DEMOCRACIA VIVA
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Especial
Mudanças climáticas
Marcas de um novo tempo? Debate sobre o pré-sal O que esperar da COP 15? Entrevista
Leonardo Boff
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Dulce Chaves Pandolfi Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV
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or meio da sua revista, Democracia Viva, o Ibase busca intervir no debate
público, levantando problemas e abordando temas que ajudem na construção de um mundo socialmente justo e ambientalmente sustentável. Um mundo radicalmente comprometido com a democracia, que seja, ao mesmo tempo, solidário, diverso e igualitário. Dessa vez, o tema central da revista é a questão ambiental ou, mais especificamente, a questão climática. Relacionada com essa problemática, a Democracia Viva, de maneira muito oportuna, traz, também, para o debate, as vantagens e os riscos que a exploração das reservas de petróleo do pré-sal podem acarretar para o futuro do Brasil. Mas qual o futuro do nosso país? Ou melhor, qual o futuro do nosso planeta? Sem dúvida, ingressamos no século XXI com muitas dúvidas, grandes angústias e poucas certezas. Sabemos, por exemplo, que a sobrevivência da humanidade está sob forte ameaça. Sabemos, também, que a situação dramática em que o mundo se encontra hoje não é obra do acaso. Ela é resultado de um modelo de desenvolvimento que, tendo como objetivo crescer e concentrar riquezas, gerou profundas desigualdades sociais, injustiças ambientais, desrespeitou a vida, degradou a natureza. Um modelo de desenvolvimento que, como enfatiza Leonardo Boff, na sua bela entrevista para esta edição, está pondo em risco a própria continuidade da espécie humana. Segundo ele, “grande nomes da biociência não acham improvável que, no final deste século, a espécie humana desapareça. (...) Quando a água chegar até o nariz, os governos, as empresas, enfim, todo mundo vai querer mudar. O grande problema é acontecer tarde demais. Poucos sobreviverão na arca de Noé.” De fato, a luta contra o relógio é grande e maior ainda é a angústia de não se ter certeza se “ainda há tempo”. Por isso, mais do que nunca, é hora de agir. Em dezembro de 2009, governantes de todo o mundo estarão reunidos em Copenhague. E o Brasil, por sua posição de país
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3 ARTIGO
Justiça Climática, um direito humano negado Jean Pierre Leroy
10 DEBATE
Pré-sal em questão Célio Bermann Sebastião Soares Antonio Barros de Castro
26 ARTIGO
Dilemas planetários e as negociações internacionais em mudanças de clima: perspectivas da sociedade civil
entrevista
Leonardo Boff
Rubens Harry Born e Esther Neuhaus
30 ARTIGO
O Brasil e o futuro do clima – reflexões para Copenhague Carlos Minc
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34 ARTIGO
Poderá a sociedade civil global salvar Copenhague? Graziela Tanaka
38 INTERNACIONAL
Inovações para a concepção de modelo econômico viável e sociedade duradoura Pierre Calame
Debate
Pré-sal em questão
42 ENTREVISTA
Leonardo Boff
58 OPINIÃO IBASE
Mudar mentalidades e práticas: um imperativo Cândido Grzybowski
64 ARTIGO Para apoiar os projetos desenvolvidos pelo Ibase, escreva para amigos@ibase.br ou telefone para (21) 2178-9400. Doações de pessoas jurídicas podem ser abatidas do Imposto de Renda.
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia para dar visibilidade à luta pela equidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política. Os artigos assinados nesta publicação não traduzem, necessariamente, a posição do Ibase.
A saúde frente às mudanças ambientais e climáticas
Antonio Miguel Vieira Monteiro, Carlos Corvalán, Christovam Barcellos, Helen C. Gurgel, Marília Sá Carvalho, Paulo Artaxo, Sandra Hacon e Virginia Ragoni
70 ARTIGO
Apropriações sociais das mudanças climáticas Henri Acselrad
DEMO C RA C IA VIVA ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral
Diretora Responsável Dulce Pandolfi
Conselho Editorial
Alcione Araújo Cândido Grzybowski Charles Pessanha Cleonice Dias Jane Souto de Oliveira João Roberto Lopes Pinto Márcia Florêncio Mario Osava Moema Miranda Regina Novaes Rosana Heringer Sérgio Leite
Edição
Ana Bittencourt
Subedição
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Revisão
Ana Bittencourt Jamile Chequer Flávia Leiroz
Assistente Editorial Flávia Mattar
74 CRÔNICA Alcione Araújo
Assessoria de imprensa
76 ENTREVISTA-TESTEMUNHO
Produção
82 ARTIGO
Estagiário
Roberto Schaeffer
Desmatamento e emissões de GEE – Com este Estado e este modelo, não dá Carlos Tautz
86 Entrevista conjuntural
Marcelo Furtado
90 MATÉRIA
Crise ambiental, sociedade civil brasileira faz a sua parte Diego Santos
94 SUA OPINIÃO 96
ÚLTIMA PÁGINA
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Distribuição
Elaine Amaral de Mello
Projeto Gráfico e Diagramação Mais Programação Visual
Foto de capa
Montagem sobre fotos da Nasa e de Jamile Chequer
Impressão
J.Sholna Reproduções Gráficas
Tiragem
5.150 exemplares
democraciaviva@cidadania.org.br
artigo Jean Pierre Leroy*
Justiça
Climática, um direito humano negado
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A injustiça climática tem como causas situações de desigualdade que se instauram entre regiões e países do mundo e, dentro de cada região e cada país, entre grupos sociais, consequências de um modelo de crescimento baseado, de um lado, na maximização do lucro, e, do outro, em um modelo de produção e de consumo que, ao impactar de tal modo o planeta, provocou a crise climática atual. Ao falarmos de injustiça, podemos entender a crise climática não como um fenômeno natural, uma fatalidade que atingirá indiferente e inexoravelmente na mesma proporção a todos. Na crise climática mundial operam mecanismos sociopolíticos que destinam a maior carga dos danos produzidos pelas mudanças do clima a populações de baixa renda, segmentos raciais discriminados, parcelas marginalizadas e mais vulneráveis da cidadania. Em contrapartida, a Justiça Climática é entendida como o conjunto de princípios que
1 Este artigo deve muito ao trabalho coletivo desenvolvido na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) com Julianna Malerba, Maureen Santos, Cecília Mello e no Projeto Relatores Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Dhescs), com Daniel Silvestre.
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assegura que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional de degradação do espaço coletivo provocada pelo câmbio climático, que compromete gravemente a qualidade de vida, inviabiliza sua reprodução e o obriga a migrar. A injustiça climática se manifesta em vários planos inseparáveis, em escalas mundial e continental, no interior de cada país e de cada região do mundo e no âmbito local. No plano mundial, os países industrializados estão reagindo muito lentamente, e, provavelmente, tarde demais. Se sua responsabilidade esmagadora é insofismável, sua vontade em ajudar os países emergentes e pobres a enfrentar a crise climática não passa de discurso. Nota-se que, acompanhando seus governos, as populações, em sua maioria, tampouco se interessam pelos destinos dos países pobres. Há décadas que os países do “Norte” tinham-se comprometido a consagrar 0,75% do seu Produto Interno Bruto (PIB) à ajuda ao desenvolvimento. Estão, em geral, bem longe dessa meta. Os Brics (o bloco Brasil, Índia, Rússia e China) – e, dentro dele, o governo brasileiro em particular –, insistem, em todos os encontros oficiais, que a “responsabilidade comum, porém diferenciada”, consagrada nos tratados e nos debates da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a temática ambiental, os exime de responsabilidade imediata. Deve-se, de fato, exercer uma pressão permanente sobre os países historicamente responsáveis, mas, convenientemente, esses países e outros emergentes mascaram suas próprias responsabilidades. Omitem que eles, governos, com a quase totalidade do setor privado e com boa parte das suas sociedades, não vislumbram outro desenvolvimento a não ser
Não se tem um quadro claro e consolidado da situação, porque os cientistas, no estágio atual das pesquisas, hesitam em atribuir às mudanças climáticas as catástrofes que já assolam o país, e até porque os maiores
2 Embrapa e Unicamp. Aquecimento Global e a Nova Geografia da Produção Agrícola no Brasil, 2008.
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a cópia do modelo que supostamente deu certo, mesmo que, de agora em diante, ele dê um impulso decisivo às mudanças climáticas.
Impactos potencializados Nesse contexto geral, quais são os indícios de injustiça climática no Brasil? Não se tem um quadro claro e consolidado da situação, porque os cientistas, no estágio atual das pesquisas, hesitam em atribuir às mudanças climáticas as catástrofes que já assolam o país, e até porque os maiores impactos estão por vir. No entanto, não há dúvidas que vários eventos que atingiram e/ou continuam a afetar populações pobres são, pelo menos parcialmente, consequências das mudanças climáticas. Lembramos em particular de caiçaras do litoral norte do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, atingidos pelo furacão Catarina; povos indígenas e populações tradicionais, vítimas da seca na Amazônia em 2005; pequenos produtores que perderam sua produção e são, muitas vezes, obrigados a abandonar sua roça devido a secas mais severas e repetidas no Sul e no Nordeste; chuvas excepcionais que provocam, com maior frequência, catástrofes urbanas e rurais, que afetam principalmente as populações pobres. Quanto ao futuro, de um lado, os cientistas já afirmam que as mudanças no clima não serão todas progressivamente lineares. Haverá aumentos do nível dos mares, da temperatura e da desertificação, em particular, mas esses aumentos poderão acontecer por saltos. Eventos climáticos extremos são também característicos desses processos. Estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) apresentou2 uma primeira avaliação sobre as consequências que as mudanças climáticas poderiam trazer à agricultura no Brasil. Haverá um deslocamento considerável das áreas de produção da maioria das culturas. A avaliação sobre o futuro da agricultura no Nordeste é particularmente impressionante. Sobraria para a região a cultura da mandioca, como para boa parte do Norte e do Centro-Oeste. Esse estudo não fala dos agricultores, mas fica subentendida a condenação da maioria do campesinato que pratica agricultura familiar. Vale notar que a
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observação empírica mostra, por exemplo, o fracasso das culturas do café e do feijão em áreas tradicionais de produção e já atesta essas mudanças. O avanço da linha da maré causará grande impacto sobre as populações de pescadores artesanais e coletores de frutos do mar e do mangue que ainda resistem à ocupação predatória do litoral. Populações urbanas pobres, em particular do Recife e da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, morando nas áreas de risco que lhes sobraram, serão as primeiras atingidas. A falta de água ou sua disponibilidade irregular, que já é um problema para parte da agricultura e para certas cidades, aumentará sensivelmente. Os problemas atuais (falta de planejamento, repartição desigual, favorecimento da agricultura intensiva sem preocupação com o consumo de recursos hídricos, contaminação e poluição das águas, destruição dos ecossistemas produtores de água) serão amplificados. Desde já, novos desafios se impõem para a saúde, em particular com a migração de vetores transmissores, a ampliação das zonas de endemias e o aumento de epidemias. Enfim, sabemos que o aumento do número e da intensidade de catástrofes provocadas por eventos extremos recairão com maior dramaticidade sobre populações vulneráveis. Esses impactos sobre a população pobre não são fruto da fatalidade. É evidente que a crise climática afetará a todos, mas não é por acaso que certos grupos populacionais sofrerão mais que outros. A longa história de marginalização social, econômica, política e espacial/territorial dos subalternos prosseguirá com um novo capítulo. E esse passado potencializará e multiplicará os impactos que sofrerão, bem como dificultará as estratégias e as ações de mitigação e de adaptação que lhes permitiriam sair da condição de vítimas anunciadas. O desenvolvimentismo ora em curso permite, particularmente por meio do Programa Bolsa Família, reduzir a miséria absoluta. Porém, o aumento de empregos e de geração de renda que lhe é associado não muda significativamente o quadro de desigualdade. E, agora, com o Plano Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC)3, tenta-se, em um exercício de funambulismo às cegas, equilibrar este mesmo “desenvolvimento” com os cuidados
para com o meio ambiente e a minoração do efeito estufa. Assim, juntam-se no fomento às injustiças ambientais, e agora climáticas, o passado, o presente e o futuro.
Futuro promissor para quem? O governo brasileiro apresenta-se mundialmente como um exemplo de país em matéria de cuidado para com o futuro do clima, graças, em particular, a sua matriz energética, que tem na hidroeletricidade a principal fonte, e seus programas de agrocombustíveis. Paradoxalmente, essas soluções energéticas levam a numerosas injustiças climáticas. Às injustiças provocadas pelo modelo atual vêm se somar, agora, as causadas pelas soluções oferecidas. O Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) calculava há alguns anos mais de 1 milhão de pessoas atingidas por barragens. Esse número não para de crescer. A condenação pelo Banco Mundial das grandes barragens já foi esquecida, e o governo brasileiro, sem prurido emocional, em nome do progresso, constrói e planeja monumentais barragens nos rios Madeira, Xingu e Tapajós. Evitamos a capciosa discussão sobre o número de atingidos diretamente, que seriam poucos à escala do território. Na realidade, regiões inteiras serão afetadas, assim como milhares de pequenos produtores, extrativistas, pescadores e povos indígenas que sofrerão um terremoto em suas vidas, mesmo que não sejam submergidos. Faz tempo que Tucuruí foi construída e que os empregos da obra sumiram, mas ficaram os destroços humanos desse tempo, trabalhadores desempregados, pescadores sem peixe, agroextrativistas sem terra nem floresta. Em contraposição às grandes barragens, as Pequenas Centrais Hidroelétricas (PCHs) são apresentadas como ambiental e socialmente corretas, tendo pouco impacto. Não é o que pensam os atingidos e os ambientalistas. São dezenas de barragens, sobretudo em Mato Grosso, Minas Gerais e no Sul, já existentes ou em projeto, denunciadas por ameaçar a sobrevivência de comunidades rurais e de povos indígenas, além de condená-los ao desaparecimento. Os agrocombustíveis – etanol e biodiesel – teriam vários méritos, além de sua
3 Governo Federal. Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima. Decreto nº 6.263, de 21 de novembro de 2007. Plano Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), Brasil. Brasília, dezembro de 2008.
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função climática: incrementar a pauta de exportação do agronegócio, aumentar o prestígio internacional do Brasil, fornecer numerosos empregos no campo. É verdade que o governo tenta envolver a agricultura familiar na produção de biodiesel. Esses esforços, por enquanto, não produziram resultados significativos. Em compensação, os sojicultores encontraram na produção de óleo de soja para fins energéticos uma complementação à renda dada pela venda da soja em grãos e do farelo e prepara-se na Amazônia a expansão da cultura do dendê – até agora reduzida a poucas áreas do Pará. Com o óleo de dendê, seriam atingidos dois objetivos do PNMC: contribuir para o “aumento da participação das fontes renováveis e energias limpas” e para a promoção da “produção florestal sustentável (madeireira e não madeireira) comunitária e empresarial”. O plano prevê passar de 5,5 milhões de hectares de plantações de árvores para 11 milhões em 2015, dos quais 2 milhões de espécies nativas. Com o dendê, as plantações de pinus e de eucalipto para a indústria papeleira ganham um amargo título de nobreza como protetoras do clima. Já foi observado e amplamente denunciado o efeito perverso do boom do etanol da cana-de-açúcar. Ela provoca o deslocamento da pecuária para terras mais baratas da Amazônia. No Nordeste, ela ressuscita empresas falidas, paralisando a implantação de assentamentos na região. É um triste paradoxo ver que essa ocupação crescente do território, destruidora da biodiversidade e da população que ainda resiste no campo e na floresta, agora se dá em nome de “nosso futuro comum”. Nesse panorama, essas populações minoritárias dentro de um Brasil urbano e suburbano, impregnado pela ideologia do desenvolvimento, pesam pouco. Se o governo
Seria demais esperar que um plano governamental sobre mudanças climáticas, na conjuntura atual, tivesse um capítulo sobre a Justiça Climática, pois o desenvolvimento é suposto trazer benefícios para todos
4 PAUL, Gustavo. Energia de sobra à espera de obra. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. 2009. Economia.
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oscila entre desenvolvimento e preservação, mesmo que o pêndulo se incline para o aprofundamento do modelo atual, a maioria no Congresso demonstra, quase que diariamente, sua opção pelo agronegócio. As escolhas produtivas e econômicas que a chamada bancada ruralista, apoiada pela maioria, defende vêm acompanhadas de um ataque permanente à legislação ambiental e às populações indígenas, quilombolas e camponesas que possam apresentar contenção às suas pretensões totalitárias de domínio do território e da economia rural. Formam um bloco com o poderoso campo de forças unido para viabilizar a maior quantidade possível de obras destinadas ao fornecimento de energia. Assim, o jornal O Globo, de 14 de junho de 2009, pôde intitular um artigo “Energia de sobra à espera de obras”, tendo como subtítulo “Questões ambientais ou indígenas reduzem em 20% capacidade de geração no Brasil”.4 Não há mais gente, somente questões burocráticas. Essa aliança se estende até a indústria brasileira e grandes conglomerados estrangeiros, pois a energia amazônica interessa mais à produção de alumínio, à siderurgia e a outros setores importantes da economia internacionalizada do que à região. Seria demais esperar que um plano governamental sobre mudanças climáticas, na conjuntura atual, tivesse um capítulo sobre a Justiça Climática, pois supõe-se que o desenvolvimento traga benefícios para todos. A insensibilidade não é total, como mostra essa citação do PNMC, mas é justamente esse desenvolvimento, agora chamado de sustentável, que salvará “os que sobram” da catástrofe: De forma geral, as populações mais pobres e com piores índices de desenvolvimento são as mais vulneráveis à mudança do clima, a qual vem intensificar problemas ambientais, sociais e econômicos já existentes. A adaptação passa, portanto, por promover melhores condições de moradia, alimentação, saúde, educação, emprego, enfim, de vida, levando em consideração a interação entre todos os aspectos e características locais, inclusive as ambientais. É consenso entre os estudiosos que a promoção do
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desenvolvimento sustentável é o modo mais efetivo de aumentar a resiliência à mudança do clima.
Se a voz geral da nação, pela voz do Executivo federal, dos congressistas e da opinião pública abalizada, clama por desenvolvimento, como o grito abafado das populações urbanas e rurais, dos povos indígenas e das populações tradicionais, de mulheres e de jovens sem perspectivas de futuro se fará ouvir? Como transformar sua aspiração por justiça em conquista de direitos? Em 1986, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas promulgou a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento na qual afirmava: [...] todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes, e que, para promover o desenvolvimento, devem ser dadas atenção igual e consideração urgente à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais[...] (Introdução)
O direito humano ao meio ambiente, não mencionado, não estava então reconhecido, o que faria a Constituição Brasileira dois anos depois: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de realizá-lo para as presentes e futuras gerações. (Art.225)
Ajuda humanitária como instrumento de poder Se necessidades econômicas e razões de Estado inspiraram e forçaram ao longo da história avanços na formulação e no reconhecimento dos direitos humanos, como nos casos do fim da escravidão e das colônias, há de se reconhecer que setores ponderáveis das sociedades industriais se sensibilizaram com certas injustiças e o horror decorrente suportado por povos, etnias e classes sociais. Infelizmente, a formulação no papel
dos direitos não é acompanhada de uma aplicação tão progressiva quanto legislações, pactos e declarações internacionais e nacionais poderiam deixar a entender. Guerras localizadas, ações contra o terrorismo, fechamento de fronteiras aos migrantes, predomínio das regras comerciais ditadas pelo neoliberalismo sobre as legislações nacionais etc. indicam que estamos em uma fase de regressão dos direitos. Em termos genéricos, os Dhescs são reconhecidos, mas com a ressalva de que são ideais a perseguir e que sua aplicação depende das condições dos Estados em realizá-los. Na prática, são frequentemente negados. É assim que o Fórum Mundial da Água, com participação predominante das empresas e dos governos, se recusa a reconhecer a água como um direito humano. Tem-se a sensação de que o direito ao desenvolvimento, proclamado pela ONU, mascara os direitos fundamentais. Às catástrofes humanas provocadas por guerras ou por eventos ambientais (furacões, tsunamis, enchentes, erupções vulcânicas, secas etc.) responde-se com ajuda humanitária, sem menção a direitos. Não se pode deixar morrer de fome, de sede e de miséria centenas de milhares de pessoas em campos de refugiados, mas a ajuda mínima que chega não questiona as responsabilidades além do imediato, de tal ou tal fatalidade, de tal ou tal guerrilha ou ditador. Pior que isso, as ajudas públicas são seletivas, conforme os interesses políticos dos países dominantes, o que transforma, às vezes, a ajuda humanitária em instrumento de poder. Nesse contexto, é duvidoso que, no plano internacional, haja um efetivo reconhecimento dos direitos decorrentes da crise climática. A situação não é muito diferente no plano nacional, já que se estima que o progresso econômico seja a melhor forma de avançar no cumprimento dos Dhescs. Essa visão permeia o Plano Nacional sobre Mudança do Clima e é ela, provavelmente, que dispensa o plano de ter um capítulo sobre Justiça Climática, dedicado às metas e ações de mitigação e adaptação voltadas para as vítimas presentes e futuras. Não há lugar para o otimismo nem para o pessimismo niilsta. Os transtornos em curso não anunciam o fim da humanidade,
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* Jean Pierre Leroy Pesquisador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase Nacional), integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental
bem como a negação dos direitos humanos não significa que o ideário da igualdade foi definitivamente enterrado. A desmoralização da política entre nós e sua redução a interesses privados e/ou de classe joga a suspeição sobre o projeto de desenvolvimento e de sociedade proposto e implementado pelas elites. Portanto, há espaço e tempo para a ação.
Dúvidas e alternativas As inúmeras denúncias que chegam à Rede Brasileira de Justiça Ambiental, da qual o autor deste texto é membro, evidenciam aquilo que quem está em contato com os setores sociais mencionados aqui sabe: dentro do modelo de crescimento perseguido, no que diz respeito às populações urbanas conflagradas pelos riscos ambientais que sofrem, se parte delas é integrada à sociedade via emprego, outra parte, em particular a juventude, não tem espaço na economia de mercado. Por sua vez, as populações rurais-florestais sobram. Não há lugar para elas, a não ser que cumpram alguma função que sirva aos interesses dominantes. O campo do agronegócio mostra que, para ele, também os quilombolas e os povos indígenas sobram: ou desaparecem, se integrando, ou subsistem em reservas estreitas como testemunhos do passado. Olhando o que acontece, pode-se concluir que o sacrifício de uns é visto como necessário para o progresso da maioria. Será mesmo? São esses “sobrantes” meros restos do passado ou têm algo a dizer sobre nosso futuro? O enfrentamento das mudanças climáticas deve se dar em duas direções: 1) na reconexão da economia ao planeta, parando de consumir mais território e recursos do que o possível; e 2) no plano tecnológico, na busca de soluções frente ao inevitável. O problema é que a primeira direção é abordada sem que seja questionada a ideologia do desenvolvimento e do progresso. Em contraponto, as populações mencionadas ao longo do texto apontam para um caminho. A uma economia devoradora de recursos naturais e que somente se sustenta se continuar a produzir sem parar novos produtos, tanto na floresta e no campo
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como nas cidades, sempre há mais pessoas que investem na economia solidária, distante da busca do lucro e, por isso, poupadora de recursos. A agricultura camponesa familiar e o agroextrativismo, quando encontram condições suficientes para sua reprodução, mantêm e produzem biodiversidade, água, cobertura florestal, tudo o que será precioso frente às mudanças do clima. Já desenvolvem experiências de produção de energia local. Com a capacidade de produção diversificada de alimentos, mostram que é possível desenvolver o abastecimento local, contribuindo, assim, com a economia de energia em transportes de longa distância. Na Amazônia, as populações tradicionais e os povos indígenas são os últimos anteparos à devastação. Infelizmente para a humanidade, esses setores sociais e as soluções que apontam são marginais. Um número crescente de cientistas e de formadores de opinião considera que uma drástica mudança de clima mundial é irreversível e que não há outras soluções a não ser a “artificialização” do planeta por meio da tecnologia. É extremamente preocupante, não só porque se entreabre uma porta para a ação de aprendizes de feiticeiros, a exemplo dos que ensaiam jogar nanopartículas de ferro no oceano para resfriá-lo; mas porque a aliança entre ciência, tecnologia e empresas indica que são considerações de ordem privada que orientam a busca de soluções. Podemos daí augurar que a injustiça climática entre países e entre classes sociais se aprofundará.
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d e b a t e O dilema do já presente aquecimento global, e as mudanças climáticas daí decorrentes, suscitam entre especialistas um debate urgente e necessário: o Brasil deve investir esforços para aumentar sua matriz energética a partir de combustíveis fósseis? Essa seria a solução mais ‘ambientalmente responsável’ diante das previsões sinistras apontadas nos últimos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)?
Pré-sal em
Acreditando que debater e refletir é sempre a melhor pedida antes de qualquer solução, esta edição da revista Democracia Viva traz, a seguir, três análises de especialistas no assunto: do professor da USP, Célio Bermann; do presidente do Conselho Curador do Ibase, Sebastião Soares; e do assessor do BNDES, Antonio Barros de Castro. Esperamos, desta forma, contribuir para que você, como leitor(a) e cidadão(ã), também participe desta reflexão e possa tirar suas próprias conclusões.
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Agência Brasil
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d e b a t e
O petróleo do pré-sal: o meio ambiente esquecido Célio Bermann
Professor livre-docente do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), coordenador da linha de pesquisa Energia, Sociedade e Meio Ambiente <cbermann@iee.usp.br>
A exploração pelo nosso país do petróleo da camada do pré-sal tem ganhado um enorme espaço nos recentes debates. Mudanças no marco regulatório, criação de uma nova empresa – Petrosal –, destinação da renda a ser auferida com a exploração e comercialização do petróleo são, sem dúvida, questões importantes para uma ampla e democrática discussão que se faz necessária. Entretanto, as consequências para o meio ambiente das atividades de exploração, desenvolvimento e produção que estão presentes na cadeia produtiva do petróleo do pré-sal estão absolutamente ausentes desse debate. O petróleo da camada do pré-sal consiste em uma faixa que se estende ao longo de 800 quilômetros entre os estados do Espírito Santo e Santa Catarina, com 200 quilômetros de largura e a 300 quilômetros da costa brasileira. O petróleo está abaixo do leito do mar, e engloba três bacias sedimentares (Espírito Santo, Campos e Santos). O petróleo
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encontrado nessa área está a profundidades que podem superar os 7 mil metros. Essa camada é resultado da decomposição de materiais orgânicos situados no mar fechado, se formou com a separação dos continentes anteriormente unidos, e que deram origem à América do Sul e à África. A gênese desse processo ocorreu há cerca de 110 milhões de anos, em condições ambientais que possibilitaram um acúmulo de matéria orgânica como algas e micro-organismos produzidos sob ação da energia solar. Enquanto que a evaporação do mar deu lugar à formação de uma camada de sal, esse material orgânico se entranhou abaixo dessa camada em uma feição geológica chamada de microbiólito, onde ocorreu a lenta transformação em petróleo. Esse petróleo ficou retido abaixo da camada de sal à medida que esta foi se tornando mais impermeável por conta da sua consolidação. O conhecimento por parte da Petro-
d e b a t e bras da existência desse petróleo foi obtido a partir de esforços técnico-científicos desenvolvidos nas últimas décadas, com o desenvolvimento de modelos que buscavam interpretar as características das feições geológicas com os dados disponíveis. Entretanto, a comprovação da sua existência apenas foi obtida em novembro de 2007, com a descoberta, no campo de Tupi, de reservas estimadas de 5 a 8 bilhões de barris, de um óleo com 28 graus API, de melhor qualidade comercial do que a média do petróleo encontrado no Brasil, e mais fácil de refinar. A partir dessa descoberta, sucedeu-se uma série de avaliações da dimensão total das reservas no pré-sal. A questão é que não se sabe ainda, com o rigor científico necessário, se o petróleo existente no pré-sal está presente uniformemente no continente formado pela área de 160 mil quilômetros quadrados correspondente, ou se tratam de bolsões formando um “arquipélago”. Ou seja, se se trata de um campo único ou de uma sequência de campos. Tal desconhecimento acabou por permitir que se especule reservas que variam entre 50 e 150 bilhões de barris de óleo equivalente (considerando petróleo e gás natural). Além das reservas já mencionadas no campo de Tupi, de concreto o que se tem é a confirmação da Petrobras de reservas também no campo de Iara, da ordem de 3 a 4 bilhões de barris de óleo equivalente, e no campo de Parque das Baleias, com reservas da ordem de 1,5 a 2 bilhões de barris de óleo equivalente. Além desses três campos, as atenções estão voltadas para a avaliação dos campos de Guará e Carioca, Bem-Te-Vi e Júpiter, este último com gás natural. Para um país com reservas estimadas em 14,4 bilhões de óleo equivalente, os campos já conhecidos situados no pré-sal indicam um acréscimo na faixa de 9,5 a 14 bilhões de barris de óleo equivalente. Ou seja, no que já é conhecido, o país poderá dobrar as suas reservas, podendo chegar a multiplicar por dez se a estimativa dos 150 bilhões de barris se confirmar. Para o Brasil, esses números são significativos, mas estão longe de o serem no contexto internacional. Para a atual estimativa
de reservas provadas da ordem de 1,37 trilhão de barris, na mais otimista das hipóteses (150 bilhões de barris), o petróleo do pré-sal não significa mais do que 11% de participação no acréscimo. Participação muito aquém daquela que a Venezuela poderá acrescentar no futuro próximo com o óleo betuminoso encontrado na bacia do rio Orinoco, da ordem de 314 bilhões de barris. Ou o Canadá, com depósitos do mesmo óleo betuminoso da ordem de 270 bilhões de barris.
Pré-sal e as mudanças climáticas
O país poderá dobrar as suas reservas, podendo chegar a multiplicar por dez se a estimativa dos 150 bilhões de barris se confirmar
O mundo consome atualmente 84 milhões de barris por dia, ou cerca de 30,6 bilhões de barris/ano. Considerando que cada barril de petróleo queimado emite entre 420 e 440 quilos de CO 2 (sem contar o carbono emitido ao longo da cadeia produtiva, nos processos de extração, transporte, refino e distribuição)1 e que o mundo emite anualmente cerca de 36,3 bilhões de toneladas de CO2 2 (incluindo a queima dos combustíveis fósseis – petróleo, gás natural e carvão, além do desmatamento), podemos estimar que o petróleo da camada do pré-sal irá acrescentar às emissões, nas próximas décadas, de 33 a 62 bilhões de toneladas de CO2. Ou seja, se todo o petróleo recuperado do pré-sal for queimado, as emissões serão equivalentes ao que atualmente o mundo emite em um ou dois anos. Esses dados – aqui apresentados com a devida cautela por serem aproximativos, em função das incertezas quanto à extensão das reservas já assinaladas – nos permitem afirmar que a contribuição do pré-sal para a agudização do processo de aquecimento global deve ser relativizada, e em termos quantitativos, não é tão significativa como se poderia supor. No entanto, isso não significa que o
1 Cf. cálculos de Schaeffer e Horta, publicados no jornal O Estado de São Paulo, de 28/5/2009. 2 Cf. IPCC-Intergovernmental Pannel of Climate Change, Quarto Relatório de Avaliação, fevereiro/2007. Esta avaliação estimou uma emissão de cerca de 234 bilhões de toneladas de dióxido de carbono entre os anos 2000 e 2006.
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país poderá explorar seu megacampo sem preocupações com as mudanças climáticas. Dado o caráter inexorável da humanidade permanecer queimando os combustíveis fósseis nas próximas décadas, os debates e as avaliações científicas passaram a se desenvolver em torno da percepção de que poderíamos definir um limite nas emissões futuras dos gases de efeito estufa, de modo a atenuar os efeitos deletérios das mudanças climáticas. Nesse sentido, parece haver um consenso de que o mundo poderia gerenciar os efeitos de um aumento da temperatura não superior a 2ºC até o ano 2050. Para tanto, foram desenvolvidos diversos trabalhos de modelagem do comportamento climático, tendo esse limiar como referência, para em seguida verificar qual a quantidade de combustíveis fósseis que poderia ser queimada nestes próximos 40 anos, de forma a alcançar um comprometimento mínimo com o equilíbrio dos vários ecossistemas terrestres em função do aumento da temperatura. Conforme Meinshausen et al. (2009)3, o limite da emissão acumulada no período de 2000 a 2049, de 1 trilhão de toneladas de CO2, ,trará uma probabilidade de 25% da temperatura exceder os 2ºC, enquanto que a emissão para o mesmo período, de 1,44 trilhão de toneladas de CO2, trará uma probabilidade de 50%. Ainda conforme esse estudo, o limite de 886 bilhões de toneladas de CO2 trará uma probabilidade de 20% da temperatura exceder os 2oC. Isso significa que para que o planeta não comprometa de forma irreversível o seu futuro, será necessário que, nos próximos 40 anos, se emita “apenas” 652 bilhões de
O desafio que o processo de mudanças climáticas impõe para o mundo é enorme se forem mantidos os padrões de produção e consumo atuais, extremamente dependentes dos combustíveis fósseis, e em particular, do petróleo
3 Cf. Meinshausen, M. et al. Greenhouse-gas emission targets for limiting global warming to 2ºC. In: Nature, vol.458, 30/04/2009, pp. 1158-1162.
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toneladas de CO2, ou menos de três vezes em 40 anos o que o mundo já emitiu nos seis primeiros anos deste século. E ainda com o risco de esse esforço só representar 80% de chance de alcançar o desejado. Nessas condições, as emissões decorrentes do petróleo do pré-sal assumem uma grande importância pois, independentemente do ritmo de exploração que podemos esperar, elas responderão por cerca de 9,5% do total das emissões consideradas como permissíveis. O desafio que o processo de mudanças climáticas impõe para o mundo é enorme se forem mantidos os padrões de produção e consumo atuais, extremamente dependentes dos combustíveis fósseis, e em particular, do petróleo. Neste desafio, o Brasil não se apresenta apenas como o país na dianteira mundial dos combustíveis renováveis, cuja quantidade possível de ser produzida, em conjunto com os demais países, será incapaz de substituir, de forma significativa, os combustíveis do petróleo (gasolina e diesel). Ele também se apresenta como um importante agente no incremento das emissões a partir das atividades de exploração, desenvolvimento e produção do petróleo localizado no pré-sal. Como vimos, essa participação deve ser relativizada em função do contexto internacional. Se servir de conforto, nosso país não estará só, com seus 80 a 150 bilhões de barris do pré-sal a serem queimados nas próximas décadas. Lembrando que os 1,37 trilhão de barris de reservas provadas mundiais proporcionam mais 45 anos de “segurança” se mantendo o atual ritmo de produção e de consumo, e adicionando a esse total os cerca de 600 bilhões de barris do petróleo betuminoso do Canadá e da Venezuela, nada leva a crer que assistiremos, em futuro próximo, a uma radical inflexão neste contexto. A insensibilidade ambiental parece ser a regra que prevalecerá. O atual debate sobre a proposta do governo Lula para a política do petróleo do pré-sal, onde a questão ambiental está ausente, infelizmente apenas confirma esta asserção.
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Pré-sal e cenários de desenvolvimento com redistribuição A exploração das reservas de petróleo do pré-sal apresenta muitas oportunidades que, adequadamente aproveitadas, podem conformar e viabilizar, durante a primeira metade do século XXI, o mais importante projeto para o Brasil. É a construção de uma grande nação que seja democrática, justa e soberana, bem como social, ambiental e economicamente desenvolvida. O território brasileiro constituindo um espaço que acolha, abrigue e integre uma sociedade aberta e plural, diversificada e pacífica, sem desequilíbrios, exclusões e discriminações de quaisquer naturezas. No entanto, a implementação desse projeto, em suas vertentes econômica e social, mediante o aproveitamento da abundância petroleira, implica, essencialmente, promover uma ampla realocação distributiva de encargos e benefícios. E nossa experiência histórica demonstra a impossibilidade de que isso possa ocorrer exclusivamente por meio dos mecanismos usuais de mercado. São também imprescindíveis órgãos e instituições de Estado, políticas públicas e instrumentos peculiares e adequados ao enfrentamento desse desafio. A dinâmica do crescimento por consumo de massa tem sido bem-sucedida em países com mercado de grande dimensão, tanto pelo contingente populacional como pela propensão ao consumo da população. No Brasil, o modelo do consumo de massa está consagrado no Plano Plurianual até 2011, e a economia brasileira apresenta condições objetivas para que isso, de fato, se efetive. As oportunidades abertas pela descoberta do Pré-sal, e o seu aproveitamento de forma adequada, pode assegurar, a longo prazo, a evolução sustentada dessa dinâmica,
em dimensões compatíveis com as necessárias à construção de uma grande Nação. É disso que se trata neste artigo.
Cadeia produtiva do petróleo e desenvolvimento sustentável A pesquisa, exploração, produção e o transporte de petróleo bruto; o refino, a produção e distribuição de derivados; bem como todos os segmentos a jusante, no campo da indústria química e petroquímica, compõem um enorme conjunto de atividades industriais e de prestação de serviços, interdependentes, que atualmente já têm significativa presença na economia brasileira. O aproveitamento das reservas de petróleo e gás do pré-sal, se adequadamente equacionado e implementado, poderá induzir uma vigorosa expansão dessas atividades e, assim, converter a cadeia produtiva de petróleo no poderoso vetor que irá estimular, orientar e suportar o processo de desenvolvimento sustentável – econômico, social e ambiental –, em benefício da nação brasileira, durante as próximas décadas. Nessa ordem de ideias, e em primeiro lugar, o aproveitamento do pré-sal não pode converter o Brasil em um grande exportador de petróleo bruto. É preciso agregar valor ao produto extraído mediante o refino e a produção de derivados e produtos de segunda e terceira gerações. A partir daí, o amplo espectro de setores industriais que utilizam insumos petroquímicos, tais como fertilizantes, plásticos e outros, também agregam valor ao produto. Dessa forma, a diretriz básica a ser adotada é o suprimento do mercado interno, exportando
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apenas produtos de maior valor agregado. A comercialização externa de petróleo bruto seria tolerada apenas em quantidades marginais e/ ou em situações ou condições excepcionais, nas quais o interesse nacional, especialmente de caráter geopolítico, as justificasse. Em segundo lugar, é indispensável maximizar as encomendas dos bens e serviços às empresas brasileiras aqui instaladas. Desde a construção naval, passando pelas indústrias fabricantes de equipamentos para apoio e realização de pesquisas, extração, armazenamento, bem como para o refino e todos os segmentos down stream, e até segmentos mais sofisticados, como a robótica, deverão ser majoritariamente adquiridos no parque nacional. Deverá haver estímulo e apoio tecnológico, fiscal e financeiro para que as indústrias já existentes se ampliem, e também, para que novas se instalem. Igualmente, no setor de prestação de serviços deverão ser priorizadas as encomendas no Brasil, abrangendo todos os ramos da engenharia, nas atividades de desenvolvimento, projeto básico e detalhamento de processos, equipamentos e instalações, passando por logística e transporte e alcançando segmentos específicos, tais como desenvolvimento de sistemas de informática (soft e hardwares), treinamento e capacitação de recursos humanos, e outros. A partir de um patamar mínimo inicial, por exemplo de 65%/70%, é conveniente se estabelecerem metas crescentes para os índices de nacionalização, a serem alcançados em determinado prazo. Adicionalmente ao que se expôs anteriormente, é preciso realizar um significativo esforço de desenvolvimento tecnológico interno. Temos as condições básicas necessárias para isso, no âmbito do denominado Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, com nossas universidades e centros de pesquisas, os órgãos de Estado voltados a essa temática e um valioso contingente de pesquisadores, em todas as regiões do país. Dispomos, também, de alguns paradigmas exitosos, nos contextos nacional e internacional, que cabe expandir/multiplicar ou “aclimatar”. Como exemplos são citados: (i) o desenvolvimento tecnológico, para pesquisa e exploração de petróleo em águas profundas, da plataforma marítima, resultado esse que, em grande parte, deve ser creditado à parceria Coppe-UFRJ/Cenpes (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de
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Janeiro/Centro de Pesquisas da Petrobras); (ii) as novas tecnologias para processamento de petróleo pesado e a produção de insumos e produtos petroquímicos de primeira e segunda gerações que viabilizaram o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Projeto Comperj); e (iii) a indústria de construção naval asiática, especialmente na Coreia do Sul e em Singapura, que, mediante um amplo e diversificado esforço de pesquisa e inovação tecnológica, colocou seus produtos em patamar elevado de competitividade. Como dissemos, temos as condições necessárias; precisamos, no entanto, realizar uma grande articulação de atores, com interesses e inserções diversas, em torno da questão para a concretização desse objetivo; são eles, sem pretender esgotar a lista: Petrobras, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), universidades e centros de pesquisas de todo o país, empresas nacionais e suas organizações, Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT) e Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Um quarto aspecto muito importante consiste na absoluta necessidade de que o aproveitamento do pré-sal ocorra sem agressões ao meio ambiente. A realização desse objetivo apresenta uma extensa interseção com o tema do desenvolvimento tecnológico endógeno. Trata-se de buscar soluções tecnológicas, em todas as situações, que sejam “limpas”, isto é, isentas de efeitos danosos ao meio ambiente, ou, quando existentes, que sejam devidamente mitigados. O leito do mar e todo o bioma marinho da plataforma continental brasileira apresentam uma enorme biodiversidade. Em especial, as algas marinhas são consideradas muito importantes na geração do oxigênio da atmosfera. Esse nosso patrimônio é muito valioso e não pode ser destruído ou malbaratado. É a Amazônia Azul e precisamos dela cuidar. A geração de CO2 decorrente do uso do gás natural ou de combustível derivado do petróleo como fonte energética nas instalações marítimas e nas instalações de terra, bem como nas unidades industriais da cadeia produtiva, pode ser resolvida ou mitigada com o desenvolvimento de tecnologia economicamente viável, para captura e armazenamento de carbono (CCS – Carbon Capture and Storage). As pesquisas estão em fase inicial, e ainda não são conhecidas as condições nas quais
essa solução poderia ser adotada. A propósito, seria muito conveniente e desejável estabelecer, em todas as iniciativas e todos os projetos de desenvolvimento tecnológico, referentes ou não à cadeia produtiva do petróleo, no âmbito do Sistema Nacional da Ciência e Tecnologia, a diretriz de dar, sempre, um foco especial na busca de tecnologias ambientalmente sustentáveis. O quinto ponto a ser tratado diz respeito ao ritmo que deve ser aplicado na implementação do projeto pré-sal. Neste tema, penso ser mandatório que a aceleração aplicada à implantação do empreendimento seja aquela compatível com a plena realização dos quatro objetivos já delineados. Mais que isso, ao longo do tempo, o ritmo deve ser marcado pela velocidade com que se poderá alcançar o objetivo mais difícil, ou de implementação mais lenta, dos quatro apresentados. Em hipótese alguma, devemos nos pautar pela lógica, e o desejo, dos grandes consumidores de petróleo. São economias desenvolvidas, fortemente dependentes do petróleo, cujas reservas são hoje muito escassas em seus territórios e, por isso, são obrigadas a buscar o seu abastecimento em geografias distantes, que estão crescentemente conturbadas por razões políticas. Para esses consumidores, as reservas do pré-sal constituem alternativa de suprimento fortemente atrativa. Quais seriam, então, as consequências para o Brasil? Estaríamos, durante as próximas décadas, gerando milhões de empregos de qualidade distribuídos por todo o território nacional; realizando investimentos estratégicos, especialmente nos setores fabricantes de equipamentos, com desenvolvimento e incorporação de modernas tecnologias sustentáveis, com os correspondentes ganhos de produtividade; e alcançando um novo patamar de crescimento do PIB. Na realidade, estaria sendo fortalecida, ampliada e consolidada a dinâmica do consumo de massa, realizando-se, assim, e de forma irreversivel, o desenvolvimento sustentado com distribuição de renda.
Destinação dos recursos decorrentes da exploração do présal Aos patamares atuais dos preços internacionais do petróleo – no entorno de US$ 70 por barril –, o aproveitamento dos hidrocarbonetos do pré-sal apresenta excelente rentabilidade. Isso decorre basicamente das elevadas dimensões das reservas e de não existir, praticamente,
risco geológico de pesquisa e de exploração. Considerando a agregação de valor ao petróleo extraído, que se pretende seja uma diretriz fundamental do empreendimento, com a experiência do operador que se espera venha a ser a Petrobras, e com os incrementos naturais de produtividade que sempre ocorrem nos projetos na medida em que amadurecem, aquela rentabilidade confortável, obtida desde o início, será ainda significativamente ampliada. Assim sendo, mesmo que se transfira parcela importante dessa rentabilidade aos rendimentos dos trabalhadores, mediante aumentos reais dos salários e ainda que se assegure o devido retorno aos investimentos feitos, bem como todos os encargos tributários devidos aos entes federativos, o que sobra corresponde a um montante muito elevado, e será apropriado pelo dono do petróleo bruto produzido. Se for instituído um sistema de partilha da produção pelo novo marco regulatório, e dependendo da participação que for destinada à União Federal (por exemplo 80%), esta disporá anualmente de um montante elevado de recursos líquidos e absolutamente disponíveis, medido na escala de dezenas de bilhões de dólares. Cabe destacar que tais recursos são adicionais à atual tributação incidente nessas atividades, e destinada às Fazendas municipais, estaduais e federal. A sua totalidade estará disponível para a União, em consequência de disposição constitucional (Art. 20, da Constituição Federal), e será parte denominada em moeda nacional e parte em divisas. Assim sendo, é oportuno constituir com eles um ou mais fundo(s) soberano(s), em regime de capitalização, com criação e operação adequadamente reguladas. Na sua constituição, seria definida a forma e o ritmo da capitalização e da respectiva utilização. Nessa etapa, caberá também definir sua destinação e, nesse caso, propõe-se a sua aplicação em três vertentes assim denominadas: (i) investimentos sociais; (ii) benefícios para gerações futuras; e (iii) busca de sustentabilidade ambiental. A primeira vertente, dos investimentos sociais, corresponde a acréscimos às usuais dotações orçamentárias da União à Educação e à Saúde. No primeiro caso, reforçando e ampliando os projetos e ações que compõem o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), com ênfase na universalização da educação infantil, na ampliação dos cursos técnicos e profissionalizantes e do terceiro grau, em todo
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o território nacional, bem como, melhorando significativamente a qualidade do ensino em todos os graus. No campo da Saúde, consolidando a prestação dos serviços no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e estendendo sua cobertura, ampliando o número de equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e de Agentes Comunitários de Saúde, de modo a universalizar a prestação desses serviços a toda a população brasileira. E, aqui também, com o objetivo de melhorar significativamente a qualidade do atendimento, em todas as situações e em todo o país. Na vertente dos benefícios para as gerações futuras, alinham-se, de um lado, as alocações de caráter social, para a universalização da previdência social para todos os brasileiros, com patamares satisfatórios para o valor dos benefícios previdenciais, ao longo do tempo. E, também, para ampliar a cobertura e o patamar dos recursos alocados no âmbito da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas). Nesse último caso, o objetivo é a consolidação de um conjunto de políticas públicas e de uma rede de órgãos e entidades capazes de prover a proteção social, de efetividade compatível com a extensão do território nacional e com as necessidades da população brasileira. De outro lado, ainda nessa vertente, seriam alocados recursos em projetos e ações de caráter estratégico, para defesa da soberania brasileira em todo o território nacional, e no mar, até as 350 milhas de distância do litoral, área que o Brasil considera sob seu domínio, e que está em fase de reconhecimento pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nas zonas fronteiriças em terra, especialmente na Região Amazônica, e também no mar, onde estão as reservas do pré-sal, é necessário que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica tenham recursos para assegurar, hoje e para as futuras gerações de brasileiros, a nossa plena e inconteste soberania sobre essas áreas. À questão da sustentabilidade ambiental seria destinada a terceira parcela da macroalocação dos recursos provenientes do(s) fundo(s) soberano(s). Como exemplos de programas e empreendimentos nesse campo podem ser relacionados, sem pretender esgotar tais possibilidades: • investimentos, e aplicações de custeio, para detectar, monitorar e reduzir drasticamente o desmatamento na Amazônia;
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• investimentos no âmbito do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia em parceria com os setores produtivos, para o desenvolvimento de tecnologias “limpas”, citando-se como exemplo: (i) o aproveitamento da biodiversidade existente no bioma amazônico e do centenário conhecimento e cultura dos povos da floresta, no campo da “medicina popular” da região, visando à utilização de produtos fitoterápicos, bem como o desenvolvimento de novos princípios ativos para a indústria químico-farmacêutica; (ii) captura de carbono na atmosfera (CCS), junto aos grandes consumidores de energia oriunda de combustíveis fósseis; (iii) pesquisa e desenvolvimento, juntamente com a indústria automobilística brasileira e suas associações, do carro elétrico brasileiro; • investimentos para desenvolvimento tecnológico e inovação – e também na produção, distribuição e utilização do álcool combustível e do biodiesel. Desenvolvimento de uma nova alcoolquímica, como alternativa à produção de insumos e produtos derivados dos combustíveis fósseis. Além dos ganhos diretos para a economia brasileira decorrentes desses aportes provenientes do(s) Fundo(s) Soberano(s), sua mera existência constituirá instrumento valioso na viabilização de ações e políticas contracíclicas. Ademais, o fortalecimento de toda a cadeia produtiva do petróleo, como se tratou anteriormente, e a continuidade dos investimentos que hoje vêm sendo realizados em setores da Infraestrutura, principalmente energia elétrica e transportes; em Saneamento Básico; em Habitação; e outros, constituirão um conjunto de circunstâncias e situações favoráveis que certamente sustentarão o desenvolvimento brasileiro nas próximas décadas. Para concretizar essa agenda pré-sal, há a necessidade de o Poder Executivo desenvolver um amplo espectro de articulações políticas e institucionais. No plano externo, é preciso articular com os países da América do Sul, especialmente no âmbito do Mercosul e da Unasul (Conselho de Defesa Sul-Americano), com países da África e da Ásia, especialmente Angola, África do Sul, Índia e China. Também com os países desenvolvidos, no âmbito do G-20 e com organismos multilaterais, da ONU. No campo interno são muito necessárias amplas e extensas negociações com o Congresso
Nacional e articulações com o Poder Judiciário e os entes federativos (estados e municípios), os meios de comunicação, os empresários e suas organizações, os sindicatos de trabalhadores, as organizações e os movimentos da sociedade civil.
Situação atual Os quatro projetos de lei recentemente encaminhados ao Congresso Nacional constituem propostas do Executivo que, certamente, poderão ser aperfeiçoadas pelo Legislativo. Em síntese, consideramos positivos os seguintes pontos: (1) o novo marco regulatório consagra o modelo de partilha como aquele que será adotado. È uma sábia decisão, dadas as características das reservas do pré-sal e o uso que dela pretendemos fazer; (2) a criação da Petro-Sal, que assumirá, em nome da União, a parcela que lhe couber na partilha do petróleo extraído e, como agente do Estado, exercerá, na exploração do pré-sal, um importante monitoramento de aspectos relevantes para assegurar a plena realização dos objetivos nacionais; (3) o papel da Petrobras será bastante relevante, a saber (i) será a operadora de todos os blocos explorados, devendo ter uma participação acionária expressiva em todos eles, para bem desempenhar essa missão; (ii) poderá ela própria participar dos leilões, só ou em parceria com outros investidores; (iii) poderá ser contratada diretamente pela União, para explorar os blocos que apresentem grande reserva estimada; (4) o BNDES está capacitado e preparado para ser o agente financeiro principal no financiamento do projeto. Suas equipes técnicas, seus recursos financeiros, sua forte experiência aportam segurança na execução dessa função. Estão ainda imprecisos ou obscuros os equacionamentos propostos em relação a outras questões, tais como: (1) a própria taxa que caberá à União na partilha; em cada situação, será estabelecida uma referência mínima, sendo vencedor o licitante que oferecer a maior taxa, obviamente acima do mínimo estabelecido. Pelo exemplo internacional, em situações semelhantes ao pré-sal (magnitude das reservas e inexistência ou baixo risco geológico), essa taxa mínima deveria situar-se em 80%;
(2) a utilização do petróleo destinado à União – há indicações que a Petrobras será a encarregada da sua comercialização, mas nada se anuncia no que concerne à agregação de valor ao petróleo produzido, como amplamente abordado neste trabalho; (3) quanto à destinação dos recursos do Fundo Social a ser criado, os objetivos são muito genéricos, nada havendo em relação a importantes finalidades, especialmente as que aqui denominamos como vertente dos benefícios para gerações futuras; (4) como será tratada a unitização das reservas quando ocorrer interseção entre blocos já concedidos e blocos do pré-sal; (5) o aumento do capital social da Petrobras a ser promovido pela União, embora meritório e necessário, é operação complexa que ainda não está claramente encaminhada. Finalmente, como dificuldades que, desde já, são esperadas na definição dos meios e modos de explorar as reservas do pré-sal, podem ser relacionadas: (1) a tramitação dos projetos de lei do executivo no Congresso Nacional; (2) os poderosos interesses nacionais, e internacionais, contrariados pelo que se delineia na equação que está sendo estruturada; (3) a posição da maioria dos grupos que detêm o controle da grande mídia no Brasil; (4) o longo prazo e a complexidade de equacionamento de alguns aspectos indispensáveis ao sucesso do aproveitamento do pré-sal com apropriação pelo país e o seu povo, dos resultados desse empreendimento. Face à importância do projeto pré-sal e às oportunidades que ele oferece, bem como frente aos riscos existentes, de uma inadequada exploração, há um desafio para todos nós: devemos nos mobilizar – os trabalhadores e os empresários; os jovens e os mais velhos; o campo e as cidades; os profissionais liberais; os formadores de opinião; enfim, a sociedade civil organizada, ou não – para que seja adequadamente equacionada a exploração das reservas do pré-sal em benefício do Brasil e de sua população.
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Rumos da economia – a questão reaberta? Antonio Barros de Castro *1
Assessor da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
1 Resumo da palestra proferida por Antonio Barros de Castro, no seminário em comemoração aos 200 anos do Ministério da Fazenda, em 10 de setembro de 2008. O presente resumo foi elaborado por Ana Bittencourt, editora da revista Democracia Viva, do Ibase.
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Primeiramente, quero deixar claro que parto da suposição de que a economia brasileira se encontra diante de uma situação inesperada, fora da tela, digamos, em termos do debate e dos prognósticos acerca da sua evolução. Isto decorre, por um lado, das recentes descobertas de novas e grandes oportunidades, especialmente no campo do petróleo; por outro, de profundas mudanças em curso na economia mundial. Combinadas, estas mudanças tendem a alterar as possibilidades e até mesmo os rumos, daqui por diante, do crescimento econômico deste país. Devo sublinhar que as reflexões a seguir apresentadas estão muito longe de concluídas, podendo nelas ser encontradas mais incógnitas do que equações. Até um ano atrás, do ponto de vista do petróleo, esta economia aspirava apenas suprir suas próprias necessidades: uma luta histórica, que estava, enfim, por ser ganha, após meio século de esforços. Contra este pano de fundo, o pré-sal, que supostamente acrescenta às reservas brasileiras, algo como cinco vezes o seu valor total, antes da descoberta, introduz uma possível guinada, ou descontinuidade, na evolução da economia. Mais que isto, evoca lembranças de um tipo de economia e de uma problemática há décadas superada neste país. Refiro-me à possibilidade, ao que parece reencontrada, de que o crescimento da economia brasileira volte a ser puxado pela exportação
de produtos primários – fenômeno mais que recorrente, dominante, na América Latina. Mas refiro-me também e, sobretudo, a uma questão praticamente ausente, até ontem, nesta economia: a enorme discrepância entre o custo e o valor de mercado da produção, em atividades líderes, que marcam ou, mesmo, plasmam o padrão de crescimento vigente na economia. Esta é, no entanto, uma questão muito antiga, que volta a adquirir, na atualidade, uma enorme importância. Quem a enfrentou pela primeira vez foi, possivelmente, a Espanha, no século XVI, com o ouro e a prata chegados da América. Por que razão a súbita descoberta de abundante riqueza natural tende a acarretar profundas consequências econômicas e sociais? Não é apenas pelo acréscimo imediato de riqueza e renda que daí decorre. Ocorre que a diferença, que pode ser brutal, entre os custos de produção ou extração, e o preço a que são vendidos os produtos, coloca no centro da vida econômica, social e política da nação, a “renda da terra”. Resumidamente, daí por diante, a apropriação e os usos dados à renda da terra passam a condicionar profundamente a economia e a sociedade – que tornam-se também sujeitas às grandes flutuações de preços típicas dos mercados internacionais de commodities. Visto a partir dessa complexa temática, o capitalismo parece haver completado dois ciclos – e está
d e b a t e ingressando em um terceiro. O primeiro ciclo foi centrado na Inglaterra. Ali, sem dúvida, questões como a pressão sobre os recursos naturais, e a renda da terra daí derivada, constituíam um tema de grande importância. O segundo grande ciclo surge com a transferência do centro do capitalismo para os Estados Unidos. Em contraposição ao caso inglês, os Estados Unidos se caracterizam pela notória abundância de recursos naturais. Na perspectiva aqui adotada, o terceiro ciclo tem início quando a China, tomando a dianteira da Ásia, começa a efetivamente restaurar a escassez de matérias-primas e petróleo. Daí decorre o surgimento de um mercado internacional favorável aos bem dotados em recursos naturais. De início, são apenas as quantidades vendidas que crescem mais rápido. Posteriormente, digamos a partir de 2003, também os preços. Tendo por fundamento a pressão comandada pela China, a alta dos preços, uma vez percebida como tendência, passou a ser reforçada pela especulação financeira. Em consequência, “bilhetes premiados” passavam a ser concedidos a regiões privilegiadas pela natureza. Que seriam estes bilhetes premiados? Situações em que o retorno obtido na exploração de determinados recursos se mostra não apenas muito maior que os custos como também muito superior ao alcançado nas demais atividades pré-existentes na região.
O caso brasileiro O pré-sal longe está de ser o único bilhete premiado recebido pelo Brasil no novo ciclo. Mas, pelo seu gigantismo, e em decorrência de marcantes características do petróleo, é, sem dúvida, o que mais chama a atenção. Na realidade, estamos convencidos que a expansão petroleira e suas implicações para a economia e a sociedade deverão assumir, daqui por diante, grande importância no debate sobre padrões de crescimento e políticas públicas a eles associadas. O ciclo que se anuncia, traz, sem dúvida, possibilidades atraentes, mas, também, ameaças para a evolução, a longo prazo, desta economia. Para percebê-lo, cabe chamar a atenção para umas poucas grandes questões, evidenciadas em outras experiências de súbita descoberta de grandes quantidades de petróleo. A primeira delas é que a nova riqueza dá margem ao surgimento de toda uma pauta
de questões de natureza distributiva que, ao contrário do ocorrido em outros campos de atividades, não tende, ou mesmo não pode, ser implícita ou endogenamente equacionada por meio dos mecanismos usuais de mercado. Em outras palavras, políticas públicas, bem como instituições peculiares, são aqui indispensáveis. Refiro-me, a este propósito, não apenas à partição das rendas derivadas do óleo entre recolhimentos de toda ordem aos cofres públicos e apropriação privada, mas, também, à distribuição dos papéis e responsabilidades confiados a diferentes atores, públicos e privados, na pesquisa, exploração, processamento e distribuição do óleo. Nos últimos 30 a 40 anos, têm prevalecido, nas novas grandes descobertas, a atribuição de importantes funções a empresas públicas nacionais, as chamadas National Oil Companies, ou NOCs. No caso do Brasil, contudo, dada a forte presença da Petrobras, dotada de notória competência técnica, poder financeiro e experiência no convívio e competição com empresas estrangeiras, e a existência, há 10 anos, da Agência Nacional do Petróleo, boa parte das questões e dilemas colocados pela descoberta, em grande escala, de óleo e gás, encontra-se, em alguma medida, equacionada. Mas a problemática distributiva trazida por um novo e grande surto petroleiro longe está de esgotar-se nos temas apropriação das rendas e papéis atribuídos aos grandes atores. Há também que posicionar-se sobre a complexa questão da assignação setorial dos recursos do país: que segmentos da moderna cadeia do petróleo faz sentido, ou não, promover e implantar no país? E mais: que volume de recursos domésticos serão dedicados ao desenvolvimento de soluções tecnológicas próprias? Além disso, no caso de uma economia continental como a brasileira, e sendo o pré-sal localizado numa franja em alto-mar, como ventilar os benefícios advindos da sua exploração pelas várias regiões do país, privilegiando, no entanto, em alguma medida, as áreas a ele mais próximas, ou naturalmente associadas? Em suma, e insistindo, questões de natureza repartitiva, de alta densidade política, têm de ser enfrentadas – tanto quanto possível, através de uma visão de conjunto, e a partir de uma perspectiva de longo prazo. Mas no que concerne aos impactos sobre a nossa economia de um grande surto petroleiro, há um outro tipo de problema, que opera como uma espécie de preliminar de várias
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novas questões. Refiro-me ao conhecido fato de que a chegada de recursos financeiros relacionados aos novos investimentos bem como à presumível expansão das exportações tende a pressionar o mercado de câmbio, traduzindo-se em valorização da moeda nacional. Decorre daí um desestímulo genérico a atividades produtoras de bens que possam ser importados ou destinados a mercados externos. Escapam, evidentemente, deste problema, desde que efetivamente ofereçam ou prometam elevados retornos, as atividades integrantes ou fortemente relacionadas com o novo surto. O corolário fundamental disso é, nada menos, que o questionamento da estrutura pré-existente de assignação de recursos. Em outras palavras, frente às novas condições, o perfil produtivo que caracteriza a economia dificilmente poderá ser sustentado. Na sua face moderna, em particular, ele cristaliza decisões que não teriam sido tomadas se se soubesse, de antemão, os preços relativos que teriam vigência no futuro. Esta é uma questão que envolve a conduta de numerosos atores, e que historicamente se coloca das mais diferentes maneiras. Vejamos alguns exemplos. Na Holanda, a descoberta do gás parecia seriamente ameaçar – via câmbio – as atividades industriais, mas o desafio foi contornado sem maiores perdas. Já na Nigéria, as atividades agrícolas tradicionais foram desorganizadas e sofreram notória involução. No México, a trajetória da indústria parece haver sido “truncada”, na expressão de um conhecido analista, e involuíram. Na própria Noruega, experiência repetida e justamente referida citada como um bom exemplo de assimilação do auge petroleiro, pondera-se que o desenvolvimento de indústrias high tech foi prejudicado pelos altos custos derivados da ascendência alcançada pelo petróleo. Duas considerações devem ainda ser acrescentadas nesta sumária caracterização do quadro que acompanha o inesperado surgimento de enormes oportunidades, baseadas na exploração de recursos naturais. Primeiramente, o fácil endividamento
O fácil endividamento externo de uma economia onde acaba de ser encontrado petróleo em abundância traz consigo sérios perigos
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externo de uma economia onde acaba de ser encontrado petróleo em abundância traz consigo sérios perigos. Vou evocar, a este propósito, um episódio ocorrido no México. Ao assumir em 1980 a presidência do país – então em plena euforia petroleira –, declarou Lopes Portillo: “De agora em diante, trata-se de administrar a riqueza”. Dois anos depois, o México quebrou, não obstante a exportação de 1,6 milhão de barris por dia – e, 12 anos depois, o país voltou ao colapso, na chamada crise da tequila. Esta última quebra, sobretudo, está claramente associada a distúrbios de natureza financeira, associados ao boom petroleiro mexicano. Quanto às consequências danosas sobre a evolução industrial e tecnológica do país, tanto da valorização da moeda local quanto da brutal instabilidade trazida pelo surto exportador petroleiro perduram, possivelmente, até hoje. E que terapia tem sido indicada para o tipo de problema que acaba de ser mencionado? Existe, hoje, uma recomendação-padrão para países que se defrontam com a súbita riqueza: “esterilizar” uma boa parte da receita, mantendo-a em fundos soberanos, em moeda estrangeira, e no exterior. A proposta tem seus atrativos. Desde logo, o derretimento cambial ao qual nos referimos é, em princípio, amortecido ou, talvez mesmo – ainda que, dificilmente –, eliminado. Além disto, é constituída uma reserva, que poderá ser usada, contraciclicamente, bem como em benefício das próximas gerações. A Noruega, sabidamente, acumulou reservas que lhe permitirão conceder polpudas aposentadorias nas próximas décadas. Mas este tipo de solução longe está de ser a panaceia apresentada por muitos. Comecemos pelo óbvio: o êxito da experiência depende da qualidade da carteira de aplicações do fundo e, genericamente, do seu gerenciamento. A Noruega, por sua enraizada tradição democrática e a qualidade dos técnicos encarregados da gestão pública, passa muito bem por estes testes. Mas há de se reconhecer: trata-se de um caso excepcional. Já em outras experiências, admite-se a existência de graves problemas, que não se limitam, com certeza, a questões de natureza administrativa: há casos em que, com ou sem fundo, a súbita riqueza é ostensivamente usada para consolidar no poder os que aí se encontram, através de iniciativas da mais variada natureza. O anterior recomenda que, independentemente dos supostos méritos e dificuldades
associados aos fundos, se tenha em conta a precedência de questões de outra natureza. Na perspectiva adotada nesta exposição, nos limitamos a uma única ponderação: afinal, para que acelerar o avanço da oferta, gerando recursos que não devem, e possivelmente não serão, proximamente usados? Melhor seria controlar, na medida do possível, o seu ritmo de expansão, de maneira a conciliá-lo com a progressão de outras mudanças – e a realização de outros objetivos. No México, incrivelmente, o surto petroleiro acarretou um salto de 5% para 80% do peso do petróleo nas exportações do país, no curto período de 11 anos (entre 1973 e 1984)! Isto seguramente implica dizer que o avassalador avanço do petróleo subtraiu oportunidades e quebrou expectativas, em prejuízo de segmentos e negócios cuja evolução, como já foi sugerido, teria sido truncada, ou mesmo anulada. Com mais razão se pode ainda afirmar que o moderno salto petroleiro mexicano inviabilizou a implantação de novas atividades que exigem o seu tempo de maturação – e cuja ausência, no atropelo da expansão, não teria sido sequer percebida. É claro, por outro lado, que do ponto de vista do bloco de países consumidores, o salto mexicano foi algo altamente benéfico. Estamos, pois, diante de um conflito de interesses. E há inclusive que reconhecer que o conflito encontrará ressonâncias no plano interno. Algumas pretenderão aumentar os gastos a partir de pressões políticas e demandas sociais, enquanto outros defenderão o uso da nova riqueza para desenvolver posições dotadas de elevado potencial, bem como para introduzir novas e promissoras transformações. Por outro lado, não há que impressionar-se com o duvidoso argumento segundo o qual o petróleo está por ser substituído, havendo, portanto, pressa em explorá-lo. Afinal, quanto mais verdadeira a ameaça de substituição do petróleo, mais perigoso se torna reduzir a diversidade do tecido econômico e empresarial para concentrar e enterrar recursos num setor com perspectivas de longo prazo que estariam sendo questionadas. Ainda a propósito da diversidade da economia e do seu destino a partir do surto petroleiro, quero chamar a atenção para o fato de que algumas das questões que o pré-sal deverá colocar em evidência já poderiam ser percebidas em 2005. Vou citar um pequeno incidente, ocorrido na equipe que coordeno no
BNDES. Estávamos examinando as importações e exportações de 2005, quando um de nós notou algo estranho. Os dados sugeriam uma repentina mudança na composição das exportações. Concretamente, podia ser facilmente observada, na comparação com os resultados obtidos em 2004, uma queda da importância de certos tipos de manufaturas – e a ascensão de vários produtos primários. Na realidade, hoje me parece que desde que a China assumiu a liderança do crescimento asiático, tendo início a grande mudança no funcionamento da economia mundial descrita no início da palestra, a economia brasileira passou a ser empurrada numa direção imprevista. E isso não foi logo percebido, primeiramente, porque combinavam-se, no começo da presente década, a conclusão, no plano microeconômico, da reestruturação levada a efeito por numerosas empresas industriais, com os efeitos estimulantes da bem-sucedida desvalorização de 1999. Ao que parece, as próprias adversidades no plano macro ajudaram o forte avanço das exportações – inclusive industriais. A seguir, o atual governo, especialmente em seu segundo mandato, soube dar início à mobilização de demandas reprimidas, herdadas do longo período de semiestagnação. As ativas políticas de expansão do crédito tiveram aqui um papel decisivo. Combinados o destravamento do crédito com a vigorosa e múltipla política de apoio ao poder de compra das classes de mais baixa renda, o mercado doméstico passou a exibir um dinamismo insuspeitado que, especialmente no tocante a manufaturas, compensava, ou mais que compensava, o brutal crescimento das importações de produtos industrializados e a perda relativa de espaço em mercados externos das manufaturas brasileiras. A tardia revolução brasileira do consumo de massas, e os investimentos direta ou indiretamente (via infraestrutura), por ela justificados, começavam, pois, a promover uma redefinição, endogenamente determinada, do padrão de desenvolvimento da economia brasileira. Este conjunto de transformações, inegavelmente exitoso, dificultava mais uma vez o entendimento de que a economia brasileira estava, também, e em simultâneo, iniciando um processo – não pensado, não decidido – de adaptação ao terceiro grande ciclo posto em destaque nesta palestra. Passava assim, na prática, desapercebido o fato de que somos parte integrante de um mundo que vem sendo,
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comercialmente, pelo menos, convertido num sistema sinocêntrico. Evidentemente, se uma economia apresenta – contrariamente ao observado no tardio surto petroleiro que se anuncia neste país – um tecido econômico pouco diversificado, como a Noruega ao tempo das descobertas do Mar do Norte, e/ou, pré-moderno, como a Nigéria dos anos 1960, o potencial de desenvolvimento ameaçado pelo petróleo será, por definição, pouco relevante. Este, porém, não era o caso do México por ocasião das grandes descobertas do Golfo. E muito menos é o caso do Brasil hoje. Sobretudo porque, cabe insistir, esta economia, após um longuíssimo e atribulado inverno, vem exibindo sólidos e invejáveis resultados. As mudanças incitadas pelo terceiro grande ciclo deverão ser aqui, como, em regra, por toda parte, muito profundas. A cada economia cabe adaptar-se – e, em maior ou menor medida pró-ativamente explorar – o novo contexto. Que espaços a economia brasileira tem chances de ocupar? Como administrar, da melhor forma para os brasileiros, a inserção desta singular economia no mundo que emerge neste início de século XXI? A mera acomodação dificilmente implicaria um bom aproveitamento das novas circunstâncias, numa economia recentemente despertada para o crescimento e com muitas oportunidades apenas afloradas. Valer-se, em proveito de objetivos próprios, dos impulsos que podem ser derivados da escassez de certos recursos naturais – e das novas tecnologias disponíveis nos respectivos campos – é uma das mais importantes dimensões do novo jogo. Fomos surpreendidos pela valorização dos recursos naturais, e diversos ramos da indústria estão sendo apanhados desprevenidos pelos preços e, não raro, pela modernidade, de um crescente número de produtos chineses. É necessário, realisticamente, trabalhar este quadro, buscando os pontos altos do extenso e variado potencial produtivo subjacente ao tecido econômico deste país. Isso requer uma administração pública competente, preparada para conceber futuros desejáveis e apoiar, de maneira seletiva, avanços singulares. Mas depende também, substantiva e decisivamente, da motivação e do engajamento empresarial – o que por sua vez demanda bons diagnósticos e argumentos convincentes. Há, em suma, mais uma vez, que encarar uma guinada. Nos anos 1990, parecia haver
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sido histórica e definitivamente superada – no Ocidente, pelo menos – a época em que a administração pública participava de escolhas substantivas. Os poderes públicos seriam protagonistas na definição de regras e normas – mediante o processamento de demandas procedentes da sociedade – bem como na cobrança do seu cumprimento. O mundo que está emergindo neste terceiro ciclo é diferente. Nele se dá a mundialização da chamada revolução do consumo de massas, iniciada há quase 100 anos nos Estados Unidos e em vias de conclusão, na atualidade, sob liderança chinesa. Como diversos autores advertiram, este fenômeno traz imensos desafios no campo energético, e acarreta enorme pressão sobre o meio ambiente. Além disto, a redistribuição e intensificação das competências competitivas no plano mundial exige autêntico reposicionamento de numerosas economias. Nele, traçar, tentativamente, rumos é fundamental: numa economia como a brasileira, que reconhecidamente se encontra diante de uma pletora de opções, nos Estados Unidos, economia em mais de um sentido posta em xeque, na Noruega, onde o ciclo petroleiro está se esgotando, ou, a rigor, na própria China. Novas escolhas, ao que parece, já eram necessárias antes do pré-sal. Com ele, a pauta congestionou-se. Possivelmente, algumas das atividades que se exercem no Brasil não têm futuro; outras, pelo potencial nelas contido, talvez venham a ter um futuro brilhante. Evidentemente, à luz de tudo o que aqui foi dito, não há que julgá-las, unicamente, pelo seu desempenho recente. Lembremos que a retomada do crescimento verificada a partir de 2004 combinou a bem-sucedida e, a partir de certo ponto, politicamente deliberada, distensão de molas comprimidas durante a longa semiestagnação, com a incipiente entrada em ação do que poderíamos denominar de “efeitos-China”. No meu entender a economia brasileira ainda tem muito a ganhar, explorando o que, escrevendo sobre a possível transição para o crescimento rápido no Brasil, denominei de “vantagens da estagnação”. Vista a questão por este prisma, o Brasil é um país, paradoxalmente, privilegiado. Basta ver o que há de demanda contida por habitação popular, que apenas começa a ser explorada, mediante uma fértil combinação de políticas públicas e iniciativas várias procedentes das empresas. Continuará, pois, vigoroso, o acerto de contas
com o passado. A história parece haver feito duas gentilezas com este país. Por um lado, encontramo-nos na fronteira das técnicas, em etanol e exploração de petróleo em águas profundas, no momento em que a crise mundial de combustíveis atinge um ponto de grande estresse. Por outro, a chegada do terceiro grande ciclo nos encontra não apenas encostando em algumas fronteiras tecnológicas, como dotados de um incipiente, porém, diversificado e, em mais de um sentido, robusto, sistema nacional de ciência e tecnologia. Mais precisamente, o país conta, presentemente, com mais de 100 mil pesquisadores doutores, engajados em pesquisa científica. Dificilmente, esta não virá a ser uma substantiva vantagem, para efeitos da extensa e profunda reciclagem que o aparelho produtivo do país requer. Na realidade, o mero prosseguimento da revolução do consumo de massas deveria passar a incluir deliberado esforço tecnológico próprio, para que a ampliação dos mercados populares incorpore respostas à pressão competitiva chinesa – inclusive mediante a incorporação de soluções adequadas aos mercados locais e, em determinados casos, a outros destinos no hemisfério sul. Passando aos alimentos e matérias-primas de origem agrícola, cabe chamar a atenção para o fato de que as máquinas brasileiras no campo não foram concebidas para as nossas condições, devendo ser revistas. Existe, a este propósito, uma joint venture da Universidade Federal de São Carlos com a Unicamp e algumas empresas brasileiras, visando passar a limpo a concepção e o desenho de diversas máquinas. Isto é importante, inclusive, para atender a novas demandas. Cerca de 40 mil tratores estão sendo demandados, este ano, pela agricultura familiar, o que era impensável há pouco tempo. Eles poderiam ser concebidos e desenvolvidos aqui. Inclusive para cavar novos espaços e contribuir para o aumento da produtividade no resto da América Latina e na África. Quando falo de atividades que no passado eram referidas como primárias, estou, pois, também me referindo, ao retrabalho do nosso diversificado patrimônio industrial e tecnológico com muita high tech, software, uso de satélites etc. Quando me refiro ao etanol, por sua vez, não estou me referindo à mera produção de álcool. Esta é, em si, a vários títulos, meritória, mas a economia da cana-de-açúcar deve ser entendida como fonte de múltiplos produtos e
uma via privilegiada de acesso, mediante novas tecnologias, à energia solar. Assim também a exploração de águas profundas deveria ser vista como base para a consolidação da indústria naval, e canteiro para o desenvolvimento de uma vasta pauta de novos produtos, aí incluídos, com destaque, novos materiais e recursos/ soluções para automação. Trata-se, em suma, de combinar continuidade e mudança, ali onde o potencial venha a ser confirmado por diagnósticos atualizados. Continuidade é importante, e mudança é importante. Alguns dos avanços aqui apontados já se encontram espontânea e topicamente em curso, a partir de iniciativas autônomas, empresariais ou públicas. O que talvez não esteja claro é que o que vem sendo feito, em resposta a dificuldades e tropeços, poderia ganhar mais fôlego e eficácia, caso fosse concebido e tratado como aquilo que é, ou, talvez, virá a ser, quando o presente se tornar história. Afinal, estas respostas, em última análise, constituem uma busca sob condições típicas do terceiro grande ciclo, de meios e soluções para a transição, à brasileira, para a economia do conhecimento. Na medida em que seja correto o que acaba de ser dito, diversos procedimentos deveriam ser reavaliados e eventualmente revistos. Exemplificando: o ponto de partida para o exame e avaliação de empresas e/ou regiões em dificuldade deveria ser o potencial por eles apresentado no novo contexto, e não suas qualidades e problemas no passado recente; num outro plano, órgãos públicos, empresas e universidades deveriam conceder grande importância ao acompanhamento das soluções que vêm sendo encontradas em outros países, para problemas típicos do novo contexto. Além disto, uma atenção muitíssimo maior deveria ser concedida ao que ocorre presentemente na China e às tendências evolutivas que ali podem ser percebidas.
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artigo
Rubens Harry Born* Esther Neuhaus **
Dilemas planetários e as negociações internacionais em mudança de clima:
perspectivas Aproximam-se a 15ª Conferência das Partes (COP 15) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) e a 5ª Reunião das Partes do Protocolo de Kyoto, que serão realizadas em Copenhague, em dezembro de 2009, quando deveriam ser tomadas decisões políticas importantes para reorientar as atividades econômicas e enfrentar as mudanças climáticas. Enquanto cientistas e sociedade civil organizada reivindicam políticas justas e ações robustas, efetivas e urgentes para lidar com as causas antrópicas e com os impactos das mudanças de clima, continuamos a presenciar o jogo de forças poderosas que se valem de argumentos e estratégias diversos para evitar a alteração dos paradigmas e modelos de
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desenvolvimento. O que cabe a cada país e ao Brasil? Quem deve realizar algo, quando e como? Quem paga a conta das alterações? Essas são questões explicitadas nas negociações sobre mudanças climáticas e devem ser parte do debate nacional sobre o desenvolvimento. O regime multilateral estabelecido pela UNFCCC não é uma ação coordenada de gestão ambiental, mas sim um regime que deve lidar com as transformações econômicas, sociais e políticas motivadas pela degradação ambiental e pelos distúrbios no sistema climático. Soluções não podem se limitar a meras ações “superficiais” de ajustes, que aparecem na forma de uso eficiente de energia, substituição de combustíveis fósseis por etanol e biodiesel, fomento de energia renovável ou implantação de tratamento adequado de resíduos, mesmo via projetos do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) estabelecidos pelo Protocolo de Kyoto. Embora essas ações sejam necessárias, por si não são suficientes ou determinantes da alteração do modelo de desenvolvimento. Repensar a mobilidade de pessoas e o transporte de cargas na busca da sustentabilidade implica, por exemplo, privilegiar sistemas de transporte público e individual associados ao planejamento do uso do solo urbano e rural. Existem, obviamente, diferenças gritantes entre os países em desenvolvimento, e entre estes e os países industrializados. E, em prol da sobrevivência e dignidade de vida de centenas de milhões de pessoas, avanços profundos no regime multilateral precisam ocorrer para que a inação ou inadequação da ação de alguns não signifique morte de muitos. Argumentos como crise financeira, direito ao crescimento econômico como forma de desenvolvimento, busca de alternativas mais baratas em outros países são frequentemente usados por aqueles que tentam evitar opções comprometedoras e sérias relacionadas a uma necessária mudança nos padrões de produção e consumo. Isso nos leva a dilemas que envolvem a expectativa de obter metas e ações robustas dos países industrializados como objetivos mensuráveis de redução de crescimento, limitação e redução de emissões de gases
de efeito estufa (GEE) em vários países em desenvolvimento.
Pilares das negociações No caminho para a COP 15, as negociações se concentram em cinco blocos temáticos. Visão compartilhada trata do cenário desejado de médio e longo prazos, o que implica determinar o limite de emissões globais de gás de efeito estufa e, consequentemente, deduzir as emissões que todos os países poderão ter. Diversos países, como a China e os Estados Unidos, por exemplo, não aceitam um teto global de emissões. O Brasil tem pautado suas posições pela defesa questionável de direito ao crescimento das emissões dos países em desenvolvimento como forma de promover o “desenvolvimento” econômico. O bloco Mitigação trata de metas e ações nacionais e internacionais adicionais para reduzir as emissões. Será necessário definir as metas para os países industrializados após 2012, quando se encerra o primeiro período de compromisso do Protocolo de Kyoto. Existem várias propostas na mesa, especialmente no sentido de pressionar esses países a assumir metas profundas. Por outro lado, os países ricos esperam sinais muito claros dos países em desenvolvimento, especialmente dos grandes emissores de GEE, como China, Índia e Brasil, com um objetivo de curto prazo de estabilizar e, na próxima década, iniciar a redução das suas emissões. Já no tema Adaptação, pretende-se definir a cooperação internacional necessária para apoiar a adaptação dos países e das comunidades mais afetadas pelos impactos das mudanças climáticas. Por muito tempo, esse tema foi negligenciado, com o argumento de desviar a atenção do objetivo principal de mitigação. Infelizmente, há impactos inevitáveis, e as comunidades mais vulneráveis e pobres sofrerão mais com os impactos. Por isso, é importante ter políticas e medidas que possam ser executadas desde já. No regime multilateral, fica claro que os países industrializados devem dar contribuições fundamentais. Outra área-chave para garantir avanços em Copenhague é a da Transferência de Tecnologias. Muitos países em desenvolviSETEMBRO 2009
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artigo
mento entendem que as inovações e tecnologias relacionadas às mudanças climáticas devem ser de domínio público, e não estar sob um regime privado de monopólio de patentes que obstaculiza e encarece sua transferência. Ao mesmo tempo, é fundamental apoiar a formação da capacidade endógena desses países para inovar, produzir e exportar; assim como garantir a participação popular nas escolhas de tecnologias adequadas aos contextos local e nacional. O último bloco, Recursos Financeiros, deve definir o financiamento para apoiar ações de mitigação, adaptação e cooperação tecnológica. Existem muitas propostas na mesa, desde a criação de um mecanismo vinculado ao Banco Mundial, passando por taxação dos transportes marítimo e aéreo, até a disponibilização de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países industrializados. O grande risco é que a discussão ocorra somente sobre a ótica de mercado. Para o Brasil, é importante que o governo não fique dependendo de contribuições externas; mas que assuma a obrigação moral perante a população e o planeta de alocar recursos para lidar com mitigação e adaptação.
As perspectivas de organizações da sociedade civil são diferentes das de governo, em virtude de diferentes referências e abordagens
Dicotomia entre posição externa e políticas nacionais O Brasil assume um papel fundamental nas negociações internacionais sobre mudança do clima. Porém, seu protagonismo tem sido marcado por posições defensivas, de resistência a compromissos vinculantes, e de ausência e ineficiência de políticas domésticas de enfrentamento das causas das emissões brasileiras. O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, por exemplo, está à mercê de ingerências e interesses políticos e econômicos diversos. Reconhecemos o fato de um país em de-
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senvolvimento lançar um Plano Nacional de Mudanças do Clima e estabelecer alguma meta para reduzir o desmatamento e realizar mudanças no uso do solo, responsáveis por 75% das emissões do país. Porém, o plano, que se limita a ser nada mais que uma coleção de iniciativas, não é reconhecido como referência para programas e políticas setoriais. Dessa forma, é necessário denunciar a falta de coerência entre o plano e os compromissos assumidos pelo Brasil na própria UNFCCC e demais planos e políticas governamentais, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Já o Plano Decenal de Expansão de Energia 2008-2017 dá destaque para termoelétricas, aumentando as emissões de CO2 provenientes desta fonte em 172%, e usinas hidroelétricas, que apesar de renováveis, quando executadas sem o atendimento de critérios de impactos socioambientais de curto e longo prazo, podem não atender critérios de sustentabilidade. As perspectivas de organizações da sociedade civil (OSC) são diferentes das de governo, em virtude de diferentes referências e abordagens. Os governos agem em função de sua “soberania” e territórios nacionais, usando como referência o interesse nacional. No entanto, o mesmo serve, em muitas oportunidades, como pretexto, já que não fica claro quem o define, a que tipo/modelo de desenvolvimento se refere, e quem de fato se beneficia com sua incorporação na definição dos planos e programas governamentais. A sociedade civil usa como referência valores que se baseiam nas temáticas de sustentabilidade ambiental, inclusão social, justiça e equidade. Com relação a princípios usados, pode haver até convergência e consenso para fortalecê-los (como é o caso das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, nas negociações de clima), mas as propostas e posições que são derivadas deles podem eventualmente ser diferentes. Atualmente, observamos um aumento do número de organizações da sociedade que se engajam ao tema mudanças climáticas. A sociedade é diversa e, mesmo tendo como base considerações comuns, mas com finalidades distintas, as OSC buscam, ao se
Dilemas planetários e as negociações internacionais em mudança de clima: perspectivas da sociedade civil
envolver com o regime multilateral, consolidar suas respectivas visões de mundo. Uma das primeiras formulações de justiça climática, conceito cada vez mais popular, emergiu na rede CAN1, ainda em 2001, para poder ser instrumental para as organizações que então estavam envolvidas com o regime e obter dos negociadores as soluções que atendam critérios de equidade e justiça. Desde então, essas organizações defendem a Justiça Climática, no sentido de não fazer incidir ônus nas comunidades mais vulneráveis e menos responsáveis pelas mudanças climáticas, e de evitar alternativas de mercado que agravam concentrações de renda, desigualdades sociais e degradação ambiental, em vez de adotar um novo modelo de desenvolvimento baseado em justiça social e sustentabilidade ambiental. Para a CAN, há que se obter em Copenhague um acordo que objetive redução adicional de pelo menos 40%, com relação aos níveis de 1990, das emissões dos países industrializados, com vistas a atingir metas de
longo prazo (redução de 80% das emissões até 2050, o que permitiria a alguns países mais pobres terem um “espaço ambiental” de carbono na busca do seu desenvolvimento). Há grupos da sociedade que demandam que a concentração na atmosfera desses gases recue para menos de 350 ppm (partes por milhão), para que tenhamos reais chances de evitar efeitos catastróficos. Do lado de governos e empresas, diz-se que é melhor atuar agora quando é mais barato. Outros dizem que ainda não podem agir se os que possuem mais condições e maior responsabilidade não tomarem a dianteira nas ações. Todos argumentos compreensíveis, mas o dilema fica: ninguém avança, pois ninguém avança. Aliás, o que avança é a tentativa de salvar, com trilhões de dólares, um modelo econômico que ignora os impactos sociais e ambientais, que mantém na miséria milhões de pessoas e degrada os serviços ecossistêmicos em todo o planeta.
O tempo urge! É hora de ação climática! O relógio continua a marcar a passagem do tempo. Ouçam o tic-tac-tic-tac e, a cada instante, imaginem quantas mortes, de seres humanos e de outros seres, ocorrem por conta da manutenção das atuais políticas e práticas econômicas. Para não ser vítima nem cúmplice das consequências das mudanças de clima, é importante que cada cidadã e cidadão seja agente de transformações dos próprios hábitos de consumo e, mediante instrumentos democráticos, das políticas públicas e estratégias empresariais pertinentes à promoção de justiça e sustentabilidade ambiental, social e cultural dentro de novos padrões de produção e consumo. Essa é uma das razões para o engajamento de pessoas e organizações na campanha global para ações de proteção do clima (Global Campaign for Climate Action/GCCA), que articula as demandas da sociedade para resultados efetivos da COP 15. O que mais move a sociedade civil nas
atuais negociações sobre mudança do clima é o sentido de urgência. É indispensável que o Brasil assuma seus compromissos históricos, atuais e com a sustentabilidade futura do país, crie um senso de urgência e trate o tema com responsabilidade. A campanha pretende ampliar a interação e cooperação de grupos da sociedade que atuam em diversos campos como defesa do meio ambiente, direitos humanos, erradicação da pobreza, acesso à justiça, agroecologia, segurança alimentar, governança e cidadania, movimentos sindicais e sociais, grupos religiosos e juventude. Esse tipo de iniciativa demonstra que sociedade civil e movimentos sociais organizados podem levar os governos a terem posições mais firmes no enfrentamento da crise ambiental e das mudanças climáticas. O mote da campanha é “Tictactictac: É hora de ação climática. É hora de justiça climática. É hora de soluções climáticas! Antes que seja tarde!”
* Rubens Harry Born Representante do Vitae Civilis Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz <www. vitaecivilis.org.br>, há 18 anos, acompanha as negociações internacionais em mudança de clima. É membro do Conselho da Campanha Global de Ações para a Proteção do Clima (GCCA) e coordenador estratégico da Campanha Brasileira (GCCA-BR) <rborn@ vitaecivilis.org.br>
** Esther Neuhaus Jornalista e geógrafa, é gerente executiva do FBOMS (www.fboms. org.br) e faz parte da Coordenação Executiva da Campanha Brasileira de Ações para a Proteção do Clima (GCCA-BR) <www. tictactictac.org.br> / <estherneuhaus@uol.
1 CAN – Climate Action Network é uma rede mundial de ONGs que, desde 1990, tem centrado suas ações no monitoramento das negociações internacionais sobre mudanças climáticas. A CAN tem reiterado a obrigação ética e política dos países industrializados em cooperar, com recursos financeiros e tecnológicos, de forma que países em desenvolvimento possam honrar seus compromissos com a Convenção, mas exigindo dos primeiros a redução substancial de GEE em seus próprios territórios. Tal postura reconhece a limitação dos instrumentos de flexibilização do Protocolo de Kyoto, que permite investimentos por “créditos” de carbono. A CAN foi formada por entidades ambientalistas, mas, recentemente, conta com o engajamento de ONGs de desenvolvimento social e direitos humanos <www. climatenetwork.org>.
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artigo Carlos Minc*
O Brasil eo futuro do clima
A mudança do clima é provavelmente o problema mais grave que a humanidade deverá enfrentar neste século. Se não conseguirmos reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa, as consequências serão desastrosas: aumento do nível dos mares, aumento na intensidade e frequência de eventos extremos, como furacões, enchentes e secas, aumento da área de doenças endêmicas, como malária e dengue. Em 2004, o Catarina foi considerado o primeiro furacão extratropical no Atlântico Sul
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e também o primeiro a atingir o Brasil. Ele deixou no seu rastro pelo menos três mortos e 100 mil casas destruídas, mas também deixou um alerta que não pode ser negligenciado. Os modelos climáticos que simulam as consequências do aumento de energia na atmosfera indicam a possibilidade de surgimento de furações nessa região. Isso é muito preocupante por ser mais uma evidência de que os impactos da mudança do clima já estão em curso. Os impactos não se restringem àqueles de natureza violenta. Para nós, no Brasil, os impactos podem vir na forma de savanização da Floresta Amazônica, de redução das chuvas e consequente redução nos níveis dos reservatórios e do potencial de geração de hidroeletricidade, de redução de área agricultável, por exemplo a área para a cafeicultura, de inundações etc. O problema já é bastante conhecido e a cada novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) ou estudo divulgado, a gravidade do problema só vem se confirmando ou até mesmo aumentando. As causas são bem conhecidas e podem ser atribuídas ao modelo de desenvolvimento inaugurado com a revolução industrial, com particular acentuação a partir da segunda metade do século XX. Esse modelo de desenvolvimento está baseado na farta disponibilidade de combustíveis fósseis que, ao serem queimados, liberam o dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera, principal gás de efeito estufa, aumentando a propriedade de reter calor na atmosfera. Segundo o World Research Institute (WRI), o CO2 liberado pela queima dos combustíveis
O Plano As emissões do Brasil têm um perfil bastante particular. A nossa principal fonte de emissão de CO2 é o desmatamento. Também temos emissões significativas na área da agropecuária e do transporte de carga pelo uso do diesel. No geral, a nossa matriz energética é muito limpa, por conta da participação de fontes renováveis, como o etanol e a hidroeletricidade, mas precisamos cuidar para que a participação das energias renováveis continue alta. O Plano Nacional de Mudança do Clima tem metas claras de redução da taxa de desmatamento e de manutenção da matriz energética.
fósseis foi responsável, em 2000, por mais de 50% das emissões mundiais. A outra metade vem de várias fontes e gases distintos.
Esforço global Uma das principais características do problema é que ele não tem uma solução única que envolva apenas um gás, um setor ou um país. A solução tem de ser global. Por isso mesmo, o fórum mais adequado para decidir a estratégia de enfrentamento da mudança do clima é o das Nações Unidas. A dificuldade desse fórum é que envolve a participação de cerca de 200 países com características e interesses diferentes. No caso da Convenção do Clima, todas as decisões são tomadas por unanimidade, o que torna demorado o processo decisório de um problema cuja solução é urgente. Os principais causadores da mudança do clima são os países desenvolvidos que, desde a revolução industrial, vêm consumindo combustíveis fósseis, desenvolvendo processo industriais que emitem gases de efeito estufa, enfim, criando o modelo de desenvolvimento responsável pela situação atual. A chamada contribuição histórica dos países desenvolvidos é reconhecida na Convenção do Clima, assim como a sua capacidade para enfrentar o problema. Justamente por serem desenvolvidos, têm recursos, tecnologias e devem contribuir para a solução do problema de duas formas: reduzindo suas próprias emissões e ajudando com recursos e tecnologias os países em desenvolvimento. Todas as contas mostram que nenhuma solução será possível se os países em desenvolvimento seguirem os mesmos padrões de produção e consumo, e portanto de emissões, dos países desenvolvidos. Isso se deve ao fato de que as emissões que a atmosfera ainda é capaz de suportar, com um mínimo de segurança para que não venhamos a enfrentar uma situação perigosa no planeta, são poucas. Esse espaço de carbono é pequeno e deverá ser dividido entre todos os países do planeta segundo algum critério. Existem vários critérios e todos têm um grau de subjetividade porque envolvem questões éticas, econômicas etc. O certo é que o esforço de redução deverá ser amplo. Acreditamos que o esforço global de redu-
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ção de emissões só poderá ser enfrentado de forma eficiente e justa se forem levados em consideração suas dimensões científica, econômica e ética. A ciência vai dizer qual o espaço de carbono que ainda existe disponível. Os relatórios do IPCC dizem que a melhor estimativa para esse espaço é de 1.800 Gt CO2e (bilhões de toneladas) neste século, o que daria em média 18Gt CO2e por ano. As emissões mundiais em 2005 já superaram 45 Gt CO2e. Se as emissões continuarem no ritmo atual, antes de 2030, ultrapassaremos esse limite máximo. Isso indica o tamanho do esforço que tem de ser feito no âmbito mundial em prazo relativamente curto. A economia deverá indicar quais as alternativas de menor custo para a sociedade como um todo. O IPCC, no sumário executivo do relatório sobre mitigação da mudança do clima (AR4), identifica as alternativas de redução de emissões e os custos associados para tentar mapear as alternativas disponíveis. Algumas ações têm até mesmo custo negativo, mas não são implementadas por barreiras várias. Outras alternativas são extremamente caras e sua implementação necessitaria importante aporte financeiro. Os instrumentos econômicos para viabilizar essa transição de uma economia de alto carbono para uma economia de baixo carbono estão sendo desenhados. A dimensão ética, a mais subjetiva e a principal peça na negociação é aquela que vai determinar a responsabilidade sobre essas reduções. Em outras palavras, quem paga a conta. As melhores oportunidades para reduzir emissões com tecnologias disponíveis e a custos baixos podem não estar nos países que contribuíram mais para a mudança do clima e que têm maior capacidade para enfrentá-la. A forma de pagar essa conta inclui criação de fundos, mecanismos de financiamento, transferência de tecnologia, entre outras.
Neste momento de transição, o Brasil tem de saber usar as suas vantagens comparativas com ousadia para não perder o trem da história
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Posição confortável No fim do ano, em Copenhague, os países deverão chegar a um acordo sobre essas e outras questões. Para o Brasil, é muito importante garantir que o acordo seja forte o suficiente para assegurar que a temperatura média do planeta não exceda a fronteira dos 2ºC acima da época pré-industrial, que configuraria uma situação perigosa para o sistema climático. Para o Brasil, também é muito importante garantir o seu desenvolvimento em bases sustentáveis. Temos boa vontade e seremos criativos para encontrar saídas que não signifiquem restrições ao crescimento, e sim novas oportunidades de desenvolvimento. Poderemos estimular novos setores da economia, por exemplo, a fomentar a economia da floresta de forma que ela seja mais lucrativa, traga mais benefícios para a população locar e crie mais conhecimento do que a economia predatória do desmatamento. A maior garantia de permanência da floresta é o interesse econômico nela em pé. O que não interessa de fato ao Brasil são as soluções que não sejam suficientemente eficazes para conter o aumento da temperatura do planeta, que sacrifiquem o desenvolvimento do país, ou que não ajudem a transição do país para uma economia de baixo carbono. Nesse sentido, alguns pontos devem ser ressaltados. A descarbonização necessária é de tal monta que somente medidas de eficiência e economia não serão suficientes. O que o mundo tem pela frente é uma transformação radical da sua matriz energética e tecnológica. Neste momento de transição, o Brasil tem de saber usar as suas vantagens comparativas com ousadia para não perder o trem da história. Temos de encarar o desafio e incorporar essa nova variável no planejamento, nas decisões de investimento, nas políticas públicas, enfim em todas as instâncias. Não podemos correr o risco de sair atrás para mais adiante entrar de forma atabalhoada nesse novo mundo onde impera a lógica verde e descarbonizada. Além do mais, várias das alternativas que estão na mesa também podem ter efeito anticíclico neste momento de crise mundial. O Brasil se encontra em situação extremamente confortável. Nossa matriz
O Brasil e o futuro do clima – reflexões para Copenhague
energética é limpa e faremos todo o possível para não sujá-la. Agora, além da matriz energética limpa, temos o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, temos metas e temos o Fundo Amazônia operando e que já aprovou os primeiros cinco projetos. Estamos lutando para que o Fundo Clima seja aprovado o mais rapidamente possível para viabilizar a política de mudança do clima. Uma das metas do plano assinado pelo presidente Lula, em dezembro de 2008, cortar em 70% o desmatamento da Amazônia até 2017, reduzirá as emissões em 4,6 bilhões de toneladas de CO2, mais do que o compromisso total assumido em Kyoto pelos países desenvolvidos. E nós faremos mais; temos de ampliar as metas de redução para os setores da economia e de redução do desmatamento para os demais biomas. Até o início de 2008, monitorávamos só a Amazônia; sem série histórica, não havia como traçar metas para o Cerrado, a Caatinga, a Mata Atlântica, o Pantanal e o Pampa. Na atualização do plano, em 2010, definiremos a diminuição do desmatamento
em todos os biomas, inclusive de ampliação da área da Mata Atlântica. O desmatamento da Amazônia este ano será o menor dos últimos 20 anos. Essa é uma grande vitória, pois atingiremos as metas do plano provavelmente antes do previsto. Essas metas, que tantos criticaram pela dificuldade em serem atingidas. Não tem país no mundo, nem dentro nem fora do Protocolo de Kyoto, que tenha conseguido tamanha redução nesse período. Fazendo nossa parte, temos legitimidade para cobrarmos dos países desenvolvidos, os grandes responsáveis pela crise climática, que façam a sua parte, que, no nosso entendimento, inclui metas fortes de redução de emissões domésticas, além de apoio financeiro e tecnológico para que os países em desenvolvimento possam fazer a sua parte.
* Carlos Minc Ministro do Meio Ambiente
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artigo Graziela Tanaka*
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Poderá a sociedade civil global salvar Copenhague
Cada vez mais, a sociedade civil ganha destaque nas decisões políticas internacionais, assim como, cada vez mais, os debates internacionais são levados para a sociedade civil global. A política internacional é complexa, o processo de negociação entre países, governantes e delegados geralmente é um processo técnico e tedioso, muitas vezes restrito à diplomacia de portas fechadas, no qual poucas pessoas têm acesso. Os interesses poderosos da indústria e das elites vinham antes da real preocupação expressada pela sociedade civil. Ou pelo menos era assim. Hoje, com a Internet, a democracia vai além – além de fronteiras nacionais ou físicas e de interesses de uma minoria política –, a democracia pode chegar a qualquer um que, conectado à Internet, se preocupe com questões globais e esteja disposto a se mobilizar. Desde 2007, a Avaaz.org tem levado a voz da sociedade civil global diretamente para os
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meios de tomada de decisão internacional, sejam os encontros da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas, seja do G-8 ou encontros multilaterais regionais. O uso da tecnologia e do ciberativismo aliado a uma estratégia política ágil e eficiente têm possibilitado a democratização desses fóruns, antes restritos a diplomatas e delegados representantes dos países envolvidos. Se as notícias hoje em dia podem se alastrar na velocidade da luz, por que não usar a Internet também para fins políticos, mobilizando milhões de pessoas por questões que realmente importam? Foi pensando assim que a Avaaz foi lançada, organizando campanhas pelo fim da guerra no Iraque, contra o aquecimento global, denunciando abusos de direitos humanos, lutando contra a fome, entre muitas outras campanhas. Com o uso da Internet e da tecnologia, é possível alcançar milhões de pessoas do mundo todo com apenas um clique do mouse, e a combinação das ações de cada pessoa se transforma em uma voz poderosa capaz de influenciar líderes políticos, negociações e tratados. A Avaaz foi fundada com a missão de “fechar a lacuna entre o mundo em que vivemos e o mundo que queremos”. Essa missão parte do princípio que a maioria das pessoas do mundo quer proteções mais fortes para o meio ambiente, respeito maior pelos direitos humanos, esforços concretos para acabar com a pobreza, a corrupção e a guerra. Nem sempre a vontade da sociedade civil é representada nos meios de decisão, por isso a Avaaz foi criada como um mecanismo para unificar as vozes sobre questões globais e levá-las para nossos governantes. A ascensão de um novo modelo de democracia participativa, guiado pela sociedade civil por meio da Internet, está mudando países, da Austrália passando pelas Filipinas até os Estados Unidos. A Avaaz levou essa tendência para a escala global, conectando pessoas além das fronteiras e trazendo nova voz para a política internacional que antes era inacessível para a população. Cada alerta da Avaaz contém informações sobre algum problema ou crise global e um convite para as pessoas participarem de uma ação concreta: uma petição, a oportunidade de enviar mensagens para governantes ou de contribuir para financiar uma campanha midiática. Cada pessoa que participa está se mobilizando com outras centenas de milhares de vozes de todos os cantos do planeta. O que aparenta ser
uma ação pequena e individual, somada a todas as outras e direcionada para um fim específico, acaba tendo um impacto enorme. Políticas públicas são influenciadas, eleições podem ser definidas, a reputação de um chefe de Estado pode ser consagrada ou desmoralizada. Esse é o poder que todos nós temos por meio da mobilização online direcionada e coordenada. O resultado das campanhas é uma comunidade realmente global, que abrange 13 línguas e já acumulou mais de 3,6 milhões de apoiadores de todos os países do planeta.
Foco no meio ambiente Um dos grandes focos da Avaaz é a questão climática. Em 2007, houve grande despertar global sobre o imenso, e possivelmente trágico, impacto das mudanças climáticas. Entre todos os assuntos que assolam o planeta hoje, pode-se dizer que nenhum outro unifica toda a humanidade em torno da necessária busca por uma solução conjunta como as mudanças climáticas. Literalmente, não há um ser humano que não seja impactado. Porém, a solução não depende de cada um de nós, mas está nas mãos dos nossos governantes, nas reuniões da ONU e nos encontros de países emissores e grandes economias. São nesses encontros que as decisões serão tomadas, os tratados serão assinados e nos quais o futuro do planeta será definido. Por mais que ações e mudanças de hábitos individuais sejam importantes, só atingiremos as metas de redução das emissões de carbono se países se comprometerem e implementarem políticas públicas que regulem a indústria e seu consumo de energia. Infelizmente, nem sempre os líderes globais defendem os interesses do planeta ou a vontade da opinião pública. Pelo contrário, na maioria das vezes, os governos estão ao lado do lobby industrial, representando as elites empresariais, que não querem ser reguladas nem multadas pela sua poluição. Ainda mais com a crise econômica global, o lucro e o crescimento econômico estão batendo de frente com metas mais ambiciosas para a redução das emissões de carbono. Nesse contexto, a opinião pública global assumiu papel decisivo nas reuniões climáticas internacionais. Foi preciso um grande esforço da sociedade civil para se opor ao lobby industrial, baseando-se nas pesquisas científicas e definindo, assim, quais as expectativas mínimas para um acordo internacional. O espaço nos encontros da ONU precisou ser conquistado
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de forma que as delegações de representantes dos países presentes não pudessem ignorar as demandas da sociedade civil. Para isso, foi preciso organizar ações de visibilidade, conquistar espaço na mídia, mobilizar números massivos de apoiadores e dialogar diretamente com os países presentes. O ciberativismo permitiu que essa participação fosse além – que qualquer pessoa conectada à Internet, de qualquer lugar do mundo, pudesse ser informada, em um curto espaço de tempo, sobre como seus países estão se posicionando e tendo, com essa informação, a oportunidade de se manifestar instantaneamente pela Internet. Dessa forma, qualquer pessoa que se preocupe com a questão climática tem à sua disposição uma ferramenta para influenciar as negociações e ver seus ideais representados, mesmo não estando presente
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fisicamente nas conferências internacionais.
Marcha virtual Em Bali, durante a COP 13, três países – Estados Unidos, Japão e Canadá – formaram uma aliança recusando-se a negociar qualquer meta concreta para redução de emissões de gases de efeito estufa. O posicionamento desses países só foi divulgado durante as negociações, por isso a reação e a mobilização precisavam ser feitas de forma ágil e direcionada. A Avaaz rapidamente acionou sua lista de milhões de pessoas denunciando o posicionamento desses países e começou a colocar pressão em todas as frentes. Um alerta foi enviado para os apoiadores da Avaaz, convocando-os a participar de uma “marcha virtual”. Em poucos dias, mais de 550 mil pessoas participaram da ação online, que foi levada diretamente para o centro da conferência em Bali. Os “ativistas virtuais” foram representados pelas bandeiras de seus países e capturaram a atenção da mídia. No dia seguinte, a foto da manifestação pedindo metas concretas foi publicada em vários jornais ao redor do mundo. Mas seria necessário muito mais que isso para fazer Japão, Canadá e Estados Unidos mudarem o posicionamento nas negociações. Vimos que seria preciso acionar os apoiadores desses três países para colocar mais pressão sobre seus governantes. Enviamos alertas específicos para eles denunciando a intenção desses países de boicotar um acordo climático forte e pedindo para que as pessoas entrassem em contato com seus chefes de Estado. Milhares de membros japoneses da Avaaz enviaram e-mails para o primeiro-ministro Fukuda, membros estadunidenses enviaram uma mensagem dizendo “ignore a equipe do Bush, ela não nos representa” e membros canadenses financiaram um anúncio em seu país denunciando a posição do primeiro-ministro Stephen Harper. A pressão continuou, era preciso deixar claro que um posicionamento fraco não seria tolerado. A próxima etapa foi a publicação de um anúncio no Jakarta Post imitando o poster do filme “Titanic”, com o rosto de Bush, Fukuda e Harper, que dizia: “Sem metas. Sem icebergs. Somente um desastre global – se aproximando”. O jornal foi distribuído para todas as pessoas presentes no encontro, envergonhando publicamente os três países. No último dia do encontro, Japão e Canadá, em uma virada surpreendente, aderiram à meta de reduzir as emissões em no
Poderá a sociedade civil global salvar Copenhague?
mínimo 25% a no máximo 40% até 2020. Estados Unidos ficaram completamente isolados. Somente no encerramento do encontro, depois de uma vaia de todos os países presentes, os delegados estadunidenses, finalmente, anunciaram que iriam aderir ao consenso. A experiência em Bali mostrou que a pressão popular e o vexame público podem ter grande impacto nas decisões tomadas. Em Póznan, na COP 14, a história se repetiu. Dessa vez, a Alemanha que, no ano anterior, havia sido um grande aliado contra as mudanças climáticas, começou a sofrer forte pressão da indústria poluidora nacional para não assumir metas de redução da emissão de carbono. Com a crise econômica global, a primeira-ministra Angela Merkle se viu dividida entre os interesses ambientais e o lobby industrial. A Alemanha, que antes apoiava um tratado forte, agora dava sinais de que não se comprometeria. A Avaaz rapidamente mobilizou sua lista, conseguindo arrecadar fundos para financiar outro anúncio polêmico para as negociações. Os anúncios mostravam a primeira-ministra como “Darth Merkle”, responsabilizando inteiramente a Alemanha pelo possível fracasso das negociações. Depois da publicação do anúncio, que foi disseminado por todo o centro de convenções, chegando à mídia e às delegações dos países presentes, uma ação virtual foi lançada e milhares de pessoas do mundo inteiro enviaram mensagens para Angela Merkle pedindo que ela voltasse a ser uma aliada do movimento climático. A pressão popular, as mobilizações e o lobby político direto com os delegados e diplomatas, mais uma vez, influenciaram o resultado.
Em casa Recentemente, o Brasil também comprovou o poder da mobilização popular virtual na influência de decisões políticas. O Senado aprovou a Medida Provisória 458, que privatizaria 67 milhões de hectares da Floresta Amazônica. Enquanto a MP aguardava a sanção do presidente Lula, a Avaaz convocou os membros brasileiros, para que pressionassem o presidente pedindo o veto dos pontos mais perigosos da MP. Em menos de três dias, 14 mil pessoas ligaram para o gabinete de Lula e, duas semanas depois, 30 mil pessoas enviaram e-mails. A MP foi sancionada e os dois pontos criticados pela campanha foram vetados. A agilidade e o tamanho da mobilização enviaram
um sinal claro para o presidente: os brasileiros estão prontos para agir quando se trata de um assunto tão importante como a Floresta Amazônica. Os alertas se disseminaram rapidamente em listas de discussões pela Internet afora, provando que o modelo de mobilização online, quando direcionado para uma campanha concreta, é capaz de mobilizar dezenas de milhares de pessoas rapidamente. O potencial da Internet de mobilização para fins políticos ainda é pouco explorado. Sabemos que, sem a Internet, talvez o atual presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, não tivesse conseguido arrecadar uma quantia recorde para sua campanha, que o levou à vitória. Sabemos que, sem a Internet, os protestos recentes no Irã não teriam ganhado o mundo, minuto a minuto pelo Twitter, e milhões de pessoas não teriam testemunhado a triste morte de Neda Agha-Soltan. A visibilidade dos protestos nos mostraram que, até nos países com menos liberdade de expressão, ainda há pessoas com força para fazer valer sua voz. Sem a Internet, talvez não ficaríamos sabendo dos abusos dos direitos humanos escondidos nas selvas peruanas ou no interior do Zimbábue. Porém, vivemos em um mundo onde temos a oportunidade e a opção de nos manter informados e, agora, temos também a opção de nos mobilizar e agir. Daqui a poucos meses, o mundo todo estará reunido em Copenhague, onde o tratado pós-Kyoto será assinado e, assim, definido o futuro da humanidade. Ainda há muita resistência política por parte dos grandes emissores de carbono, e ainda é difícil prever qual o posicionamento político de cada país. A Avaaz está se preparando para ter a mesma agilidade de Bali, Póznan e da campanha brasileira, pronta para mobilizar pessoas do mundo todo e expor aqueles que tentarem diluir um tratado global vinculante, justo e forte. Hoje, temos a opção que não tínhamos a apenas duas décadas atrás, podemos todos estar em Copenhague prontos para agir e fazer nossas vozes chegarem aos ouvidos de nossos representantes.
* Graziela Tanaka Socióloga, coordenadora de Campanhas Globais no Brasil da Avaaz
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intern internacional Pierre Calame*
Depois de mais de 20 anos, opera-se uma tomada de consciência: nosso modelo atual de desenvolvimento não é viável em longo prazo. Apenas 20% da população mundial desfrutam de um padrão material a que todos os demais aspiram, e já agora o consumo total de nossas sociedades não é compatível com a manutenção dos grandes equilíbrios ecológicos do planeta. O que acontecerá quando todos desfrutarem disso? E como recusar a 80% que não têm, até o presente, as migalhas do festim do consumo sua vez de sentar-se à mesa? Todo mundo começa a ficar transtornado. [Traduzido do francês por Ligia Filgueiras]
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O aquecimento climático se anuncia mais rápido e mais forte do que jamais se pôde
acional imaginar. Mas todo esse transtorno de nada adianta. Os grandes países ditos emergentes, a começar pelo Brasil e pela China, não veem porque deveriam sacrificar o desenvolvimento rumo ao padrão de vida dos países ricos. E isso serve para justificar a devastação das florestas. Cada um se exime de responsabilidade. Pior que isso, como demonstra a crise financeira e econômica mundial atual, todo mundo fica transtornado quando se arrefece o crescimento. Cada país tem o próprio plano de recuperação. A economia atual tem um só pedal para o freio e o acelerador. De um lado, é preciso frear para evitar a catástrofe da mudança climática; de outro, é preciso acelerar para evitar a catástrofe social. Mas o único pedal que resta é o da moeda. Medem-se o consumo de energia e o consumo do trabalho humano com as mesmas unidades de medida, os mesmos dólares! Todo mundo sabe que é necessário passarmos por ampla transição que pressupõe uma nova concepção da economia. No entanto, como aplicar uma igualmente ampla estratégia de mudança? No livro Ensaio sobre a economia – que utiliza a ortografia antiga “oeconomia”, e não “economia”, para destacar que a expressão significa em grego “as regras de gestão do lar, do espaço doméstico” –, pesquisei a ponto de compreender o que seria necessário para organizar tal estratégia de transformação. Particularmente, mostrei que seria necessário a cooperação entre si de quatro tipos de atores frequentemente ignorados: os inovadores, que “inventam” soluções para responder a uma situação que lhes parece inaceitável; os teóricos, capazes de repensar todo o sistema; os propagadores, capazes de transformar experiências e reflexões de pequena dimensão em processos mais amplos; os reguladores, enfim, os poderes públicos em geral, capazes de modificar o contexto em que agem uns e outros. Vou me fixar, aqui, em uma das categorias: os inovadores. São numerosos, em todo o mundo, aqueles que não se resignam ao absurdo. São os precursores. Não pretendem repensar todo o sistema, mas quem quer que deseje conceber novos caminhos deve prestar grande atenção a eles. Hoje, podemos vislumbrar quatro grandes direções de inovação: da economia de acumulação a uma economia do
bem-estar; rumo a uma economia responsável, plural e solidária; quando a economia torna-se econômica; rumo à ecologia territorial e à sociedade da utilização.
Da economia de acumulação à economia do bem-estar Chegou ao campo da economia aquilo que se verifica nas obras humanas: os meios terminam por sobrelevar os fins. Se a busca do bem-estar para todos era precisamente o fim destinado à economia, a acumulação de riquezas materiais tornou-se o meio quase único. Com tal método, o bem-estar acabou se tornando como o horizonte, que se afasta cada vez que queremos nos aproximar dele! Existe ainda uma relação entre o enriquecimento das sociedades e seu bem-estar? Uma série de pesquisas mostrou que, após 30 ou 40 anos, o crescimento constante do Produto Interno Bruto (PIB) por habitante é acompanhado de uma estagnação do sentimento de felicidade, de bem-estar. Tais pesquisas, por outro lado, mostram que, dispondo da mesma riqueza, o grau de felicidade nos países pode ser extremamente diferente. Verifica-se, por exemplo, que não é somente a quantidade de produção que conta, mas também a maneira de produzir. A coerência entre aquilo que se faz e aquilo em que se crê, a riqueza da vida social e, o prazer de viver, são mais determinantes que a riqueza material. É preciso, pois, retornar às próprias finalidades da atividade econômica, nos diz esse primeiro tipo de inovador. A segunda corrente, feita de inovações de saída diversificadas, fragmentadas, pouco a pouco se conscientiza de sua coerência e da complementaridade das inovações originadas separadamente, mas todas em reação a uma economia dominante, internacionalizada, que, em nome da economia de escala e da divisão internacional do trabalho, produzia muita exclusão social ou mantinha na miséria certos atores do processo internacional de produção, anônimos aos olhos do consumidor final. Eu assinalaria aqui quatro movimentos: o microcrédito; as moedas complementares; o comércio equitativo; e a renovação da economia social e solidária.
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internacional
Sobre o microcrédito, os sistemas de crédito mútuo comunitário existentes, sob diversos nomes, na maioria das sociedades baseiam-se nas relações sociais e no controle social que permitem tais relações para ajudar, alternadamente, aqueles que necessitam. O mérito do economista Mohamed Yunus, de Bangladesh, recente Prêmio Nobel da Paz, foi o de teorizar essas práticas e de dar a elas uma grande visibilidade no cenário internacional, permitindo que se desenvolvam em grande escala. Ele desmentiu o adágio “não se empresta senão aos ricos”. Lá, onde os ricos, para obter crédito, empenham seu patrimônio, os pobres, por meio do microcrédito, empenham a honra perante seus familiares. Depois dessa inovação, Mohamed Yunus mostrou que, em um sistema “universalizado”, o desenvolvimento demandava uma combinação de iniciativas orientadas pela base. Por seu lado, as moedas complementares reagem ao absurdo de uma economia que se pretende eficaz, mas que, no entanto, deixa coexistir, no mesmo lugar, sobre o mesmo território, os braços ociosos e os necessitados insatisfeitos. Quando a economia, a quem cabe, logicamente, esse papel, não consegue assegurar a conexão entre os capacitados e os necessitados, é preciso encontrar outros métodos. Redescobriu-se, então, iniciando em pequena escala, sistemas de troca de tempos de trabalho. Na Argentina, por exemplo, no momento da crise econômica da década de 1990, desenvolveu-se um sistema de troca generalizada que, de parente a parente, acabou mobilizando mais de 1 milhão de pessoas. Essa inovação também não tinha nada de novo. Nasceu na Áustria, um século antes, igualmente em situação de crise. E, voltando mais atrás, descobriu-se que, durante a Idade
O sistema de produção é a base de uma interdependência, daí uma solidariedade em potencial entre produtores, distribuidores e consumidores
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Média, na Europa, diferentes tipos de moeda coexistiram, uma destinada a trocas locais, que era impossível entesourar, outra destinada a trocas mais distantes e a constituição de reservas. Além do número modesto de pessoas que se beneficiam dessas moedas complementares e da importância limitada dos fluxos de câmbio que geram, essa inovação permite uma nova visão de moeda. A terceira inovação é o comércio equitativo. Esse conceito vem com a tomada de consciência de consumidores dos países ricos de que o consumo de café, bananas, brinquedos e computadores era proporcionado por sistemas internacionais de produção nos quais os produtores de base não obtinham mais que migalhas do bolo com o qual tinham contribuído para pôr na mesa, havendo mesmo casos em que crianças ou adultos eram praticamente reduzidos à escravidão. Para esses consumidores, a contradição era flagrante entre seus valores, frequentemente envoltos em cristianismo social, e a realidade do impacto de seu consumo. Tomaram também consciência do desconhecimento quanto às grandes cadeias internacionais de produção que conduziam aos produtos que adquiriam. O sistema de produção é a base de uma interdependência, daí uma solidariedade em potencial entre produtores, distribuidores e consumidores, mas o sistema econômico atual rompe essa relação, relegando-a ao anonimato. Esses consumidores descobriram, então, que seus atos de consumo tinham ainda mais importância que a cédula eleitoral, que uma cidadania econômica é tão importante quanto a cidadania política. O movimento permaneceu por muito tempo marginal, mas criou progressivamente novas referências nas mentes de consumidores. A exigência de rastreabilidade (conhecimento das etapas e dos fatores da produção) levaria ainda 20 anos após a que determinou a qualidade do produto. Ela abrange hoje as próprias condições de produção. Por fim, a quarta inovação. Observa-se atualmente uma renovação das antigas estruturas de economia social, como as grandes cooperativas e os fundos mútuos, e o surgimento de numerosas iniciativas ditas de economia solidária privilegiando a auto-organização. O caráter de todas essas iniciativas
Inovações para a concepção de modelo econômico viável e sociedade duradoura
consiste em recusar a ideia de que as empresas têm por única vocação produzir lucro, de se interessar tanto pela natureza da riqueza criada como pela sua repartição, e pelo direito de cada participante do processo de produção de não ser um simples executante, mas também um ator.
Quando a economia torna-se econômica Essa terceira corrente de inovação, estimulada pelas crises petroleiras de 1974 e de 1980, parte da constatação de que, durante decênios, o crescimento da riqueza foi acompanhado de um crescimento proporcional dos consumos de energia e de matérias-primas. Era preciso romper essa relação. É o que se chama de desacoplagem: graças a uma melhor “eficiência energética”, é preciso produzir mais riqueza e bem-estar com menos energia e matéria-prima. Dito assim, isso parece evidente, mas é preciso lembrar que os atores mais bem-organizados – empresas petrolíferas, companhias de produção e distribuição de eletricidade, empresas de aquecimento coletivo, construtores, e mesmo produtores de automóveis –, são todos, de um modo ou de outro, interessados em que o esbanjamento continue: são frequentemente remunerados pela energia produzida e vendida ou têm interesse, como os construtores, em oferecer os produtos menos caros possíveis sob condição, em seguida, de que os proprietários ou locatários elevem os custos de aquecimento ou de climatização, ou ainda, no caso dos produtores de automóveis, se lancem a uma corrida pela potência. Pode-se dizer que em 2009, se os atos ainda não estão à altura dos discursos, a tomada de consciência da necessidade da desacoplagem está presente. Contudo, assim como na questão do comércio equitativo, o movimento é freado pela enorme ignorância que temos sobre a energia e a matéria-prima que fazem parte daquilo que consumimos. O interesse em que essa economia torne-se econômica é também de nos reconduzir a uma aproximação mais concreta da produção e do intercâmbio. Sabe-se, por exemplo, que o essencial da eficiência energética tem a ver com a organização dos territórios, as despesas
com transporte, com aquecimento ou com a climatização dos alojamentos. Isso restitui um espaço de iniciativa considerável no plano local. Esse é outro ângulo de enfoque. Há interesse, de início, nas relações que possam existir entre indústrias localizadas sobre o mesmo território. Cada uma absorve energia e matérias-primas e, a seguir, rejeita os resíduos. Cada uma funciona separadamente. Por que, se são chamadas de promotoras da ecologia industrial, não raciocinar inspirando-se nos ecossistemas naturais? Em um ecossistema complexo, o máximo de benefício é extraído das fontes da energia solar por meio de sistemas de troca entre todos os elementos do ecossistema. E quanto mais um ecossistema é rico, mais os ciclos de troca se fecham, o rejeito de um tornando-se a matéria do outro. Assim, foram instaurados os primeiros sistemas de “simbiose industrial”, nos quais se procurariam as complementaridades entre as atividades de produção em um mesmo território. Essas primeiras iniciativas provocaram, também, uma tomada de consciência do péssimo conhecimento que se tinha da inserção da atividade humana nos ecossistemas. Essa reflexão desvendou aquilo que se denomina “a sociedade de utilização”. É também uma velha ideia reaplicada aos interesses atuais. Depois de muito tempo, alguns viriam a se indignar com o que se denomina de “a obsolescência incorporada aos produtos industriais”. A sociedade de utilização se opõe a essa tendência. Se, para se chegar a uma sociedade duradoura, é necessário que cada um encontre uma atividade, expressão de sua utilidade para com os outros, e que se economize a matéria-prima e energia, será preciso passar do tudo a jato para o tudo reparável. Generalizando, é preciso sistematicamente substituir os bens pelos serviços. Isso pressupõe outra concepção dos produtos industriais, que devem ser modulares em vez de integrados, e isso faz da criação de normas um verdadeiro bem comum.
* Pierre Calame Diretor geral da Fundação para o Progresso do Homem (FPH)
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ENTRE VISTA Entrevista
Leonardo Boff
O refúgio em Jardim Araras (região ecológica do município de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro), onde fauna, flora e seres humanos convivem em plena harmonia, é uma mostra de como as escolhas e os caminhos traçados por Leonardo Boff apontam, antes e primordialmente, para o respeito aos ambientes natural e espiritual e a todos os seres que neles habitam. Chegar nesse cenário é como mergulhar em um dos seus 70 livros (que tratam essencialmente de teologia, ecologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística), nos quais, de diversas formas, o conceito de bem viver é veemente defendido. Assim é Leonardo Boff e o lugar onde escolheu passar a vida, com sua companheira, a educadora e ativista social Márcia Maria Monteiro de Miranda, e sua prole ‘por afinidade’: cinco filhos, uma filha e cinco netos(as). Filósofo, teólogo, ativista social, árduo defensor dos direitos humanos, ambientalista, escritor, religioso, ex-frade franciscano, um dos principais idealizadores da Teologia da Libertação, que revolucionou a Igreja Católica a partir da década de 1970, bem como
Democracia Viva (DV) – Quando e onde você nasceu?
Leonardo Boff – Nasci em Concórdia, uma cidade de referência por ser a sede da Sadia e da Perdigão, é uma cidade de imigrantes italianos. Meus avós eram do grupo dos desbravadores da região, derrubaram matas, abriram estradas e ajudaram a construir o município de Concórdia. Nasci nesse contexto. Somos 11 irmãos e somos poucos, a maioria dos nossos vizinhos tinham mais, 15 e até 28 filhos, e com a mesma mulher.
DV – Como eram sua mãe e seu pai? É família religiosa?
Leonardo Boff – Sim, de uma dupla religiosidade. Minha mãe, Regina Fontana Boff, era analfabeta e falava só um dialeto italiano, o vêneto, falava pouco o português, muito piedosa, daquela piedade bem italiana, familiar. Era extremamente afetiva. Era ela quem levava a casa para o meu pai poder trabalhar. Ela era camponesa, plantava trigo e tudo o que precisasse, ela puxava a enxada e nós, pequeninos, tínhamos que ajudar. Eu era o mais relutante, sempre gostei mais de estudar, de livros. Meu pai, Mansueto Boff, foi quase um jesuíta, era uma pessoa crítica. Por um lado, aprendemos a rezar o rosário, ali de joelhos, em casa; e depois, escutando meu pai, que fazia críticas rigorosas à Igreja, aos padres, à forma como a Igreja se organiza, centralizada no poder, nada participativa. Então, já nascemos com esse espírito crítico de ver a religião como algo que não é perfeito. Ele era professor de escola e entendia ser sua missão a de distribuir livros para o povo. Na região, ninguém falava português, tinha o grupo polonês, o italiano e o alemão, e só se falavam essas línguas em casa, e na escola tinha que se aprender português – eu mesmo até os 10 anos falava mais o italiano. Ele dava as aulas em português, mas ninguém aprendia direito. Então, se valeu de um estratagema interessante: se fez representante de uma firma de Porto Alegre que vendia rádios e montou um rádio a bateria em cada casa para eles escutarem os programas em português e, aos poucos, aprenderem a língua. Ele criou uma biblioteca popular e, durante a semana, o pessoal tinha que pegar um livro e, depois da reza do rosário, aos domingos, fazia-se uma roda e todo mundo contava para o grupo o que tinha lido. Nós, pequeninos, ficávamos escutando, falavam tudo errado, misturavam o português com os outros idiomas, mas eram obrigados a falar em português. Assim, ele educou toda uma geração utilizando o instrumento mais moderno da época, que era o rádio.
DV – Seu pai, então, era um verdadeiro humanista?
Leonardo Boff – Com certeza, uma característica dele que acho bonita, e todos da família a herdaram: ele sempre defendia os negros, os caboclos e os índios. Por exemplo, na escola, ninguém queria sentar com os filhos e as filhas dos negros e dos índios, e ele nos obrigava, a nós seus filhos, a fazer isso. Ele era padrinho de
quase todos eles. Meu pai enfrentava de fato as situações de preconceito tentando desmontá-las. A maioria era muito preconceituosa, os italianos, alemães, poloneses, e o são até hoje. Rejeitavam os moradores originais de lá. Meu pai os defendia, defendia as terras deles, trazia-os para a escola, quando não queriam vir, por medo, pois alguns até apanhavam por serem ‘brasileiros’ e não italianos, alemães ou poloneses. Ele era um humanista nesse sentido, mas não era muito religioso no sentido de frequentar a Igreja, preferia ler a Bíblia em casa, sabia latim, e o ensinava para nós. Por exemplo, eu fui para o seminário sabendo a origem de algumas palavras, em latim, em grego, todo mundo no seminário ficou espantado com isso. O primeiro livro que eu li, e é interessante porque este ano é o centenário de nascimento dele, foi A origem das espécies, seleção natural, de Charles Darwin, tinha 8 anos. Meu pai falava da evolução, que não tínhamos vindo dos macacos, mas de um ser antes dos macacos, e eu lia aquilo tudo. Depois, li tópicos de Hegel [Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo alemão], não entendia nada, decorava as frases para impressionar os outros e fui para o seminário com essa bagagem familiar.
DV – Seu pai e sua mãe fizeram questão que os(as) filhos(as) estudassem?
Leonardo Boff – Como as terras lá eram baratas e minha família tinha terras, havia duas opções: meus tios educaram os filhos por lá mesmo, ganharam um pedaço de terra e continuaram como camponeses. Nesse caso, a maioria migrou para Paraná, Mato Grosso, Rondônia e Acre, foram subindo. A outra opção era o estudo, meu pai fez essa opção. Fizemos por lá a escola secundária e, depois, quando chegou o tempo da universidade, fomos para Curitiba, a família mudou pra lá. E eles foram vendendo cada pedaço de terra que tinham, inclusive a nossa casa, para custear nossos estudos. Assim, os 11 se formaram, todos fizemos universidade, os homens, somos cinco, fizemos doutorado, uma das meninas também fez. Os homens estudamos fora, Estados Unidos, Bélgica, eu na Alemanha. Essa foi a opção deles.
DV – Tiveram liberdade de escolha em suas profissões?
Leonardo Boff – Total liberdade de escolha, uma foi ser bibliotecária; a outra, advogada; tenho uma irmã no Rio, uma freira, que é professora na PUC; e um irmão que é professor de Matemática e Estatística na UFRJ. Tenho um irmão que estudou nos Estados Unidos, ocupava um cargo importante no setor de vendas da Editora Vozes, mas com a intervenção do Vaticano, foi deposto. Ele mantém uma ONG na Baixada, junto ao rio do Suruí, uma região de muita violência e de depósito de cadáveres, onde nada chega.
DV – Você nasceu durante o Estado Novo, quando havia forte repressão a grupos estrangeiros. Lembra de
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algumas dessas situações?
Leonardo Boff – Lembro, sim. A polícia vinha pelo porão, à noite, espionar as casas para saber se falávamos em português ou não e, aos domingos, vinha verificar se rezávamos o rosário em português. Uma vez, vieram quatro policiais a cavalo para interditar a igreja, o povo cercou o grupo com foices e paus e queria matá-los. Meu pai interviu e eles foram embora. Não era uma questão de resistência organizada, como eles respondiam na época, ‘nós não sabíamos o brasiliano mesmo’, mas sofremos repressão direta por causa disso. E meu pai resolveu ajudar com essa ideia do rádio porque acreditava que a população tinha mesmo de saber falar em português. Mas não tinha jeito, eram só uns poucos que chamávamos os outros de brasileiros. Eu mesmo não me considerava brasileiro, quando já no seminário, perguntaram, respondi que era italiano. Para nós, ser brasileiro tinha um sentido pejorativo, umas coisas de caboclo, gente que só queria dançar; nós, os italianos, alemães, éramos gente séria, vivíamos trabalhando.
DV – Seu pai era contra ou a favor de Vargas?
Leonardo Boff – Isso não lembro, mas a obsessão dele era ser contra a UDN [União Democrática Nacional], contra o moralismo deles. Ele era a favor do PSD [Partido Social Democrático], era um homem de esquerda, um homem crítico. Ele era um professor de escola primária diferente. Ensinava aos filhos dos colonos como construir uma casa, como medir os terrenos, como fazer os contratos. Ele era também juiz de paz, resolvia todas as discussões de famílias, e agente de saúde. Era o único que conseguia as penicilinas, que salvou muita gente. Ele ia até de madrugada, atendendo as famílias.
DV – Como foi a opção pelo seminário?
Leonardo Boff – Eu tinha 10, 11 anos, foi uma coisa misteriosa porque nunca pensei em ser padre, queria ser chofer de caminhão. Haviam conseguido abrir as estradas e por lá passavam caminhões, achava extraordinário aquilo, um homem dirigindo um monstro daqueles, o cheiro da gasolina era a melhor coisa do mundo. Chegou um padre, celebrou a missa e fez um sermão sobre São Francisco. Em dado momento, ele disse: ‘Quem quiser ser padre levante a mão’. Engraçado, posso contar isso agora, que tudo passou, senti um calor dentro de mim e alguém levantou a mão em mim. O padre comia sempre na casa do professor, então, na hora do almoço, ele disse: ‘Olha aqui, ele vai para o seminário’. Eu não queria saber nada daquilo, queria ser chofer de caminhão, relutei, chorei, nem quis mais comer, fui embora. Mas havia levantado a mão na igreja. Já se jogara o meu destino. E depois, meu pai disse que eu tinha de ir mesmo, acabei indo, estava com 12 anos.
DV – Onde era o seminário? Ficou muito tempo longe de casa?
Leonardo Boff – Era em Luzerna, perto de
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Joaçaba, no Vale do Rio do Peixe. Fiquei lá dois anos porque era muito novo. Depois, fui para Rio Negro, fiquei em um seminário em forma de castelo alemão, belíssimo, onde se educaram os principais frades do Sul do Brasil. Me adaptei rapidamente porque havia colegas da região lá. A gente ia para casa de dois em dois anos e, depois, de cinco em cinco. Meu pai me visitou só uma vez porque não havia ônibus para lá, era tudo barro, o asfalto só chegou em 1970. Fui em casa para vê-los quando estava com 14, 15 anos, e depois de cinco anos novamente.
DV – Não ficava triste com isso?
Leonardo Boff – Isso faz parte da formação eclesiástica, os educadores criam aquele universo fechado onde a Igreja é tudo. Quando voltava para casa, estranhava tudo. Por exemplo, nesse período, nasceu um irmão que não conhecia. Quando chegava, minhas irmãs me abraçavam, beijavam, e eu estranhava muito, porque seminarista não pode ser tocado, nem mesmo olhar as mulheres nos olhos, temos sempre que baixar os olhos para não cair em tentação. E depois que entramos no convento, no meu caso foi em 1959, veio o Noviciado em Rodeio, perto de Blumenau; depois, dois anos de Filosofia em Curitiba; mais quatro anos de Teologia em Petrópolis. Só depois que já havia me tornado padre é que voltei para visitar a família. Fiquei sete anos sem vê-los. A Igreja era muito rígida nesse sentido, diria até cruel.
DV – E depois da formatura?
Leonardo Boff – Depois de formados, podemos ser transferidos para qualquer lugar. A mim foi destinado fazer o doutorado na Alemanha. Fui para lá em julho. Meu pai morreu no mesmo dia em que embarquei, de navio, e eu nem soube. Naquela época, não havia a facilidade que temos hoje de telefone. Ele tinha mudado de Concórdia para Alegrete, no Rio Grande do Sul, para chefiar uma empresa que exportava madeira para o Uruguai e para a Argentina. Lá, ele morreu de enfarte fulminante, aos 54 anos de idade, deixando os 11 filhos dispersos por aí, estudando. Só soube mesmo quando cheguei à Europa. Estudei lá de 1965 a 70.
DV – Quando sua forma de pensar começou a se chocar com o que a Igreja pregava?
Leonardo Boff– Tive a felicidade de ter como professores de Teologia no Brasil eminentes teólogos. Estudávamos uma teologia de tradição alemã muito crítica. Até a Segunda Guerra Mundial, a teologia era dada em alemão aqui, filhos de imigrantes italianos, como eu, tinham de falar alemão fluentemente, e eles falavam. A tradição alemã em diálogo com a teologia protestante sempre foi a mais crítica face à Roma, e a gente nasceu nesse espírito muito crítico com o Vaticano, com o papa. Isso se confirmou quando fui para a Alemanha, lá era o centro da nova teologia, mais acadêmica, mais filosófica, e só aprofundou o que eu já havia estudado. Mas a matriz da teologia que estudava aqui no Brasil,
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apesar de moderna, era a neoescolástica. E na Alemanha, entrei em contato com Heidegger [filósofo alemão] e seus discípulos, como Karl Rahner, considerado o grande teólogo católico do século XX – de quem pude ser aluno por três anos e, mais tarde, seu amigo. Ele vinha da analítica existencial de Heidegger e fazia uma teologia totalmente diferente. Isso abriu meus horizontes e deu origem a minha tese doutoral sobre a presença da Igreja dentro da experiência do mundo em processo de mudanças. Essa visão mais aberta, o diálogo com as culturas, com as religiões, o cristianismo sem arrogância como uma das propostas de humanização, não a única, me ajudou muito a criar minha própria síntese.
DV – Como foi retornar ao Brasil em plena ditadura militar?
Leonardo Boff – Quando cheguei aqui, em 1970, tive um choque enorme. Primeiro, fiquei fechado em um convento durante vários anos. Lógico, tinha trabalhado nas periferias, mas não era nada sistemático. Levei um choque enorme com a pobreza e com a riqueza, a ponto de ficar indignado, pensando que a teologia tinha de tomar uma posição. E tive outro susto, cheguei de navio, cheio de caixas de livros, pegaram meu passaporte e me levaram para uma sala para interrogatório, pensei: ‘Ih, vou ser torturado’. Mas não fui. Cheguei aqui no dia 17 de fevereiro de 1970, defendi minha tese em 28 de janeiro, em Munique. O chefe que pegou meu passaporte, disse: ‘No dia 28, você defendeu publicamente, em Munique, a legitimidade de uma revolução armada’. A gente tinha que produzir 32 teses, escritas em latim, e a banca, que tinha mais de 20 professores, escolhia uma aleatoriamente, no caso a escolhida foi a tese de número 14, que dizia isto, que dentro de certos contextos de opressão prolongada, temos direito à resistência, à rebelião, como ato ético era legítimo fazer uma revolução. E a polícia sabia porque, em Munique, havia vários espiões, já que tinha mais de 200 estudantes brasileiros lá. Fiquei apavorado, e ele me disse: ‘Se você não se cuidar, vai ter o mesmo destino dos dominicanos, que estão todos presos’. Aqui, assumi a cátedra de professor no Instituto Franciscano de Teologia de Petrópolis e fui nomeado chefe do editorial religioso da Editora Vozes.
DV – Veio da Alemanha já articulado com a Vozes?
Leonardo Boff – Não, a Vozes é dos frades, existe o Instituto de Teologia e junto está a editora Vozes e a gráfica. Logo que cheguei, o diretor, frei Ludovico Gomes de Castro, pessoa importante na resistência intelectual ao regime militar, disse: ‘Você vai dirigir a Revista Concílium, a Revista Eclesiástica Brasileira, vai ser chefe do editorial religioso..’. Assumi esses compromissos, não sem riscos. Por duas vezes, a polícia veio, sequestrou coisas, levou o secretário da Revista Vozes preso e parece que o torturaram. Uma vez, particularmente, senti muito medo. A CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil] era no Rio. Dom Aloísio Lorescheider, que era o presidente, chamou o frei Ludovico e a mim e disse: ‘Soubemos que hoje à noite o DOI-CODI vai invadir a Vozes’. A gente publicava na Revista Eclesiástica Brasileira todas as torturas e, como era uma revista da Igreja, os deputados e senadores a citavam no parlamento sem temor, era o que se podia fazer. Nós escondemos tudo o que podia nos comprometer. Algumas foram tão bem escondidas que não achamos nunca mais. Mas, naquela tarde, ocorreu o sequestro do embaixador suíço, o que desmontou todo o esquema da invasão. Assim, nós ficamos livres, escapamos. Mas eu era muito vigiado pelas publicações que fazíamos.
DV – O que o inspirou a escrever Jesus Cristo Libertador, obra que fundamenta a Teologia da Libertação?
Leonardo Boff – Esse processo começou em julho de 70, quando fui para Manaus pregar um retiro para missionários da Selva Amazônica. Gente que dizia que estava há duas semanas viajando só para chegar ali, de barco, a cavalo, a pé, gente que veio lá dos interiores, eram 25 pessoas, religiosas e padres. Comecei a dar o curso baseado na teologia crítica europeia, mas via nos olhos deles que não chegava. Pedi para trabalharem em grupos para elaborarem perguntas e eles perguntavam: ‘Como vou salvar seringueiros que estão brigando com indígenas, que estão se exterminando? Como vou salvar os ribeirinhos que estão tomando água poluída do Rio Madeira por causa da mineração? Como fica o diálogo entre o cristianismo e os povos originários?’. Aí, vi que toda a minha teologia e filosofia crítica não respondiam. Me dei conta de que precisava fazer uma teologia diferente e, em agosto, comecei a lecionar cristologia, doutrina
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sobre Cristo. Lecionava e escrevia cada aula, em dezembro daquele ano, o livro estava pronto. Curiosamente, ainda não tinha escutado o nome de Gustavo Gutiérrez [teólogo peruano], Juan Luis Segundo [padre uruguaio], Sergio Torres [padre chileno] e, simultaneamente, no mesmo ano, lá em seus países, eles começavam a falar sobre Teologia da Libertação. Parece que a coisa irrompeu, é como Hegel explica, é o “espírito do mundo”(Weltgeist), quando irrompe em todas as partes, emerge, e o sujeito disso não somos nós, somos apenas o instrumento por meio do qual essa força histórica se utiliza para se manifestar. Assim, começou a Teologia da Libertação.
DV – Seu papel como disseminador da Teologia no Brasil foi decisivo. Pode relatar essa experiência?
Leonardo Boff – Como chefe do editorial religioso da Vozes, já publicava os textos da sociologia crítica de Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, que eram a nossa base sociológica para entender que pobreza não é pobreza, é dependência, é opressão, é a teoria da dependência. Não devemos partir da compreensão comum da realidade porque ela é ideológica, temos de decodificá-la numa boa sociologia crítica. Fizemos isso com os nossos sociólogos daqui e todos tinham a vertente marxista, e, simultaneamente, com a antropologia de Darcy Ribeiro. Publicamos toda a obra dele, que valorizava muito o indígena, a mistiçagem brasileira. Tomei uma decisão arriscada na época em termos de Igreja e de sociedade. Comecei a publicar todos os textos sobre a Teologia da Libertação, mandando traduzir e criando aqui uma verdadeira biblioteca. Ao mesmo tempo, favorecendo que se publicassem catequeses na
linha da Teologia da Libertação para atingir os jovens. Simultaneamente, Frei Betto e Frei Ivo saíam da prisão. Achávamos que não adiantava a teologia sem uma base social. Então, bolamos articular o que estava separado: as comunidades eclesiais de base [CEBs] e as pastorais sociais, formadas por sem-terra, sem-teto, indígenas, negros. Elas é que levam a prática para frente, passamos a pensar a partir daquela prática e unidos. Junto com bispos que eram considerados profetas daquela época, como Dom Hélder Câmara, Dom José Maria Pires, Dom Fragoso, Dom Luis Fernandes, Dom Paulo Evaristo Arns. A maioria dos bispos era dessa linha. Fazíamos teologia com um entusiasmo sem censuras e sem temor.
DV – A CNBB apoiava esse movimento integralmente ou havia divisão?
Leonardo Boff – Inicialmente, o apoio era total, eles enfrentavam os militares e nós dávamos a eles bons argumentos na área dos direitos humanos. Aqui em Petrópolis, criamos, com muito risco porque a polícia estava de olho, uma articulação de todos os movimentos de direitos humanos no Brasil. Conseguimos o apoio de Dom Paulo Evaristo, que era corajoso, para o nosso primeiro encontro, realizado em 1974. A polícia toda ao redor, tentando nos impedir.
DV – Participou da organização do livro de Dom Paulo Evaristo, Brasil Nunca Mais?
Leonardo Boff – Lógico! Fui buscar o livro em São Paulo, porque era tudo segredo, não podia ir nada pelo correio. Participei da confecção final, dentro da Vozes. Não participei da elaboração porque era um segredo tão grande que pouquíssimas pessoas sabiam, era preciso fazer em absoluto sigilo. Dom Paulo Evaristo continuamente mudava os locais dos encontros, escondia os documentos, era uma vigilância muito grande, fez uma cópia de segurança de todo o material e conseguiu fazer chegar a uma universidade estrangeira, no caso de os originais serem destruídos. E depois de concluído, veio o problema? Como publicar? Tinha de ser a Vozes. Coloquei hábito de frade, porque assim a polícia respeitaria mais, e trouxe um dos manuscritos em uma maleta. Um outro veio por outro caminho que não lembro mais, por razões de segurança. A Vozes trabalhou dia e noite para produzir o livro dentro de uma semana. Aproveitamos uma sexta à noite para ampliar o máximo possível a distribuição, para São Paulo, Rio, Belo Horizonte, para que, na segunda-feira, já estivesse nas livrarias. Se a polícia viesse a recolher, seria difícil fazê-lo em todos os cantos. E avisamos aos principais livreiros e intelectuais. Temíamos que eles assaltassem a Vozes, nos sequestrassem e arrebentassem as máquinas. Então, nem os funcionários sabiam do que se tratava, só trabalhávamos à noite.
DV – Quando começaram seus
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problemas políticos com a Igreja?
Leonardo Boff – Na verdade os tive desde o começo. Nos processos, ganhamos um número que permanece o mesmo. Como estudante, já comecei a escrever sobre teologia. Escrevi um artigo em 1963 sobre a inspiração bíblica. Dizia que a inspiração não é singular da Bíblia cristã, que outros textos sagrados religiosos são também inspirados. E o Santo Ofício veio em cima, pedindo uma pequena retratação. Levei o maior susto porque ainda nem era padre, era só estudante, era secretário de um dos assessores do Vaticano II e professor meu, Frei Boaventura Kloppenburg. O susto foi o de ter de fazer a retratação, o que me provocou um complexo de vigilância enorme, pois nem formado era e já estava sendo colocado sob vigilância. Fui para Europa, estudei, naqueles anos todos não tive problemas. Mas quando publiquei, em 1971, Jesus Cristo Libertador, começaram os processos. Praticamente, a cada livro que escrevia, vinham perguntas, e eu segurava até a última data, até que diziam que tinha uma semana para responder, aí respondia. Para ganhar tempo, é lógico.
DV – Quais questionamentos eram feitos?
Leonardo Boff – Por exemplo, sobre Jesus Cristo, eu dizia: ‘Jesus Cristo lentamente foi crescendo, de criança não sabia que era Deus, e foi lentamente descobrindo que ele era enviado de Deus’. Eles diziam: ‘Não, como filho de Deus, e pela encarnação, desde pequeno, mesmo no ventre materno, estava fazendo adoração ao Pai e fazendo seu sacrifício redentor.’ São pensamentos que considero absurdos, mas que na teologia tradicional persistem.
DV – Como se davam esses processos?
Leonardo Boff – A Congregação para a Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, lê o livro e manda perguntas para clarificação. É um tipo de interrogatório oficial, só que por escrito. E aquilo nunca tem fim, para cada resposta dada, há outras perguntas. Escrevi vários livros sobre cristologia: Paixão de Cristo, Ressurreição, Cristo cósmico, Reencarnação, ao todo uma obra de cerca de mil páginas. Os questionamentos não tinham fim, até que chegamos a um acordo: escrevi um artigo não corrigindo, mas modulando minhas afirmações, eles aprovaram, e teve de ser publicado em várias línguas, aí me deram uma folga. Agora, quando publiquei Igreja, carisma e poder, eles disseram: ‘Agora, chega de cartas, agora você vai ter de sentar aqui na cadeirinha’. Como Galileu Galilei, tive de ir lá em 84. Escrevi o livro em 82 e meu irmão, que é teólogo, disse: ‘Se o Vaticano não condenar esse livro é sinal de que eles não estão mais valendo nada’. Fiz uma edição pequena, achei que era muito técnica, pensei “Ih, esse não vai vender nem mil exemplares em cinco anos’. Vendeu tudo em pouco tempo e foram várias edições.
DV – É o seu livro mais vendido?
Leonardo Boff – Não, o mais vendido é
outro, Sacramentos da vida, vida do sacramento. É pequeninho, uma tentativa de resgatar o mundo simbólico e sacramental dentro do mundo técnico e científico.
DV – Como foi o processo presencial?
Leonardo Boff – Aí é realmente um processo doutrinário que segue normas canônicas, jurídicas. E é um processo extremamente iníquo, já que a mesma instância que acusa é a que julga e a que pune. Nenhum Estado do mundo, por mais ateu que seja, tem os três poderes unidos, por uma questão de justiça. Uma instância acusa, outra julga e a terceira executa, todas com autonomia. Eu logo reclamei: ‘Quero um advogado’. ‘Não existe isso de advogado aqui, você tem de responder pela sua fé’. Desconfiava que o problema não era comigo. Eles, dos de Roma, não queriam atingir a mim, queriam atingir a CNBB. Mas atingir a CNBB era muito difícil, eram mais de 300 bispos. Roma evita os conflitos de frente. Então, escolheram a mim, um assessor, para atingir a CNBB. Os alemães tinham um dito bastante interessante: bater no saco pensando no burro que o carrega. Nesse caso, eu era o saco e o burro era a CNBB. Como os bispos descobriram isso, Dom Paulo Evaristo e Dom Aloísio Lorscheider, que eram cardeais, foram junto comigo, e também o presidente da CNBB, Dom Ivo Lorscheiter. Disseram: ‘A teologia é um bem da Igreja local, é uma teologia boa. Nós, como pastores, testemunhamos isso, faz bem para a comunidade. Vamos até lá para defender esse tipo de teologia’. Isso escandalizou Roma. Aquilo é uma espécie de ritual. A gente recebe as acusações e tem de fazer a defesa por escrito. Há três modalidades: ou se usa o texto e responde lendo; ou se fala abertamente, um diálogo, sem texto nem nada; ou se misturam as duas formas, a parte mais difícil, mais técnica, lendo e a outra parte falando. Eu disse: ‘Não vim aqui defender um livro, vim defender a Igreja, as comunidades de base’. Peguei uma pasta e mostrei os apoios que recebi, foram mais de cem mil do mundo todo. ‘Não tenho uma biblioteca atrás, tenho uma Igreja’, falei. Isso irritou o cardeal interrogador, que hoje é o papa Bento XVI, o cardeal Joseph Ratzinger. Foram três horas, é um interrogatório duro, na verdade, trata-se mais de um julgamento, um confronto. Por exemplo, ele perguntou: ‘O que é uma comunidade de base, lá vocês fazem treino com armas?’. Imagina isso, logo de saída. Eu disse: ‘Mas por que vocês estão perguntando isso?’ E ele: ‘Porque toda hora vocês dizem – Como vai a luta?’. A gente diz isso no sentido de perguntar como vai a vida, e não como vai a guerra. Eu disse: ‘Excelência, acho ridículo o senhor me perguntar isso, o que mais nós fazemos lá é rezar’. E ele achava que eram pequenas células do marxismo que usavam a capa do cristianismo. Ele disse: ‘Isso é um cavalo de troia, o marxismo vai entrar na
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América Latina por meio de vocês. E nós temos o dever de defender a fé do povo’. Era um total equívoco na leitura e na interpretação.
DV – E acabou sendo condenado?
Leonardo Boff – Pois é, isso foi em 1984. Em 85, um portador da Nunciatura me traz um livreto de 30 páginas, impresso pela Poliglota do Vaticano. Continha a minha condenação. Depois que li, ele perguntou: ‘Você aceita ou não?’. Eu digo: ‘Aceito porque eu também condeno aquelas afirmações; elas não são minhas, é um pastiche feito de pedaços de frases com outros pedaços para me condenar. Mas pode servir como base para podermos conversar’. E ele: ‘Mas aceita ou não?’ Eu respondi no sentido anterior dizendo:’Aceito’. Vi que ele ficou contente. E emendou: ‘Porque se você não aceitasse...’, e aí me mostrou um envelope, ‘deveria lhe impor imediatamente as penas canônicas aqui contidas’. Ou seja, estava me coagindo mesmo. Mas fui esperto, porque as penas, em termos jurídicos, só valem quando a gente recebe o documento oficial em mãos. Houve greve dos Correios durante 15 dias. Quando finalmente chegaram, aconselhei-me com um diplomata, o Silveira, na época ministro das Relações Exteriores, amigo meu de anos antes, que me disse: ‘É fundamental, é estratégico você não se confrontar com essa instituição milenar que é a Igreja. Assim, você vai estar perdido e levará junto a condenação das comunidades eclesiais de base e a Teologia da Libertação. Elas têm de ser salvas. Então, comece dizendo que nunca foi marxista, que a Teologia da Libertação não tem Marx nem como pai nem como padrinho, mas os Profetas e a prática de Jesus; que você acolhe a missão social da Igreja, defendendo a justiça e os direitos humanos e que aceita o princípio da autoridade. O que Roma não aceita, de maneira nenhuma, é que você questione a hierarquia como um todo’. Fiz essa carta com todas essas instruções e o papa, por meio do cardeal Casaroli, respondeu: ‘Agora, sim, poderemos fazer uma boa Teologia da Libertação’.
DV – A questão girava em torno da hierarquia da Igreja?
Leonardo Boff – O Vaticano tolera todo tipo de injúria, mas não tolera que se questione a autoridade absoluta do papa. Não se pode mexer no princípio da autoridade, porque é o que sustenta este modelo de Igreja. Por isso, as autoridades romanas não gostam da categoria teológica de Povo de Deus, que está nos documentos oficiais do Concílio Vaticano II. Para elas, povo está lá embaixo, é só simples fiel, é gari, não manda nada, quem manda é a hierarquia que tem um poder sagrado, recebido pela ordenação. Eu questionava isso, dizia que a Igreja é fundamentalmente Povo de Deus, todo mundo é irmão e irmã, é igual, e a hierarquia é de serviço e não de poder. Ele dizem que não, que o papa, por meio de São Pedro, recebeu todo o poder de Cristo, que o distribuiu entre os bispos; estes entre os padres; estes entre os
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leigos; até lá embaixo, no último degrau, onde é seu lugar. Sobre esta concepção de hierarquia, eles não admitem a mínima crítica, quem a critica é imediatamente afastado, porque rompe a espinha dorsal que sustenta tal edifício. Eu sempre afirmei que é uma construção histórica, é uma instituição humana, que vive de uma fé, mas que de si não é divina, ou é divina como tantas outras coisas são divinas porque contêm a presença de Deus.
DV – Chegou a ser expulso da Igreja?
Leonardo Boff – Não. Minha condenação foi algo curioso. Na verdade, eles, de Roma, não apontaram nenhum erro doutrinário meu e minha defesa escrita e falada fora contundente. No livreto, eles criticavam a linguagem, meio protestante, que não respeitava as autoridades. E no fim, dizem: ‘Condenamos o livro Igreja, carisma e poder pelas opções que o autor faz, que põem em risco a fé dos fieis’. Eles não condenam uma doutrina, mas uma opção política e religiosa. Estou em ótima companhia, pois Jesus fez as opções dele e foi perseguido por isso. Também é curioso que o cardeal Joseph Ratzinger tenha publicado um livro com todas as condenações impostas pela Igreja ao longo da história, e tenha incluído a que eu sofri como um novo tipo de condenação, que não é doutrinária, não é questão de moral, são opções por um outro tipo de Igreja, que nasce de baixo, que é mais democrática, participativa, mas que não é aquela instituição hierárquica, um modelo de Igreja que coloca em questão o princípio de autoridade, centralizado no papa e na hierarquia. O que eles alegam contra nós, e contra mim, é que esse tipo de Igreja não consegue manter a unidade. Apontam como exemplo as Igrejas Protestantes que se atomizaram.
DV – Como foi sair da Igreja e partir para uma nova vida?
Leonardo Boff – Não senti muito a mudança, e isso é raro entre os teólogos. Geralmente, quando o teólogo sai, ele perde seu campo de atividade, que é a Igreja. A Igreja cuida muito bem dos seus quadros. Acolhe pequenininhos, com 10, 12, 15 anos de idade, lhes dá a melhor formação possível, envia para as melhores universidades, dá infraestrutura: a cama, a comida e a boa biblioteca, dá tudo. Agora, saiu disso, vira peão. Tive a sorte de poder continuar como teólogo, escrevendo livros e fazendo o mesmo que fazia antes. A Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] me cedeu uma cátedra, como professor visitante, e aceitei por um ano. Mas queria entrar como todo mundo, por concurso. Fiz e passei como professor de Ética e Filosofia da Religião e Ecologia Filosófica. Como tive apoio dos bispos, continuei dando assessoria às comunidades e até pregando em retiros para frades e freiras, curiosamente. Eles viram que minha ruptura era com um certo tipo de Igreja, e não com a fé cristã. Mantive minha teologia. Agora
Leonardo Boff
mesmo, houve um encontro com mais de 55 bispos, em Porto Velho, e era a maior amizade, muitos pediram para que eu continuasse com o meu trabalho intelectual porque a reflexão os ajudava bastante.
DV – Ainda ministra os sacramentos, batiza, faz casamentos?
Leonardo Boff – Muita gente não se identifica mais com a Igreja tradicional, mas se sente ligada à mensagem de Cristo e aos Evangelhos e quer batizar os filhos, então eu faço o batismo e faço casamentos. Faço enterros, tem muita gente que me pede, e como recusar-se a enterrar os mortos? É uma obra de misericórdia mínima.
DV – A Igreja o proíbe?
Leonardo Boff – Os bispos sabem e discretamente apoiam, dizem: ‘Você ainda continua no campo pastoral’. Mas para a Igreja, eu sou um leigo. Só posso fazer os ritos em extrema necessidade. Se acontecer um acidente, posso ministrar a absolvição como fazem os padres. Como a Igreja brasileira é um fracasso institucional, pois deveríamos ter 120 mil padres, e só temos 17 mil, as pequenas comunidades ficam sem padres e, às vezes, eles pegam o texto bíblico que fala da eucaristia e o ritualizam. Usam o cupuaçu como o pão da região, que é repartido como se fosse o pão eucarístico. Quando me pedem para celebrar, eu faço. Não chamo de missa porque missa é um conceito canônico, está tudo prescrito, e eu não quero criar conflitos. Chamo todo mundo ao redor da mesa, fazemos a Ceia do Senhor com pão, vinho e todas as orações. O que fazemos é eucaristia como presença sacramental de Cristo, segundo
a melhor teologia.
DV – Em sua obra, há uma dimensão feminista muito forte. Isso se deve à influência de sua mãe?
Leonardo Boff – Sempre tratei o tema do feminino e do masculino. Um livro meu que considero importante é O rosto materno de Deus, que surgiu de uma provocação da Rose Marie Muraro, uma grande feminista. Trabalhávamos juntos na Vozes e ela me obrigava a pensar na dimensão teológica disso. O livro mais forte que escrevemos juntos foi Masculino e feminino: paradigma novo para uma nova relação. Ela estava muito doente, e eu disse: ‘Antes que você morra e eu fique totalmente com Alzheimer, vamos fazer um apanhado do nosso trabalho e também fechar a pesquisa científica sobre isso’. Escrevemos o livro. É um livro interessante e de referência. Já saíram várias edições e vai sair uma nova agora. Não dá para ter uma experiência completa como ser humano só a partir de um dos pólos, feminino ou masculino. Somos feitos à imagem e semelhança de Deus enquanto homens e mulheres. A Igreja que mutilou um dos lados, o feminino pagou um preço alto: ela se autoflagelou, se desumanizou. A grande escola de humanismo e de cristianismo é o matrimônio. Ele ensina a conviver com as diferenças, a experimentar de verdade o que é o amor, a suportar as pessoas com suas arestas e com sua dimensão de sombra e de luz. Se alguém quer ser virtuoso, case. Você vai aprender virtudes. Se um padre quer ser santo, case, crie filhos, aprenderá muito e se humanizará.
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DV – Quando se casou?
Leonardo Boff – Em 1992, quando fui obrigado a sair. Durante a ECO-92 me colocaram a alternativa: ou você vai para Coreia e Filipinas ou sai da Ordem Franciscana. Perguntei se poderia ensinar teologia naqueles países e a resposta foi: ‘Não, só no convento!’. Eles me queriam longe da América Latina. Casei e herdei seis filhos que a Márcia já tinha. Nós nos conhecemos no trabalho de base, no grande lixão de Petrópolis.
DV – Como é a sua relação com a Igreja hoje?
Leonardo Boff – Nós, da Igreja da base, não temos nenhuma pretensão de romper com a Igreja hierárquica. Pelo contrário, queremos ver os bispos todos juntos. Quem quer isso é a extrema direita, que rompe, faz cisma mesmo, como o pessoal de Lefebvre. Nosso grupo nunca fez isso. Eles não admitem mudanças, especialmente com referência às mulheres, que são mais da metade da Igreja e são as mães e as irmãs da outra metade, que são os homens. E também com referência ao celibato dos padres, eles não fazem nenhuma concessão nesse sentido. Foi no século IV, com Constantino, quando a Igreja fez a opção pelo poder, que, na minha opinião, foi a pior opção que ela poderia fazer. Jesus teve as famosas três tentações, a tentação do poder profético, da palavra que transforma pedras em pão; a tentação do poder sagrado, que do templo controla a sociedade; e a tentação do poder político, que é a aliança entre os reinos do mundo. Jesus rejeitou as três. A Igreja caiu nas três: assumiu o poder político, assumiu o poder sacerdotal e assumiu o poder da palavra, só ela que fala. O cristianismo histórico, nesse recuo que temos de 2 mil anos, fez uma opção, marcou a cultura ocidental, transformou profundamente
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a mensagem de Jesus. Tudo o que Jesus queria era serviço, doação, nada de poder, ele rejeitou o poder como tentação, e a Igreja se estruturou ao redor da ‘sacra postestas’, do poder sagrado.
DV – E considerando esse modelo, como avalia a Igreja?
Leonardo Boff – Esse modelo não tem futuro, a globalização tornou absolutamente isolado o cristianismo, quase como um oásis de autoritarismo, de patriarcalismo. É a única monarquia teocrática do mundo, não tem capacidade de ser proposta às culturas mundiais, é uma parte do Ocidente que cada vez mais é um acidente. A tese que defendo – e tenho dado cursos por aí, na Europa e na América Latina – é a do cristianismo feito em rede de comunidades, que inclua várias Igrejas, não importa quais, é uma proposta de sentido para a humanidade. E ele se encarna nas culturas locais e se encarna melhor quando há um encontro na base entre fé, evangelho e cultura, nos seus hábitos cotidianos. Isso se dá pelas comunidades de base, que criam grandes redes, renunciam a toda pretensão de arrogância de ser a única portadora da verdade e da revelação, procura, junto com os outros, manter essa dimensão espiritual de ser humano e cumpre uma missão importante de civilização. Roma não quer saber de nada disso, tem uma visão imperial da missão. Este papa, então, é um flagelo para a fé. DV – Por quê? Leonardo Boff – Porque ele repete a tese medieval de que fora da Igreja não há salvação, então todo mundo tem que aderir à Igreja; de que as religiões são braços estendidos ao céu, mas não sabemos se Deus acolhe esses braços; de que as religiões todas estão em suficiência e risco de perdição, porque não pertencem à Igreja Católica; de que as Igrejas Protestantes não são Igrejas, têm apenas elementos eclesiais – isso, por sinal, gerou uma discussão muito dura comigo nos interrogatórios do ex-Santo Ofício. A expressão que ele usou foi a seguinte: casa é só a Igreja Católica, os protestantes roubaram um telhado, uma janela, um pedaço de vidro, e tudo o que foi roubado tem de ser devolvido, eles não são casa. E o caminho é o da conversão, mas eles não podem ser coagidos. Daí, toda a estratégia de diálogo, de benevolência, visa facilitar esta volta à casa católico-romana. Então, as Igrejas se veem obrigadas a renunciar às suas tradições e a ser outra coisa. Essa estratégia proposta irritou todas as Igrejas Protestantes porque se sentiram ofendidas. Este papa cometeu vários erros de governo, com os muçulmanos, com os judeus, com as mulheres, com a questão da Aids na África e com os tradicionalistas de Lefebvre, da extrema direita religiosa e política. Ele os acolheu, introduziu o latim de novo, reinaugurou a liturgia do papa Pio V, do século XVI. Esse papa é um homem, eu diria, não mais conservador, ele é reacionário e militante em seu reacionarismo. E tem uma
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visão absolutamente negativa de toda a cultura moderna. Por isso, faz um enfrentamento direto com tudo o que é da modernidade, acusando-a de difundir a ditadura do relativismo, esquecendo que a ditadura das verdades absolutas (a dele) é tão nefasta quanto a outra.
DV – Na década de 1980, a Igreja Católica lançou o Processo Lumen 2000, uma disputa com os protestantes na busca por fieis a partir dos meios de comunicação de massa. Os carismáticos são fruto da realização desse projeto?
Leonardo Boff – Os carismáticos ganharam força com João Paulo II porque o projeto dele não era um projeto voltado para o mundo e diálogo com as culturas e as religiões. Era um projeto voltado para dentro, fortificar a Igreja como instituição, o princípio de autoridade, o direito canônico, a doutrina. A base de sustentação desse projeto não era nem a Igreja do Vaticano II, nem os teólogos progressistas, nem a Teologia da Libertação, nem os bispos mais progressistas da América Latina. Eram os movimentos conservadores que resistiram ao Vaticano II, e o grupo mais forte era o Opus Dei, que apoiou financeiramente o Vaticano, e continua apoiando; depois, os Carismáticos, que ganharam força porque é uma coisa de avivamento da fé, sem nenhuma referência ao que é conflitivo na sociedade, à justiça, aos direitos dos pobres. Para eles, o importante é rezar, é dizer Pai Nosso, é festejar a graça. E também outros grupos menores, como os Cruzados de Cristo e, de certa forma, a Comunhão e Libertação, embora seja um pouco mais aberta. Articulado com esses grupos estava o então cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI, cuja tese central é dizer: o importante não é sermos muitos, mas sermos poucos e muito puros. Só que esses poucos estão cheios de pedófilos, ladrões de banco e corruptos. A Igreja se desmoraliza com esses fatos, com a moral sexual, com a questão do aborto, do divórcio, segundas núpcias, rejeição de toda e qualquer participação das mulheres na direção da Igreja. Nem mais fisicamente a mulher pode se aproximar do altar. Antes, ela até que podia, apenas como coroinha, agora não pode mais, de jeito nenhum. Elas têm de estar longe do altar.
DV – Como analisa a atuação da CNBB?
Leonardo Boff – Primeiro,a Igreja brasileira foi uma das poucas Igrejas de significação mundial, de resistência, porque tinha uma coesão interna muito forte e soube resistir com muita inteligência a João Paulo II, às investidas de se desmoralizar essa conferência, de se fazer nomeações de bispos a partir dos grupos conservadores. A CNBB tem uma estratégia muito inteligente: todo padre que é nomeado bispo tem de passar alguns dias em Brasília, na sede da CNBB, fazer um curso de como ser bispo, tem de conhecer as opções pastorais e teológicas da
CNBB, aí já vai se gestando uma nova mentalidade de comunhão e de colegialidade. Depois, ele é convidado a visitar várias experiências de dioceses onde há trabalho específico com a juventude, de base, pastoral, com os sem-terra ou com favelas. Roma nomeia um conservador e quando este entra em contato com a realidade concreta e sofrida do povo, passa geralmente por um processo de transformação o que desmonta muito a estratégia de Roma. A CNBB sempre resistiu. Soube de fonte segura, de pessoa que trabalha diretamente com o papa, que, visitando o Brasil, ele ficou tão entusiasmado que não se cansa de falar disto, até mesmo nos discursos oficiais: ele não imaginava que houvesse aqui um cristianismo tão vivo, tão alegre, tão jovem, e com os pensamentos dos bispos e teólogos tão ligados a essas práticas. Acho que agora ele se deu conta do significado da Teologia da Libertação. O que ele viu foi essa articulação feliz entre base, pensamento teológico e coordenação das comunidades e da Igreja.
DV – Como se aplica a Teologia da Libertação entre as comunidades de base?
Leonardo Boff – Essa ligação é orgânica porque nasceram juntas e se frutificaram mutuamente. Nossos textos refletiam a base e a base se reconhecia nos textos. Como assessores permanentes, o que mais fazemos foi acompanhar grupos de base. Eu mesmo vou a encontros regionais das CEBs, fui recentemente ao encontro nacional, com 4 mil pessoas. Eles nos sentem como companheiros de caminhada, vamos juntos. A pretensão da Teologia da Libertação é ser uma palavra segunda, a primeira palavra é a prática, que se dá em duas vertentes: a prática das comunidades, onde se lê a Bíblia, confrontada com a realidade, se celebra a liturgia, onde se forma a Igreja na base – até cunhamos a expressão eclesiogênese, que circula na comunidade teológica, que é a gênese da Igreja; e a segunda são as pastorais sociais por terra, por teto, por saúde, por direitos humanos, em favor dos indígenas, dos negros, das crianças que envolvem a militância político-social, e o mais forte desses movimentos é o MST. A maioria desses movimentos sociais nasceu dentro da Igreja, são expressões da Igreja da libertação. É um bloco muito forte, que tem a sua parte prática e sua reflexão teórica. E tem também a sua parte celebrativa, o rito e símbolo, as chamadas ‘místicas’ que são muito importantes porque são a argamassa que amarra tudo, que fala para o profundo das pessoas. Não é possível um encontro do MST, que reúne 5 mil, 10 mil pessoas, sem uma ‘mística’ uma celebração, envolve elementos políticos e outros religiosos porque o povo é religioso, mas fundamentalmente dá forma à dimensão simbólica da luta, da vida dos companheiros. Não dá para separar comunidades de base da Teologia da Libertação. Ela nunca foi uma teologia só acadêmica. Ela sempre vem articulada com uma prática popular.
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Por exemplo, aqui em Petrópolis, dava aula no Instituto de Teologia, que, sem favor, é um dos mais importantes do Brasil, tem mais de cem anos, tem a maior biblioteca teológica, são mais de 300 mil livros, recebe mais de 400 revistas do mundo inteiro, junto com a editora, que também produz farta literatura religiosa. Então, vivia uma situação de privilégio, fazia os textos, os mandava imprimir e distribuir. Tinha todo o circuito ideológico na mão. Eu fazia teologia, ao mesmo tempo, dava assessoria às comunidades de base do Brasil e, junto com a Márcia, trabalhava no lixão de Petrópolis. Todo fim de semana, nós organizávamos, mais ela que eu, as 202 famílias que viviam da catação de lixo, até criar uma comunidade, uma escola, o centro comunitário, a fábrica de beneficiamento do lixo, uma creche comunitária, até virar um bairro autônomo. Não dá para pensar a Teologia da Libertação só como teologia, ela tem um pé na realidade e um pé na reflexão, daí vem a sua força.
DV – Como a preocupação com a natureza surge nessa reflexão?
Leonardo Boff – A Teologia da Libertação nasceu escutando o grito do oprimido. Primeiro, foi o oprimido econômico, o pobre, o explorado. Depois, vimos que o oprimido e o pobre tem muitas caras, é o indígena, o afrodescendente, o negro, são as mulheres, que desde o neolítico são oprimidas. Também nos demos conta, a partir de 1980, que as águas, a terra, os animais gritam, a floresta grita. Se a marca registrada da Teologia da Libertação é a opção pelos pobres, dentro
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dessa opção tem de entrar o grande pobre, o planeta Terra, que é o mais explorado de todos, devastado por essa lógica perversa. A mesma lógica que explora o trabalhador, explora as classes, explora o país, explora também a natureza. Já percebia isso na década de 1970, mais por causa da tradição franciscana que sempre deu centralidade à natureza, mas era voz meio isolada, não se escutava. Em 72, fizemos uma festa ao Burle Marx, o grande paisagista brasileiro de quem era amigo. Fizemos um livro e eu escrevi um artigo sobre ‘a não modernidade de São Francisco’, donde derivava uma ecoteologia da libertação. Isso não era secundado por ninguém porque a questão era enfrentamento capital/ trabalho, marxismo, capitalismo etc. Mas sempre me envolvi na questão da ecologia até que, a partir de 1980, me dediquei mais intensamente com seus aspectos mais científicos. Na carta que, através o Cardeal Casaroli, João Paulo II me dirigiu, dizia que eu deveria me mostrar mais sério, pensei: ‘Como vou me mostrar mais sério? Eu serei sério!’ Aí, resolvi deixar crescer a barba, que mantenho até hoje. O outro ponto foi aprofundar os temas que realmente são importantes. Pensei, o papa pediu? Pois vou mostrar que sou sério e vou tomar a sério seu pedido. Mas logo percebi que nenhum dos temas que presumivelmente eram sérios para Roma o eram objetivamente. E eu já trabalhava alguns desses temas que pouco tinham a ver com Igreja, como a globalização, o capitalismo mundial, a devastação da natureza. Aí, pensei, o tema principal será o da ecologia, esse vai ser decisivo para o futuro da Terra e da humanidade. Depois da ECO-92, no Rio, fui convidado pelo grupo que trabalhava uma Carta da Terra, no qual estava Mikhail Gorbachev e outros para participar na elaboração de um documento-guia a fim de enfrentar a crise ecológica que já se anunciava. Para mim, a ecologia foi desde o começo essencial e, hoje, é o grande tema da teologia, desde Porto Alegre, no Fórum Social Mundial – que este ano se realizou em Belém –, e também no encontro nacional das CEBs, cujo título foi “Do ventre da terra ouvir o grito da Amazônia”. Hoje, a Teologia da Libertação ganhou muita força porque acompanha essa discussão mundial da crise do sistema e também as ameaças que pesam sobre a vida. E desde o começo, nós, e eu pessoalmente, estávamos na fundação do Fórum Mundial da Teologia da Libertação, acoplado ao Fórum Social Mundial. Sempre tem vindo muita gente, de todos os continentes, Ásia, África, América Latina, aí a gente sente o pulso dessa teologia. Ela não é muito visível porque não é mais conflitiva, já foi assimilada na cultura, mas não é ausente, está presente.
DV – O temor do aquecimento global pode fazer com que os governantes mudem de postura em relação ao meio ambiente?
Leonardo Boff – O último relatório publi-
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cado, feito por 2.700 cientistas, dá o estado do aquecimento, que é muito mais grave do que se imaginava. A aceleração é muito maior, o planeta já se aqueceu em 0,7 graus Celsius; nos próximos três anos serão mais 0,5 graus, isso dá quase 2 graus. O grande problema mundial é como estabilizar a Terra em 2 ou 3 graus, aí os efeitos não serão tão perversos. Se ultrapassar isso, será um desastre ecológico humanitário de proporções nunca vistas. A humanidade inteira está despertando. O Vaticano foi um dos últimos a despertar, com a última Encíclica do papa, que achei muito fraca, não está à altura das ameaças, da crise, não tem nenhum senso profético. Até escrevi um artigo dizendo como faz falta um pouco de marxismo ao papa. Não basta fazer descrição, tem que dizer quais são as causas. Ele acha que são disfunções do sistema, o sistema é bom, essa é a grande ilusão na qual não podemos cair. É ocupar os canais de comunicação, é perder uma oportunidade, em um momento urgente da espécie humana e do planeta Terra, de passar uma mensagem inspiradora, e ele não souber fazer isso. Os cristãos têm de fazê-lo, as Igrejas locais. O Brasil está fazendo isso muito seriamente, fez uma Campanha da Fraternidade sobre a Amazônia, vai fazer sobre aquecimento global agora. Há uma grande mobilização nas CEBs. Em Porto Velho, no encontro nacional, ficou decidido que não mais se chamarão apenas comunidades eclesiais de base, e sim comunidades eclesiais e ecológicas de base. Fiquei extremamente admirado, pois os participantes estudaram durante dois anos um caderno que fizemos com especialistas na área sobre ecologia e a Amazônia. Todo mundo estava afiadíssimo. Conheciam muito bem as questões amazônicas e com senso altamente crítico. Dizendo que o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] do Lula, com seus grandes projetos e hidroelétricas, representa a presença do macrossistema econômico mundial, que vem de cima para baixo, não dialoga com os indígenas, com os ribeirinhos, com quem conhece a situação ecológica das regiões, são estratégias absolutamente autoritárias. E eles dizem: ‘Nós só podemos resistir. Estão construindo como querem e a nossa tarefa é minimizar os efeitos perversos’. Mas estão buscando dialogar com as autoridades, oferecendo suas experiências, com profundo sentido crítico a respeito dos megaprojetos.
DV – Como deveria ser a participação do Brasil na COP 15, em Copenhague?
Leonardo Boff – Pela experiência que tenho na participação em grupos que estudam o problema do aquecimento global, se constata que o Brasil é decisivo para o equilíbrio da Terra. Detém as maiores florestas tropicais do planeta, a maior reserva hídrica do mundo e, daqui a pouco, o grande problema será o da água doce. O Brasil tem a maior biodiversidade, a maior extensão de solo agricultável, sol o ano todo, tem ventos
extremamente favoráveis à produção de energias alternativas, tem um capital de biomassa talvez o maior do planeta e uma riqueza natural que não existe igual no mundo porque, ademais, os espaços foram todos ocupados. O Brasil e a Amazônia são dos poucos lugares onde ainda se pode pensar em grandes projetos e, por isso, são cobiçados pelos grandes conglomerados. O Brasil não tem uma política clara sobre a Amazônia, não tem uma acumulação de consciência científica e crítica nem tem consciência da sua importância. A Fundação Getúlio Vargas fez há alguns anos um cálculo em termos econômicos – porque há uma economia da natureza e uma economia humana – que os serviços que a Floresta Amazônica presta à humanidade em termos de umidade, equilíbrio de chuvas, fertilidade, climas equivale a 40 bilhões de dólares/ ano, algo que o Brasil dá de graça para a humanidade sem qualquer compensação. O Brasil não tem essa consciência, não sabe da sua importância, e corre o risco de que as políticas do PAC acabem se perdendo, caso haja, como previsto, um desastre ecológico de grandes proporções por causa do aquecimento global e da destruição da biodiversidade. Só para a Região Amazônica, foram projetadas 57 hidroelétricas. Se as previsões do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] se confirmarem de que, com o aquecimento global, boa parte da Amazônia vai se transformar numa savana, então poderá ocorrer um desequilíbrio em todos os climas do mundo. Cada árvore grande da Amazônia produz 300 litros de umidade por dia: são chamadas de rios voadores, a floresta inteira produz tanta umidade que alimenta de chuvas todo o Centro-Oeste e o Sudeste. E, em parte, empurra para o Norte chegando até a Califórnia, que antes era um deserto e hoje é fértil. O que conta na Amazônia não é o solo, e a reforma que o governo fez foi apenas a legalização fundiária. O que conta é o que está em cima do solo, é a floresta em pé, é a biodiversidade, é a imensa pletora de insetos e de animais. O solo é todo lixiviado, dos mais pobres do mundo, o importante é segurar a Amazônia em pé, a missão dela não é ser derrubada para dar lugar à soja ou à criação de gado, mas é ficar em pé como um reservatório da vida, não há vida sem floresta, não há água sem mata ciliar. O Brasil não despertou para esses aspectos mais fundamentais. Há que se lamentar enormemente essa inconsciência que beira à irresponsabilidade. A proposta a ser levada oficialmente à Copenhague sobre os limites de emissão de gases de efeito estufa é ambígua. O Brasil, por meio do Itamaraty, deixou claro que não aceita cotas de emissão de carbono, mas que fará uma inflexão em seu curso. Ou que vai decidir ainda e só revelará nos dias da conferência quais números apresentará. Isso não é tomar a sério os sinais que a Terra está inequivocamente dando. Chegamos a um ponto em que a humanidade tem de estar no centro, e não o nosso desenvolvi-
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mento. E aqui nem o desenvolvimento está no centro, é o crescimento, um projeto do século XIX, absolutamente equivocado, antiecológico, na contramão da história. Isso é tudo lastimável e, na campanha do ano que vem, devemos suscitar essa questão em nome da humanidade. Não podemos permitir que se renove uma discussão uma vez levantada por Gorbatchev, e apoiada por várias plêiades, de que o Brasil renunciasse parte de sua soberania entregando a Amazônia à administração internacional, por razões ecológicas e humanitárias, por amor à vida e à natureza. Argumentavam dizendo que nós não temos políticas, não temos tecnologia, não sabemos como tratar a floresta e continuamos a desmatar para dar lugar à soja e ao gado. Só do ano passado para cá, foram 1.048 quilômetros quadrados e ainda significou 60% menos que no ano anterior, mas são mais de mil quilômetros quadrados, isso é uma devastação! Não me admira que, um dia, a Amazônia seja, efetivamente, internacionalizada, por efeito do clima global e termos que escutar: ‘Vocês não sabem cuidar; não é só o Brasil, é toda a Região Amazônica, que envolve sete nações’.
DV – O que achou da troca no Ministério do Meio Ambiente, da Marina Silva para o Carlos Minc?
Leonardo Boff – Vejo que o governo encontrou um ecologista, cujo trabalho conheço e respeito. Ocorre que ele é mais político e, por isso, mais flexível, o que pode ser perigoso em termos de ecologia. Marina Silva tinha uma concepção da Terra diferente. O Minc mantém uma concepção capitalista da Terra, a vê como um meio de produção, só que tudo tem que ser feito de forma racional. Mas a Terra é mais que isso, coisa que a Marina enxerga. Para ela, a Terra é a mãe, é fonte da vida, é Gaia. Mãe a gente não compra, não vende nem agride. A gente respeita, ama, trata bem. Como, então, tratar a Terra, que está doente, com febre e pilhada em recursos escassos? Devemos continuar com um projeto que a devasta continuamente ou trocar os modos de produção? Esta é a discussão de base. Suspeito que Lula nunca entendeu esse discurso. Marina deixou o ministério por causa dessa diferença fundamental de olhar. Resta decidir qual olhar é o mais adequado face à crise atual do sistema-Terra.
DV – Como fica a questão do desenvolvimento para quem governa? É fácil transformar este modelo?
Leonardo Boff – O desafio é como fazer a passagem. É preciso conservar uma coisa e inaugurar outra. Como Lula fez com o projeto macroeconômico, ele o conservou, mas reforçou muito a política social e transformou o Brasil nesse sentido. Não é fácil incluir 50 milhões de pessoas, como ele incluiu, que hoje comem e com isso vivem melhor. Ele deveria, nos projetos de médio e longo alcance, incluir a causa ecológica como estratégica, e não como algo
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pontual. Fazer os projetos respeitando as capacidades dos ecossistemas locais, dentro dos ciclos da natureza, consultando as populações do território, porque o elemento cultural é muito importante para uma solução mais includente e socialmente responsável. Uma ecologia que supere a sua visão ambiental e entre na ecologia social, mental, integral, o que supõe um processo de diálogo com as populações em presença. Quem sabe conservar a Amazônia e o Cerrado é o habitante da Amazônia, é o caboclo do Cerrado, eles conhecem a capacidade de suporte desses ecossistemas. É preciso conversar com quem mora lá há dezenas de gerações e conhece as plantas, os animais, as chuvas e os ventos, enfim, os ciclos da natureza.
DV – Qual a tarefa da sociedade civil em relação à questão ambiental?
Leonardo Boff – Nossa tarefa é transformar a questão ambiental em uma questão política fundamental. Primeiro, ela é essencial em âmbito mundial. O que for decidido em Copenhague, em dezembro, será decisivo. A tendência é que a decisão a ser tomada lá torne-se obrigatória, quem não cumprir, sofrerá punições. O Protocolo de Kyoto era apenas uma proposta, quem quisesse seguir, seguia. Diferentemente do momento atual, quando a situação é tão grave em termos mundiais que exige obrigações globais, assumidas por todos. O ideal seria diminuir entre 60% e 80% as emissões de CO2, mas os governantes dos países participantes da COP 15 devem se acertar em 40%, o que será insuficiente. O Brasil reluta em aceitar essa tese, não aceita determinações internacionais que impeçam seu processo de crescimento, quer ter autonomia. Aí vem a questão na qual eu estou trabalhando agora no grupo da ONU, que se ocupa com a elaboração de princípios básicos sobre o Bem Comum da Terra e da Humanidade. Vivemos ainda sob o regime das soberanias nacionais e percebemos claramente que os limites nacionais são relativizados porque a contaminação e o aquecimento global não se atêm aos limites geográficos das nações. Englobam tudo. Cada país tem de dar sua colaboração ao Bem Comum da Terra e da Humanidade. O Brasil é país-chave para essa questão. Por exemplo, a FAO calcula que daqui há cinco, sete anos a grande crise não será nem o aquecimento, mas a crise do abastecimento de água potável. E o Brasil é a potência das águas.
DV – E quais consequências vislumbra a partir desse cenário?
Leonardo Boff – Vão acontecer guerras de grande devastação para garantir acesso às fontes de água potável. O Brasil precisa ter uma estratégia mundial de abastecimento para a humanidade. O pavor que a FAO anuncia é o cruzamento das duas linhas: do aquecimento global e da falta de água. Haverá uma frustração mundial de colheitas porque ocorrerão secas enormes, oceanos que vão subindo, um
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desequilíbrio climático de grande magnitude. Isso poderá criar entre 150 e 200 milhões de refugiados climáticos, que não vão aceitar o seu veredito de morte sobre eles, que irão invadir outros países em busca da sobrevivência. Ou a humanidade se prepara para tais eventualidades, caso contrário chegaremos tarde demais. A dimensão do problema é tão grande que não há como enfrentá-lo adequadamente. Assistiremos à agonia de milhões de seres vivos e de humanos, sem falar que, com a mudança climática, bactérias, vírus e outros micro-organismos deixarão seus habitats naturais e poderão se espalhar por aí e afetar perigosamente milhões de pessoas. Grandes nomes das biociências não acham impossível que, no final deste século, a espécie humana possa até desaparecer.
DV – Acredita em uma mobilização por parte das nações ou só haverá esforço quando as catástrofes começarem a acontecer?
Leonardo Boff – Eu cito sempre uma frase do Hegel, que está no último capítulo do livro Filosofia da História: ‘O ser humano aprende da história que não aprende nada da história, mas aprende tudo do sofrimento’. Quando a água chegar até o nariz, os governos, as empresas, enfim, todo mundo vai querer mudar. O grande problema é que poderá ser tarde demais. Poucos sobreviverão na Terra, feita pequena arca de Noé.
DV – Aposta em uma guinada do capitalismo diante dessa situação?
Leonardo Boff – Não. Acredito que ele seja suicidário, tenho escrito sobre isso e disto estou convencido. Tentará levar seu projeto até o fim, até ao limite extremo. Mas penso que não o conseguirá, pois será ele também vítima do caos. A pressuposição que afirmo é que o instinto de vida é mais forte que o de morte. Temos hoje tecnologia e já foram feitos cálculos que apontam que se utilizássemos 0,2% dos 630 trilhões de dólares que circulam no mercado especulativo e fizéssemos um fundo, seria possível responder todas as demandas dos pobres, equilibrar todos os climas e a Terra voltaria a ser um jardim do Éden, com fartura de alimentação, de saúde, de moradia, educação. Mas a humanidade é tão desumanizada, tão insensível, cruel e sem piedade, que prefere ver a morte de milhões a investir em algo tão insignificante, mas com salvadoras consequências. Estamos no olho de uma incomensurável crise e é preciso discutir qual será o próximo passo, não da economia, mas da humanidade. Minha hipótese é que a humanidade vai se descobrir como espécie, como família, e nos aceitaremos como irmãos e irmãs, com diferentes rostos e culturas, habitando numa mesma Casa Comum, pequena, velha, com recursos escassos, mas sempre aberta a produzir vida. Penso que, dentro de pouco tempo, seremos todos socialistas, não por convicção ideológica, mas por necessidade. Vamos dividir tudo o que precisamos entre todos, junto com a comunidade de vida, porque
as plantas e os animais também precisam da biosfera, e sem eles não poderíamos sobreviver. A humanidade vai fazer isso como medida de desespero, como forma de sobrevivência, mas isso será provavelmente antecipado por uma situação caótica. Todo caos tem um momento destrutivo e um outro criativo. Destrói o que havia antes e cria o novo, dando um salto de qualidade rumo a mais complexidade e a mais ordens. Em 23 de setembro de 2008, os institutos que acompanham a pegada ecológica geral da humanidade forneceram os dados principais. Foi constatado que consumimos 40% a mais do que aquilo que a Terra pode repor. A Terra não consegue mais atender às demandas, vai haver escassez, fome crônica. Por culpa nossa. Esse dia foi chamado de ‘The Earth overshotting day’, o dia da ultrapassagem das possibilidades da Terra. Por exemplo, os norte-americanos são 4,5% da população mundial e consomem 70% das riquezas do planeta. Quem conhece as cidades americanas fica horrorizado com o consumo. Não é nem pelo comércio, mas é a cultura do consumo e do desperdício. Acredito que a crise vai nos impor grandes constrangimentos, assistiremos a grandes dizimações e a humanidade vai dizer: ‘Ou a gente se reúne e organiza de outra forma o planeta ou aceitamos desaparecer.
DV – Como seria, na prática, o conceito de bem viver?
Leonardo Boff – Temos de superar a monocultura da economia, a monocultura do neoliberalismo, da visão ocidental do mundo. Precisamos olhar para o exemplo da China. O
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grande sucesso daquele país está no fato de a China utilizar-se de todos os modos de produção, até a produção mediante a força física humana. Eles utilizam a agricultura familiar, a cooperativa socializada, mista, particular, capitalista, estatal. Enfim, todas as formas com um tremendo pragmatismo. Por isso, ela cresce tanto, pois agiliza todos os modos de produção possível. Nós, ao contrário, somos vítimas do único modo de produção, o capitalista. Ignacy Sachs, grande teórico da nova economia, polonês de origem vivendo na França, onde dirige um centro de estudos sobre o Brasil, país que conhece muito bem, pois trabalhou aqui, tem um projeto chamado de ‘biocivilização’ ou a ‘Terra da boa esperança’, que tem como centro não a produção, mas a vida. O protótipo da vida é o bem viver porque o sentido da vida é viver e viver feliz, não é produzir, é viver com alegria, é irradiar. E com a máxima preservação possível da natureza porque pertencemos à natureza e temos uma permanente interação com ela. Se fizermos isso, vamos reencontrar não o paraíso perdido, pois não é mais possível resgatá-lo, mas uma humanidade em profunda harmonia com a Terra, com a natureza que a todos acolhe e nutre. Hoje, há uma disputa por hegemonia. Para mim, a discussão do ano que vem, por ocasião da campanha presidencial, não será entre Serra e Lula, mas entre o novo exigido pela situação
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da Terra e o velho que quer continuar como se tudo estivesse em ordem. Serra e Lula pertencem ao velho, Marina Silva e todo um grupo ao seu redor fazem o novo. Voltará a discussão que foi esvaziada pelo PT nas bases: qual é o melhor sonho para o Brasil? Que Brasil queremos? É importante mobilizar a sociedade em torno desta discussão. Se não a fizermos, vamos repetir o velho esquema do século XIX, do puro crescimento material. Se a oposição ganhar, talvez venha a ressuscitar, embora meio desmoralizada, a ideia de privatizações, coisa que não faz mais sentido hoje. Mas o PT está também privatizando aeroportos, estradas, só que o faz nas caladas, mas está fazendo. Na minha opinião, estamos em uma encruzilhada histórica de graves consequências para o nosso futuro comum.
DV – Quando nós, brasileiros(as), vamos começar de fato a ter consciência socioambiental?
Leonardo Boff – Quando converso sobre isso, sempre digo: ‘Não quero consolar ninguém, quero trazer angústia, pois a angústia é o que faz pensar, faz ler, conversar, faz as pessoas se mobilizarem’. Porque esta é a última hora, não temos muito tempo, nem temos muita sabedoria, somos insensíveis e sem piedade, o capitalismo nos criou para isto, para não pensar na subjetividade e nos nossos sonhos, mas só no consumo e na exploração da natureza e das
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pessoas. Ou a gente muda ou teremos de aceitar uma tragédia ecológica humanitária que possivelmente se abaterá duramente em certas regiões da Terra, tornando-a hostil à vida humana. Por exemplo, o drama que envolve o derretimento da Antártica, que está sendo muito acelerado, é que ela guarda uma quantidade enorme de metano, que é 23 vezes mais poluente que o dióxido de carbono. Se esse metano for liberado pelas geleiras que vão derretendo, acrescentando ainda o aquecimento das águas oceânicas, em três, quatro anos, o mar poderá subir quase um metro. Será uma catástrofe para as nossas cidades costeiras.
DV – Como foi representar a sociedade civil brasileira em uma assembleia da ONU?
Leonardo Boff – Tive oportunidade de participar de duas assembleias gerais da ONU, em abril e em junho, numa na qual pude falar. A reunião era para votar um projeto das nações indígenas sobre a proclamação do Dia da Mãe Terra. Os países ricos não queriam saber de nada disso porque, para eles, a Terra é para ser explorada. Não tem nada disso de ser mãe. Mas com as articulações feitas durante dois anos e dada à crise ecológica mundial, criou-se uma atmosfera favorável. A mim coube fazer a fundamentação científica e ética dessa ideia da Terra como Mãe. O projeto foi aprovado por unanimidade. A segunda foi nos dias 24, 25 e 26 de junho. O secretário geral da ONU, Miguel D’ Escoto, convocou os 192 países para uma grande assembleia para discutir com todos uma saída para a crise econômico-financeira mundial. O G-8, principalmente Estados Unidos e França, fizeram tudo para desmoralizar o encontro, porque se arrogam a missão de decidir sobre o futuro de todos. Apesar disso, a reunião aconteceu. Foram poucos chefes de Estado, mas estavam lá seus representantes. O nosso chanceler Celso Amorin fez um discurso razoável, mas todo mundo perguntava a nós porque Lula não estava lá. E comentavam: ‘É que ele agora pertence ao grupo do G-20.’ Estes colocam a questão de como salvar o sistema enquanto os outros se perguntam como salvar a vida, o planeta e a humanidade. São dois interesses e dois olhares diferentes e até opostos. Mas produziu-se um documento importante a partir das falas dos representantes dos povos e do grupo de estudos articulado pelo Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, criado pelo presidente da Assembleia, Miguel D’Escoto. Aí, se fazem várias sugestões importantes, como a criação do Conselho Econômico, que acompanha as duas formas do capital, o especulativo e o real, para evitar desvios graves, se sugere, ao invés da globalização, a regionalização da economia e do sistema financeiro, um acompanhamento sistemático dos problemas ecológicos globais e outras medidas. O documento final foi aprovado por unanimidade. Mesmo os europeus perceberam que teriam um desgaste político muito grande se não o aceitassem. A
representante americana não quis aceitar de jeito nenhum, riscou 10 pontos do acordo e levou para o Obama, que disse: “Aprova!”. Ela voltou humildemente. Foi aprovado. Resta saber se vai ser levado à pratica.
DV – O que isso significa?
Leonardo Boff – Na ONU, o que conta é o Conselho de Segurança e o Conselho Econômico. Os demais departamentos possuem pouco peso. Agora, com a eventual criação do Conselho Internacional Econômico, há a chance de se antecipar à crise e de lentamente se criar uma governança global, necessária para um gerenciamento dos recursos escassos, necessários para a vida das populações. O eixo agora não é mais só a economia, mas a suportabilidade, a sustentabilidade do planeta e o equilíbrio climático da Terra. As economias dos Estados Unidos e da China sugam os principais recursos. Não é mais admissível esse consumo tresloucado que, a continuar, em 15, 20 anos, a Terra não aguentará e iremos ao encontro do pior. Ademais, Miguel D’Escoto criou um grupo de conselheiros, do qual faço parte, que está elaborando uma Declaração Internacional do Bem Comum da Terra da Humanidade. Ela é necessária para unificar as políticas globais e sobre esse tema há pouquíssima acumulação teórica e muito menos prática. Somos umas 10 pessoas de vários países. Eu estou lá porque D’Escoto, que foi ministro das Relações Exteriores da Nicarágua sandinista, se inscreve dentro da Teologia da Libertação. Isso nos aproximou e o tenho ajudado na elaboração de importantes discursos oficiais. Ele é tão respeitado que todos, sem exceção, também muçulmanos e chineses, o chamam de Padre, que ele continua a ser com muita honra e respeitabilidade.
Participaram desta entrevista Entrevistadores(as) Do Ibase: Ana Bittencourt Carlos Aguillar Diego Santos Dulce Pandolfi Fabiana Born Flávia Mattar Geni Macedo Íris Patrícia Batista Jamile Chequer Luciana Badin Nahyda Franca Convidada: Cleonice Dias, conselheira da revista Democracia Viva
Realização Decupagem Ana Bittencourt Diego Santos Edição Ana Bittencourt Produção Geni Macedo Iris Patrícia Batista Fotos Marcus Vini Transporte Fernando Cabral
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Mudar mentalidades e práticas: um A crise climática é a consequência mais evidente, mais imediata e mais ameaçadora do modelo industrial, produtivista e consumista em que se baseia a nossa economia e o modo de vida que levamos. Não se trata de algo conjuntural, mas de esgotamento de um sistema que tem como motor o ter e o acumular, ou seja, um desenvolvimento que tem como pressuposto básico o crescer, crescer mais, sem parar, sem respeitar limites naturais, tudo para concentrar riquezas. Como condição para desenvolver, não importa a destruição ambiental que possa provocar, nem que a geração de riqueza seja, ao mesmo tempo, geração de pobreza, exclusão social, desigualdades de todo tipo. O aquecimento global e a crise do clima são, por isso, expressões de uma inviabilidade intrínseca deste desenvolvimento. Tanto de um ponto de vista ambiental como social,
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não dá para tornar sustentável tal desenvolvimento. Não importa o lugar que ocupamos neste planeta único e finito, o fato é que precisamos mudar. Esse é, hoje, um imperativo ético, de vida, está em questão a integridade da vida e de sua visceral relação com o meio ambiente, e, portanto, da humanidade inteira. A crise está aí. Não a vê quem não quer. Não adianta pensar que dá para se safar, que não é com a gente. O clima, como bem comum, tem a virtude de ser cosmopolita, para o bem e para o mal. Só que a mudança climática resultante do tipo de economia que temos, em especial sua base energética, afeta e afetará particularmente os 80% da humanidade que pouco ou nada receberam deste modelo de desenvolvimento. Ainda mais agora na sua modalidade globalizada, de interdependência quase total. Ouso dizer que estamos condenando a esmagadora maioria a ser refugiada ambiental sem eira nem beira, à deriva, como os barcos de migrantes clandestinos no Caribe e no Mediterrâneo ou a espantosa expansão de favelas nas grandes cidades já anunciam. Estamos diante de uma crise civilizatória, é isto que precisamos reconhecer para poder reagir enquanto ainda é tempo. A lógica do desenvolvimento, gestada com a revolução industrial, tornou-se o motor econômico, político e cultural do mundo nos últimos séculos. Não se trata mais de um embate nos velhos termos – capitalismo x socialismo –, no marco da civilização industrial e seus desdobramentos. Estamos diante da crise da própria civilização industrial e de seus modelos de organização econômica e política – a dominante capitalista e a desafiante e subalterna socialista – para a sociedade. São os fundamentos desse tipo de civilização que se esgotaram. Literalmente, derreteram, foram consumidos pelas suas próprias contradições. E ameaçam o planeta inteiro.
Nova civilização, novo paradigma Estamos diante de uma urgência e uma radicalidade: aqui e agora, precisamos transformar nossos ideais, modos de pensar e os sistemas políticos, econômicos e técnicos que sustentam o desenvolvimento. A ruptura tem de ser total, de ponta-cabeça. Passar de uma civilização industrial e produtivista para uma biocivilização, comprometida com a vida no planeta, implica verdadeira revolução.
A ruptura é espinhosa. O desenvolvimento está encrustado na gente, é um valor. Desenvolvimento lembra imediatamente progresso. E quem não quer progresso? O problema é que deixamos de discutir a qualidade de vida que nos traz o progresso. Quanto de lixo, poluição e destruição estão associados a este progresso! Basta lembrar aqui o carro, um dos protótipos atuais do modelo de desenvolvimento. As nossas cidades são desenhadas para eles e não para nós, cidadãs e cidadãos. E no entanto, quase não andamos por conta dos monumentais engarrafamentos. Será que para viver bem precisamos sempre de mais? Ter mais e mais bens, trocando sempre porque estragam logo (feitos para não durar) ou pela compulsão, que o ideal nos impõe, de adquirir o último modelo. Isso só gera destruição em todo ciclo, da extração das matérias-primas ao lixão onde jogamos os bens em desuso. Já paramos para pensar quem está ganhando nesta história? Não há dúvida que existem enormes necessidades não atendidas. Muita gente tem seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais não atendidos. Grupos e povos inteiros estão condenados à exclusão, miséria, fome, pobreza, privações de todo tipo. Mas por quem e como isto é gerado? Quanto mais se desenvolve o mundo na base deste modelo – como agora, com a globalização, ficou mais evidente ainda –, mais e mais desigualdade se gera no mundo. Apenas 20% da humanidade consome mais de 80% dos recursos naturais e dos bens e serviços produzidos por este sistema. E o pior é que se fosse generalizá-lo para atender a todos os seres humanos, aí faltaria planeta, faltariam recursos naturais! Foi criada a pegada ecológica (foot print), pelos ecologistas, exatamente para avaliar essa apropriação indevida da natureza pelas camadas privilegiadas da população e pelos países mais desenvolvidos. Para viver, na média de um norte-americano, a humanidade precisaria de uns cinco planetas. Por isso, mudar é uma condição sine qua non. Impõe-se uma grande revolução de mentalidades e de sistema de valores. Precisamos superar a ideologia do progresso e voltar a colocar no centro a justiça social e ambiental com a ideia de bem viver para todas as pessoas. Isto enquanto ainda é tempo, pois se não mudarmos já... amanhã será tarde. Comecemos
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disputando sentidos e significados do desenvolvimento que nos é dado como salvação. Há uma ditadura de pensamento econômico no debate e nas decisões políticas, como se nada pudesse ser feito sem crescimento econômico como condição prévia. Considerações ambientais e sociais são custos na visão economicista dominante e não bases nas quais se assentam as próprias sociedades. Repolitizar tudo é a palavra. Trata-se de submeter o econômico e o mercado, a ciência e as técnicas, as estratégias de desenvolvimento a uma filosofia de vida que vê os seres humanos como parte intrínseca do meio natural e em íntima interação com todos os seres vivos, em sua biodiversidade, seus territórios. Estamos diante da necessidade de um novos paradigma ético, analítico e estratégico para iniciarmos aqui e agora a mudança. Precisamos de uma infraestrutura mental, de uma revolução cultural como diria nosso Betinho, que reponha tudo no lugar, o lugar da vida, da natureza, das ideias, de nossa enorme capacidade coletiva de criar, de inventar. Ponhamos isso tudo a serviço de um re-encontro entre nós mesmos, seres humanos, com a diversidade do que somos e do que sabemos fazer e criar. Mas nosso reencontro, também, precisa ser com o meio ambiente do qual sugamos a vida e do qual somos parte integrante. Trata-se de criar um grande movimento de ideias, uma espécie de religião, onde cremos e agimos com determinação. Isso pode fazer a diferença hoje e fazer balançar a política – a única arena possível para enfrentar e levar a cabo a nossa responsabilidade coletiva diante do desastre que se anuncia – do local, lá onde vivemos, ao mundial. Não dá para esperar! A Conferência sobre o Clima, em Copenhague, já está quase se realizando. Pressionemos nossos negociadores para que assumam a responsabilidade republicana e
Nenhuma ação política de mudança poderá acontecer se nós, cidadãs e cidadãos, não acreditarmos que ela pode, precisa e queremos que aconteça
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cidadã que deles esperamos! Mas o fundamental é estarmos convencidos que outro mundo é possível. A dúvida só retarda a ação efetiva. Pior, permite que sejamos presas fáceis de um falso discurso sobre a necessidade de agredir o meio ambiente para nos desenvolver, para resolver nossos gritantes problemas sociais. Uma coisa é encarar nossas necessidades inadiáveis, outra é confundir isso com apoio aos grandes conglomerados econômicos e financeiros para que tratem do problema. Isso vai das grandes hidroelétricas ao agrocombustível, do desmatamento para criação de bois e dos grandes desertos verdes para celulose ao apoio às grandes empreiteiras porque criam empregos. Nenhuma ação política de mudança poderá acontecer se nós, cidadãs e cidadãos, não acreditarmos que ela pode, precisa e queremos que aconteça. Sobre a mudança de paradigma, a bola está com a cidadania. Está em nossas mãos a possibilidade de o Brasil agir diferentemente, nós que somos detentores de um dos maiores patrimônios naturais da humanidade.
Bases para começar Compartir o mundo, este é o segredo simples de uma nova consciência ética e cidadã, de dimensões planetárias. Precisamos compartir entre nós, e com gerações futuras, aquilo que generosamente recebemos, como dom da própria natureza. Precisamos compartir, também, o que produzimos, respeitando a vida e o meio ambiente a partir do gênio coletivo – ou alguém tem dúvida que o conhecimento humano é algo essencialmente coletivo, produzido na interação e troca que a linguagem e a inteligência nos permitem? – e da aplicação prática como ciência e tecnologia na criação de bens e serviços úteis para todos e todas. Compartir significa se solidarizar e ser responsável. Compartir quer dizer reconhecer nos outros e outras os mesmos direitos que queremos para nós mesmos. Um fundamental desafio para mudar tudo é recolocar no centro os bens comuns, aqueles que são condição de vida para todos os seres humanos. Aqui cabe lembar, em primeiro lugar, os bens comuns dados, como a água, o ar que respiramos, o clima, a biodiversidade, os enormes recursos que a natureza contém acumulados ao longo do tempo, enfim, a
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bioesfera como um sistema único em sua diversidade. Mas, também, são fundamentais para outro estilo de vida os bens comuns criados ao longo da história humana, sejam as línguas, o canto e a música, a arte e a cultura em geral, como os conhecimentos, a ciência e a técnicas, as filosofias. A preservação, o fortalecimento e o uso responsável desses bens é condição de vida em sociedade e de uma relação saudável, justa e sustentável com a natureza. Uma tarefa urgente e incontornável é desprivatizar e desmercantilizar os bens comuns – hoje, uma das maiores ameaças produzidas pelo modelo de desenvolvimento que temos e, portanto, um dos fatores determinantes do aquecimento global. Na busca de definição das bases de um novo mundo, não podemos esquecer de conquistas humanas que se revelam estratégicas e que precisam ser potencializadas. Trata-se da democracia como método de transformação e como modus operandi de uma sociedade baseada na justiça social e ambiental. Para ampliar o espaço da política sobre a economia, do espaço público sobre o privado, do poder cidadão sobre o poder do dinheiro e das empresas, é fundamental a democracia. Mas a democracia é essencial para reposicionar a questão ambiental como uma questão de justiça social, desta e das futuras gerações. Quando falamos em sociedades sustentáveis, em vez de desenvolvimento sustentável, estamos sobrepondo o direito coletivo cidadão de ter o suficiente e digno para viver segundo as condições históricas – comida, roupa, casa, saúde, cultura e felicidade –, segundo um radical princípio de igualdade com valorização da diversidade, sobre o direito individual e privado de acumular sem limites. A democracia traz ao centro a participação, ou seja, o direito e a responsabilidade cidadã de definir o tipo de justiça social e ambiental que a sociedade pode garantir para todos os seus integrantes. Novamente, o problema está no modelo dominante, mas a possibilidade de mudança está nas mãos da cidadania ativa. Ou seja, mais que nos desiludir pelo que fazem nossos representantes e os responsáveis pelas formulação e gestão das políticas, precisamos exercer nossa capacidade de constituintes do poder político e dos governos. Digamos, em alto e bom som, o que queremos e o que pensamos que o mundo precisa e espera que façamos.
A mídia pode ser contra, sem dúvida, mas não ao longo do tempo. Sempre, na história, são mobilizações vindas do seio da sociedade em ação que levam a mudanças. Diante das poderosas empresas, de suas estruturas que a tudo parecem dominar, precisamos inventar modos cidadãos de controle social e público que as constranjam, inibam e obriguem a mudar de estratégias e práticas. Afinal, empresa nenhuma resiste a um boicote cidadão. Elas precisam reassumir seu papel de organizações de produção de bens e serviços, não para elas, mas para a felicidade cidadã. Está evidente neste percurso que faço o esforço de libertação. Sim, libertação de dogmas, de ideais e valores, de estruturas de pensar e agir. Ciente de minha responsabilidade como diretor geral do Ibase, quero instigar, motivar, desencadear um poderoso movimento de mudança interna que nos leve a ousadas propostas e novas práticas. O Ibase precisa ser participante ativo na construção de uma nova agenda, dentro e fora do Brasil, agenda da cidadania por um mundo justo e diverso, com justiça social e ambiental. Radicalmente comprometidos com a democracia como estratégia de mudança social, devemos tomar o desafio de uma nova agenda para o Brasil e o mundo como a agenda da própria cidadania. A questão do aquecimento global e da mudança climática e, junto com ela, a problematização do desenvolvimento, exige de nós uma reflexão e uma prática capazes de fazer emergir na sociedade uma nova visão sobre as bases que precisamos construir para atender às nossas necessidades e ao que a cidadania planetária espera de nós. Por pequena que seja nossa contribuição, como sempre digo, não podemos esquecer que, em nossa pequenez de pulga que pica e incomoda, podemos fazer diferença no modo de andar do elefante político e econômico, o Estado e a economia. Comecemos imaginando o que e como, um ato libertário nele mesmo.
* Cândido Grzybowski Sociólogo, diretor do Ibase
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Trilhas a transformar Em uma tentativa de identificar movimentos já existentes, que podem e devem ser fortalecidos pelo seu potencial de mudança, lembro aqui alguns. Não é uma lista exaustiva e nem define prioridades. Prefiro que os tomemos como emergências e sinais de um outro mundo possível. Destaco, em primeiro lugar, a radicalidade contida na proposta de por em questão a medida de valor da riqueza comumente usada. Afinal, o que é a riqueza? O Produto Interno Bruto (PIB) é uma degradação, uma elegia à destruição ambiental e social que a mercantilização de tudo provoca como se fosse geração de riqueza. Exclui quem não está no mercado e o que não se faz com o propósito de vender. Não considera geração de valor o trabalho doméstico, do cuidado e da própria reprodução da vida humana. O meio ambiente é uma externalidade, tanto pelo seu uso como pelo que nele se joga, não interferindo no valor. Trata-se de uma medida do que se ganha e não do que a humanidade perde. No PIB está embutido muito da destruição ambiental e da injustiça social que vemos. Já existem contestações sobre a medida da riqueza e a hegemonia do PIB. O bem viver aponta, mais que uma medida, outra base para se considerar a riqueza. Já existem inciativas no sentido de construir índices de felicidade humana ou de bem-estar bruto. O Indice de Desenvolvimento Humano (IDH), proposto pelo Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (Pnud), vai no sentido da contestação da hegemonia de caráter econômico e financeiro do PIB, mas ainda não é uma ruptura, pois o próprio PIB per capita é ainda um de seus quatro componentes. Além do mais, o IDH ignora o impacto sobre os bens comuns. Alguns princípios devem ser lembrados aqui para a criação de qualquer nova medida de valor, capaz de apontar um mundo mais igualitário e diverso, com justiça social e ambiental. Tal medida deve levar em conta a interação entre os seres humanos, a comunidade, vizinhos(as) e amigos(as). Também deve considerar a experiência mais direta com a natureza. Indispensável é levar em conta o sentir-se bem, a realização pessoal e coletiva, a criação e a possibilidade de participar para além da acumulação de bens e patrimônios materiais. Um segundo movimento a registrar aqui é o que pode ser abrangido pelo
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nome de economia solidária. Trata-se, fundamentalmente, de modos de organização social e econômica, baseados na cooperação e responsabilidade social, que visam, em primeiro lugar, servir à vida e não à acumulação. O compartir vem junto com o repartir no ato mesmo de constituir um empreendimento econômico solidário, em qualquer setor de atividade humana. Está aí um princípio revolucionário, na prática, de construção de vida e sociedade sustentáveis. No centro das iniciativas e da rede de economia solidária – ela mesma constituinte de um novo tecido econômico de trocas humanas, mais que trocas mercantis – está a busca, como condição de viabilidade do próprio empreendimento, do reequilíbrio dos sistemas bioecológico, socioeconômico e do técnico e científico, na base de qualquer atividade humana de produção de bens e serviços. Ainda em sintonia com a economia solidária, cabe registrar aqui toda uma nova tendência de reciclar e conservar os bens, mais que produzir novos a se jogar fora. São raízes de uma nova economia, seja na relação entre os seres humanos com a natureza, como na relação entre eles mesmos ao produzir, repartir e consumir os bens. Diante da crise ambiental, e levando em conta a pegada ecológica, a humanidade deve inventar formas de produzir riqueza menos materializadas. A economia da informação e do conhecimento, hoje com grande impacto nas nossas vidas, pode ir nesse sentido se não for presa dos grandes conglomerados capitalistas. Afinal, produzir mais riqueza, mais felicidade, sem usar destrutivamente a natureza, é o que mais precisamos. A desmaterialização da produção é um imperativo que já se impõe para toda a atividade de produção de bens materiais. Usar menos energia e menos recursos naturais não é mais uma opção para as organizações econômicas para sobreviver diante da catástrofe ambiental. A opção é apenas do modo de fazê-lo. Um outro aspecto fundamental a destacar, como algo que emerge e precisa ser fortalecido pelo que sinaliza, é a relocalização e a reterritorialização do poder e das economias. Não se trata de ignorar ou inverter a interdependência planetária, condição mesma da vida. Mas isso não pode ser confundido com
a globalização promovida pelas grandes corporações econômicas e financeiras que organizam o mundo em função de suas estratégias de acumulação. A localização e territorialização partem do reconhecimento do bem comum maior, o planeta, a biosfera, a biodiversidade, com o ar, os oceanos e o clima. Mas reconhecem também as potencialidades e os limites diversos de cada canto do planeta, de cada sociedade humana aí ancorada. Subsidiariamente, todos e todas dependemos uns dos outros. Mas ativamente, devemos buscar o possível e decidir por nós mesmos(as) segundo as possibilidades do lugar que ocupamos na crosta terrestre. Ninguém tem o direito de nos tirar a capacidade de decidir por nós mesmos(as), impondo soluções de fora. Claro que nós, também, não temos o direito de decidir ignorando as consequências sobre todos os outros. Localizar e territorializar é reencontar-se entre nós mesmos e de nós com o meio ambiente. Por isso, precisamos de formas de organização que nos permitam internalizar tudo o que pode ser internalizado, produzindo aqui para consumir aqui, decidindo aqui o que concerne aos cidadãos e às cidadãs daqui, tendo a cultura e a identidade que nos convêm. Tudo o que diz respeito ao bem comum coletivo maior, tudo o que precisamos e não temos, tudo o que temos a mais e outros têm pouco, tudo isso deve ser organizado e decidido em instância maior, seja nacional, regional ou mundial. Tomemos a energia – vilã da crise climática – como exemplo. São diversos e desiguais os recursos e as próprias necessidades de energia nos diferentes territórios humanos do planeta. A gestão de tais recursos só pode ser local e subsidiariamente assentar em outros planos. O que não pode acontecer é a imposição de formas de exploração e uso dos recursos como até aqui, sempre determinadas de forma colonial, de fora, seja dos centros econômicos mundiais, seja dos pólos industriais no interior dos países, sem considerar as necessidades dos grupos humanos locais envolvidos.
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Christovam Barcellos(a) Antonio Miguel Vieira Monteiro e Virginia Ragoni(b) Carlos Corvalán(c) Helen C. Gurgel(d) Marilia Sá Carvalho e Sandra Hacon(e) Paulo Artaxo(f)
A saúde frente às mudanças ambientais A ocorrência do processo de mudanças climáticas, principalmente as causadas pelo aquecimento global induzido pela ação humana, foi pela primeira vez alertada na década de 1950. Já no fim do século XIX o pesquisador sueco Svante Arrherius havia levantado a possibilidade de aumento de temperatura devido a emissões de dióxido de carbono. Ao longo da década de 1980, cresceu a preocupação de pesquisadores ligados a questões ambientais com o impacto dessas mudanças sobre ecossistemas. Na década de 1990, foram desenvolvidos modelos que permitiram, de um lado, explicar a variabilidade de 1 Trechos do artigo, gerado para uma Oficina da 7ª Expoepi, – realizada em Brasília, em 2007 –, e publicado pela Organização Pan-Americana de Saúde da Organização Mundial de Saúde (Opas/OMS), em 2008 e republicado em Epidemologia e Serviços de Saúde, Brasília, 18 (3): 285-304, jul-set, 2009.
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clima ocorrida ao longo do século; de outro, avaliar a contribuição de componentes naturais (vulcanismo, alterações da órbita da Terra, explosões solares etc.) e antropogênicos (emissão de gases do efeito estufa, desmatamento e queimadas, destruição de ecossistemas etc.) sobre essas variações. O primeiro relatório global sobre mudanças climáticas e saúde foi publicado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) em 1990.2 Durante a ECO-92, foi instalada a convenção sobre mudanças climáticas, junto com as convenções sobre diversidade biológica e desertificação. No entanto, o tema das mudanças climáticas somente tomou a mídia com maior intensidade nos últimos anos, repercutindo sobre agendas de governos, pesquisas e imaginário popular. A divulgação do quarto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC-AR4), em fevereiro de 2007, o filme “Uma verdade inconveniente”, ganhador do Oscar de melhor documentário de 2007, e o tratamento midiático dado a uma série de eventos extremos, do ponto de vista climático, e catastróficos, do ponto de vista social, como o furacão Katrina, que destruiu Nova Orleans; a onda de calor na Europa em 2003, quando foram registradas mais de 35 mil mortes; o Catarina, que atingiu o Sul do
Brasil em 2004; a seca no oeste da Amazônia em 2005, mesmo sem consenso para suas determinações causais, contribuíram para trazer à tona e reforçar o debate sobre as origens e os efeitos das mudanças climáticas em escala global.
Dinâmica da atmosfera e problemas de saúde Acredita-se que os problemas de saúde humana associados às mudanças climáticas não têm sua origem, necessariamente, nas alterações climáticas. A população humana sob influência das mudanças climáticas apresentará os efeitos, de origem multicausal, de forma exacerbada ou intensificada. Muitas são as pesquisas, com foco nas questões de saúde pública, que tentam se relacionar com as mudanças climáticas. No entanto, a avaliação dos efeitos
2 WHO (1990). Protential health effects of climatic change. Report of a WHO Task Group, Doc. WHO/PEP/90.10.
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3 McMichael, A.J. (2003). Global climate change and health: an old story writ large, p 1-17. In: McMichael, A.J.; Campbell-Lendrum, D.H.; Corvalan, C.F.; Ebi, K.L.; Githenko, A.; Scheraga, J.D.; Woodward, A. (eds). Climate change and human health. Risks and responses. WHO, Genebra, 322p. 4 McMichael, A.J.; Woodruff, R.E.; Hales, S (2006). Climate change and human health: present and future risks. Lancet. 367: 859-869. 5 Fleuret, S; Séchet, R (2004). Géographie sociale et dimension sociale de la santé. Colloque ESO. Disponível em <http:// eso.cnrs.fr/evenements/ contributions_10_2004/ fs.pdf>. 6 Martins MC, Fatigati FL, Vespoli TC, et al. (2004). Influence of socioeconomic conditions on air pollution adverse health effects in elderly people: an analysis of six regions in Sao Paulo, Brazil. J Epidemiol Community Health; 58(1):41-46. 7 IPCC (2001a). International Panel on Climate Change. The Science of Climate Change – The Scientific Basis – Contribution of Working Group 1 to the IPCC, The assessment report Cambridge Univ. 8 Vide nota de rodapé n.3.
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sobre a saúde relacionados aos impactos das mudanças climáticas é extremamente complexa e requer uma análise integrada com uma abordagem interdisciplinar dos profissionais de saúde, climatologistas, cientistas sociais, biólogos, físicos, químicos, epidemiologistas, dentre outros, para avaliar as relações entre os sistemas sociais, econômicos, biológicos, ecológicos e físicos, e deles com as alterações climáticas.3 As mudanças climáticas podem produzir impactos sobre a saúde humana por diferentes vias. Por um lado, influencia de forma direta, como no caso das ondas de calor ou mortes causadas por outros eventos extremos, como furacões e inundações. Mas muitas vezes, essa influência é indireta, sendo mediado por alterações no ambiente, como a alteração de ecossistemas e de ciclos biogeoquímicos, que podem aumentar a incidência de doenças infecciosas, mas também de doenças não transmissíveis, que incluem desnutrição e doenças mentais. Deve-se ressaltar, no entanto, que nem todos os impactos sobre a saúde são negativos. Por exemplo, a alta de mortalidade que se observa nos invernos poderia ser reduzida com o aumento das temperaturas. Também o aumento de áreas e períodos secos pode diminuir a propagação de alguns vetores. Entretanto, em geral, considera-se que os impactos negativos serão mais intensos que os positivos. As consequências do aumento de variabilidade e de eventos climáticos extremos são de difícil previsão para a saúde pública. Alguns modelos devem ser buscados para concatenar processos climáticos com eventos de saúde. O aquecimento global pode ter consequências diretas sobre a morbidade e mortalidade, por meio da produção de desastres como enchentes, ondas de calor, secas e queimadas. Uma onda de calor ocorrida na França em 2003 causou cerca de 15 mil óbitos, principalmente entre mulheres, idosos, residentes em grandes cidades, viúvos ou solteiros. Parte dessas mortes pode ser atribuída às mudanças climáticas globais.4 Mas o fato de que uma parcela considerável de óbitos pudesse ter sido evitada colocou em xeque todo o sistema de saúde e proteção social do país. O aumento na mortalidade deve ser tomado como uma conjunção de fatores extrínsecos (climáticos e sociais) e intrínsecos
ao sistema de saúde. A conjunção de envelhecimento, pobreza, isolamento e problemas de acesso a serviços de saúde, associado ao aumento de temperatura, condenou grupos sociais urbanos abandonados por suas famílias e pelos serviços públicos especialmente no período de férias de verão.5 Nesse e em diversos outros casos, a avaliação dos riscos à saúde devidos às mudanças climáticas globais não podem ser dissociados das análises sociais, que consideram as desigualdades sociais fator estrutural da sociedade atual. As flutuações climáticas sazonais produzem um efeito na dinâmica das doenças vetoriais, por exemplo, a maior incidência da dengue no verão e da malária na Amazônia durante o período de estiagem. Os eventos extremos introduzem considerável flutuação que pode afetar a dinâmica das doenças de veiculação hídrica, como leptospirose, hepatites virais, doenças diarreicas, etc. Essas doenças podem se agravar com as enchentes ou secas que afetam a qualidade e o acesso à água. Também as doenças respiratórias são influenciadas por queimadas e os efeitos de inversões térmicas que concentram a poluição, impactando diretamente a qualidade do ar, principalmente nas áreas urbanas. Além disso, situações de desnutrição podem ser ocasionadas por perdas na agricultura, principalmente a de subsistência, devido a geadas, vendavais, secas e cheias abruptas. A variação de respostas humanas relacionadas às mudanças climáticas parece estar diretamente associada às questões de vulnerabilidade individual e coletiva. Variáveis como idade, perfil de saúde, resiliência fisiológica e condições sociais contribuem diretamente para as respostas humanas relacionadas às variáveis climáticas.6 Estudos também apontam que alguns fatores que aumentam a vulnerabilidade dos problemas climáticos são uma combinação de crescimento populacional, pobreza e degradação ambiental,7 especialmente em crianças, com aumento de doenças respiratórias e diarreicas resultantes de aglomerado humano em locais muitas vezes inadequados.8 As condições atmosféricas podem influenciar o transporte de micro-organismos, assim como de poluentes oriundos de fontes
A saúde frente às mudanças ambientais e climáticas
fixas e móveis e a produção de pólen.9 Os efeitos das mudanças climáticas podem ser potencializados, dependendo de características físicas e químicas dos poluentes e de características climáticas como temperatura, umidade e precipitação. Essas características definem o tempo de residência dos poluentes na atmosfera, que podem ser transportados a longas distâncias em condições favoráveis de altas temperaturas e baixa umidade. Esses poluentes associados às condições climáticas podem afetar a saúde de populações distantes das fontes geradoras de poluição. As alterações de temperatura, a umidade e o regime de chuvas podem aumentar os efeitos das doenças respiratórias, assim como alterar as condições de exposição aos poluentes atmosféricos. Dada a evidência da relação entre alguns efeitos na saúde causados pela variações climáticas e os patamares de poluição atmosférica, tais como os episódios de inversão térmica, aumento da poluição e o aumento de problemas respiratórios, parece inevitável que as mudanças climáticas de longo prazo possam exercer efeitos à saúde humana globalmente. Em áreas urbanas, alguns efeitos da exposição a poluentes atmosféricos são potencializados quando ocorrem mudanças climáticas, principalmente as inversões térmicas. Isso se verifica no aumento de casos de asma, alergias, infecções broncopulmonares e infecções das vias aéreas superiores (sinusite), principalmente nos grupos mais susceptíveis, que incluem crianças menores de 5 anos e indivíduos maiores de 65 anos de idade. Os efeitos da poluição atmosférica na saúde humana têm sido amplamente estudados em todo o mundo. Estudos epidemiológicos evidenciam um incremento de risco associado às doenças respiratórias e cardiovasculares, assim como das mortalidades geral e específica associadas à exposição a poluentes presentes na atmosfera. 10, 11, 12, 13, 14 Segundo a OMS, 50% das doenças respiratórias crônicas e 60% das doenças respiratórias agudas estão associadas à exposição a poluentes atmosféricos. A maioria dos estudos relacionando a poluição do ar com efeitos à saúde foi desenvolvida em áreas metropolitanas, incluindo as grandes capitais da Região Sudeste do Brasil. Alguns estudos evidenciam que a as-
sociação entre altas temperaturas e elevadas concentrações de poluentes atmosféricos pode gerar um incremento das hospitalizações, atendimentos de emergência, consumo de medicamentos e taxas de mortalidade.15 A interface entre poluição e clima também deve ser considerada como fator de risco para doenças do coração, seja como consequência de estresse oxidativo, infecções respiratórias ou alterações hemodinâmicas. O aumento da temperatura também está associado ao incremento de partículas alergênicas produzidas pelas plantas, aumentando o número de casos de pessoas com respostas alérgicas e asmáticas.16, 17 Em áreas onde a poluição do ar é mais intensa, os idosos encontram-se em um cenário de maior vulnerabilidade que, somados aos episódios de altas temperaturas ambientais, causa estresse aos organismos humanos e perda de resiliência fisiológica. Condições sociais como situação de moradia, alimentação e acesso aos serviços de saúde são fatores que aumentam a vulnerabilidade para as populações expostas aos episódios das mudanças climáticas que, juntos à exposição a poluentes atmosféricos, poderão apresentar efeitos sinérgicos com agravamento do quadro clínico. Em áreas sem ou com limitada infraestrutura urbana, principalmente em países em desenvolvimento, todos esses fatores podem recair sobre as populações mais vulneráveis e, consequentemente, mais pobres, pressionando a infraestrutura de saúde pública, causando uma superrocupação de serviços e aumentando os gastos em saúde.18 As emissões gasosas e de material particulado para a atmosfera derivam principalmente de veículos, indústrias e da queima de biomassa. No Brasil, as fontes estacionárias e grandes frotas de veículos concentram-se nas áreas metropolitanas localizadas principalmente na Região Sudeste, enquanto a queima de biomassa ocorre em maior extensão e intensidade na Amazônia legal, situada ao Norte do país. Segundo o inventário brasileiro de emissões de carbono, 74% das emissões ocorrem por meio das queimadas na Amazônia, em contraste com 23% de emissões do setor energético. Quanto mais próximo for o local de exposição aos focos de queimadas, geralmente maior é seu efeito sobre a saúde. Mas a direção e a intensidade das correntes aéreas têm muita influência sobre a dispersão dos poluentes at-
9 Moreno, A.R. (2006). Climate change and human health in Latin America: drives, effects, and policies. Environmental Change, 6: 157-164. 10 Pope CA III, Thun MJ, Namboodiri MM et al. (1995). Particulate air pollution as a predictor of mortality in a prospective study of U.S. Adults. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, 151: 669-674. 11 Organización Panamericana de la salud (2005). Evaluación de los efectos de la contaminación del aire en la salud América Latina y el Caribe. 12 Anderson HR, Ponce de Leon A, Bland JM, Bower JS e Strachan DP. (1996). Air pollution and daily mortality in London: 1987-92. BMJ, 312 (7032): 665-669. 13 Rumel D, Riedel LF, Latorre MR, Duncan BB. (1993). Myocardial infarct and cerebral vascular disorders associated with high temperature and carbon monoxide in a metropolitan area of southeastern Brazil. Rev Saude Publica: 27(1):15-22. 14 Cifuentes LA, Borja-Aburto VH, Gouveia N, Thurston G, Davis DL. (2001) Assessing the health benefits of urban air pollution reductions associated with climate change mitigation (20002020): Santiago, Sao Paulo, Mexico City, and New York City. Environ Health Perspect.;109 (Suppl 3):419-425. 15 Disponível em <http:// www.epa.gov/globalwarming/ impacts/health/index.html>. 16 Zamorano A, Marquez S, Aranguis JL, Bedregal P, Sanchez I. (2003) Relación entre bronquiolitis aguda con factores climáticos y contaminación ambiental. Rev Med Chil.: 131(10):11171122. 17 United States Department of State (2007). U.S. Climate Action Report, Washington, D.C. Werneck, G. L, Rodrigues, L. Jr, Araújo, L. B, Santos, M. V, Moura, L.S, Lima, S.S, Gomes,R.B.B, Maguire, J.H, Costa, C.H.N. (2002). The burden of Leishmania chagasi infection during an urban outbreak of visceral leishmaniasis in Brazil. Acta Tropica, 83(1): 13-18. 18 Vide notas de rodapé n. 6 e n. 7.
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mosféricos e sobre as áreas afetadas pela pluma oriunda do fogo. Se os ventos predominantes dirigirem-se para áreas densamente povoadas, um número maior de pessoas estará sujeito aos efeitos dos contaminantes. Esse é o caso do Sudeste asiático, onde queimadas provocam névoa de poluentes de extensão regional com impactos na saúde de centenas de milhões de pessoas.19 Na região do arco do desmatamento, que abrange os estados do Acre, Amapá, Amazonas, e parte do Maranhão, de Mato Grosso, do Pará, de Rondônia, Roraima e Tocantins, foram detectados, em 2005, mais de 73% dos focos de queimadas do país. Desses, o estado de Mato Grosso foi o que concentrou o maior percentual de área desmatada e focos de queimadas, com 38% e 30%, respectivamente.20 No estado de Mato Grosso, as doenças do aparelho respiratório foram as principais causas das internações de crianças menores de 5 anos, respondendo por 70% dos casos na região de Alta Floresta. Dentre as principais categorias de internações por doenças do aparelho respiratório nessa faixa etária, estão as pneumonias, responsáveis por 73% das internações no estado, seguida pela asma, respondendo por 14% das internações por doenças do aparelho respiratório.21 Em Rio Branco, no Acre, um dos principais impactos negativos ocasionados pela poluição do ar por meio das queimadas está na taxa de mortalidade que, no período de 1998 a 2004, apresentou uma diferença de cerca de 21% no período de queimadas com relação ao período de não queimadas. Durante as queimadas, a taxa de mortalidade foi de 3,3 por mil/habitantes, enquanto no período de não queimada essa taxa foi de 2,7.
O setor saúde se encontra frente a um grande desafio. As mudanças climáticas ameaçam as conquistas e os esforços de redução das doenças transmissíveis e não transmissíveis
19 Ribeiro .H; Assunção, J.V. (2002) Efeitos das queimadas na saúde humana. Estudos Avançados. 16(44): 125-148. 20 Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais). Disponível em www.ibama.gov.br/ proarco. Acesso em 22 de outubro de 2007. 21 Mourão, D.S.; Viana, L.; Hacon, S.; Barcellos, C. Impacto das emissões de queimadas para a saúde em duas áreas do Estado de Mato Grosso – Amazônia Legal. In: XV Reunião Anual de Iniciação Cientifica, Rio de Janeiro, 2007. 22 Pruss-Ustun, A.; Corvalan, C. (2006) Ambientes saludables y prevención de enfermedades.OMS.
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Para além das mudanças climáticas O setor de saúde se encontra frente a um gran-
de desafio. As mudanças climáticas ameaçam conquistas e esforços de redução das doenças transmissíveis e não transmissíveis. Ações para construir ambiente mais saudável poderiam reduzir um quarto da carga global de doenças, e evitar 13 milhões de mortes prematuras.22 Do ponto de vista epidemiológico, se as mudanças climáticas representam uma série de exposições a diversos fatores de risco, a causa mais distal dessas exposições é a alteração do estado ambiental devido à acumulação de gases do efeito estufa. Isso significa que não é possível, a curto prazo, evitar essas exposições. As modificações plausíveis de serem promovidas para alterar esse quadro globalmente podem consumir décadas até se obter um efeito estabilizador do clima. Portanto, o setor de saúde deve tomar medidas e intervenções de “adaptação”, para reduzir ao máximo os impactos via ambiente, que, de outra maneira, serão inevitáveis. Essa adaptação deve começar por: discussões intersetoriais, uma vez que as ações (inclusive de luta contra a emissão de gases e redução do consumo) dos outros setores afetam as ações do setor de saúde; investimento estratégico em programas de proteção da saúde para populações ameaçadas pelas mudanças climáticas e ambientais, como sistemas de vigilância de doenças transmitidas por vetores, suprimento de água e saneamento; e a redução do impacto de desastres. Por outro lado, os determinantes das mudanças climáticas globais podem somente ser superados a longo prazo, com medidas de “mitigação”. Também nesse caso o setor de saúde pode ter papel importante. Deve-se ressaltar que o modelo de desenvolvimento e a própria produção de energia causam mudanças climáticas, mas também problemas de saúde provocados pela poluição do ar, que resultam em mais de 800 mil óbitos por ano; que acidentes de trânsito, causam 1,2 milhão de óbitos por ano e que a redução da atividade física resulta em 1,9 milhão de óbitos por ano.23 Isso significa que uma mudança na infraestrutura de produção, consumo e circulação pode, por um lado, representar uma redução de emissões de gases efeito estufa e, por outro lado, a diminuição de várias causas importantes de mortalidade. O mundo vem passando por mudanças que não estão limitadas apenas a aspectos climáticos. Paralelos aos processos de mudanças
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climáticas, vêm se acelerando a globalização (aumentando a conectividade de pessoas, mercadorias e informação), as mudanças ambientais (alterando ecossistemas, reduzindo a biodiversidade e acumulando no ambiente substâncias tóxicas) e a precarização de sistemas de governo (reduzindo investimentos em saúde, aumentando a dependência de mercados e aumentando as desigualdades sociais). Os riscos associados às mudanças climáticas globais não podem ser avaliados separadamente desse contexto. Ao contrário, deve-se ressaltar que os riscos são produtos de perigos e vulnerabilidades, como costumam ser medidos nas engenharias. Os perigos, no caso das mudanças globais, são dados pelas condições ambientais e pela magnitude de eventos. Já as vulnerabilidades são conformadas pelas condições sociais,
Projeto Observatorium Lançado em junho deste ano, o Observatório Nacional de Clima e Saúde é uma parceria do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Fundação Oswaldo Cruz, com apoio da Organização Pan-americana de Saúde (Opas)/ OMS. Coordenado pelos professores Christovam Barcellos e Antonio Miguel Vieira Monteiro, nos aspectos relacionados à capacidade de diagnóticos e análise, oferece: • análises de situação e identificação de tendências e padrões de clima e condições de saúde, ainda que básicas, com apresentação de gráficos de tendência qualitativos; • contribuição para os sistemas nacionais de alertas e acompanhamento de situações de emergência associadas a eventos climáticos relativos às emergências de saúde pública; • criação de suporte para ampliar a necessária (PD&I) Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, envolvendo as relações entre mudanças ambientais e climáticas e seus efeitos sobre a saúde da população, ainda incipiente no Brasil; • acompanhamento, por parte do cidadão e sociedade civil, das condições climáticas, ambientais e de saúde, bem como participação ativa nesse acompanhamento por meio de inserção de informações sobre ocorrências de saúde e sobre eventos climáticos ou tendências. Fonte: Observatório Nacional de Clima e Saúde / Projeto Observatorium – Definições e proposta metodológica.
marcadas pelas desigualdades, diferentes capacidades de adaptação, resistência e resiliência. Essas avaliações são baseadas no pressuposto de que grupos populacionais com piores condições de renda, educação e moradia sofreriam maiores impactos das mudanças ambientais e climáticas. No entanto, como ressalta Guimarães,24 as populações mais pobres nas cidades e no campo têm demonstrado uma imensa capacidade de adaptação, uma vez que já se encontram excluídas de sistemas técnicos. Se a vulnerabilidade é maior entre pobres, não se pode afirmar que a parcela incluída e mais afluente da sociedade esteja isenta de riscos; ao contrário, sua capacidade de resposta (imunológica e social) é mais baixa. A possível expansão de áreas de transmissão de doenças não pode ser compreendida como um regresso de doenças como malária, febre amarela, dengue, leptospirose, esquistossomose, entre outras. Ou melhor, a possibilidade de retorno dessas doenças se dá sobre bases históricas completamente diferentes daquelas existentes no século XIX. As transformações sociais e tecnológicas ocorridas no mundo nas últimas décadas permitem antever que essas doenças adquiriram, ao longo dessas décadas, outras características, além dos fatores biológicos. A possibilidade de prevenir, diagnosticar e tratar algumas pessoas e excluir outras desses sistemas aprofundou as diferenças regionais e sociais de vulnerabilidades e transformou as desigualdades sociais em um importante diferencial de riscos ambientais. Cabe ao setor de saúde não só prevenir esses riscos, fornecendo respostas para os impactos causados pelas mudanças ambientais e climáticas, mas atuar na redução de suas vulnerabilidades sociais, com base em mudanças no comportamento individual, social e político, por um mundo mais justo e mais saudável.
(a) Christovam Barcellos Centro de Informação Científica e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz
(b) Antonio Miguel
Vieira Monteiro e Virginia Ragoni
Divisão de Processamento de Imagens, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(c) Carlos Corvalán Coordenação de Intervenções para Ambientes Saudáveis, Organização Mundial de Saúde
(d) Helen C.
Gurgel
Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(e) Marilia Sá Carvalho e Sandra Hacon Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz
(f) Paulo Artaxo Instituto de Física,
23 World Health Organization. Qunatifying environmental health impacts. Genebra: WHO, 2007. Disponível em: <www.who.int/quantifying_ ehimpacts/en. Acesso em nov. 2007. 24 Guimarães, R.B. (2005) Health and global changes in the urban environment. In: P.L.S. Dias,W.C. Ribeiro e L.H. Nunes, A contribution to understand the regional impact of globalchange in South America. USP, São Paulo.
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artigo Henri Acselrad *
É difícil fazer uma sociologia da disputa energética planetária que subjaz ao debate sobre mudanças climáticas. O campo de forças pertinente é multiescalar, o jogo de escalas é pouco estável, “glocal”, expressão utilizada por alguns num esforço de captar a “política de escalas”, como diz o geógrafo Erik Swyngedouw.1 Os climatologistas, por exemplo, não conseguem enxergar os gradientes de variação da vegetação sob a ação de desmatamento, que os biólogos, por sua vez, observam em escala micro. O mesmo podemos dizer das alianças e estratégias de atores sociais que, nesse campo, se configuram: como construir um quadro sistemático de análise da circunstancial aliança entre os interesses petrolíferos dos Estados Unidos e a agroindústria canavieira brasileira em torno do etanol, sem fazer intervir também o fator conjuntural da ação 1 Swyngedouw, E. Globalisation or glocalisation? Networks, Territories and Rescaling Cambridge Review of International Affairs, Volume 17, Number 1, April 2004.
do governo Chávez na Venezuela? E tudo isso, ademais, apresentado em nome do equilíbrio
2 Cf. M. Hajer, Politics of Environmental Discourse: Ecological Modernization and the Policy Process, Oxford, 1995.
A análise deveria considerar, pois, o modo pelo qual os discursos a constituem como objeto de
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climático e do bem comum: ou seja, interesses econômicos e geopolíticos em jogo legitimam-se tendo por base os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
política para poder supô-la solúvel, legitimando, assim, as soluções propostas.2 Vale ressaltar, inicialmente, a discussão em curso entre os autores da sociologia da ciên-
cia ambiental que sublinham, por um lado, a historicidade de seu objeto e, por outro, os problemas associados aos usos sociais da incerteza.3 Quanto ao primeiro aspecto, na imbricação da socionatureza em movimento, convém reconhecer as múltiplas escalas de observação e considerar os enunciados em vinculação a seus contextos: admitir respostas múltiplas à mesma questão. Só recentemente, por exemplo, o conceito de sistema terrestre, na climatologia, incorporou os sistemas sociais, assumindo comportamentos não lineares na interação dinâmica entre todos os diferentes elementos do sistema. Há, é claro, aspectos éticos e políticos envolvidos na discussão, mas também questões propriamente epistemológicas: a evidenciação da incerteza, sustenta Jean Louis Fabiani, não exprime o reconhecimento de uma impotência do saber racional, mas sim uma redefinição de seus critérios de produtividade – reconsidera-se, assim, o que se pode esperar socialmente da produção científica. É preciso reconhecer que a controvérsia científica (demanda por conhecimento) tem temporalidade distinta da controvérsia política (demanda por ação) e que o saber especializado não é mais capaz, por si só, de fechar o debate no interior da própria ciência, mas, sim, de abrir o debate sobre valores. As condições de validade e os compromissos sociais e morais da ciência expõem-se, pois, à discussão pública.4 Há, por outro lado, interesses envolvidos na própria controvérsia científica – uma indústria do conhecimento e grupos de peritos pressionam os governos com vistas à abertura de mercados para seus serviços. Com base na incerteza, a pesquisa científica dita “dura” tende a sugerir políticas “intensivas em pesquisa” e soluções meramente tecnológicas, via de regra sob hegemonia do complexo técnico-industrial das economias centrais.5 Como sabemos, as inovações ligam problemas a soluções, mas os processos políticos é que as tornam necessárias.
Culpa de quem? Isso posto, quais os contextos dos enunciados e diagnósticos correntes relativos às mudanças climáticas? No que diz respeito às relações Norte-Sul, estão em jogo as formas de integração das economias periféricas no mercado mundial: ora culpa-se “o Sul”, ora “o Norte” – ou seja, por um lado, manifesta-se um neomalthusianismo animado por conservadores – e mesmo por certo ambientalismo dos países industrializados (a culpa seria “do bebê indiano”), por outro lado, um desenvolvimentismo próprio aos países
menos industrializados: alegando-se um déficit de “pegada ecológica” com relação àquela dos países mais industrializados, reivindica-se o direito de poluir. No seio dos países menos desenvolvidos, os atores sociais hegemônicos culpam os pobres (“atrasados”, impedem as barragens de energia dita “limpa” e desmatam, emitindo gases estufa; além, é claro, de “travar o desenvolvimento”); ambientalistas e críticos do modelo de desenvolvimento acusam os ricos (usam energia para consumo de luxo) ou o bloco de poder que faz da ideia de desenvolvimento no Sul uma forma de exportar energia barata para as economias do Norte. No seio dos países mais industrializados, por sua vez, críticos do modelo industrialista energético-intensivo culpam os capitais que detêm o controle da indústria de combustíveis fósseis e apontam que, quando ocorrem catástrofes climáticas, os pobres pagam o preço do consumismo dos ricos ou, como no caso do furacão Katrina, por exemplo, pagaram os custos da concentração dos recursos públicos na invasão do Iraque.6 Eric Klinenberg mostrou como na seca de 1995, em Chicago, os negros pobres mais idosos, socialmente isolados e desprovidos de recursos foram as vítimas fatais.7 Pesquisas recentes no Brasil mostram como as populações de mais baixa renda são as mais ambientalmente desprotegidas, morando em regiões com as condições mais vulneráveis e sujeitas a inundações e doenças.8 O mesmo aconteceu no caso do tsunami, dada a ausência de um plano de emergência para os países asiáticos menos desenvolvidos. Katrina, tsunami e outros não são manifestações comprovadas do aquecimento global, mas servem para exemplificar a socionatureza da chamada “injustiça climática”, expressão atmosférica da injustiça ambiental. Pode-se supor, de forma plausível, que os agentes hegemônicos tenham com relação aos males das mudanças climáticas previstas pelos modelos matemáticos climatológicos, padrões de comportamento análogos aos que têm demonstrado ante catástrofes climáticas já ocorridas. Seja no âmbito das relações Norte-Sul, seja nas lutas socioterritoriais em curso no seio dos países industrializados ou dos menos industrializados, vemos um processo diversificado de apropriação social do fato científico. Nas esferas políticas, ainda parecem contar pouco as evidências do IPCC, assumidas basicamente por certos países europeus como legítimas e merecedoras de orientar algumas mudanças nas políticas (ou, então, de justificar práticas,
3 B. Wynne, Scientific Knowledge and the Global Environment, in M. Redclift –T. Benton (eds.), Social Theory and the Global Environment, Routledge, NY, 1994, p. 169-189 e J.L.Fabiani, “Principe de Précaution et Protecion de la Nature”, in O. Godard (org.), Le Principe de Précaution dans la Conduite des Affaires Humaines, INRA, Paris, 1997, pp.297-310. 4 J.L.Fabiani, Op. Cit. 5 S. Boehmer-Christiansen, “Reflections on the Politics Linking Science, environment and Innovations”, in Innovation, vol. 8, n. 3, 1995, pp. 275-287. 6 No caso do furacão Katrina, é sabido que os planos de evacuação não deram atenção à população “com baixa mobilidade”; assim; fatores como raça e classe foram consideradas dimensões fundamentais da catástrofe. 7 P. Dreier, Katrina in Perspective: The disaster raises key questions about the role of government in American society, in Dissent, summer, 2005. 8 H. P. da Fonseca Alves, Desigualdade ambiental no município de São Paulo: análise da exposição diferenciada de grupos sociais a situações de risco ambiental através do uso de metodologias de geoprocessamento, XII Encontro Nacional da ANPUR, Belém, 2007.
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por outras lógicas questionadas, como a da energia nuclear no caso francês). No ano de 2007, governantes como George W. Bush e Lula passaram a apresentar-se como ambientalmente preocupados quando o argumento ecológico pôde justificar lucros para os capitais, divisas para o equilíbrio monetário, promessa de empregos para os eleitores ou força suplementar na trama geopolítica. Há indícios de que o argumento ecológico só tenderia a ser abraçado por forças hegemônicas quando aparentemente pudesse servir como reforço aos modelos de dominação vigentes – fundados no agronegócio canavieiro, no nuclear e na hidroeletricidade, por exemplo. No Brasil, pouco se avançou no campo das energias alternativas, da eficiência energética e da repotenciação de usinas instaladas, por exemplo. Por isso, é sintomática a enunciação recente, por uma autoridade do setor elétrico, da vigência de um chamado “paradoxo ambiental”, segundo o qual o “burocratismo” dos órgãos de licenciamento ambiental “tem feito com que seja mais simples produzir energia elétrica queimando carvão e petróleo, que contribuem para o efeito estufa, do que utilizando água”.9 Percebe-se aqui o recurso a uma sutil chantagem do efeito estufa, via ameaça de multiplicação de usinas termoelétricas, para favorecer tanto a desmontagem do sistema de licenciamento ambiental brasileiro como para responsabilizar quilombolas e índios pelo aquecimento global, por contestarem a construção de hidroelétricas no Rio Madeira.
Não no quintal dos ricos
9 “Investimento em poluição”, O Globo 21/5/2007, p.16 10 Ulrich Beck, From Industrial Society to Risk Society: questions of survival, social structure and ecological enlightenment, in Theory, Culture & Society, vol.9, 1992, pp. 97-123. 11 M. Davis, Clima Pesado, Caderno MAIS, Folha de SP, 6/5/2007, p.4-5. 12 M. Davis, op. Cit. 13 M. Davis, op. Cit.
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Há, pois, por um lado, por parte das forças hegemônicas, uma “irresponsabilidade organizada”, diria Ulrich Beck10, mas “classista”, acrescentaria Mike Davis: poucos recursos são destinados para proteger ou remediar o risco sofrido por grupos sociais “menos móveis” – pobres, negros e minorias étnicas – acusados “de saber que moram em áreas arriscadas e de querer que os contribuintes paguem por sua escolha residencial” (tal como expresso no jornalismo televisivo dos Estados Unidos em matérias posteriores ao furacão Katrina).11 Parece vigorar uma espécie de percepção confiante de que os males atingirão apenas os mais despossuídos. Uma espécie de NIMBY – “não no meu quintal” exclusivo das elites, ou seja, mecanismos pelos quais os tomadores de decisão detêm os meios de se distanciar das consequências ecológicas das próprias ações. Mais que isso, em tempos de liberação das forças de mercado, observa-se
uma apropriação da denúncia ambientalista do capitalismo e do modelo vigente de negócios para fins de dinamizar o capitalismo e os negócios – após o furacão Katrina, por exemplo, as ações das empresas que ganharam contratos para a limpeza e reestruturação das áreas afetadas – as mesmas que atuam no Iraque – elevaram-se em 10%. Steve Erie, da Universidade da Califórnia, assinala como a expansão imobiliária no sudoeste dos Estados Unidos e na Baixa Califórnia está comercializando milhares de quilômetros quadrados na frágil ecologia dos desertos, apostando no aumento tendencial dos custos da água e em sua dessalinização para abastecer a suburbanização descontrolada que promovem.12 Ou seja, o ônus do ajuste do novo ciclo climático e hidrológico, sustenta Mike Davis, cairia, nessa região, sobre os ombros dos grupos subalternos, notadamente dos trabalhadores rurais imigrantes cujo fluxo para os Estados Unidos tenderia a aumentar, justificando acusações de “roubarem a água dos americanos”.13 Esse tipo de processo em que os custos da degradação ambiental são concentrados sistematicamente sobre os mais despossuídos, ainda mais quando parte dos interesses dominantes consegue auferir lucros com degradação, é compatível com o entendimento dos movimentos sociais ditos de “justiça ambiental”: segundo eles, não haverá nenhuma iniciativa dos poderosos para enfrentar os problemas ambientais, enquanto for possível concentrar os males deles decorrentes sobre os mais pobres. Seu corolário é que todos os esforços deveriam ser concentrados na proteção ambiental dos mais pobres, de modo que, interrompendo-se a transferência sistemática dos males, as elites venham a considerar seriamente a necessidade de mudar modelos de produção e consumo. Nessa ótica, por exemplo, quilombolas e indígenas do Rio Madeira, ao contrário do que propugnam representantes de empreiteiras e desenvolvimentistas pouco reflexivos, estariam na linha de frente do combate contra o aquecimento global, favorecendo, por sua resistência, energias alternativas e eficiência energética. A pesquisa relacionada às mudanças climáticas desenvolvida na Comunidade Europeia só começou a tratar dos aspectos tecnológicos, sociais e econômicos relevantes para apoiar a formulação de políticas, inclusive com a definição do foco na eficiência energética, como resultado da politização do efeito estufa em 1986. Para a formulação de políticas de combate às mudanças climáticas, esse efeito ambiental teve
Apropriações sociais das mudanças climáticas
de ser traduzido nos termos de um problema “tratável” e politicamente “administrável”. 14 Dessa forma, configurou-se o procedimento chamado por Maarten Hajer de “fechamento do problema”, pelo qual os discursos constituem a mudança ambiental como objeto de políticas, de modo a poder apresentá-la como passível de solução.15 A transformação de evidências climatológicas nos termos de uma trama política passou assim pela seleção de ações relativas à busca de eficiência energética, o que permitiu que os esperados benefícios ambientais fossem associados à obtenção simultânea de benefícios econômicos. Buttel e Taylor sustentam que, após um período inicial de “lua de mel” durante o fim da década de 1980, a modelagem do clima global, as estimativas de perda de biodiversidade e outros estudos das implicações das mudanças ambientais tornaram-se objeto de disputas científicas e, consequentemente, políticas. Segundo eles, prevaleceu por muito tempo uma “construção moral dos problemas ambientais globais que enfatiza o interesse comum nos esforços de seu enfrentamento, desviando a atenção das dificuldades políticas resultantes da diversidade de interesses sociais e de nações envolvidos neste enfrentamento”.16 Já em 1988, o relatório Swedish perspective on human dimensions of global change chamava a atenção para os processos de construção social do conhecimento científico sobre mudança global, destacando o papel da história e da cultura na definição dos temas científicos e políticos. É nesse contexto de construção social do problema que, em 1992, o relatório da U.S. National Research Council sobre mudanças ambientais globais destacava “a importância da geografia, das distâncias entre os assentamentos humanos – e da demografia – por exemplo, da dispersão das populações em subúrbios – na determinação do padrão de consumo energético”.17 Em analogia com o que se verificou na experiência europeia, caberia perguntar: de que dependeria a construção desta “administrabilidade” das mudanças ambientais em um país como o Brasil? Parece relativamente pequena a presença de justificativas relacionadas a mudanças climáticas no debate brasileiro sobre políticas urbanas. Essas políticas não parecem integrar de forma substantiva os temas políticos nos quais têm sido traduzidas as questões das mudanças climáticas globais no país. Segundo pesquisa citada pelo The Economist, a qualidade do ar começa a tornar-se preocupação de política pública a partir do momento em que o PIB por habitante alcança
5.000 dólares. Poderíamos disto inferir que os baixos índices de desenvolvimento inibem a luta contra a poluição?.18 Se considerarmos, hipoteticamente, que tal correlação possa ser estendida aos problemas menos imediatamente visíveis, como o das mudanças ambientais globais, seria esperável que a mobilização sociopolítica em torno de tal tema venha a crescer paralelamente ao crescimento da renda per capita. Tal mobilização pode associar-se, como vimos, ao eventual envolvimento de elites urbanas que venham a distinguir nos impactos das mudanças globais um problema que lhes diga respeito, que pareça afetar substancialmente seus projetos, que configure motivo suficiente para engajar a sua capacidade de se fazer ouvir na esfera pública. Nada impede, porém, que representações de setores populares também distingam e coloquem em evidência as articulações globais de lutas locais – notadamente por moradia segura, saneamento urbano e transporte coletivo apropriado – por eles desenvolvidas no meio urbano. A experiência pregressa de Chico Mendes e das articulações ambientais globais das lutas dos seringueiros na Amazônia sugere não ser impossível que o mesmo venha a acontecer com movimentos sociais urbanos. Em sua parábola da “Ética do Bote Salva Vidas”, o ecólogo Garret Hardin simulava uma situação futura, segundo ele previsível, em que dado o crescimento incontrolável de população, a nave-terra deveria escolher a quem reservar os poucos lugares disponíveis nos botes salva-vidas.19 Hardin, numa perspectiva claramente social-darwinista, sustenta que seria lógico reservá-los àqueles, na humanidade, que mais tenham acumulado tecnologia e civilização – ou seja, a seu ver, as populações dos países mais industrializados. As populações “menos produtivas” deveriam, supõe-se, ser deixadas ao largo. A relutância das elites em assumir medidas compatíveis com o princípio de precaução em matéria climática parece sugerir que a Ética do Bote Salva-Vidas encontra-se hoje em operação. Seja nos bairros negros de Nova Orleans, nas zonas em vias de desertificação da África, nas moradias de risco no Brasil ou, ainda que sob pretensas razões ecológicas, nos processos de trabalho extenuantes observados nos canaviais brasileiros.
* Henri Acselrad Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/ UFRJ) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
14 cf. Liberatore, A., Facing Global Warming: the interaction between science and policy-making intje European Community, in M. Redclift – T, Benton (eds.), Social Theory and the Global Environment, Routledge, London, 1994, p. 192. 15 Cf. M. Hajer, Politics of Environmental Discourse: Ecological Modernization and the Policy Process, Oxford, 1995. 16 cf. F. Buttel – P. Taylor, How We Know We Have Global Environmental Problems? Science and the Globalization of Environmental Discourse, in Geoforum v. 23, n. 3, 1992, p. 406. 17 cf. U.S. National Research Council, Committee on the Human Dimensions of Global Change, Global Environmental Change: Understanding the Human Dimension, Washington D.C., National Academy, 1992. 18 cf. J. Bindé, Ville et Environnement au XXI Siècle, vol. 1, Les Enjeux, GERMES, Paris, 1998, p. 105. 19 G. Hardin, “Living on a lifeboat”, in Bioscience, 1974, n.2, vol. 24, out.
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Apague a luz, A convocação chegou por telefone, internet e correio: para salvar o planeta, desligar todas as lâmpadas da casa, das 20:30h às 21:30h de sábado, 28 de março. Não me faltava motivação, após visita ao navio Arctic Sunrise, do Greenpeace, com a exposição “Salvem o Planeta”, e ver a mostra “Intempéries”, na Oca, em São Paulo. Mas tinha dúvida da eficácia do ato doméstico, solitário e às escuras para salvar um planeta inteiro. Na dúvida, participei. Desisti do jornal da TV: a luz azulada trairia o ato. Para ser pontual, atendi à ligação da amiga, e adiei a conversa, animando-a a participar: ela aderiu atônita. E apaguei todas as luzes.
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A casa sumiu num breu que evoquei a memória para descer a escada sem corrimão – usar vela ou lanterna fraudaria o pacto que era ficar no escuro! E me deparei com a miríade de luzinhas vermelhas, que noite e dia me espionam dos eletrônicos. Sem rumo pela casa, admirei os efeitos da ausência de cor nos meus surrados domínios, e vislumbrei as nuances do escuro. Animou-me ver a vizinhança quase toda apagada. Mas havia janelas no tom azul de TV. O planeta acaba e veem TV! No escritório, salta aos olhos a inutilidade dos livros no escuro. Desligo o computador que dormiu me esperando: sua
luz trairia o ato. No escuro a sensação era de um mundo mais silencioso, e de ruídos mais audíveis e nítidos. Sem ter o que fazer no breu, deu desejo de tomar vinho. Trairia o ato? Antes de chegar à garrafa, onde ficam os fósforos? E me dei conta de que nada sei da minha casa, dirigida por secretária-doméstica! Sim, luz de geladeira trai o pacto! Tateio armários, prateleiras, gavetas à volta do fogão: eis a caixa de fósforos! Tanto palito riscado, como ler o rótulo!? – a Terra se acaba e eu escolhendo vinho à luz da chama! Tateio para achar a taça e o saca-rolha. Escuro aguça o paladar, e vinho no silêncio pede música. Trairia o ato? Não, decidi! Mahler, nº 5, baixinho. Vinho, silêncio, escuro: a imaginação decola. Mas as urgências impõem o medo. Descargas de gases, efeito estufa, rombos na camada de ozônio, aquecimento global, geleiras derretendo, elevação do nível do mar, tsunamis, enchentes, desertificação... Nossa maneira de viver tornou o planeta insustentável. O alívio só veio quando ouvi o coro de vozes infantis “Apague a luz, salve
o planeta!” para alguém que ignorava o ato. “Apague a luz, salve o planeta!” pedem os inocentes herdeiros, tentando melhorar o futuro, presente deles. Atendidos, gritaram “Obrigado, você salvou o planeta!”. E meu coração se inundou de esperança. Pacífico, solitário e simbólico, o ato se repetiu em 4 mil cidades, de 88 países. Na escuridão anônima, 1 bilhão de pessoas defenderam o futuro da vida. Infunde nobreza civilizatória juntar tanta gente na vigília de amor e pavor pelo planeta agonizante. A mudança climática é um dramático salto no abismo, comparada aos desastres ecológicos. Cientistas avisam que é muito pior do que pensavam e mais próxima do que imaginavam. Mas os governantes falam em reduzir 80% das emissões em 2050 – se agissem hoje estariam atrasados! Tomara que o valor simbólico de 1 bilhão de pessoas unidas pelo escuro comova os poderosos para a urgência de reduzir as emissões e deter as mudanças climáticas, como me comoveu o coro infantil do “Apague a luz, salve o planeta!”.
Alcione Araújo alcionaraujo@uol.com.
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1 Confira também o vídeo disponível no Portal do Ibase <www.ibase.br>.
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Democracia Viva – O que leva uma pessoa a adotar um estilo de vida ambientalmente correto? Roberto Schaeffer – De maneira geral, vejo uma grande contradição entre o que as pessoas falam e lecionam e o que de fato fazem. Talvez, isso tenha a ver com a questão da educação e da história das famílias. A minha história familiar mostra isso. Meus pais nasceram na Alemanha. Meu pai já faleceu e minha mãe tem 83 anos. Eles vieram fugidos na época da guerra, meu pai chegou a ficar preso no que seria um início de campo de concentração. Ele estava na então Tchecoslováquia quando Hitler invadiu o país, era judeu, e foi preso. Minha mãe, nessa época, era uma menina de 7, 8 anos de idade, e o pai dela era um economista em Berlim, judeu também, envolvido com política, e frequentemente era preso. Minha mãe já era órfã de mãe e lembra de o pai ficar preso alguns dias durante a semana e de ficar sozinha, em casa, cuidando do irmão menor, que tinha 2, 3 anos. Populações que viveram situações desse tipo, toda a geração que viveu guerras ou situações de conflito, passaram, talvez, a criar seus filhos de maneira diferente. Lembro que nunca tivemos excessos, nunca houve, por exemplo, em um almoço, dois bifes para alguém, era tudo contado. O banho tinha tempo determinado porque não se podia gastar muita água. Quem vai para a Europa hoje, ainda percebe esse tipo de hábito entre as pessoas mais velhas.
DV – Onde você nasceu? Roberto Schaeffer – Nasci aqui no Rio, moramos um tempo em Curitiba, depois voltamos. Pertencíamos à classe média baixa. Minha mãe trabalhava de costureira, que era um dos empregos que os estrangeiros conseguiam chegando ao Brasil, sem saber falar o português. Sou da primeira geração da minha família com curso superior, e só estudei em escola pública. Notava que, nesse ambiente em que eu vivia, minha educação era meio diferente. Há certa cultura do desperdício entre os brasileiros. Lembro que minha mãe enviava sapatos e roupas para tingir, afim de aproveitá-los por mais tempo. Lembro que na minha infância tínhamos um padrão de vida razoável, meu pai tinha carro. Essas preocupações não eram explicitamente ambientais, mas no sentido de que não valia a pena desperdiçar nada. Minha primeira bicicleta não foi nova. Respeitadas as devidas proporções, isso se reproduz em minha maneira de ser. Tudo é regrado, e isso vale para a maneira de lidar com objetos e pessoas.
DV – Qual é a sua formação? Roberto Schaeffer – Fiz graduação em
Engenharia Elétrica, na época em que morava em Curitiba. Depois, voltei para o Rio para fazer mestrado na Coppe, na época, ligado à Engenharia Nuclear, sou mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético. Depois, fui para os Estados Unidos, onde fiz doutorado e pós-doutorado na área de energia. Voltei para o Brasil em 1993, primeiro como bolsista do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e, depois, a partir de 1995, já como professor da Coppe.
DV – E o que o levou a essas escolhas? Roberto Schaeffer – Nem eu nem meu irmão, Renato (sete anos mais velho que eu, já falecido) gostávamos de engenharia. Mas, por acaso, a gente tinha certa habilidade matemática. E, naquele tempo, ter essa habilidade quase que naturalmente levava a fazer engenharia. Havia também a preocupação de, com um pai idoso, ter de sustentar a família. Engenharia era o caminho mais fácil para arranjar emprego. Quando vim para o mestrado na Coppe, era um programa de planejamento energético interdisciplinar, no qual o perfil típico era de engenheiros, mas também havia economistas, sociólogos e até uma médica. Era uma maneira elegante de largar a engenharia sem dizer que estava largando, e tinha uma abertura mais para o social. Tanto que a tese de mestrado que defendi, em 1986, foi sobre impactos ambientais de grandes hidroelétricas no Brasil, a primeira da Coppe sobre a questão ambiental. Há 20 anos, a preocupação com a questão ambiental era vista como algo esquisito.
DV – E quando essa preocupação começou a ser mais comum? Roberto Schaeffer – Foi um pouco despertada aqui na própria Coppe, criada no fim dos anos 70. Aos poucos, foi influenciada por movimentos de contracultura internacionais nos quais a questão ambiental ganhava força. Nessa época, também foi criado o Clube de Roma, um grupo que reuniu alguns professores que escreveram o livro Os limites do crescimento. Era uma denúncia de que, dada a dependência do mundo às reservas de petróleo conhecidas, o mundo se encaminhava para um colapso ambiental. Na época, começava a se desenvolver uma visão mais ecologista de mundo em que questões como desigualdade de renda e ambientais também tinham de fazer parte do planejamento energético. Esse trabalho do Clube de Roma foi publicado em 1972, pouco antes do primeiro choque do petróleo, ocorrido em 73, quando, de fato, a questão energética assumiu uma dimensão impensada. O Clube de Roma ganhou muita força por causa disso.
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Por conta dessa influência, quando fui para os Estados Unidos, também comecei a me envolver com isso. No meu grupo, fui a primeira pessoa a começar a me preocupar com a questão das mudanças climáticas, isso em 1987, o IPCC nem existia. Naquele momento, minha preocupação energética já era muito mais uma questão energético-ambiental que energética pura e simplesmente.
DV – Como é seu estilo de vida? Roberto Schaeffer – Tenho um filho de 10 anos, o Bernardo. Temos uma televisão em casa há três anos, mas só é usada a cada duas semanas porque ele gosta de assistir às corridas de Fórmula 1. É engraçado porque já participei de vários programas de TV e, em geral, os entrevistadores perguntam se conheço o programa deles e a resposta é sempre negativa. Como não temos o hábito de ver TV, nas horas livres, meu filho escreve um livro de ficção científica. Ele tem um prazer enorme em fazer isso. Ele criou também uma linha de carros e está preparando as reportagens que sairiam na revista Quatro Rodas comentando a nova linha. Hoje, quando eu chegar em casa, vamos jogar futebol de botão. Meu filho nunca comeu carne. Aliás, minha esposa e eu já não comemos carne faz mais de 20 anos. A gente só come comida orgânica e praticamente não anda de carro. Tudo o que fazemos, minha esposa meu filho e eu, é a pé ou de bicicleta. Claro, moro no Leblon, talvez se eu morasse em um bairro mais periférico... mas não posso me queixar. Tenho um padrão de vida que me permite tomar atitudes que outras pessoas talvez não teriam como. Alguém pode dizer, por exemplo, que comida orgânica é muito cara. Pode ser, mas é uma questão de opção. Meu carro tem 23 anos, é todo enferrujado, um Voyage à álcool. Dependendo de como você cria alguém, o que poderia ser uma vergonha, pode se transformar em algo positivo. Faço questão de ter esse carro, serve para mostrar que aquilo não é importante. Há pouco tempo, a escola onde meu filho estuda pediu que as crianças levassem as contas de luz das suas casas. Nem a professora, que mora sozinha, apresentou uma conta de luz tão baixa quanto a nossa. Não temos aparelho de ar condicionado, talvez porque eu more no Leblon e possa deixar as janelas abertas. Mas, de todo jeito, por princípio, não usaria. Se é verão, não me parece absurdo sentir um pouco mais de calor.
Ter uma vida alternativa não significa fazer sacrifícios, significa ter de se organizar para isso
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Para a iluminação, quanto mais abrir a janela, melhor, não há necessidade de acender luzes durante o dia. Nós também só usamos lâmpadas fluorescentes compactas, isso faz com que nossa conta de luz seja mais baixa.
DV – A opção cotidiana pelo meio ambiente é pesada? Roberto Schaeffer – Ter uma vida alternativa não significa fazer sacrifícios, significa ter de se organizar para isso. Não posso cobrar do meu filho que não assista à TV e deixar ele ali, sem fazer nada. Desde criança, fui acostumado a levar para cama um livro para ler antes de dormir. Meu filho faz o mesmo. Mas a maioria das pessoas não lê, fica difícil fazer isso de repente. A gente tem de criar esse ambiente. Por exemplo, nosso programa típico de fim de semana é ir à praia, gosto de ‘pegar jacaré’, isso não é um sacrifício. Minha vida é conformada de tal maneira que tudo o que considero correto fazer, por acaso, posso fazer, então, está tudo perfeito.
DV – Os produtos orgânicos têm um custo alto, não é? Roberto Schaeffer – Isso é porque são praticamente artesanais. Por exemplo, é muito mais fácil ter uma grande produção de arroz branco, jogar tudo em um mesmo lugar para limpar e tirar a casca do que ter de separar uma parte para colocar em uma máquina especial que tira só a primeira casca, não tira tudo. É mais caro porque é realmente alternativo, vai contra o modelo de grande escala. Além disso, em materiais orgânicos, o índice de perda é muito alto. Isso está melhorando, mas não dá para comparar. Por que uma maçã de supermercado não estraga? Por causa da quantidade de agrotóxico, nem o bichinho come. Por outro lado, a comida orgânica ainda é muito mais barata que outros produtos adquiridos só para se manter a fachada. Por exemplo, o carro é um símbolo de status, as pessoas se quebram para adquirir um carro novo ou do ano, não tê-lo, para esta sociedade, pode ser sinal de fracasso. Mas meu carro custa, por ano, de oficina, cerca de R$ 300, nem IPVA eu pago mais. Nesse sentido, posso comprar toda a comida orgânica que quiser, mesmo que seja mais cara.
DV – Por que essa necessidade desenfreada de consumir? Roberto Schaeffer – A maioria das pessoas que conheço tem os celulares mais modernos, TVs de plasma. Por quê? Porque talvez elas ainda não tenham parado para pensar que a gente não precisa ser assim. Mas, diante do bombardeio da mídia, fica difícil mesmo, elas foram convencidas disso. Sinto que as pessoas
Roberto Schaeffer
ainda não se libertaram, ainda não tiveram a coragem, ou clareza, para entender que não precisa ser assim. A sociedade é de consumo, pensa em consumo, mas não dá para continuar assim. Isso nos remete ao livro-denúncia do Clube de Roma. Há certos valores hoje que não são condizentes com preocupações ambientais.
DV – A nova geração se preocupa mais com o meio ambiente? Roberto Schaeffer – Há muita contradição. De fato, se compararmos, o que meu filho aprende hoje no colégio é muito mais interessante, muito mais esclarecido, do que se aprendia em minha época. Por outro lado, por mais que se tenha mais acesso a informações sobre viver em harmonia ou preservar o meio ambiente, o padrão de vida atual é tão mais elevado que torna tudo pior. Se a minha conta de luz não chega a 200 quilowatts por mês, há colegas da sala do Bernardo que trouxeram contas com gastos de 1.500 quilowatts! De maneira geral, as crianças são mais conscientes, mas, seguramente, o desperdício é muito grande. Só não é maior porque elas são conscientes, mas isso não é suficiente para contrabalançarmos a questão do consumo. Por exemplo, na classe do Bernardo, já há crianças com celulares. Eu não tenho e nem faço questão de ter.
DV – Como você imagina um modelo energético para o Brasil? Roberto Schaeffer – De fato, não há como os países crescerem e se desenvolverem sem energia. A questão toda é se é preciso tanta energia. Defendo que daria para fazer tudo com muito menos energia do que se faz. Por exemplo, sou muito crítico da arquitetura brasileira que tenta reproduzir modelos arquitetônicos que foram pensados para países de clima frio. Claro, se você constrói um prédio preto, todo de vidro, por definição, precisará de ar-condicionado o dia todo; se prédios são feitos sem a boa utilização das áreas de janela, ventilação e iluminação natural, precisarão de muito mais lâmpadas e aparelhos de ar-condicionado. Isso vale para tudo. É normal precisar de mais energia para se desenvolver, crescer. Mas poderíamos precisar de muito menos se repensássemos os padrões de desenvolvimento. Viver bem não significa viver da maneira como se vive hoje, não significa cada pessoa ter seu carro, mas talvez signifique ter transporte público de boa qualidade. Teríamos de pensar em equipamentos que, quando dessem defeito, em vez de serem substituídos, pudessem ser consertados. O problema é que, em uma sociedade de consumo como a nossa,
na qual a população começa a se estabilizar, se os bens fossem muito duradouros, as fábricas fechariam. Para as fábricas venderem cada vez mais, tudo precisa ficar velho rapidamente e a população sente a necessidade de adquirir um novo bem sem nem mesmo precisar dele. Por isso, as pessoas estranham o fato de eu ter um Voyage de 23 anos. E que só é lavado quando chove. A água no Brasil é de excelente qualidade, com flúor, cloro, para que vou gastá-la no carro? Para ele não ter cáries?
DV – A que se deve o nosso caótico modelo de transporte público? Roberto Schaeffer – Isso começa com Juscelino Kubitschek, quando o Brasil optou pelo sistema rodoviário que temos por várias razões: era uma época de petróleo abundante e energia não era problema; esse também era o modelo americano, em um momento em que a economia americana era a grande economia mundial; e na época a facilidade de se conseguir dinheiro externo e de criar uma indústria no país dependia muito da escolha desse modelo. Assim, a Volkswagen, a Ford, a General Motors vieram para o Brasil. Quando se cria um modelo desse tipo, fica-se preso a ele e começa a ocorrer uma série de círculos viciosos. São Paulo se torna uma cidade importante, o setor automobilístico se torna muito importante no Brasil e, quanto mais importante, mais difícil é se desvencilhar dele. Nosso atual presidente é um metalúrgico e a primeira atitude dele quando a economia entra em colapso é baixar IPI de carro e isso é muito difícil. Por outro lado, as pessoas também querem isso, o primeiro dinheiro a mais que alguém ganha é para comprar carro novo. Então, a solução é o governo investir em transporte público, mas as pessoas têm de querer usar esse transporte. Porque mesmo as pessoas que moram em lugares acessíveis não querem usar, é uma questão de status. Por isso, em países europeus se criam dificuldades para o uso do carro particular e, contraditoriamente, o Brasil cria facilidades para que se tenha mais carros. No Rio, por exemplo, são construídos estacionamentos subterrâneos para facilitar a ida de carro para o centro. É inimaginável alguém pensar em ir para o centro de Londres, Nova Iorque ou Paris de carro. A gente tem uma indústria que precisa desse modelo, temos governantes que facilitam esse processo, bem como pessoas que querem isso. É preciso chegarmos a uma situação caótica como a de São Paulo para pararmos para repensar a situação do trânsito, mas nesse caso é uma situação que não tem volta.
DV – Acredita que é possível
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reverter essa situação? Roberto Schaeffer – Em qualquer cidade de grande porte, a única solução inteligente em termos de transporte público é o metrô. O do Rio é um dos mais caros do mundo, porque é uma cidade de rochas, cada 50 ou 100 metros significam milhões de dólares. Isso explica, em parte, porque São Paulo tem um metrô tão mais avantajado. Isso não ocorreria se optássemos pelo metrô de superfície. Mas politicamente, não é trivial fazer isso porque envolve outros interesses. Por exemplo, aqui no Rio temos a contradição de linhas de trens e de ônibus correndo paralelas, é um absurdo completo. Ao longo do tempo, foram sendo criadas facilidades trocadas por votos para que o sistema de transporte público de ônibus beneficiasse certos grupos. Isso é um problema. Agora, a solução definitiva seria, simultaneamente, criar dificuldades para o uso do carro e facilidades para o uso do transporte público. Não adianta impedir a ida de carro para o centro e deixar tudo por isso mesmo. Ônibus é investimento privado; Metrô é investimento público, investimento do Estado, se não há dinheiro para investir, fica complicado. Entendo que priorizar o metrô, às vezes é politicamente complicado. Mas isso não deveria ser justificativa para não fazer o que é necessário. É preciso buscar mecanismos mais inteligentes para resolver isso. A questão das mudanças climáticas e ambientais vem nos acompanhando há algum tempo, no entanto seu verdadeiro impacto não será visto hoje ou amanhã, mas sim daqui a 20, 30 e até 50 anos. Nesse sentido, é complicado tomar uma decisão política hoje para ver os benefícios da solução de um problema muito mais à frente. O sistema político não está preparado para isso. Assim, a questão das mudanças climáticas envolve, antes de tudo, decisões éticas, já que não vão gerar tanto impacto para nós agora, mas para gerações futuras.
Um mundo dependente apenas de fontes renováveis também não poderá ser um mundo como o nosso, vai ter de ser um mundo diferente
DV – Em tempos de aquecimento, como fica nossa dependência aos combustíveis fósseis? Roberto Schaeffer – Alguns países terão de aumentar seu combustível em valor abso-
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luto, como China, Índia, Brasil. Nos Estados Unidos, há uma população de 290 milhões de habitantes e cerca de 190 milhões de carros, o que significa um pouco mais de um carro por habitante habilitado a dirigir. Na China, há uma população de 1,3 bilhão de habitantes e não mais que 40 milhões de carros. Hoje o mundo todo tem cerca de 800 milhões de carros. Se a China tivesse o padrão de motorização americano, sozinha, duplicaria a frota mundial. Como falar para um chinês que ele não poderá ter seu carro porque chegou atrasado? Enfim, alguns países terão, de fato, de consumir mais energia, já outros poderiam consumir muito menos, mas aí é um problema. Entramos novamente na questão dos padrões de consumo. O americano hoje tem dois ou três carros e ele não precisa disso. Mas às vezes, é mais difícil dizer para uma pessoa nessas condições utilizar o transporte público do que para alguém que a vida toda andou de metrô ou ônibus. Claro que todos temos de reduzir nossa dependência aos combustíveis fósseis. Hoje ainda, o combustível mais importante do mundo é o petróleo, seguido pelo carvão e pelo gás natural. No Brasil, essa relação é diferente, mas o petróleo também é o mais importante. Dado o padrão de consumo de energia no mundo não há alternativa em curto prazo que substitua o carvão ou o petróleo. Não dá para, de uma hora para outra, dizer que todos os carros serão à álcool ou elétricos ou dizer que toda a energia do mundo será baseada no gás natural ou em hidroelétricas. Já se sabe que, de agora a 2030, não só o consumo de combustíveis fósseis será maior, como o seu valor relativo. A gente vai se tornar ainda mais dependente dessas fontes. Simultaneamente, é preciso começar a introduzir as alternativas, eólica, solar, mas que, sozinhas, não conseguem segurar o padrão de vida atual. Vamos ter de usar o petróleo principalmente, o carvão e o gás natural para preparar a transição para um mundo descarbonizado. Um mundo dependente apenas de fontes renováveis também não poderá ser um mundo como o nosso, vai ter de ser um mundo diferente. As pessoas estão preparadas para isso? Elas terão de ser convencidas, educadas. As pessoas que terão de abrir mão de alguma coisa são aquelas que vivem em regiões do planeta tão ricas que, talvez, não precisem abrir mão de nada. Por exemplo, vamos considerar que um dos impactos das mudanças climáticas seja a elevação do nível dos mares. A Holanda já está elevando seus diques. Ou seja, alguns países vão preferir lidar com o problema ambiental se fortificando ou optando por decisões imedia-
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tistas, empurrando o problema com a barriga. Vários problemas ambientais são tratados dessa forma, isso atende bastante bem aos interesses da sociedade atualmente. As fontes renováveis têm de crescer em importância, mas, talvez, só com eventos climáticos extremos as pessoas começarão a levar isso a sério.
DV – A curto ou médio prazo, você não acredita em uma mudança de postura das populações do planeta? Roberto Schaeffer – Não. Hoje, já se tem um discurso muito mais frequente nessa linha do que havia há 10 ou 5 anos, mas ainda está muito longe do discurso passar à ação. Pelo menos, já está se falando nisso, é um ganho.
DV – Mas vai dar tempo? Roberto Schaeffer – Depende para quê. Se a gente quiser de fato controlar a temperatura do planeta em níveis hoje ainda considerados seguros, entre 2 e 2,4 graus mais altos que na época pré-industrial, até o ano 2100, já subindo em 0,7 graus, teríamos de ter um pico de emissão no mundo não depois de 2015, e chegar a 2030 com as emissões no nível do ano 2000 e, em 2050, mais ou menos 80% mais baixo do que era em 2000. Houve uma reunião do G-8 recentemente e é fácil as pessoas, da boca para fora, dizerem que 80% em 2050 dá. Por que é fácil? Porque estamos em 2009. Em 2050, nem vou estar mais aqui, já terei morrido, então posso prometer qualquer coisa e o resto que se vire. Dessa questão de se chegar a 2015 com pico de emissão, a gente fala que vai ter de ser assim, a China, a Índia, o Brasil chegando lá, mas não acredito que será possível. Se perdermos esse marco, provavelmente, vamos perder o outro, e aí já começamos a cair em uma situação que não dá para saber o que vai significar. No caso do Brasil, há cenários que apontam que, dependendo do aumento da temperatura, a Amazônia se desmatará por si só; o Nordeste, que já é um semiárido, vai virar um deserto; várias plantas das quais dependemos hoje não vão crescer em temperaturas mais elevadas.
DV – Como avalia o último cenário apontado pelo relatório do IPCC, tido como o mais tenebroso até agora? Roberto Schaeffer – Isso funciona assim: existem cenários de emissões, que vão levar a cenários de concentração de gás na atmosfera, que levam a cenários de aquecimento do planeta que, por sua vez, levam a cenários de mudanças climáticas. É uma cadeia na qual cada um dos cenários tem certo grau de incerteza. De fato, no ano 2000, o IPCC gerou uma nova família de cenários de emissões, umas mais
positivas; outras mais negativas. Até 2008, o cenário de emissão real do mundo era pior que o cenário mais negativo traçado pelo IPCC em 2000. Isso nos leva a concluir que se o cenário de emissão é pior, provavelmente, a concentração atmosférica será maior, assim como o aquecimento e as mudanças climáticas. Mas há ainda uma incerteza muito grande sobre as verdadeiras consequências das mudanças climáticas. Por exemplo, quanto e como o padrão de chuvas no Brasil vai se alterar? Dos 15 a 20 modelos internacionais mais respeitados para gerar esses cenários, aquele que mais facilmente tivemos acesso foi um modelo inglês, que traça um cenário mais negativo para o Brasil. Dentre os modelos existentes, é aquele que mostra a Amazônia e o Nordeste mais secos, além do assustador impacto sobre o setor energético. Não sou catastrofista, mas, acreditando naquele modelo, o resultado é este. Porém, quero avaliar também a partir de outros modelos para comparar esses resultados.
Realização: Entrevista Flávia Mattar Jamile Chequer Decupagem e edição Ana Bittencourt Edição do vídeo Diego Santos
DV – O que isso significa em termos de impactos para o Brasil? Roberto Schaeffer – Na região mais central ou no Sul do Brasil, praticamente todos os modelos internacionais apontam para os mesmos resultados, e lá as consequências para a área de energia não são tão grandes. Agora, para o Norte e o Nordeste, se as previsões estiverem corretas, as consequências serão muito sérias. De todo jeito, mesmo diante das incertezas, um ponto de certeza é que todos os cenários nos levam a situações muito mais complicadas do que as de hoje. Não se pode esperar de mudança climática nada de bom. Por isso, já não basta mais termos estratégias de mitigação. Paralelamente à redução das emissões, temos de começar estratégias de adaptação a um mundo diferente. No caso da agricultura, temos de começar a pesquisar novas espécies de plantas mais robustas, que suportem temperaturas mais altas. Temos de pensar em torres de linhas de transmissão mais robustas para aguentar ventos mais fortes; eventualmente, começar a pensar que um novo loteamento em Paraty ou Cabo Frio tem de estar mais longe da costa. Enfim, temos de começar a nos adaptar para um clima que já está mudando e que irá mudar ainda mais.
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artigo Carlos Tautz*1
Desmatamento e
Em junho de 2009, duas das mais importantes organizações ambientalistas do Brasil – o Greenpeace e a Amigos da Terra Amazônia Brasileira – divulgaram estudos provando que a produção de commodities agrícolas (soja e gado, entre outros) era a principal indutora do desmatamento e das queimadas na Região Amazônica. O caso – gravíssimo, porque mais de 70% das emissões de gases do efeito estufa (GEE) vêm dos incêndios naquele bioma – ajudou a mostrar que o desflorestamento planejado e sistemático é parte do sistema econômico predominante na região. E, pior, o próprio Estado participa de cada etapa do sistema 1 Algumas das reflexões contidas neste texto emergiram do ambiente de debates permanente na linha de pesquisa Desenvolvimento e Direitos, do Ibase, e no correr da Plataforma BNDES.
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e integra o controle acionário de várias empresas que extraem intensivamente recursos naturais. Os maiores frigoríficos instalados na região recebem generosos recursos de um ente estatal,
e emissões de Com este Estado e este modelo, não dá
Refazer o Estado e o modelo econômico é
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que não apenas provê os recursos financeiros como também possui participação acionária expressiva em vários deles. Valendo-se de incentivos de inúmeros tipos e da fiscalização intencionalmente frouxa, os frigoríficos se transformaram em um dos mais importantes instrumentos de degradação da floresta por comprarem, em larga escala, gado criado em áreas oriundas de desmatamento e/ ou de queimadas. Esse caso mostra que a imbricação de interesses entre Estado e agentes econômicos é tão grande que antes de definir estratégias para enfrentar o desmatamento e a emissão de gases é necessário saber: como trazer a zero o desmatamento, e retirar o Brasil do incômodo posto de quinto maior emissor mundial de GEE, se o próprio Estado apoia, financia e viabiliza a queima da floresta? É possível imaginar essa redução sem alterar a nossa inserção na
economia-mundo, que vê a Amazônia apenas como uma enorme plataforma de exportação de commodities? Como superar esses impasses, dadas as relações de poder (do âmbito local ao internacional) que emergem de territórios reconfigurados por grandes projetos econômicos?
Vetores da destruição Ainda é preciso aguardar até dezembro para que se possa conhecer o inventário nacional de emissões de gases, pesquisa que não será (como deveria ser) divulgada no bojo de uma política de enfrentamento das mudanças no clima. Exatamente como na edição anterior (2004), o inventário de 2009 será apenas mais uma peça de defesa contra as críticas sobre a omissão oficial na área das mudanças climáticas. Ele será publicado às vésperas de mais uma Conferência das Partes dos países signatários da convenção das mudanças climáticas. Nesse caso, a 15ª
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artigo
Conferência, a se realizar em dezembro, em Copenhague, capital da Dinamarca. Porém, o mero acompanhamento empírico da destruição ambiental na Amazônia ao longo das últimas décadas já permite identificar algumas importantes fontes do desmatamento e de emissões de GEE. Algumas provêem de atividades legais e de outras nem tão legais assim. Em seu conjunto, conformam aquilo que se convencionou chamar de “modelo” econômico. Sem grandes esforços, pode-se identificar os principais vetores desse modelo degradador, que termina por desbastar a camada florestal e intensificar as emissões. 1. O Estado brasileiro, por meio de várias de suas instâncias, mas em especial do BNDES e de todo o sistema financeiro público. Ao longo dos anos, foi sendo montado um sistema de interesses cruzados em que participações acionárias se combinam com financiamentos e objetivos políticos de curto, médio e longo prazos, desde o âmbito local até o internacional, colocando lado a lado empresas públicas e privadas e o poder político. A miscigenação é tão intensa que, muitas vezes, é impossível distinguir o lugar de onde um determinado agente está falando. Nesse cenário, a descoberta de que o Banco financia e participa do controle dos grandes frigoríficos que induzem ao desmatamento mostra um modus operandis que avança por outras áreas e setores, mas sempre mantendo a lógica do conluio entre o público e o privado.
Atingidos Nos dias 23 a 25 de novembro, a Plataforma BNDES organiza, no Rio de Janeiro, o evento Atingidos – I Encontro Sul-Americano de Populações Afetadas por Grandes Projetos Financiados pelo BNDES. A proposta é fazer uma reflexão crítica sobre a atuação do Banco em vários setores e ouvir o relato dos impactados pelos projetos financiados pelo BNDES sobre as consequências práticas da irresponsabilidade do Banco na viabilização de obras estruturantes sem qualquer consulta a comunidades locais. Outro objetivo é avançar no debate sobre a corresponsabilidade do BNDES nos efeitos dos projetos que ele apoia e na reparação dos problemas causados.
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A tática mais comum é o afrouxamento da regulação e da fiscalização de grandes projetos de infraestrutura ao redor dos quais são fechados um sem número de acordos (nem sempre republicanos). Um exemplo típico e recente é a construção das hidrelétricas Jirau e Santo Antônio (no rio Madeira – RO), que proverão de energia empreendimentos tremendamente devastadores de florestas e, indiretamente, agravantes do processo de emissão de gases. O Estado é o maior financiador dos empreendimentos (mais de 80% dos créditos) e comprador de última instância, por meio de suas empresas no setor hidroelétrico (Eletrobrás, Cemig etc.), da energia a ser gerada. Se o esquema furar, não há problema (para o agente privado). Afinal, o Estado sempre entra como emprestador, repetindo uma lógica que também se verifica em projetos de construção de estradas, de mineração etc. 2. O capital financeiro, inclusive o privado, é outro vetor do desmatamento. Direta ou indiretamente, ele se apropria (de forma legal ou não) de largas porções de territórios, seja financiando projetos, seja participando dos blocos controladores das empresas que os operam, porque encontram nessas obras duas importantes vantagens: primeiro, seus projetos têm enorme retorno financeiro devido à utilização de recursos (humanos, naturais e financeiros) baratos; e pela alocação de recursos em projetos materiais, que funcionam como reserva de valor indispensável a agentes que aportam enorme volume de recursos no mercado especulativo. 3. Os grandes esquemas de legalização de dinheiro também buscam na região meios de fazer reservas de valor. Chama a atenção a desenvoltura com que grandes empresários, tradicionalmente alheios a projetos na Amazônia, agora articulam contatos políticos e adquirem enormes porções de território.
Alternativas de longo curso Observando-se a posição das forças políticas institucionalizadas quanto à cumplicidade entre o Estado brasileiro e seus agentes econômicos preferidos, facilmente se conclui que não é provável que apareça em curto ou em médio prazo qualquer ator político capaz de alterar o curso do sistema econômico no Brasil. Não há no horizonte qualquer opção política e eleitoral que aponte no sentido de uma reformulação
Desmatamento e emissões de GEE
radical no Estado e na aposta de outro modelo econômico que objetivamente induza à redução da escala das emissões amazônicas de GEE. O Ibase vem contribuindo, de várias maneiras, para o debate qualitativo do desenvolvimento, o que necessariamente nos leva à discussão sobre o modelo econômico e as alterações do clima. Uma dessa maneiras é a participação, desde o início, na Plataforma BNDES. O conjunto de organizações sindicais, populares, não governamentais que a compõe, desde 2004, pressionam pela reorientação do BNDES. Devido aos seus crescentes desembolsos e à capacidade de elaboração de propostas estruturantes da economia, o Banco se transformou em um dos principais agentes do modelo econômico movido a emissões crescentes de GEE. Junto com entidades como MST, CUT, Movimento dos Atingidos por Barragens, Fórum Brasileiro de Economia Solidária, CNBB e ABI, entre outras, o Ibase se insere no crescente rol de entidades que percebe a necessidade e a oportunidade de reposicionar a discussão dos rumos do Brasil e da América Latina em uma perspectiva de chegar a alternativas factíveis ao nosso padrão econômico. É interessante notar que a presença dessas entidades no debate vai de certa forma
recompondo um bloco social que nas últimas cinco décadas participou de alguns dos mais importantes momentos da história brasileira, com marco inicial no golpe civil e militar de 1964, que interrompeu as reformas de base do ex-presidente João Goulart. Várias dessas organizações estiveram juntas na resistência à ditadura e na luta pela anistia, reencontraram-se na redemocratização e, posteriormente, nas Diretas Já. Atuaram na Constituinte e, logo depois, na primeira eleição presidencial pós-ditadura. Agora, de novo, vão se constituindo em grupo que questiona o padrão de desenvolvimento, motivadas não apenas pelas injustiças que o modelo produz, mas, também, pela premência de soluções para o problema climático. São blocos como esses as únicas forças políticas que podem trazer o debate sobre a mudança nos padrões da economia e, por conseguinte, dar a sua contribuição para solucionar a gravidade das mudanças no clima. Em verdade, ou essas organizações puxam para si essa responsabilidade ou nada se alterará.
* Carlos Tautz Jornalista e pesquisador do Ibase
As emissões de GEE Uma descrição precisa da situação amazônica é encontrada em Redução das emissões de carbono do desmatamento no Brasil: o papel do programa Áreas Protegidas na Amazônia (Arpa), produzido pela UFMG, Ipam, The Woods Hole Research Center e WWF-Brasil: No princípio da década de 70, a floresta amazônica brasileira ocupava uma área total de 4,18 milhões de km2. Atualmente, o desmatamento acumulado já ultrapassa 650 mil km2 ‘– 15% de sua extensão original –,’ uma área maior que a França e quase o dobro da Alemanha. Grande parte do desmatamento ocorre ao longo do chamado arco do desmatamento que se estende do nordeste do estado do Pará ao leste do estado do Acre e abriga a maior fronteira agrícola em expansão no mundo (Morton et al., 2006). As taxas anuais de desmatamento situaram-se em torno dos 17 mil km² ao longo da década de 90, correspondendo a emissões
médias anuais na ordem de 200 milhões de toneladas de carbono equivalente. No início da década de 2000, houve um período de ascensão vertiginosa do desmatamento, quando a taxa anual alcançou 27 mil km² em 2004. As pastagens, a maioria de baixa produtividade, cobrem atualmente mais de 70% da área desmatada na região (Margulis, 2003, Alencar et al., 2004), sendo a pecuária o principal vetor de desmatamento. Além da pecuária, a expansão do agronegócio, a profusão de projetos de assentamentos e a abertura e pavimentação de estradas contribuíram para a manutenção de elevadas taxas de desmatamento. A esses vetores somam-se os mercados ilegais de terras e de madeira e as dificuldades do Estado em controlar ações criminosas, como a grilagem de terra.
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ENTREVISTA Entrevista conjuntural Por Equipe Ibase
Marcelo Furtado
O debate sobre mudanças climáticas envolve temas como Economia, Justiça Ambiental, Inclusão Social, entre outros. Em
Democracia Viva (DV) – O que as mudanças climáticas têm a ver com a economia? Marcelo Furtado – A discussão sobre mudanças climáticas não é ambiental. É sobre mudança do paradigma de desenvolvimento. É tão verdade isso que o debate internacional com ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores não andou e vai ser encaminhado por chefes de Estado. Isso mostra que a questão engloba políticas econômicas, sociais e ambientais. Uma vez que se trata de uma discussão de desenvolvimento em função de um indicador ambiental, a sociedade tem de fazer um acordo, uma negociação entre o que quer, espera e aceita como uma receita de solução. Porque haverá impactos e oportunidades ao mesmo tempo em todas as áreas: Economia, Saúde, Habitação e Política Industrial.
© Greenpeace / Rodrigo Baleia
DV – Como está esse debate no Brasil?
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Marcelo Furtado – Estagnado, porque os países, inclusive o nosso, demoraram a reconhecer que existia um problema. E mais: o Brasil negou por muitos anos a nossa contribuição para o agravamento do problema, que é uma parte significativa. Com isso, falta informação em todas as instâncias, desde o trabalhador que toma um café no bar antes de pegar o ônibus ao ministro de Estado. E falta diálogo entre os setores da sociedade sobre qual é o verdadeiro problema e quais são os caminhos para a solução.
DV – Se o debate não foi incorporado pela sociedade, o trabalho do setor ambiental foi desperdiçado? Marcelo Furtado – Por muito tempo, havia uma resistência muito grande nos setores fora da esfera ambiental em entender e assumir esse desafio. Não é um assunto fácil. A ciência é complexa e as soluções são complexas, porque elas contemplam vários elementos. Em segundo lugar, havia a preocupação de fragmentar e esvaziar o volume de recursos e a vontade política para lidar com questões como pobreza, geração de renda e ocupação de solo. Aqui, houve uma falha de todo o movimento, inclusive o ambiental. A gente não mostrou um para o outro que tudo faz parte da mesma agenda. Há outro complicador. Não é possível resolver todos os dilemas ao mesmo tempo, em um prazo curto, como o que a ciência diz ser necessário para lidar com as mudanças do clima. Mas essa urgência passou não tanto a engajar e sim a preocupar o movimento social. Temos de priorizar algumas ações. Em vez de lutarmos juntos por recursos adicionais e um plano de ação integrado com uma política de desenvolvimento compatível com o desafio, competimos pelas migalhas oferecidas pelo atual modelo que trata a questão socioambiental como tema menor.
DV – De qual forma?
Marcelo Furtado – No momento que a gente diz que o desafio é de desenvolvimento, não ambiental, essas outras questões entram diretamente na balança, de maneira fundamental. Para discutir mudanças climáticas, precisávamos conversar com o setor produtivo, o dono da chaminé. A gente precisava falar com o consumidor, que, dependendo do seu hábito de consumo, promove o aumento da intensidade da fumaça da chaminé ou da expansão das áreas plantadas, em geral derrubando floresta virgem, cuja área é posteriormente abandonada. Mas não conversamos estrategicamente com os setores como os sindicatos que viam nisso um possível obstáculo, uma ameaça à geração de empregos e aos existentes e com os movimentos sociais que viam como ameaça à geração e distribuição de riqueza. Um exemplo: de um lado o movimento ambientalista diz que a moratória da soja integra o desafio das mudanças climáticas a um novo padrão de atuação da indústria no bioma amazônico. Já o movimento social olha isso como uma sedimentação de um modelo econômico desigual para uma região onde já existe falta de governança e impunidade. Nós sempre defendemos a bandeira da legalidade e governança plena e continuamos exigindo a
presença do Estado e aplicação da lei, mas, ao mesmo tempo, temos de eliminar os vetores de desmatamento, como o avanço da soja sobre a floresta. Assim, seguimos com a defesa da governança e da legalidade, mas não deixamos a floresta ir embora. Essa estratégia não foi bem-recebida ou talvez bem-entendida em princípio, mas sua aceitação ficou mais explícita após dois anos de moratória, quando os primeiros casos de violação do acordo foram expostos e condenados. Além disso, em Santarém, vimos que o número de casos de violência no campo caiu. Nesse momento, a sociedade percebeu que a conversa de desmatamento zero era para valer.
DV – Faltou diálogo entre os movimentos?
Marcelo Furtado – O Fórum Social Mundial foi um dos vários palcos escolhidos para essa discussão, mas continuamos falando da agenda ambiental e da social de maneira não integrada e não construímos propostas conjuntas concretas para atender a esse novo paradigma de desenvolvimento. A preocupação continua em trabalharmos um discurso correto e não necessariamente da solução. Pois, com tempo limitado e prioridades a serem elencadas, não podemos nos preocupar em estar ‘certos’, mas sim em vencer esse desafio, pois o que está em jogo é a nossa sobrevivência.
DV – Há uma receita de solução?
Marcelo Furtado – Estamos na era do pragmatismo visionário. Este é o momento de romper com o Brasil do passado e engajar com o Brasil de 2020, 2030 e 2050. Devemos desenvolver uma visão de país, de planeta e exercer liderança. Construir um caminho crítico para uma economia verde inclusiva e justa. Romper com as práticas da corrupção, ilegalidade e, acima de tudo, apatia. Precisamos nos juntar e ir para as ruas porque, a não ser que consigamos pressionar governantes, Parlamento e setor produtivo conjuntamente, não mudaremos essa realidade. Quanto ao governo, o primeiro passo é reconhecer o problema. O segundo é desenvolver uma visão de país; em seguida, discutir e desenvolver com a sociedade um caminho crítico a ser trilhado conciliando, de verdade, e não na retórica, sustentabilidade e desenvolvimento. Neste momento, o grande desafio é pensar uma economia de baixo carbono, maior número de empregos, maior e melhor distribuição de renda. Mas ao olhar o perfil das emissões brasileiras de gases do efeito estufa identificam-se facilmente duas lições de casa fundamentais. Uma é lidar com o uso do solo e da floresta, ou seja, agricultura e desmatamento. A outra é a questão energia, desde a geração ao uso.
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Entrevista conjuntural
DV – Mas o governo não lançou uma Política Nacional de Mudanças Climáticas? Marcelo Furtado – De novo, o governo brasileiro demorou muito tempo para desenvolver uma política para o país. O resultado foi uma costura de ações já existentes, baixa inovação e pouca ambição no alcance das ações. Ou seja, pensou no Brasil de 2010, e não no futuro. O governo tardou em assumir alguma meta de redução de emissões. Hoje, temos um compromisso nacional com a redução do desmatamento, mas não o fim dele, o chamado desmatamento zero. Além disso, não existe uma estratégia para outros setores da economia como geração de energia, transporte, agricultura etc. O discurso do Lula indica a clara preferência de passar o mico para os outros, exigindo que a lição de casa seja feita por todos, menos o Brasil ou que, sem recursos de fora, a gente não tem condição de fazer nada.
DV – Como se integra justiça social ao combate às mudanças climáticas?
Marcelo Furtado – O desafio posto é entender e entrar em um acordo sobre as pautas de prioridades. Significa olhar o que a ciência apresenta, com o tempo indicado para resolver e agir, de uma a duas décadas, no máximo. O problema cai no colo da nossa geração. Se eu não fizer a lição de casa hoje, o que entregarei é um trem em rota de colisão, não um país e um planeta viáveis. Depois, é preciso enxergar e entrar em acordo a respeito das oportunidades que existem. Quando se fala do desafio da geração de energia, e energias renováveis como uma solução para os combustíveis fósseis, duas características atendem às demandas sociais. Uma é a descentralização. Hoje, hidroelétricas na Amazônia geram energia para as populações do Centro-Sul do Brasil, enquanto as comunidades do entorno ora foram deslocadas pelo alagamento dos reservatórios, ora as que sobraram na área não têm eletricidade. É uma política que ignora o alto impacto das megausinas e as demandas dos movimentos sociais. Ao falar de energias renováveis descentralizadas, essas unidades atenderão à rede, mas também ao entorno com eólica, solar, pequenas centrais hidroelétricas e biomassa. Com energia limpa, essas comunidades podem se desenvolver com mais sustentabilidade.
DV – Produzindo o quê?
Marcelo Furtado – Os empregos que quisermos para o futuro. Uma nova refinaria de petróleo ou uma nova siderúrgica a carvão é o que o Brasil quer? Ela vai gerar 9 mil empregos? Mas esses empregos existirão em 10, 20 anos?
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Novos estudos sobre empregos verdes apontam claramente que as indústrias e tecnologias de baixo carbono empregam duas vezes mais que as fontes sujas. Está nas mãos dos sindicatos e dos movimentos sociais influenciar essa agenda. Quando o governo diz que vai investir em uma nova refinaria, uma usina nuclear ou um projeto de siderurgia, ele usa o dinheiro público para alavancar esses projetos – ou com renúncia fiscal ou com investimento público direto – indicando que é esse o futuro que o Brasil almeja.
DV – Não é esse o futuro do Brasil?
Marcelo Furtado – Perante o desafio das mudanças climáticas, não. Existe um período de transição pelo qual todos os países passarão, mas esse não é o futuro. Essa transição será mais ou menos dolorosa de acordo com o preparo das redes de segurança social que os países têm hoje. A proposta para a matriz energética brasileira é de projetos menores, de menor impacto ambiental, com tecnologias diversificadas, sem energia nuclear, sem carvão, sem diesel. Em vez de gastar R$ 8 bilhões para fazer uma usina nuclear nova no Rio de Janeiro que produza 1.200 MW por hora, eu faria uma Itaipu de vento no Nordeste, onde a luta pela melhoria da educação, pobreza e empregabilidade poderia ser positivamente impactada. Esse parque eólico no Nordeste produziria mais energia, pelo mesmo valor ou menos. A região torna-se um pólo, com uma indústria muito mais sofisticada, limpa e sustentável, com mais empregos qualificados de longo prazo.
DV – Investimentos em obras de vulto como o pré-sal não fornecem essa qualificação e crescimento?
Marcelo Furtado – O pré-sal é um bom exemplo. A discussão ambiental não existia. Só se discutia o que fazer com os royalties e acreditava-se que, com esse volume de recursos, os problemas sociais do país seriam resolvidos. Na verdade, quando o Brasil estiver trabalhando de forma madura com essas reservas, o país já terá metas obrigatórias de corte da emissão de gases do efeito estufa, pois, entre 2020 e 2025, todos os países ricos ou pobres estarão no mesmo barco. Tendo essa perspectiva em vista, os recursos prometidos para a área social serão aplicados em longo prazo? O desafio social é meramente resolvido com recursos adicionais? Ou ele passa pela velha discussão não resolvida da distribuição interna de renda? E se, devido ao paradigma climático no futuro próximo, tivermos de abandonar os combustíveis fósseis para salvar o planeta? Não se trata de ter ou não petróleo, mas sim se poderemos ou não o queimar. Não existe mais espaço para pequenas vitórias. Precisamos mudar o padrão de de-
Marcelo Furtado
senvolvimento, gerar os empregos, a energia e a renda que o Brasil precisa, mas de maneira justa e limpa. Essa é, indiscutivelmente, uma agenda de país. Ela nos força a discutir e refletir exatamente que nação queremos em 2020, 2030 e 2050.
DV – O que é fundamental nessa agenda?
sar de recursos, ele deve ter a quem recorrer e obter um direcionamento para uma realidade voltada a esse desafio. No quesito ambiental, os pequenos podem causar grandes danos, mas ao mesmo tempo podem ser os agentes fundamentais da transformação e um ponto de oportunidade de se unir o debate ambiental com o social.
DV – Quais serão os impactos das mudanças do clima no campo?
Marcelo Furtado – Muitas pessoas olham esses investimentos com um olhar sobre o presente, não sobre o futuro. Um dos pleitos que temos é o mapa de vulnerabilidades do país. É uma ferramenta fundamental para qualquer governante pensar em política de desenvolvimento social. Ele ajuda a responder duas perguntas fundamentais: onde haverá comida e onde haverá água? Quando se pensa onde colocar um pólo industrial, escolas, hospitais, onde crescerão os centros urbanos, é preciso saber quais são as áreas mais e menos afetadas pelas mudanças climáticas. Hoje mesmo já sofremos com isso. No semi-árido, existe um processo de desertificação acontecendo que tende a se agravar. Como sociedade, a gente tem a responsabilidade de encontrar alternativas para essa comunidade, e não adensar mais uma região sabidamente desafiadora.
Marcelo Furtado – Haverá mudança de local de áreas produtivas e alguns cultivares não vão sobreviver a alterações na temperatura. Por outro lado, mudanças serão requeridas do ponto de vista de tecnologia. Um exemplo é o fim da queima de cana e o desafio social que isso representa para o trabalhador, pois a mecanização é indubitável e um compromisso legal estipulado por lei. Situações como essa, seja na indústria da cana, da soja, da pecuária, vão acontecer em todo o leque do agronegócio. Isso vai acontecer em um Brasil que convive ainda com denúncia de mão-de-obra escrava, com desmatamento ilegal, violência agrária e impunidade.
Marcelo Furtado – O setor produtivo exportador é o primeiro a dar sinais que começou a entender que, se o Brasil não se adequar a uma nova realidade de produzir com baixo carbono, fica fora da competição econômica. Mas os produtores brasileiros, em geral, ignoram essa questão. Ou a gente muda esse setor ou a gente não sobrevive. O que está em jogo é uma questão de vida ou morte, de sobrevivência da sociedade, da indústria e de seus próprios agricultores. A maneira radicalizada que a bancada ruralista coloca a questão ignora, por exemplo, o fato de que, sem a Amazônia, não haverá água para a agricultura brasileira. A maior parte dos agricultores deste país ainda não entendeu essa ligação tão simples.
Marcelo Furtado – Quando a gente fala de reforma agrária, uso do solo e desenvolvimento de melhores tecnologias para o setor, não falamos que não se pode discutir ao mesmo tempo acesso à terra, condenação de grilagem e de ilegalidade. Isso tem de ser feito ao mesmo tempo. Precisamos estabelecer um diálogo e colocar esta como uma pauta política fundamental. O governo, quando fala de reforma agrária, fez seu movimento justamente na parte do país onde há menor governança e maior impunidade: a Amazônia. Quando essas agendas – a ambiental e a social – parecem tensionadas, no fundo, elas devem ser trabalhadas em conjunto. Esses aparentes silos deram a impressão de que a gente não poderia juntar as forças para confrontar a não ação do governo, do Parlamento, do setor produtivo.
DV – Uma das lições de casa a ser feita é controlar o desmatamento. Ele não é um processo inerente ao crescimento?
DV – O mesmo vale para os(as) pequenos(as) agricultores(as)?
Marcelo Furtado – Quando a gente diz agronegócio, não se trata apenas dos 25% de grandes propriedades. Trata-se, também, dos 75% da agricultura familiar. As decisões desse grupo terão um forte impacto na nossa capacidade de reação ao desafio das mudanças climáticas. As políticas que forem estabelecidas para a agricultura familiar não podem contribuir para piorar o problema, e sim devem solucioná-lo. Porque, quando o agricultor familiar preci-
DV – Assentamentos figuram entre vetores de desmatamento na Amazônia. Como encaixar a demanda pela terra e a demanda ambiental?
DV – Há uma agenda de Justiça Socioambiental?
Marcelo Furtado – Desenvolver uma agenda comum é o único caminho. A pergunta é quando. Diz-se que, como não podemos mudar a ciência, mudemos os políticos. Nesse caso, mudemos nossos padrões de comportamento. A iniciativa da revista do Ibase, de trazer o assunto com a ótica social, é fundamental. A ciência também nos coloca o imperativo de que precisamos mudar nossas cabeças e aprender
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MAT É RIA Diego Santos
Crise ambiental,
sociedade civil brasileira faz Há mais de 20 anos, as questões ambientais vêm tomando a pauta do dia. Em todo o mundo, milhares de organizações, conferências, seminários, estudos e teses foram criados a fim de garantir um bom futuro para o planeta. Mudanças climáticas, escassez de recursos e desmatamento, esses e outros temas tornaram-se motivos de políticas públicas, acordos internacionais e protocolos. Do fim da década de 1980, por exemplo, podemos listar uma série de fatos e processos que marcaram um período de intensas interações entre diferentes segmentos organizados da sociedade civil brasileira, nas vertentes sociais e ambientais, como o processo de formulação e aprovação dos direitos sociais coletivos e do meio ambiente na Constituição Federal de 1988. Outro evento que ganhou destaque foi a campanha da Aliança dos Povos da Floresta, em 1989 – liderada pelo seringueiro
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e ambientalista Chico Mendes. Nesse mesmo ano, foi realizado o Encontro dos Índios, em Altamira, no Pará, para protestar contra um grande plano oficial de aproveitamento hidrelétrico da Bacia do rio Xingu. Nesse cenário, fez-se necessária a criação de instituições que pudessem avaliar, pesquisar e até mesmo cobrar a criação de políticas ambientais. Em 1990, era criado o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS), em uma sala da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). O FBOMS nasceu com o objetivo de facilitar a participação da sociedade civil no processo da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida por ECO 92. Durante esse processo. foi estabelecida a Agenda 21, um programa de ação baseado em um documento de 40 capítulos, que constitui uma ousada e abrangente tentativa para promover, em escala planetária, um novo padrão de desenvolvimento, conciliando métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica. Para a criação do documento contribuíram governos e instituições da sociedade civil de 179 países em um processo preparatório que durou dois anos e culminou com a realização da ECO 92, no Rio de Janeiro. O evento que, por sua vez, marcou a história, com alianças estabelecidas e acordos realizados, foi o pontapé inicial para uma reflexão mais profunda sobre a temática ambiental no Brasil e no mundo.
Rede cidadã De lá para cá muito foi se modificando, as preocupações foram aumentando e a quantidade de instituições trabalhando em prol do meio ambiente cresceu consideravelmente. Em levantamento realizado neste ano, a Análise Editorial concluiu que existem no Brasil cerca de 276 mil ONGs, das quais 1.656 atuam na proteção ao meio ambiente e cerca de 130 estão instaladas na Amazônia e no Pantanal. Segundo a pesquisa, as ações estão centralizadas na construção de uma consciência crítica da população e a transformação de suas ações em políticas públicas. Os temas defendidos por essas organizações variam desde as florestas até os oceanos. Espalhadas de
Norte a Sul do país, as ONGs têm se dedicado a diminuir, por meio de ações e cobrança por políticas públicas, os impactos das mudanças climáticas e dos desgastes ambientais. Presente no Brasil desde 1992, o Greenpeace está em mais de 40 países. De acordo com informações colhidas no site institucional, procura atuar em defesa do meio ambiente e concentra os esforços de suas ações para “inspirar as pessoas a mudarem de atitudes e comportamentos”. A ONG também defende soluções economicamente viáveis e socialmente justas, que ofereçam esperança para “esta e para as futuras gerações.” Criado em 1994, o Instituto Socioambiental (ISA) é uma organização da sociedade civil de interesse público (oscip) desde 2001 e incorporou o patrimônio do Programa Povos Indígenas no Brasil do Centro Ecumênico de Documentação e Informação(PIB/Cedi) e o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) de Brasília. O ISA procura defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos por meio de campanhas e pesquisas e tem escritórios em seis estados do país. Enquanto isso, em Bauru, São Paulo, era criado o Instituto Ambiental Vidágua, com o objetivo principal de articular a sociedade civil na defesa do meio ambiente. O instituto desenvolve programas de proteção ambiental, realiza estudos, pesquisas, projetos, planos e obras de abrangência regional e nacional, para promover ou incentivar a recuperação dos recursos hídricos; promover cursos, palestras, ciclos de debates e publicações a fim de proporcionar educação ambiental ao público. Uma das inciativas do Vidágua é o programa radiofônico “Atitude”, que aborda as principais temáticas ambientais de forma interativa, lúdica e explicativa. Já foram abordados temas como educação ambiental, água, lixo e vegetação. O programa é realizado em parceria com a rádio Unesp FM, da Universidade Estadual Paulista. Partindo para Fortaleza, em 1999, surgia a Associação Alternativa TerrAzul, que desenvolve ações socioambientais nos âmbitos local, regional, nacional e internacional, por meio de parcerias e participação em redes, como o FBOMS. Atualmente, a organização tem dado ênfase a temas como Agenda 21, Juventude, Economia Solidária, trabalhando a
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matéria
questão do consumo consciente, integração dos povos e clima. A instituição também mantém a Escola de Formação da Juventude, que vem ampliando o debate sobre meio ambiente, em especial sobre as mudanças climáticas, discutindo as causas e consequências e buscando ações que levem à mitigação e à redução dos danos e à construção de alternativas, além de integrar a Campanha internacional das Mudanças Climáticas, por meio do FBOMS, no Grupo de Trabalho sobre o Clima. Além dessas instituições, existem muitas outras que, por questões de espaço, não puderam ser citadas aqui, mas que têm contribuído muito no debate sobre os direitos humanos ambientais e a preservação do planeta. Passeando pelas páginas desta edição, você poderá conhecer algumas iniciativas e/ ou reflexões de representantes de organizações fundamentais nessa luta, como a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase); Vitae Civilis Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz; Rede Brasileira de Justiça Ambiental; Observatório Nacional de Clima e Saúde, uma parceria do Inpe e da Fundação Oswaldo Cruz; e Avaaz Brasil, entre outras. O próprio Ibase também vem investindo na defesa da justiça socioambiental, desde sua fundação, em 1981, seja por meio de projetos específicos, seja dando ênfase à questão em todos os seus outros projetos de forma transversal. Um destaque dentre essas iniciativas foi ter garantido a comunicação ao público participante durante a ECO 92, disponibilizando acesso à Internet, por meio do primeiro provedor da sociedade civil organizada, o AlternNex. E, como um dos principais fomentadores e organizadores do processo Fórum Social Mundial, a partir de 2001.
COP 15 Este ano, será realizada a décima quinta Conferência das Partes (COP15) e representantes de cerca de 200 países estarão em Copenhague (Dinamarca), de 7 a 18 de dezembro. A primeira Conferência das Partes foi realizada em Berlim, na Alemanha, no ano de 1995, quando foi decidida a criação, até 1997, de um protocolo com metas para a redução de emissões. A reunião da ONU ocorreu em Kyoto, no Japão, e lá surgiu, então, o Protocolo de
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Onde encontrar? www.vitaecivilis.org.br www.fase.org.br www.greenpeace.org.br www.avaaz.org.br www.terrazulç.m024.net www.vidagua.org.br www.socioambiental.org www.justicaambiental.org.br www.fboms.org.br www.ibase.br
Kyoto – compromisso estabelecido pelos países que assinaram a Convenção da ONU sobre Mudança do Clima de reduzirem, de 2008 a 2012, suas emissões poluentes em pelo menos 5% em relação aos níveis verificados em 1990. Estamos no segundo ano de vigência do Protocolo de Kyoto e o mundo agora discute o que fazer depois dele, a partir de 2012. O mapa do caminho foi traçado em 2007 na COP 13, realizada em Bali (Indonésia) e, agora, os países voltam a se reunir, desta vez em Copenhague, para discutir o acordo global que vai suceder o protocolo. Na pauta de debate estão o estabelecimento de metas mais rígidas de redução das emissões de gases do efeito estufa, além das bases para um esforço global de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. E é necessário que se estabeleça um plano de ações eficaz para que se garanta um bom futuro para a nação. Em decorrência disso, é muito importante que os trabalhos gerados a partir da discussão pública e da inciativa de ONGs possam realmente incidir no debate público a fim de garantir o estabelecimento de metas concretas e possíveis. Todas essas negociações na COP 15 são importantes para que as nações tenham iniciativas para minimizar as consequências geradas pela degradação ambiental produzida por séculos, dispondo de recursos e tecnologias a serviço de todas as pessoas. Nelas se discutem as causas, os impactos e as alternativas envolvendo cientistas, Estado e a sociedade civil organizada.
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Crônica Olá Alcione! Acompanho na revista Democracia Viva suas crônicas e, além de adorá-las, as aguardo ansioso. Leio-as para meus amigos e amigas que vêm até minha casa. Quero deixar uma sugestão de tema para uma crônica futura: a questão habitacional (mais especificamente, o déficit habitacional), pessoas que não têm casa. Ivanio Dickmann Centro de Assessoria em Educação Popular, Cooperativismo e Economia Solidária (Habesol)/RS
DV 42 Senhora diretora responsável, acuso o recebimento e agradeço a gentileza da remessa do exemplar da edição a seguir enunciada do informativo Democracia Viva e felicito a instituição pela qualidade da publicação (nº 42, maio de 2009). Com as expressões do nosso apreço. Maurício Azêdo Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)/ RJ
DV 41 Recebi aqui, no Iser um exemplar da revista, que li e gostei muito, especialmente dos textos sobre Obama, Araguaia-Tocantins (comecei a ler a publicação por causa desse artigo), Amazônia, Chico Mendes, a maravilhosa e desafiadora entrevista do Raimundo Pereira etc. Parabéns pela revista e pela militância de vocês pela justiça e dignidade humanas. Clemir Fernandes Instituto de Estudos da Religião – Iser/RJ
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Cândido Grzyboswski. Estamos organizando uma seleção de textos – “Fontes históricas de uma pedagogia latino-americana” – e queremos incluir também os povos da floresta. O livro está disponível para a distribuição nas livrarias ou tem de ser diretamente com vocês? Se for o último caso, aguardamos orientações para saber como proceder. Telmo Adams Unisinos/ Ciências Humanas – PPPG Educação/RS
Resposta da redação: a edição do livro está esgotada, enviaremos uma cópia. O áudio da entrevista está disponível em <www.radiotube. org.br>
Saudações Gostaria de congratular a todos os que participam da elaboração da revista Democracia Viva. Realmente, publica informações de qualidade e sobre os temas socioambientais mais atuais. Aproveito este e-mail para solicitar a mudança do meu endereço de correspondência para receber a revista. Saudações e longa vida para esta maravilhosa publicação. Edson Cunha, geólogo/RJ
Saudações II Em nome do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), gostaria de acusar o recebimento e agradecer o envio de exemplar da revista Democracia Viva, nº 42, do Ibase. Aproveito a oportunidade para renovar nossos cordiais protestos de estima e consideração a essa entidade.
Nota da redação
Recebemos, com muita satisfação, o número 41 (janeiro – 2009) da publicação Democracia Viva, pelo qual muito agradecemos. O fascículo foi imediatamente incorporado ao acervo e encontra-se disponível para todos os usuários de nossa biblioteca. Reafirmamos nosso interesse em continuar recebendo os próximos fascículos publicados.
Agradecemos ao público leitor por todas as mensagens e todos os artigos recebidos no endereço eletrônico da revista e no Portal do Ibase. Informamos que os textos serão avaliados e, se possível, publicados. Lembramos que também é possível fazer comentários, enviar sugestões e ler o conteúdo da revista no orkut. Esperamos que esse possa se tornar mais um espaço de troca e estreitamento de nosso contato com vocês. Agradecemos, também, por todas as cartas enviadas, informando que, de acordo com a necessidade editorial, essas serão publicadas com cortes. Esperamos que vocês continuem colaborando com a revista Democracia Viva: escrevam, opinem, critiquem, mantenham contato! <democraciaviva@cidadania.org.br>
Unifieo – Centro Universitário Fieo / Fundação Instituto de Ensino para Osasco Biblioteca/ Setor de Periódicos/SP
O homem da floresta Na edição nº 41, p. 44, tem um artigo intitulado “O testemunho do homem da floresta”, com base em depoimento histórico de Chico Mendes. Gostaríamos de receber o livro organizado por
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a cidadania e com a democracia. Democracia Viva não se alinha com partidos nem religiões, mas toma partido desde que
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e aberta, parte do compromisso radical com
DEMOCRACIA
A agenda da revista Democracia Viva é ampla
esteja em jogo a possibilidade de aprofundar a democracia. Não disputa poder, mas quer exercer um papel de vigilância, monitoramento e avaliação; com toda autonomia e independência, das políticas públicas e das ações governamentais, bem como das práticas empresariais e das relações econômico-financeiras. Quer ser ativa como interpeladora de consciências e vontades, questionando práticas e valores que limitam a democracia, estimulando a participação cidadã. Sua qualidade é a força das reflexões, análises,
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propostas e dos argumentos.