmica em suas relações com o espaço, os recursos naturais e a economia em suas dimensões locais, regionais, nacionais e globais. A elaboração de um, por assim dizer, projeto energético nacional e democrático afastaria o perigo de dependência tecnológica e econômica. O Brasil ainda serve apenas de mercado – e não de produtor – para manter em atividade industrial mínima a capacidade produtora de tecnologias “limpas” em países frios do Atlântico Norte. Elas continuam pesquisando – e investindo rios de dinheiro público e privado – na tentativa de barateamento de equipamentos para as fontes solar e eólica, que por aqui poderiam ser amplamente exploradas. Essas fontes já estão próximas da viabilidade econômica para mercados de massa, mas ainda não alcançaram a rentabilidade que a grande indústria de energia exige. Por enquanto. Por essa razão, países doadores de caixas-pretas tecnológicas incentivam o fornecimento de pacotes a países em desenvolvimento, como o Brasil, com doações, aqui e ali, de sistemas energéticos para o atendimento a comunidades isoladas dos sistemas de distribuição de energia implantados até hoje no país. Alternativas como o programa brasileiro do biodiesel são um bom avanço na direção contrária, mas esse programa talvez ainda não tenha sido observado sob a lógica mais sistêmica, de uma nova ocupação territorial para o desenvolvimento agrícola do país. Há entraves legais, institucionais, mercadológicos e políticos que precisam ser removidos para fazer avançar a adoção das fontes de energia renovável, que não apenas geram conhecimento tecnológico novo, mas também representam um passo do país à frente na elaboração de novos paradigmas, algo que só pode ser feito em um país como o Brasil, e não nos enriquecidos e relativamente frios países do Atlântico Norte, que recebem proporcionalmente muito menos insolação sobre seus territórios. Também o aproveitamento das condições favoráveis para a geração de energia a partir do vento, em especial no litoral do Nordeste, indicam potencialidades extraordinárias. Estudos da Universidade Federal de Pernambuco mostram que os ventos nordestinos estão entre os de melhor qualidade e quantidade no mundo e que estão em maior potencial justamente naquelas épocas em que o Rio São Francisco, cujas águas movimentam as hidrelétricas que energizam quase toda a


Uma janela histórica está aberta

região, tem suas menores baixas de volume, em um sistema complementar. O desenvolvimento de modernos sistemas eólicos na região, descentralizando o crescimento econômico e a geração de capacidade científica local, aumentaria o nível de utilização de empresas instaladas na região de São José dos Campos (SP), nascidas em torno da Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A. (Embraer). Afinal, a geração eólica exige o aproveitamento de muita tecnologia aeronáutica, campo em que o Brasil está entre os cinco ou seis países que dominam o ciclo completo desse tipo de conhecimento. Em paralelo a uma política pública que incentive o atingimento da viabilidade econômica dessas fontes de energia, temos ainda dois aspectos importantes. O primeiro é a distribuição do desenvolvimento para o Nordeste, uma região que ainda carece crescer para fugir à caricaturização de região atrasada. Porém, exercer essa espécie de vocação natural e tirar da biomassa e do aproveitamento eólico a energia de que o país necessita importa aproveitar as vantagens proporcionadas pelo Protocolo de Quioto. A adoção das políticas públicas que viabilizassem as opções descritas anteriormente dá ao Brasil e ao seu povo a possibilidade de se alavancar economicamente. Cada tonelada de carbono que se evita jogar na atmosfera, por meio da adoção de fontes não-poluentes, transforma-se em um crédito cujo preço pode ser negociado em mercados internacionais. Não se sabe quanto esse mercado vai gerar, mas é certo que um grande emissor de títulos de não-emissão de carbono, como o Brasil, pode se beneficiar da condição de exportador desse papel. Mais uma vez, evito entrar na discussão que daí advém – a de que os compradores dos créditos estariam adquirindo o direito de poluir. Mas insisto em chamar a atenção para a urgência de se desenvolverem maneiras de a maioria da população se beneficiar dessas condições naturais do nosso país. O desenvolvimento em larguíssima escala de tecnologias associadas a essas e outras opções hoje chamadas pejorativamente de “alternativas” abre a chance de o Brasil pagar dívidas com aqueles extratos do seu povo que foram colocados para fora da festa do desenvolvimento. E que, agora, no início de um século novo, têm a chance de entrar no baile da história pela porta da frente, de mãos dadas com políticas distributivistas – se assim for da coragem dos(as) governantes para tomar as

medidas necessárias. É importante também aproveitar a janela histórica que se abriu para descartar algumas opções energéticas que recentemente o governo brasileiro pensou em adotar. Entre elas, que não foram definitivamente descartadas, estão as usinas termelétricas movidas a gás natural. As termelétricas a gás natural, por exemplo, são inadequadas para um novo desenvolvimento democrático da nação por vários motivos. Elas perpetuam o sistema de geração de grandes blocos de energia para grandes concentrações humanas e econômicas, dificultando o enraizamento do desenvolvimento econômico e social nas regiões mais distantes do centro do sistema. Contribuem, dessa maneira, para concentrar renda, o que não favorece regimes de justiça étnica e de gênero, uma vez que reproduzem os ultrapassados modelos de desenvolvimento que herdamos. Como uma espécie de estudo de caso, tem-se que a alternativa das usinas termelétricas não se justifica para o Brasil dos pontos de vista ambiental, econômico-financeiro, energético, nem da segurança energética, porque: 1. elas emitem muito menos gases com carbono, nitrogênio e outros elementos químicos. Mas elas os emitem, e isso nos tiraria aquela vantagem de o Brasil ser um dos grandes países que proporcionalmente emitem poucos gases por habitante. Essa característica nos facilita acesso às linhas financeiras internacionais que serão criadas no âmbito do Protocolo de Quioto. Termelétricas também gastam quantidades

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*Carlos Tautz Jornalista, pesquisador do Ibase

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enormes de água, que é utilizada para refrigerar o sistema das usinas. Parte dessa água evapora, outra parte retorna ao meio ambiente alguns graus acima de quando é captada. Quase 50 termelétricas foram planejadas para serem instaladas perto de grandes centros urbanos onde entrariam na disputa pela água destinada ao consumo humano, à agricultura e a outros tipos de uso; 2. no campo econômico-financeiro, a dificuldade maior reside no uso do dólar como moeda para compra dos equipamentos (que não são fabricados no Brasil) e pagamento do combustível, em sua maioria importado. Gastos externos em dólares apenas beneficiam os atravessadores de financiamentos internacionais. O modelo de contrato do gás natural take or pay (pegue ou pague), como o empregado no Gasoduto Bolívia–Brasil, incorpora variantes como a inflação dos Estados Unidos e o preço do barril de petróleo em âmbito internacional. Dispara na primeira crise internacional e termina por aumentar a tarifa para consumidores e consumidoras finais; 3. no campo da segurança energética, é uma opção inadequada porque o combustível é importado. Por ora, a Bolívia é o maior fornecedor, principalmente para indústrias localizadas em São Paulo. Ocorre que, no país vizinho, há ampla (e justa, diga-se de passagem) rejeição aos contratos firmados pelos governos nacionais e empresas multinacionais, como se configura com a Petrobras Bolívia, que lá desempenha papel igual ao das demais multinacionais petrolíferas. Angaria

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a antipatia do povo boliviano, o que pode resultar no corte repentino do fornecimento. Outra opção energética que se deve rejeitar é a nuclear. Mesmo após mais de 30 anos do Acordo Nuclear Brasil–Alemanha, que viabilizou a construção das usinas nucleares Angra 1 e 2, instaladas em Angra dos Reis (RJ), esse debate propositadamente ainda não foi tornado público porque carrega a marca do pecado original. Ele atenderia, mesmo três décadas após a sua concepção, de acordo com aqueles(as) que pretendem mantê-lo secreto, a “razões estratégicas” não reveladas. Ele foi imaginado em um contexto de ditadura pelos militares brasileiros que sonhavam em dominar localmente o ciclo de enriquecimento de urânio para fabricar a bomba atômica. Pois, em pleno século XXI, essa lógica persiste, eclipsando os demais usos pacíficos da tecnologia atômica na pesquisa ambiental aplicada aos recursos hídricos, na medicina e na agricultura. Agora mesmo o governo – especificamente a Casa Civil da Presidência da República – estimula o reaparecimento do tema da construção da terceira usina, Angra 3, que acabou de ser rejeitada, em abril, no âmbito do Conselho Nacional de Política Energética, pelos Ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente. O Ministério de Ciência e Tecnologia, tradicionalmente mais sensível aos apelos dos centros militares de pesquisa, apoiou a construção, desconsiderando o fato de que Angra 3 igualmente mantém a lógica da produção de grandes blocos de energia para suprir um modelo de consumo energético que tolera amplas faixas de desperdício. Além disso, como lembra o físico e ex-reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) José Goldemberg, que é secretário estadual de Meio Ambiente de São Paulo, há toda sorte de incertezas sobre o que fazer com o “lixo nuclear”, para o qual não existem repositórios adequados em nenhum país. Esses são indicativos fortes da existência de uma janela de oportunidade para o Brasil se concluir como nação. Indicativos de que chegou a hora de recolocarmos – como algumas pessoas já fizeram no passado – em debate público as estratégias que queremos para alcançar esse objetivo.


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Indicadores Claudia Pato*

O interesse por estudos sobre a temática ambiental é relativamente recente e não é objeto exclusivo de uma área do conhecimento. Ao contrário, constitui-se num campo multi, inter e transdisciplinar que desafia pesquisadores e pesquisadoras à compreensão de sua complexidade a partir de um enfoque múltiplo. Na Psicologia, os estudos sobre as relações entre o ser humano e o meio ambiente vêm aumentando, especialmente nas últimas décadas. Neste texto, pretendo trazer contribuições da psicologia ambiental para enriquecer as discussões acerca dessa temática. Os problemas ambientais têm sido objeto de preocupação e de investigação, transformando a questão ambiental num foco crescente de interesse. Desse modo, a preocupação com a degradação ambiental se converteu num problema central para quem investiga essa temática. Embora degradação ambiental não seja um tema desconhecido da civilização ocidental (Ferreira, 2004), estamos expostos diariamente a situações e informações que podem provocar sensação negativa e catastrófica sobre o momento presente. Essa sensação pode concorrer para a percepção de que esses problemas são atuais, exigindo soluções imediatas que visem à continuidade da vida no e do planeta. O crescimento urbano acelerado e desordenado, assim como o modelo de desenvolvi-

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mento econômico vigente, que proporciona a expansão das riquezas e incentiva o consumismo nas pessoas, tem contribuído para um conflito que exacerba a problemática ambiental. A busca da qualidade de vida e a aquisição de bens de consumo muitas vezes se dão à custa do uso insustentável dos recursos naturais. Isso contribui para a degradação ambiental, deteriorando, conseqüentemente, a qualidade de vida nas cidades e ameaçando a sustentação da vida no planeta. Por outro lado, a falta de acesso aos bens de consumo e de serviços de infra-estrutura, característicos dos países mais pobres, também contribuem para um conflito socioambiental e para a degradação ambiental. Mesmo analisando-se a realidade atual sob perspectiva histórica, em que podemos reconhecer a melhoria na qualidade de vida da população mundial como um todo, é inegável que a situação esteja longe da ideal. A distribuição dos recursos é desigual, e sua utilização precisa ser otimizada, muito embora não se corra o risco de esgotar os recursos naturais em curto prazo, segundo afirma Lomborg (2001). A literatura específica sobre o assunto, especialmente na psicologia ambiental, vem apontando o ser humano como o grande responsável pelo agravamento da

situação ambiental e sugerindo que a chave para a compreensão dessa problemática está no comportamento dos seres humanos em relação ao meio ambiente – o comportamento ecológico. Zelezny e Schultz (2000), por exemplo, afirmam que os problemas ambientais são indiscutivelmente questões sociais, causados pelo comportamento humano, e que sua resolução exigirá mudança no comportamento em grande escala, envolvendo mudanças no comportamento individual. Oskamp (2000) compartilha desse pensamento, reforçando o argumento de que os problemas ambientais poderiam ser potencialmente revertidos pelo comportamento humano. Esse autor entende o comportamento humano não só como aquele que é emitido por pessoas individualmente, mas também como os que são manifestados por grupos, organizações e nações. A problemática ambiental é complexa e envolve aspectos sociais, econômicos, políticos, entre outros. Compreender essa complexidade é fundamental para que se possam identificar os fatores que influenciam as diferentes manifestações do comportamento em relação ao meio ambiente.

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indicadores

Consciência e exploração Apesar do interesse internacional crescente por estudos dessa natureza, existem muitos aspectos a serem investigados. Um desses aspectos refere-se à incongruência entre o interesse geral cada vez maior por questões socioambientais e pela consciência ambiental, de um lado, e os comportamentos claramente prejudiciais ao meio ambiente e a exploração indiscriminada dos recursos naturais, por outro lado. Além disso, pesquisas teóricas e empíricas sobre a temática ambiental e participação ativa de grupos ambientalistas e da sociedade civil em campanhas de conscientização da população e de proteção ao meio ambiente não têm l e v a d o à mudança significativa de comportamento da população em geral em favor do meio ambiente. Essa incongruência percebida – entre o despertar da consciência ambiental, o acúmulo de conhecimentos e de informações específicos e técnicos, e a manifestação de comportamentos que degradam o meio ambiente – pode estar relacionada à existência de valores e de crenças distintos que estariam na base desses comportamentos, influenciando-os diferentemente. No Brasil, as questões ambientais ainda parecem receber pouca atenção da sociedade, e os problemas ambientais se agravam a cada dia. As condições socioambientais brasileiras são assustadoras, acentuadas pela pobreza e pela injustiça social, entre outros, muito embora os recursos naturais brasileiros ainda não

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pareçam estar em condições tão alarmantes quanto, por exemplo, as condições enfrentadas por países europeus (Barbosa, 1992; Torres, 1992; Costa, Alonso & Tomioka, 2002). Grande parte da população brasileira, especificamente a das periferias dos grandes centros urbanos, das cidades do interior e do meio rural, ainda carece das condições mais básicas para a sobrevivência, como o saneamento básico e a coleta de lixo. Essa situação sugere um problema ambiental mais grave: a falta de acesso aos recursos. O Brasil possui uma das maiores reservas mundiais de biodiversidade. Entretanto, enfrenta diariamente uma série de agressões que, gradativamente, vêm esgotando seus recursos e ameaçando essa biodiversidade, colocando-a em risco. Alguns exemplos são o desmatamento descontrolado, o assoreamento de rios e nascentes, o crescimento desordenado das cidades, entre outros (Brasil, 1998). Talvez nossa preocupação com o meio ambiente ainda não tenha aflorado ou se manifeste diferentemente dos países considerados mais desenvolvidos e mais ricos, que já enfrentam o esgotamento de seus recursos e, por outro lado, mantêm programas e políticas ambientais para solucioná-los. Aparentemente, poderíamos inferir que há pouca evidência de comportamentos ecológicos na população brasileira. Entretanto, é possível supor que sentimentos, valores e atitudes envolvidos nesse tipo de comportamento possam ocorrer. Um estudo recente do Ministério do Meio Ambiente (MMA) revelou que a consciência ambiental da população brasileira cresceu na última década e que a população tem algum conhecimento sobre as questões ambientais globais. No entanto, as pessoas que participaram desse estudo não foram capazes de citar problemas ambientais locais, quando solicitadas a considerar a sua comunidade de vizinhança (Brasil & Iser, 2001). A compreensão dos aspectos culturais e pessoais relacionados à negligência ambiental e às ações prejudiciais ao meio ambiente, bem como daqueles que promovem a qualidade de vida e contribuem para a recuperação e a manutenção dos recursos naturais renováveis ou não, pode ajudar no esclarecimento dessa problemática. Desse modo, poderá favorecer o estabelecimento de estratégias de intervenção mais eficazes, assim como a elaboração de políticas ambientais mais compatíveis com a realidade


Comportamento ecológico: chave para compreensão e resolução da degradação ambiental?

brasileira. O debate sobre a questão ambiental deverá considerar, portanto, o comportamento ecológico, uma vez que ações humanas, direta ou indiretamente, vêm contribuindo para a degradação ambiental acelerada e provocando conflitos socioambientais que resultam muitas vezes em dilemas de difícil resolução, especialmente a curto prazo.

Fenômeno A negligência das pessoas com relação ao meio ambiente, observável, por exemplo, em uma rápida caminhada pelas ruas de qualquer cidade brasileira, assim como a observação de cidadãos e cidadãs comuns participando de atividades como mutirões para a limpeza de nascentes, rios e lagos, demonstra a necessidade de se conhecer melhor o fenômeno do comportamento ecológico. O que leva essas pessoas a agirem de uma ou de outra maneira? Nesse sentido, tornou-se premente conhecer as características que o comportamento ecológico assume na realidade brasileira e identificar aspectos que o influenciam em nosso contexto socioambiental. Os estudos realizados até o momento têm revelado resultados encorajadores, que serão apresentados de maneira breve a seguir, na tentativa de alimentar esse debate.

Utilizando-se uma amostra de jovens e adultos(as) das cidades do Rio de Janeiro e de Brasília (Tabela 1), foram identificados quatro tipos específicos de comportamento ecológico, chamados de limpeza urbana, economia de água e de energia, ativismo-consumo e reciclagem (Tabela 2). Limpeza urbana descreve comportamentos relacionados à manutenção dos espaços públicos limpos, associados ao tema do lixo urbano. Um exemplo desse tipo de comportamento seria não jogar papel na rua. Economia de água e de energia está associada ao uso racional dos recursos naturais, apresentando comportamentos relacionados ao não-desperdício de água e de energia. Fechar a torneira enquanto escova os dentes seria um exemplo desse tipo de comportamento. Ativismo-consumo representa ações relacionadas à preservação e à conservação do meio ambiente, por meio de participação ativa que envolva outras pessoas ou por meio de decisão de compra e de uso de produtos considerados inofensivos ao meio ambiente. Ser voluntário(a) em um grupo que preserve ativamente o meio ambiente ou evitar a compra de produtos poluentes são exemplos desse tipo de comportamento. E, por fim, reciclagem representa a separação do lixo doméstico conforme o tipo, visando ao reaproveitamento, reutilização ou reciclagem. Separar os diversos tipos de lixo e ter uma lixeira para cada tipo de lixo são exemplos

Tabela 1 Caracterização das amostras Idade Gênero Total

Participantes

Média (M)

Desvio-padrão (DP)

Mulheres %

Homens %

20,5

6,33

61,2

37,1

234

22,75

6,1

54,2

45,4

443

Tabela 2 Média e desvio padrão por fatores de comportamento ecológico e de crenças ambientais

Fatores Limpeza urbana Comportamentos Economia de água e de energia ecológicos* Ativismo-consumo Reciclagem Crenças ambientais**

Crenças ecocêntricas Crenças antropocêntricas

Média (M) 4,92 3,98 2,27 2,16 4,31 2,19

Desvio Padrão (DP) 0,88 0,87 0,76 1,54 0,45 0,63

* Escala de 6 pontos que mede freqüência de comportamento (1 = nunca e 6 = sempre). ** Escala de 5 pontos que avalia grau de concordância (1 = discordo totalmente e 5 = concordo totalmente).

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Figura 1

desse tipo de comportamento. Os dois primeiros tipos de comportamentos – limpeza urbana e economia de água e de energia – são considerados mais simples de serem executados, porque envolvem esforço menor para sua realização e dependem basicamente do próprio indivíduo. Estão presentes no cotidiano da maioria do povo brasileiro e, em particular, da amostra participante da pesquisa. Já os comportamentos de ativismo-consumo e reciclagem envolvem um esforço maior para sua realização, além de nível de informação e de consciência mais elevados. Esses comportamentos dependem de outras pessoas, de estrutura e, muitas vezes, de organizações para que possam se manifestar. Assim, são considerados mais complexos, de maior dificuldade e mais raros de se observar. O surgimento desses comportamentos na amostra estudada sugere um “salto de consciência ambiental”

Representação gráfica das relações entre valores e crenças ambientais com comportamentos ecológicos Valores ecológicos Limpeza urbana Crenças ecocêntricas Ativismo-consumo Valores anti­ ecológicos Economia de água de energia

Crenças antropocêntricas

Relações positivas Relações negativas

nessas pessoas, que vai ao encontro do estudo do MMA (Brasil & Iser, 2001). Em seguida, procurou-se identificar se os valores pessoais e as crenças que as pessoas tinham sobre o meio ambiente exerciam influência sobre cada um desses tipos de comportamento ecológico. Desse estudo participaram jovens e adul­tos(as) de Brasília, e os valores e as crenças influenciaram diferentemente a maneira como as pessoas se comportam em relação ao meio ambiente (Figura 1).

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Crenças e valores As chamadas crenças ambientais foram identificadas como sendo de dois tipos: as ecocêntricas e as antropocêntricas (Tabela 2). As primeiras referem-se à visão sistêmica, na qual o ser humano se percebe como parte integrante da natureza, ao passo que as últimas refletem visão utilitarista e instrumental da natureza. Os resultados indicaram que as pessoas que possuem valores mais ecológicos manifestaram mais comportamentos de “limpeza urbana” e de “ativismo-consumo”; já as que possuem valores considerados como antiecológicos revelaram menos economia de água e de energia. Os valores ecológicos relacionam-se aos interesses mais coletivistas, envolvendo reciprocidade nas relações, como respeito e igualdade. Contribuir para que a cidade se mantenha limpa e participar de atividades em defesa do meio ambiente são ações voltadas para o interesse da coletividade mais ampla, que revelam respeito ao outro e cooperação. Desse modo, esses valores são perfeitamente compatíveis com esses tipos de comportamentos ecológicos, que implicam ação individual visando ao bem-estar da coletividade. Por sua vez, os valores antiecológicos atendem a interesses individuais e egoísticos, como poder e realização pessoal, podendo ser incompatíveis com comportamentos ecológicos. Pessoas que priorizam esses valores dificilmente reduzirão o consumo de água e de energia em seu cotidiano, a menos que possam obter alguma vantagem pessoal. O desperdício desses recursos poderá ser justificado pelo conforto que eles podem proporcionar a essas pessoas. Com relação às crenças ambientais, o comportamento de economia de água e de energia foi influenciado pelos dois tipos de crenças, e o de ativismo-consumo teve influência apenas das ecocêntricas, e o de limpeza urbana apenas das antropocêntricas. Os resultados revelaram que as pessoas que acreditam na exploração da natureza para o benefício do ser humano e na capacidade inesgotável da natureza de se recuperar das inúmeras agressões sofridas pelas intervenções humanas não se preocupavam com a limpeza da cidade onde viviam e não se sentiam responsáveis por ela. Tampouco estavam atentas ou dispostas a evitar desperdício ou consumo exagerado de água e de energia. Por sua vez, as pessoas que se sentem parte de um sistema mais amplo, que integra


Comportamento ecológico: chave para compreensão e resolução da degradação ambiental?

a natureza, se mostraram mais ecológicas, usando a água e a energia de forma racional, de maneira a evitar sua escassez. Além disso, participavam ativamente de ações que pretendiam proteger o meio ambiente, contribuindo para a conservação da natureza. Quanto à reciclagem, os valores e as crenças não exerceram influência. No geral, os resultados indicaram que as pessoas que aceitavam os outros como iguais, estavam sensíveis aos interesses de todas as pessoas e tinham uma visão de integração com a natureza manifestaram mais comportamentos ecológicos. Já as que estavam voltadas para os seus próprios interesses e viam a relação ser humano–meio ambiente de forma dicotômica manifestaram menos esse tipo de comportamento.

Desafios e participação A realização de novos estudos, com amostras representativas da população brasileira, que esclareçam e confirmem as características específicas aqui levantadas, torna-se fundamental para a compreensão do comportamento ecológico em nossa cultura. O ativismo-consumo, por exemplo, precisa ser aprofundado para identificarmos sua especificidade em nosso contexto. Será que, no Brasil, o ativismo pode refletir tanto a participação coletiva em defesa do meio ambiente como a ação individual de compra de produtos mais “ecológicos”? Ou essas características se aglutinaram apenas nessa amostra, envolvendo um comportamento complexo com dimensões tanto de ativismo como de consumo? Com relação à reciclagem, embora tenha emergido nesses estudos, os valores e as

crenças não o influenciaram. Dada a inexistência de programas oficiais de reciclagem na quase totalidade das cidades brasileiras e, em particular, em Brasília, esse tipo de comportamento pode ter outras influências ou características que precisam ser conhecidas. Além disso, é possível que existam outros tipos de comportamentos ecológicos que até o momento não foram identificados. Do mesmo modo, os estudos internacionais têm apontado outras influências sobre o comportamento ecológico que ainda não foram pesquisadas na realidade brasileira, tais como as normas pessoais e as características situacionais, que tanto podem favorecer como inibir a manifestação desse comportamento (Nordlund & Garvill, 2003; Corraliza & Berenguer, 2000). Considerando-se a inexistência de estudos empíricos que tenham identificado as características do comportamento ecológico na realidade brasileira e testado a influência dos valores e das crenças ambientais sobre esse comportamento, nossos achados se constituem relevantes para cercar o fenômeno e desencadear pesquisas que procurem aprofundar sua compreensão, além de fomentar a discussão sobre essa temática. Os desafios estão lançados, e o convite à participação está feito.

*Claudia Pato Doutora em Psicologia, professora da Universidade de Brasília (UnB), coordenadora da área de Educação Ambiental da Faculdade de Educação/UnB e pesquisadora do Laboratório de Psicologia Ambiental do Instituto de Psicologia /

Referências bibliográficas BARBOSA, S. R. C. S. Ambiente, qualidade de vida e cidadania: algumas reflexões sobre regiões urbano-industriais. In: HOGAN, D. J.; VIEIRA, P. F. (Orgs.). Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. Campinas: Unicamp, 1992, p. 193-210. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal (MMA). Primeiro relatório nacional para a Convenção sobre Diversidade Biológica. Brasília: MMA, 1998. BRASIL. MMA; INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIÃO (Iser). O que o brasileiro pensa sobre o meio ambiente, desenvolvimento e sustentabilidade. Pesquisa de Opinião. Brasília: MMA, 2001. CORRALIZA, J. A.; BERENGUER, J. Environmental values, beliefs, and actions: a situational approach. Environment and Behavior, 32 (6), 832-848, 2000. COSTA, S.; ALONSO, A.; TOMIOKA, S. Modernização negociada: expansão viária e riscos ambientais no Brasil. Brasília: Ibama, 2002. (Série Publicações Avulsas). FERREIRA, M. R. Problemas ambientais como desafio para

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Em Belo Horizonte, há 15 anos, surgiu um exemplo de luta. A vontade de 20 pessoas catadoras de papel se tornou realidade: hoje, o que elas construíram superou em muito qualquer sonho considerado antes impossível. A Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo Horizonte (Asmare) tem cerca de 380 associados e associadas e beneficia, indiretamente, mais de 1.500 pessoas. Além do trabalho de coleta realizado por catadores e catadoras, a associação desenvolve um trabalho de parceria com empresas, escolas, condomínios, órgãos públicos,

entre outros, para a coleta de recicláveis. O material reciclado produzido pelos parceiros é doado à associação, que, desse modo, pode gerar e sustentar postos de trabalho para pessoas catadoras e ex-moradoras de rua. A organização da produção é acompanhada pelo processo de resgate da auto-estima e da cidadania de uma população historicamente excluída. A Asmare recolhe por mês cerca de 450 toneladas de lixo contendo papel, papelão, revistas, jornais, latas de alumínio, garrafas PET e plásticos. Com exceção do vidro e da borracha, recebe quase todos os outros tipos de material. Tudo é separado, prensado e estocado, antes de seguir para a reciclagem. Nos galpões, parte desse material é utilizada nas oficinas de reciclagem, que geram postos de trabalho para cerca de 30 pessoas.

Shows e debates Uma parceria entre a Asmare e sete organizações de catadores e catadoras vai fazer a diferença em Belo Horizonte. Eles inaugurarão a primeira fábrica de reciclagem do mundo dirigida por pessoas catadoras de materiais recicláveis.

Exemplo de luta Logo no início, o pequeno grupo reuniu materiais recolhidos durante seis meses e trocou pelo dinheiro necessário para a associação funcionar. “Era o tal de capital de giro que a gente não sabia o que era, achava que era palavrão”, conta d. Geralda, uma das fundadoras. Até então, catadores e catadoras tinham que driblar a fiscalização, que não permitia a coleta. “O jeito era trabalhar durante a noite, sem nenhuma garantia de segurança, mas a gente já tinha botado na cabeça que ia conseguir exercer a nossa cidadania e fortalecer os direitos da classe. O lema era não desistir”, conclui. Depois de 15 anos de trabalho, vieram a credibilidade e o reconhecimento, e as palavras, que antes eram sofridas, hoje saem fáceis e cheias de alegria, sensação de dever cumprido. Maria das Graças Marçal – rebatizada como d. Geralda, em homenagem ao santo de devoção de sua mãe – começou a catar papel aos 8 anos. Como catadora, sofria discriminação e era desprezada. Em 1990, d. Geralda reuniu-se com mais 19 pessoas, e, com a ajuda da Pastoral de Rua, fundaram a Asmare. Esse grupo inicial ocupou um terreno vazio e, com passeatas e contatos, acabou conquistando reconhecimento e apoio de parte da comunidade. Em 1997, d. Geralda representou o Brasil num seminário sobre desenvolvimento sustentável na Organização das Nações Unidas (ONU) e, em 1999, foi agraciada como representante dos catadores e das catadoras pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), com menção honrosa pelo trabalho desenvolvido. No mesmo ano, recebeu da revista Cláudia o prêmio Mulher do Ano. Ela é casada, mãe de nove filhos, criados e educados com o dinheiro de catadora de papel. No ano passado, foi homenageada em uma reunião do Banco Mundial, em Washington, nos Estados Unidos. Atualmente, responde pela coordenação-geral da Asmare.

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Desperdício em números O costume faz acreditar que o lixo deixa de ser problema quando é deixado na porta de casa. A maioria das pessoas não sabe para onde os resíduos vão e o que poderia ser feito com eles. Por isso, ocorre o desperdício. Ao misturar os produtos na hora de descartá-los, as pessoas diminuem o potencial de reciclagem do material. Segundo o Programa Ambiental da ONU, uma tonelada de papel reciclado poupa cerca de 22 árvores, economiza 71% de energia elétrica e polui o ar menos 74%. Reciclando, a humanidade extrai menos recursos naturais, economiza energia, reduz a poluição, gera empregos e deixa as cidades mais limpas e bonitas. Então, por que as pessoas não “cuidam do lixo”? Segundo os(as) catadores(as), falta consciência e informação, o que eles(as) também demoraram a aprender. No Brasil, os resultados dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1989 e 2000 mostram que, enquanto a população aumentou 16%, a quantidade de lixo coletada no mesmo período aumentou 56%. • Em 20% dos domicílios brasileiros, o lixo não é sequer coletado (fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/Pnad – IBGE). • Dos municípios brasileiros, 64% destinam seus resíduos sem tratamento em lixões ou curso de água. • No Brasil, já são mais de 500 mil pessoas catadoras, espalhadas por 3.800 municípios, segundo dados coletados em 2000 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). • Estima-se que as pessoas catadoras sejam responsáveis por 90% dos materiais que alimentam as indústrias recicladoras. • A cidade de São Paulo produz, diariamente, 15 mil toneladas de lixo e perde R$ 300 milhões ao ano por causa de materiais recicláveis que vão para as lixeiras. • O estado do Rio de Janeiro produz 42 mil toneladas de garrafas. Desse total, apenas 1% é reciclado. • Brasília é a capital do desperdício. Cada pessoa produz, em média, 1,2 quilo de lixo por dia. Isso é 30% a mais do que o restante do país. • Em Belo Horizonte, são 700 gramas de lixo diários por habitante. A Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) recolhe diariamente 4,5 mil toneladas, o que equivale ao peso de mil elefantes. O aterro sanitário da cidade tem sobrevida apenas de um ano e meio.

A fábrica está sendo construída no bairro Juliana, regional norte da capital mineira gerará 62 empregos e aumentará a renda de 550 famílias. Por ano, serão recicladas 3,6 mil toneladas de plástico que iriam para aterros sanitários. A indústria será inaugurada em agosto, durante o 4º Festival Lixo e Cidadania. O Festival Lixo e Cidadania nasceu com a proposta de discutir, por várias perspectivas e olhares, a questão dos resíduos sólidos no Brasil. Aliando uma programação temática de debates e conferências com uma programação cultural de lançamentos de livros, exposições, feiras de produtos reciclados, desfile de moda com roupas feitas a partir de materiais reaproveitáveis e shows culturais, o festival convoca a comunidade a participar da discussão. O festival já se tornou uma referência na capital mineira. Nestes três anos, um público de mais de 25 mil pessoas esteve presente ao evento. O 1º Festival Lixo e Cidadania foi re-

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alizado de 13 a 17 de novembro de 2002. Contou com mais de 5 mil participantes, entre técnicos(as), agentes sociais, catadores(as) e público em geral. O sucesso desse evento, que foi amplamente divulgado na mídia, evidenciou que é possível gerar trabalho por meio do reaproveitamento e da reciclagem. Entretanto, também se constatou a necessidade de ampliar o debate e estimular participação social, comprometendo os governos a adotarem políticas públicas que inovem o tratamento do lixo e da miséria. Na parte cultural, houve shows com o multiinstrumentista Hermeto Pascoal, Elza Soares, DJ Dolores, entre outros. O 2° Festival Lixo e Cidadania foi realizado de 27 de outubro a 1º de novembro de

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2003. Durante o evento, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva anunciou a liberação de R$ 4 milhões para formação e capacitação de catadores e catadoras de materiais recicláveis. Artistas que têm envolvimento com a reciclagem apresentaram shows alternativos: Trio Mocotó, Mundo Livre S/A e, mais uma vez, Hermeto Pascoal animaram as mais de 12 mil pessoas que passaram pelo evento. Em 2004, o 3º Festival Lixo e Cidadania foi realizado de 31 de agosto a 5 de setembro. O ministro de Desenvolvimento Social e Combate à Fome Patrus Ananias de Sousa abriu o festival, alertando sobre a questão dos assassinatos de mora­dores(as) de rua nas cidades de São Paulo e Belo Horizonte, e se comprometeu a lutar por políticas públicas rigorosas contra tais atrocidades e de incentivo para o trabalho da categoria. Cerca de 7 mil pessoas passaram pelo evento, que teve shows de diversos artistas, como Amaranto, Vander Lee, Sandra de Sá, Zé da Guiomar, Uakti e Velha Guarda da Portela. Há dez anos, foi criada também a Estação Primeira dos Catadores, que, desde então, vem se apresentado nas festividades do carnaval em Belo Horizonte. É uma oportunidade de mostrar as possibilidades da reciclagem, com fantasias feitas a partir de materiais encontrados no lixo. Com papel, plástico, vidro e metal, mais de 300


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componentes retratam sambas-enredo que têm a ver com a realidade e o dia-a-dia das pessoas catadoras. Em 2004, a homenageada na avenida foi a imprensa com o samba “Quem não se comunica se estrumbica”. Este ano, Ary Barroso serviu de inspiração para o tema do carnaval. Ele teria sido o primeiro radialista a defender a coleta seletiva no Brasil. Fundado em 2001, o Espaço Cultural Reciclo foi outra alternativa que a Asmare encontrou para mostrar, de maneira lúdica e prazerosa, as possibilidades de reaproveitamento do lixo. O Reciclo conta com uma lojinha para venda de produtos, espaço de shows com capacidade para 300 pessoas, além de oficinas de cozinha, confecção de instrumentos musicais, corte e costura, papelaria, metal, teatro e carnaval. Há quatro anos, na noite de Belo Horizonte, o Reciclo Asmare Cultural começou a sua programação musical com ritmos ecléticos, inovadores e autorais, mas foram os shows de samba e bossa nova que se destacaram. Clientes do bar identificam o Reciclo com o ritmo do samba. Segundo o público, é o espaço ideal para dançar, beber uma cerveja, conhecer pessoas e paquerar. Por isso, fica cada vez mais forte a ligação entre os dois, transformando, hoje, o Reciclo na casa de samba de Belo Horizonte. Mais de 100 mil pessoas e 2.500 artistas já passaram pela casa. Em um projeto inovador, a Asmare, até o fim deste ano, inaugurará, na Zona Sul da capital mineira, o Reciclo 2. Com o novo espaço, será possível diversificar as atividades culturais, criando oportunidades para debates temáticos, seminários, mostra de vídeos e mais apresentações culturais. Além disso, funcionarão no Reciclo 2 um restaurante e um café, que serão abastecidos de ervas e temperos por uma horta orgânica, em parceria com a rede de agricultura alternativa. A lojinha do Reciclo é um espaço que permite que as pessoas que o visitam façam compras diferentes e encontrem produtos de qualidade, com design arrojado e um ponto em comum: todos são feitos a partir do que é encontrado no lixo. Para o coordenador técnico da Asmare, José Aparecido Gonçalves, a loja não foi criada apenas pelo aspecto comercial. Segundo ele, esse tipo de empreendimento é fundamental para a comunidade de Belo Horizonte. “Com isso, trazemos o conceito de beleza em torno

da reciclagem. As pessoas podem, através desses produtos, transformar a noção de ambiente que têm”, diz. Produtos do vestuário, como calças e camisas, e até artigos decorativos, como luminárias e tapetes, são comercializados. A maioria dos mais de 50 produtos é feita nas oficinas da Asmare, por ex-moradores(as) de rua e catadores(as) de papel. A loja funciona de segunda a sábado, das 9 às 18 horas. De quinta a sábado, a loja fica aberta até 2 horas da manhã, por conta do funcionamento do bar Reciclo.

* Luigi Zampetti Assessor de comunicação da Asmare e diretor da LZ Comunicação – empresa especializada em comunicação para o Terceiro Setor Espaço Reciclo Asmare Cultural: Av. Contorno, 10.564, Barro Preto, Belo Horizonte – MG Tel.: (31) 3295-3378 / 3295-6320 Fotos: Elias Henrique

Quem não se comunica se estrumbica (Mandruvá, Léo Piló, Dimir Viana) Catador, catador, catador É a Asmare na avenida Praças e avenidas vou rodar Reciclando a sua vida. (BIS) Quem não se comunica Se estrumbica. Estou aqui para mostrar A nossa arte que recicla A consciência para um futuro de verdade Que anuncia que a felicidade, É a boa-nova para o mundo renovar. Alô, Alô, você! A manchete está no ar! Sou rio sem poluição

Com água limpa vou lavar seu coração! (BIS) Tô aqui pra mostrar!

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e s pa ç o a b e rt o

Weber A. N. Amaral, Silvio Ferraz e Roberto Smeraldi*

Dinâmica da soja, o desmatamento A expansão da soja no país nos últimos anos tem sido alvo de intensos debates entre governos, organizações civis e iniciativa privada, principalmente quanto às mudanças no uso do solo e a sustentabilidade do processo de crescimento da produção da soja. Ao mesmo tempo que propicia grandes divisas e desenvolvimento ao país, essa produção avança rapidamente, de forma direta e indireta, sobre o cerrado e a Amazônia, funcionando como um dos vetores importantes do desmatamento, de concentração fundiária e de geração de conflitos sociais. Este artigo aborda algumas questões fundamentais relacionadas ao entendimento desses processos complexos e suas dinâmicas, e especialmente sobre os principais fatores condicionantes da expansão da soja na região amazônica. Além disso, são apresentados os resultados de simulações sobre cenários de expansão dessa cultura a partir de diversas estatísticas oficiais disponíveis. É baseado nos resultados do trabalho realizado, em 2005,

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aberto pelo Grupo de Trabalho de Florestas do Fórum Brasileiro de Organizações Não-governamentais e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS) sobre a relação entre cultivo de soja e desmatamento. O primeiro registro de cultivo de soja no Brasil data de 1914, no município de Santa Rosa, Rio Grande do Sul. A partir da década de 1960, a soja expandiu-se para o norte do Paraná e se estabeleceu como cultura economicamente importante no país, sendo que 98% da produção nacional de soja nesse período era originária da região Sul. Nas décadas de 1980 e 1990, a cultura se expandiu rapidamente para áreas de cerrado no Brasil Central. Em 1980, o Centro-Oeste era responsável por 20% da produção nacional; em 1990, esse percentual era superior a 40% e, em 2003, chegou próximo a 60%. Diversos fatores contribuíram para a expansão da soja no cerrado ao longo dos últimos anos, entre os quais se destacam: o aumento da demanda e cotação da soja no mercado internacional de commodities; baixo valor das terras em relação à região Sul; ganhos de produtividade associados ao desenvolvimento de novos cultivares adaptados aos solos e clima da região;1 extensas áreas com topografia plana, propícia à mecanização; condições ambientais favoráveis em termos de chuvas e insolação, melhorias na infra-estrutura de transportes; e o perfil de produtores e produtoras rurais oriundos, em sua maioria, da região Sul. Não obstante a sua importância para o crescimento do agronegócio e contribuição para a balança comercial brasileira, a expansão acelerada da soja no cerrado tem provocado grandes impactos sociais e ambientais, incluindo a expansão dessa cultura para áreas de rica biodiversidade, já dentro dos limites

legais da Amazônia brasileira. Inicialmente, o principal interesse na Amazônia, por parte das pessoas envolvidas na produção e comercialização da soja no Centro-Oeste, especialmente no norte de Mato Grosso, era baratear o escoamento da produção destinada à exportação, em função de hidrovias como a do Rio Madeira, com seus portos graneleiros nas cidades de Porto Velho (RO) e Itacoatiara (AM). No entanto, de forma crescente, a Amazônia está sendo vista como a “nova” fronteira de produção de soja e de outros grãos, dentro de uma lógica do agronegócio globalizado. Na Amazônia Legal, o cultivo da soja se expandiu, inicialmente, a partir do fim da década de 1990, em áreas de cerrado e florestas de transição, principalmente no norte de Mato Grosso, sudoeste de Maranhão, norte de Tocantins, sul de Rondônia e lavrados de Roraima. Mais recentemente, o cultivo da soja tem avançado em áreas inseridas no bioma da floresta tropical, a exemplo das regiões de Humaitá-Lábrea (AM) e Santarém (PA). Especialistas consideram as dificuldades logísticas de escoamento como o maior obstáculo à expansão da soja na Amazônia. Nesse sentido, destaca-se a formação recente de coalizões de produtores de soja, as tradings (ou compradoras) e articulações políticas que buscam a viabilização de investimentos de grande porte em infra-estrutura de transportes, a exemplo da pavimentação da rodovia Cuiabá–Santarém (BR-163). 2 Um indicador da importância dessa rota para o escoamento da soja do Centro-Oeste e a expansão de seu cultivo em direção à floresta amazônica é a construção do terminal graneleiro da Cargill em Santarém (PA), com capacidade para escoamento de cerca de 1 milhão de toneladas de grãos/ano.

1 Hoje, as lavouras de soja mais produtivas do Brasil estão em Mato Grosso, com rendimentos médios acima de 3 toneladas por hectare/ano. 2 Segundo o governo de Mato Grosso, o asfaltamento da BR163 deve permitir uma redução dos custos de transporte da soja em aproximadamente 30% ou US$ 38 por tonelada.

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Não obstante os seus benefícios potenciais, principalmente em termos de crescimento econômico no curto prazo, a expansão acelerada da soja na Amazônia Legal traz uma série de riscos e impactos sociais e ambientais. Tais impactos têm chamado a atenção de órgãos governamentais, organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa e até mesmo dos grandes produtores de soja, que atualmente se sentem pressionados a adotar práticas

sustentáveis de uso do solo e a reduzir as taxas de desmatamento. Entre os principais impactos potenciais da expansão da soja na Amazônia, destacam-se o aumento das taxas de desmatamento (associado a perdas de biodiversidade, aumento da erosão do solo, comprometimento de regimes hidrológicos e alterações climáticas), o deslocamento de pequenos produtores rurais (populações tradicionais, agricultores e agricultoras migrantes etc.), a migração de outras atividades

Para ser viável O fenômeno da expansão da soja na Amazônia traz grandes desafios para o poder público, que tem como função desenhar e viabilizar instrumentos e políticas públicas que estimulem a incorporação de princípios de sustentabilidade (econômica, social e ambiental) na lógica dessa importante atividade produtiva, bem como a sua inserção, de forma mais ampla, em estratégias de desenvolvimento regional sustentável. Nesse sentido, a formulação e a implementação de políticas eficazes pressupõem: • a compreensão das dinâmicas da expansão da soja na região amazônica, especialmente os fatores que condicionam e determinam o comportamento dos agentes econômicos; • uma avaliação objetiva dos custos e benefícios totais (para interesses privados e de forma mais ampla para todos os segmentos da sociedade em geral) da atividade econômica em questão e, portanto, das necessidades de intervenção pública para planejamento do uso do solo; • conhecimento da eficiência e eficácia dos vários instrumentos de políticas que poderiam ser aplicados, bem como dos seus custos associados.

econômicas e dos outros usos do solo que empurram a fronteira do desmatamento para o interior da Amazônia, como a pecuária, e a geração de conflitos sociais.

Impactos desconhecidos Atualmente, as dinâmicas de expansão da soja e seus impactos socioambientais em diferentes sub-regiões da Amazônia ainda são pouco conhecidos. Em particular, há uma carência de estudos sobre as tendências de expansão da soja no contexto da heterogeneidade de paisagens amazônicas, em termos de características dos recursos naturais (solos, topografia, hidrologia e vegetação) e de ocupação humana (situação fundiária, populações locais, atividades produtivas etc.). Por exemplo, argumenta-se que a soja não provoca desmatamento na Amazônia, uma vez que seu cultivo mecanizado está ocupando pastagens antigas, principalmente em fazendas de médio e grande porte, loca-

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lizadas na terra firme. Entretanto, existem indícios de que a expansão da soja esteja deslocando a frente da pecuária para áreas vizinhas de floresta primária, gerando um expressivo impacto indireto sobre o desmatamento. Os impactos socioambientais da expansão da soja em áreas já ocupadas por pequenos produtores rurais na Amazônia, detentores ou não de títulos de propriedade, também são pouco conhecidos. A predominância de pastagens como uso da terra em áreas ocupadas por produtores familiares, mesmo em projetos de assentamento, pode estar favorecendo esse fenômeno. Visto que a soja está ocupando propriedades e posses de produtores familiares, cabe analisar os impactos desse fenômeno em termos de geração de emprego e renda, concentração fundiária e deslocamento dessas populações para áreas urbanas, novas frentes de ocupação

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Dinâmica da soja, o desmatamento na fronteira da Amazônia

Figura 1 Fatores condicionantes da dinâmica da expansão da soja e seus processos associados: as dimensões espaciais, temporais e impactos

na floresta primária etc. Outra questão que merece uma análise mais aprofundada é o impacto da valorização de terras em áreas de expansão da soja sobre práticas de grilagem em terras públicas, freqüentemente associada à exploração madeireira ilegal, num contexto de frágil atuação dos órgãos públicos responsáveis pelas políticas fundiária e ambiental. De modo geral, existe uma carência de estudos que integrem as principais escalas temporais e espaciais dos fatores que condicionam a expansão da soja e suas relações com as atuais políticas públicas (fundiária, ambiental, instrumentos econô-

micos, zoneamento etc.) diante das dinâmicas de expansão da soja na Amazônia. Tais análises são particularmente relevantes, sob a ótica da identificação das mudanças necessárias no intuito de estimular uma maior aproximação entre o desenvolvimento agroindustrial e a conservação e o uso sustentado dos recursos naturais da Amazônia brasileira.

Expansão da soja e concentração fundiária Uma das conseqüências do processo de expansão da fronteira agrícola nas

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regiões Centro-Oeste e Norte é a concentração fundiária, de renda e dos sistemas produtivos – grandes fazendas de gado e monoculturas mecanizadas (caso da soja) – com a subordinação dos padrões culturais e produtivos das comunidades locais e regionais ao padrão conduzido pelos novos atores sociais, de modo geral imigrantes de outras regiões, com acesso a capital e tecnologia. Esse processo causa o deslocamento de pequenos agricultores, resultando em novas fronteiras locais de desmatamento. Nas áreas de expansão da cultura da soja, é a lucratividade da pecuária, e posterior transformação ou venda da terra para agricultura intensiva, que sinaliza, tanto para os agentes iniciais como para os próprios pecuaristas, que o desmatamento e a conversão das florestas em pastagens são uma atividade

rentável. Se não existissem esses lucros, não haveria interesse pela apropriação ou compra das terras convertidas, e os desmatamentos certamente teriam ritmo muito menos intenso. Em todas as etapas do processo de desmatamento, os direitos de propriedade são assegurados com a ocupação física da terra, presença que é muito mais importante do que qualquer documento de posse, incentivando a ação de grileiros ou posseiros a ocupar terras e garantir sua transferência a novos atores com aversão ao risco relativamente maior, embora ainda baixa. Existe uma tendência de tecnificação e profissionalização da produção pecuária, gerando perspectivas reais de lucro que incentivam agentes com diferentes funções. Alguns tendem a ser especuladores, sem interesse de longo prazo ou compromisso com

Tabela 1 Análise de correlação entre as variáveis: área de soja em 2002, incremento da soja entre 2000 e 2002, desmatamento médio, desmatamento total e taxa de aumento do rebanho bovino. Entre parênteses, os níveis de significâncias obtidos.

A_Soja_2000 Inc_Soja01/02 Desm_Tot03 Tx_desm01/02

Inc_Soja01/02

0.511(0.000)

Desm_Tot03

0.067(0.653) 0.430(0.003)

Tx_desm01/02

0.034(0.823) 0.501(0.000) 0.780(0.000)

Tx_inc_Reb00/03

- 0.271(0.066)

- 0.078(0.602)

a produção em si (no máximo se capitalizam temporariamente com a retirada de madeira), enquanto outros são empresários capitalizados e profissionais da fronteira consolidada, em relação direta com a economia formal. Já os atores sem capital não só ficaram, até o momento, excluídos desses processos, mas também tendem a ser deslocados para áreas marginais, onde contribuem para a abertura de novas fronteiras móveis ou expandem o alcance daquelas existentes.

Soja deslocando a pecuária A análise da relação entre expansão da soja e taxa de desmatamento em escala municipal mostra que existe uma relação indireta entre os dois fenômenos. A soja se apresenta, portanto, como um dos fatores do desmatamento, mas não o único. Há, porém indicações de que

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0.180(0.225)

0.188(0.205)

a sua expansão direcione o desmatamento em novas áreas, empurrando outras atividades, como a pecuária, para o interior da Amazônia. Além disso, cenários futuros apontam para um aumento da expansão da cultura em função da disponibilidade de terra e presença de infra-estrutura já disponível. Há elementos que apontam nitidamente para o fato de que a soja desloca a pecuária para novas áreas, com provável efeito de desmatamento indireto. Isso pode ser observado pelo fenômeno da redução do rebanho bovino nos principais municípios produtores de soja, porém com o aumento do rebanho nas regiões limítrofes, com destaque (no caso de Mato Grosso) para os municípios das regiões de fronteira móvel. Particularmente para o estado de Mato Grosso, foram analisadas diversas variáveis para quantificação desse pro-

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Dinâmica da soja, o desmatamento na fronteira da Amazônia

cesso. Foram estudadas a área plantada no ano 2000 (A_Soja_2000), o incremento da área plantada da cultura para os municípios (Inc_Soja01/02) e as taxas de desmatamento observado para o mesmo período (Taxa_desm01/02). As anál is e s e n v o l v e r a m e s t u d o s de correlação entre tais variáveis, com o objetivo de identificar a relação entre a expansão da soja e o processo de desmatamento. Os resultados indicam que as taxas de desmatamento são positivamente correlacionadas (50%) com o incremento do cultivo de soja, e essa correlação é extremamente significativa do ponto de vista estatístico (> 99% de probabilidade). Outro elemento importante observado é que o aumento da área plantada com soja no estado vem ocorrendo em municípios já produtores, com extensas áreas já desmatadas, mas à custa de novos desmatamentos. Analisando a relação entre as taxas de aumento do rebanho bovino no período e demais variáveis estudadas, verifica-se que existe correlação negativa entre a área plantada de soja e a taxa de aumento do rebanho, o que significa que o número de cabeças de bovinos tem diminuído nos municípios com grandes extensões de soja.

Cenários da expansão A análise da produtividade da soja nos principais estados produtores mostra que os estados de Rondônia e Mato Grosso apresentam as maiores produtividades no período de 1990 a 2004, variando em média entre 2,8 e 2,7 ton/ ha, respectivamente. Nesse mesmo período, a produtividade média para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul foi respectivamente de: 2,1, 2,0, 2,5, 2,3 e 2,1 ton/ha. Nota-se que a produtividade da soja em Mato Grosso ultrapassou os índices

obtidos na região Sul do país. Além disso, a curva de crescimento da produtividade no Centro-Oeste apresenta menor variação anual, quando comparada à de outras regiões. Esses são indicativos de que, em Mato Grosso, a cultura encontrou melhores condições de adaptação. A soja em Mato Grosso esteve concentrada durante anos na porção sul do estado (regiões de cerrado), com escoamento realizado principalmente pelos corredores da região Sudeste. A expansão da soja para regiões de

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transição cerrado–floresta no estado se deve provavelmente ao desenvolvimento de variedades adaptadas, disponibilidade de grandes extensões de terra já desmatadas a preços competitivos e altos índices de produtividade obtidos. No entanto, a viabilização dos corredores de escoamento noroeste e norte foram responsáveis pela grande expansão da cultura no estado e avanço sobre a região amazônica. A análise parcial de fatores limitantes e estímulos para a futura definição de cenários de expansão da soja na região mostraram que os principais corredores disponíveis para escoamento – Porto Velho–Itacoatiara e Porto de Itaqui – devem tornar grandes áreas, em torno de rodovias e vicinais, suscetíveis à conversão para cultura da soja. A zona de influência da infra-estrutura é definida em função da relação custo/dificuldade de acesso e o retorno econômico da atividade. A zona de 100 quilômetros em torno de estradas existentes apresenta as maiores extensões de áreas já desmatadas, porém sem uso atual para soja, no norte de Mato Grosso, região central de Rondônia, leste do Pará, norte de Tocantins e sul do Maranhão. Na mesma zona de influência, as áreas de floresta mais suscetíveis ao desmatamento são as de transição cerrado–floresta, localizadas principalmente no sul de Rondônia, centro-oeste de Mato Grosso e leste de Mato Grosso (Tabela 2). A tabela a seguir aponta para algumas estimativas preliminares de expansão da cultura, a serem validadas pela inclusão de outros estados potencialmente importantes (como Amazonas e Roraima) e pelo uso de diferentes variáveis nos cenários de disponibilidade de infra-estrutura.

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Desse modo, o deslocamento da soja depende de uma combinação de elementos naturais (solos, topografia), tecnológicos (variedades, técnicas de cultivo), estruturais (infra-estrutura) e de oportunidade (disponibilidade e custos da terra e logística), sendo que parte desses elementos pode ser controlada ou condicionada por incentivos e políticas de direcionamento. As estimativas mostraram que o Brasil deverá atingir produção acima de 140 milhões de toneladas até 2020, caso sejam mantidos o ritmo de crescimento médio da área colhida e da produtividade dos últimos 13 anos (respectivamente, 6,52% e 4,59%) e o patamar médio dos preços internacionais dos últimos anos (US$ 192/t) (Figura 4). A área deverá se expandir atingindo pouco menos de 60 milhões de hectares, sendo que a produtividade deverá dobrar (BNDES, 2003).

Tabela 2 Extensão das áreas com cultivo de soja e com outros usos, área potencial para cultura e estimativas de alocação de novas áreas de cultivo em cinco estados (valores em km2) UF Área desmatada1

Área de soja2

Estimativa Aumento área (2014) projetado

RO

57.157

595

56.562 100.000 37.708

37.113

PA

91.210

268 90.942 10.000 10.000

9.732

TO

29.841 2.436 27.405 8.000 8.000

5.564

MA

39.293 3.425 35.868 10.000 10.000

6.575

MT

156.720 51.488 105.232 400.000 105.000

53512

Total

374.221 58.212 316.009 528.000 170.708 112.496

Fonte: 1 – Inpe/Prodes (2004); 2 – IBGE (2004), 3 – Adaptado de Bickel, U.; Dros, J. M. (2003).

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Outros Potencial usos estado3

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Dinâmica da soja, o desmatamento na fronteira da Amazônia

Figura 3 Evolução da produção e produtividade, no Brasil, e nas duas principais regiões do complexo soja – Centro-Oeste e Sul (Conab, 2004)

Figura 4 Tendência da produção, área colhida e produtividade da soja no Brasil, no período de 1961 a 2020 (Fonte: BNDES, 2003)

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* Weber A. N. Amaral e Silvio Ferraz

Pontos para debate I. Processos de desmatamento são complexos e envolvem múltiplos fatores, em diferentes escalas de tempo e espaço. As dimensões espacial e temporal da fronteira móvel do desmatamento foram muito estudadas no fim da década de 1980 e no início da década de 1990. Porém, atualmente, a soja adiciona outros fatores de complexidade, potencializando as escalas espacial e temporal do processo de desmatamento, já que aumenta a velocidade das mudanças no uso do solo de uma cultura para outra e empurra a fronteira da pecuária para o interior da Amazônia, mantendo uma relação algumas vezes direta e em outras indireta com o desmatamento. II. Há uma clara correlação entre as taxas de desmatamento e a expansão da cultura da soja nas áreas analisadas dentro da região amazônica. Porém, os fatores que afetam essa correlação devem ser mais bem investigados, no que diz respeito à velocidade (dimensão temporal) e ao direcionamento do desmatamento (dimensão espacial). III. A previsão para 2014 é de que a área plantada de soja nos estados de Mato Grosso, Rondônia, Pará, Maranhão e Tocantins possa vir a ser triplicada em função das tendências observadas, mesmo que sujeitas às influências de outros fatores externos, como os de mercado. Grande parte das novas áreas deverá estar provavelmente concentrada nos estados de Mato Grosso e Rondônia. No entanto, tais previsões podem também ser alteradas em função da expansão de áreas plantadas em outros estados da Amazônia (como Amazonas e Roraima) ou do Nordeste. É também necessário observar que os impactos ambientais e sociais podem variar muito de acordo com a situação de cada estado ou sub-região. IV. A falta, até o momento, de dados, levantamentos e pesquisas de longo prazo sobre o tema leva à conclusão de que é necessário e urgente aprofundar e ampliar o trabalho inicial realizado pelo GT Florestas do FBOMS (Grupo de Trabalho de Florestas, 2005), que serviu de base para este artigo, com levantamentos primários em diferentes situações e contextos dentro da Amazônia. Tais trabalhos devem, pela complexidade do tema, ser realizados em parceria com os diferentes atores envolvidos e interessados no assunto, tais como organizações civis, universidades, instituições de pesquisa, órgãos do governo, como a Embrapa, ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), do Meio Ambiente (MMA) e Ciência e Tecnologia (MCT), e a iniciativa privada.

São da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo, Piracicaba, SP, e integram a ONG Amigos da Terra Amazônia Brasileira, São Paulo, SP.

Roberto Smeraldi também integra a ONG Amigos da Terra Amazônia Brasileira

Referências bibliográficas ABIOVE. Empresas processadoras de soja no Brasil – empresas associadas. 2004. Disponível em: <http:// www.abiove.com.br>. ———. Soja verde para um mercado maduro. Informativo Abiove, out. 2004. AGRIANUAL. Principais rotas de escoamento da produção de soja – Anuário Estatístico da Agricultura Brasileira. São Paulo: FNP Consultoria & Comércio, 2003. AMIGOS DA TERRA AMAZÔNIA BRASILEIRA. Tendências da soja na Amazônia Brasileira – Dados e estado da discussão. 3. ed., jun. 2004. BICKEL, U.; DROS, J. M. The impacts of soy bean cultivation on Brazilian ecosystems. Zurique: WWF Forest Conversion Initiative, 2003. BNDES. Perspectivas para o cultiva da soja:2004/20. BNDES setorial, Rio de Janeiro, n. 20, p.127-222, 2003. BRASIL. Programa Brasil em ação. 2004. Disponível em: <http:// www.presidencia.gov.br/publi_04/colecao/2acao11.htm>. Acesso em: 2 jun. 2005. CASTRO, A. C. Localização e identificação das empresas processadoras de soja, suas áreas de influência, preços e custos de transporte relacionados. WWF-Brasil, 2002. CONAB. Levantamento de safras 2004/05. 2004. Disponível em: <http://www.conab.gov.br>. Acesso em: 2 jun. 2005.

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Costa, F. G. Avaliação do potencial de expansão da soja na Amazônia Legal: uma aplicação do modelo de von Thünen. 2000. (Dissertação de mestrado). ESALQ/USP, Piracicaba. EMBRAPA. Recomendação de cultivares de soja para a microrregião de Paragominas, Pará. Belém: Embrapa, 2003. (Comunicado Técnico 82). ————. Tecnologias para produção de soja na região central do Brasil. Sistemas de produção, v. 6. Londrina, out. 2004. FBOMS. Relação entre cultivo de soja e desmatamento: compreendendo a dinâmica. São Paulo: Amigos da Terra Amazônia Brasileira, 2005. GEIPOT. Corredores Estratégicos de Desenvolvimento/ Alternativas de Escoamento de Soja para Exportação. 2004. Disponível em: <http://www.geipot.gov.br/estudos_realizados/soja/ capitulo_16.htm>. IBGE. Censo agrícola municipal – Sidra: banco de dados agregados. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 2 jun. 2004. INPE. O monitoramento da Amazônia brasileira por satélite – projeto Prodes. Disponível em: <http://www.obt.inpe.br/prodes>. Acesso em: 18 maio 2004.

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sua opinião Caro(a) leitor(a) Estamos inaugurando, nesta edição da Democracia Viva, um espaço para sua opinião. Queremos manter um canal de diálogo com nosso público e verificar a utilização da nossa revista por diferentes setores da sociedade. Para isso, contamos com sua colaboração por correio eletrônico <democraciaviva@cidadania.org.br> ou pelo endereço postal – Avenida Rio Branco, 124, 8º andar, Centro, Rio de Janeiro – RJ, CEP 20040-916. A seguir, algumas opiniões enviadas recentemente à Democracia Viva e que nos inspiraram a abrir este novo espaço. As remetentes dessas mensagens – uma educadora, uma comunicadora e uma bibliotecária de universidade pública – ilustram com seus comentários nosso esforço em transformar um meio de comunicação em instrumento de mudança social. Agradecemos a Célia Varela, Andréa Rodrigues e Aparecida Caitar pelo reconhecimento ao trabalho do Ibase. Aguardamos seu contato também. Equipe da Democracia Viva/Ibase

Educação popular Receber um exemplar da revista Democracia Viva é sempre uma maneira de ficar mais sábia, de refletir a minha prática de educadora popular, conectando-me com o movimento do mundo, do Brasil e das comunidades locais. É uma revista bonita e de muito conteúdo inspirador para consolidar e inovar práticas sociais que transformem a nossa utopia em projeto político, comprometido com a felicidade da maioria da população. No mais, parabéns pela força e pelo trabalho de produção e democratização do conhecimento comprometido com a afirmação da cidadania e da democracia no Brasil e no mundo. Para a democracia SER e estar VIVA, dá um trabalho... Valeu por estarem fazendo a parte de vocês. Com admiração, Célia Varela Assessora da Fian Brasil (FoodFirst Information & Action Network / Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar)

Comunicação Perdoe-me pelo atraso em agradecer pela doação entregue em minha casa. Confesso que chorei muito... Aqui na Baixada Fluminense, onde todas as formas de misérias são evidentes, nós

que tentamos resgatar social e culturalmente nossa boa imagem nos sentimos fortes quando encontramos iniciativas como as que V.Sas. tiveram com a nossa causa. Forte abraço a todos da equipe desta grande revista. Digo tranquilamente que Vocabulário Feminino tem hoje uma informação muito mais enriquecedora graças à doação de exemplares da Democracia Viva. Atenciosamente agradeço em meu nome, em nome da Rádio e de toda a comunidade que passou a conhecer o trabalho do Ibase. Aplausos! Andréa Rodrigues Vocabulário Feminino Rádio Baixada FM (93,7)

Acervo A Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina agradece o recebimento da revista Democracia Viva (jun./jul. 2004). Gostaríamos também de receber, através de doação, os números seguintes que forem publicados da revista Democracia Viva, editada por essa conceituada entidade. Aparecida J. P. Caitar Universidade Estadual de Londrina Biblioteca Central

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