abertura 29/04 | a partir das 14h visitação 29/04 a 27/05 | seg à sex
|
14h às 19h
rua gonzaga duque, 148 vila pompeia, são paulo - sp
No ensaio Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas, Otília e Paulo Arantes estabeleceram um argumento importante a respeito da experiência de Brasília. Em oposição ao discurso que minimizava os descompassos entre a racionalidade pretendida pelos arquitetos e a base social e produtiva brasileira, os autores afirmam categoricamente que estas incongruências não eram equívocos sem maior significado e que foram justamente as condições de exploração do trabalho da periferia do capitalismo que permitiram que o projeto moderno se desenrolasse ao pé da letra. De qualquer forma, foram necessárias mais de duas décadas desde a inauguração de Brasília para que suas violentas condições de produção, absolutamente compatíveis com a definição contemporânea de trabalho análogo ao escravo – viessem à tona em trabalhos como o livro Construtores de Brasília, da socióloga Nair Bicalho de Souza (1983) ou o filme Conterrâneos velhos de Guerra, de Vladimir Carvalho (1991). Este longo silêncio nos obriga a olhar criticamente para a historiografia da arquitetura e nos faz supor que a permanência dessas condições de trabalho na contemporaneidade esteja relacionada ao seu devido apagamento.1 Pouquíssimos autores denunciaram este silêncio a respeito das circunstâncias produtivas da arquitetura. No contexto brasileiro, um dos poucos a considerar a importância deste debate foi Sérgio Ferro, que chegou a propor o que seria, segundo ele, uma história da arquitetura vista a partir do canteiro: “uma história de suas adaptações às diferentes etapas da exploração da força de trabalho pelo capital, mediada pela função de construção dentro da economia política”. Seu interesse, portanto, seria o de investigar como, em diferentes épocas, esta contradição se manifestou, deixando de lado a história convencional, “que se ocupa da passagem de arquiteto a arquiteto, de corrente a corrente, de estilo a estilo”. 2 As contribuições de Ferro, se levadas a sério, poderiam nos fazer avançar no sentido de pensar uma outra historiografia, que além da história do canteiro, também poderia se ocupar daquilo que poderíamos definir como um “processo de mediação de poderes, saberes e desejos” que se dá permanentemente – de forma mais ou menos evidente, embora sempre assimétrica – entre arquitetos, construtores e usuários ao longo de todas as etapas relacionadas à concepção, construção e apropriação de qualquer objeto arquitetônico. Trata-se, portanto, de uma história que assumiria como objeto prioritário de análise o próprio processo que originou a arquitetura, num contraponto direto à história corrente, que parte da arquitetura enquanto forma, – com toda a mistificação, “representação”, ou “ideologia” que este termo permite embutir. Essa outra historiografia deve ser experimentada não apenas para romper com o silêncio a respeito das violentas condições de produção da arquitetura, mas também para confrontar essa mesma arquitetura com experiências críticas ou alternativas onde são experimentados agenciamentos singulares entre os saberes/poderes de arquitetos, construtores e usuários. Não por acaso, essas experiências são frequentemente esquecidas pela história hegêmonica da arquitetura – e quando abordadas, têm sua potência diluída na medida em que a dimensão “participativa” ou “processual” que as singulariza é invisibilizada em favor da forma. Nesse sentido, devemos celebrar enormemente a disposição do Ateliê397 de apresentar, para um público mais amplo, algumas dessas experiências críticas e alternativas pioneiras, com uma ênfase especial no encontro dos arquitetos com os movimentos populares, cuja interação inaugura uma prática política da arquitetura no Brasil.
Ícaro Vilaça Curador 1
ARANTES, Otília; ARANTES, Paulo. Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. p. 88-90 2
FERRO, Sérgio. A história da arquitetura vista através do canteiro: três aulas de Sérgio Ferro. São Paulo: GFAU, 2010. p. 21
FORM, PROCESS AND POLITICAL PRACTICE Critical and alternative experiences in Brazilian architecture In the essay ‘Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas’ [A blind spot in Jürgen Habermas’ modern project: architecture and aesthetic dimension after the avant-garde], Otília and Paulo Arantes established an important argument regarding the experience of Brasília. In opposition to the discourse that minimized the mismatches between the rationality intended by the architects and the Brazilian social and productive base, the authors categorically affirm that these incongruities were not equivocations without greater meaning and that they were the very conditions of exploitation of the workers of the periphery of capitalism that allowed the modern project to develop successfully. 1 In any case, it took more than two decades since the inauguration of Brasília so that its violent conditions of production – absolutely compatible with the contemporary definition of labor analogous to slavery – came to the light in works such as the book ‘Construtores de Brasília’ by sociologist Nair Bicalho de Souza (1983) or Vladimir Carvalho’s (1991) ‘Conterrâneos velhos de Guerra’. This long silence forces us to look critically at the historiography of architecture and makes us suppose that the permanence of these working conditions in contemporaneity is related with its due erasure. Very few authors have denounced this silence regarding the productive circumstances of architecture. In the Brazilian context, one of the few to consider the importance of this debate was Sérgio Ferro, who came to propose what would be, according to him, an history of architecture seen from the building site: “an history of its adaptations to the different stages of the exploration of labor force by capital, mediated by the function of construction within the political economy.” His interest, therefore, would be to investigate how, at different times, this contradiction manifested itself, leaving aside conventional history, “which deals with the transition from architect to architect, from current to current, from style to style.” 2 Ferro’s contributions, if taken seriously, could lead us to think about ‘another historiography’, which besides the history of the building site could also deal with what we could define as a “process of mediation of powers, knowledge and desires” that is given permanently – more or less evident, albeit always asymmetrical – between architects, builders and users along all stages related to the design, construction and appropriation of any architectural object. It is, therefore, a history that would assume as a priority object of analysis the process that originated architecture, in a direct counterpoint to current history, that takes architecture as form, – with all the mystification, “representation,” or “ideology” that this term allows to embed. This ‘other historiography’ must be experienced not only to break the silence about the violent conditions of production of the architecture, but also to confront the same architecture with critical or alternative experiences where singular arrangements between knowledges and powers of architects, builders, and users. It is not by chance that such experiences are often overlooked by the hegemonic history of architecture – and when they are remembered, their power is often diluted when the “participatory” or “procedural” dimension that singularizes them is invisibilized in favor of form. In this sense, we should greatly celebrate the Atelier397 willingness to present to a wider audience some of these pioneering critical and alternatives experiences, with a special emphasis on the meeting of architects with popular movements, whose interaction inaugurates a ‘political practice’ of architecture in Brazil. Ícaro Vilaça Curator Imagem no verso: Canteiro de obras do Mutirão Cinco de Dezembro (Suzano - SP). Foto de Jeroen Stevens.