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do editor Viajo muito menos
Morvan França
do que gostaria. Talvez um pouco mais do que a maior parte das pessoas. Mas sempre que viajo, mesmo em férias, por mania de ofício, levo caneta e caderno, fazendo pequenas reportagens privadas que serão utilizadas mais adiante. Gosto de dividir com os outros o que vejo, embora às vezes sinta um ímpeto egoísta de não revelar para ninguém aquele cantinho especial e pouco conhecido, temeroso de que tudo mude quando eu voltar uma outra vez. Pensamento passageiro. Acabo contando tudo aos quatro ventos. Tenho hábito de me mover, sem objetivo nenhum. Desde a infância. Por essa falta de objetivo concreto, ao tomar carro, ônibus, barco, avião, identifico-me com o escritor e viajante Robert Louis Stevenson, que uma vez escreveu: “Eu não viajo para ir a algum lugar, mas para ir. A grande emoção é se mover”. Tantas experiências de viagens geraram reportagens, contos, crônicas, poemas, livros e entrevistas, culminando na aguçada sugestão do escritor Diogenes da Cunha Lima: “Por que não edita uma preciosa revista nordestina de turismo e cultura, Nahud? Nós estamos precisando”. Realmente, há um vácuo nessa área no momento. Apesar da tradição, as tentativas de criar uma revista de turismo e/ou cultura no Rio Grande do Norte falharam, não conseguiam manter-se no mercado. Resolvi apostar na ideia, partindo para a pesquisa de mercado e a seleção de profissionais hábeis. Nossa revista não será somente sobre turismo potiguar, mas sim uma revista potiguar de turismo, que lançará um olhar a partir do nosso estado para os diversos temas e manifestações vinculados a esse universo. Dentro dessa motivação, surge ÍCONE - Turismo & Cultura no Nordeste, um veículo de ideias em movimento, criativa, escancaradamente nordestina, sem ranços de regionalismos nem cosmopolitismos fáceis. Mas, sobretudo, querendo conhecer-se e expandir-se no que lhe é próprio, sem esquecerse de privilegiar o novo e o inédito. Visa potencializar e fomentar o turismo no Rio Grande do Norte e nos outros estados nordestinos, nos seus vários segmentos: cultural, artístico, histórico, religioso, gastronômico, científico, regional etc. Nasce assim esta publicação exuberante e modesta. A cada três meses, o leitor acompanhará uma seleção de reportagens, ensaios fotográficos e artigos que refletirão a beleza, a arte e os costumes nordestinos, do mar ao sertão, de montanhas, rios e cavernas. Além do conteúdo farto e da abordagem fundamentada, a nossa revista aposta num projeto gráfico arrojado e de alta qualidade. Espero que aprecie, colecionando-a. Boa leitura!
Antonio Nahud Editor novembro 2013
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mais do que mil palavras Morvan Franรงa
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trupe redação
andressa vieira Nascida em Fortaleza, no Ceará, há uma década foi adotada pelo RN. É jornalista e pesquisadora da área de Comunicação, além de editar um blog sobre cultura e artes.
arte
administração
milton vieira
anna cláudia barros Paraibana de João Pessoa. Advogada, administradora e engenheira de marketing cultural.
fotografia
Natural de Campinas (SP). Designer gráfico, graduado em Propaganda & Marketing, atuando no mercado publicitário potiguar há 13 anos.
morvan frança
Mineiro de Belo Horizonte, vive em Natal desde 2010. Fotógrafo, foi premiado com o Troféu Cultura de melhor exposição de 2012 com “A Face Oculta”.
produção
yanna medeiros Potiguar, produtora executiva de cultura e assessora técnica da FUNCARTE (Fundação Capitania das Artes). Produz a “Semana da Música” da UFRN.
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comercial lívia rangel
Veio de Dracena, São Paulo. Mora em Pipa. Turismóloga e pós-graduada em Planejamento e Gestão de Eventos. Atua na área de vendas na multinacional Mary Kay, em consultoria e hotelaria.
revisão
andreia braz
De Garanhuns, Pernambuco. Formada em Turismo, está concluindo o Curso de Letras - Língua Portuguesa (UFRN) e é revisora de textos.
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roteiro
Viaje POR NOSSAS PÁGINAS
Nossa Capa: “Árvore do Amor”, foto de Morvan França
PAPO-CABEÇA Para o professor, advogado, escritor e poeta Diogenes da Cunha Lima, Natal é o centro do mundo. MUNDO VEGETAL Os indígenas de fala tupi, habitantes do nordeste do Brasil, conheciam muito bem o caju e faziam dele um de seus mais completos e importantes alimentos.
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AS SETE MARAVILHAS Um casarão centenário no centro histórico da capital potiguar
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É PRA LÁ QUE EU VOU São Miguel do Gostoso, o “melhor novo destino” do litoral nordestino.
ILUSTRES Clara Camarão, a primeira heroína do Brasil. QUEM VEIO DE LONGE A arte-educadora paulistana Paula Braz morou em Natal por 10 anos. Saiba sobre sua vivência nordestina.
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À MESA: Creperia Sobradinho. Boa comida e cultura.
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CÊNICAS O grupo teatral Clowns de Shakespeare surgiu no ambiente escolar e já contabiliza vinte anos de história. CAPA Árvore do Amor. Uma das mais belas paisagens da imensidão do mar e do Cabo de São Roque.
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LAMBE-LAMBE O sertanista Oswaldo Lamartine e o fotógrafo Morvan França traduzem em imagens essa imensidão onde o sol reina. À MODA DA CASA A dança folclórica do Bumba Meu Boi.
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NA PONTA DA LÍNGUA A cidade fictícia da novela das seis da Rede Globo foi constituída a partir da junção de praias, lagoas, dunas e falésias da costa norte-rio-grandense.
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FUNDO DO BAÚ Posição geográfica da capital potiguar atraiu tropas norte-americanas em 1942.
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BOSSA Após inúmeros shows em bares e palcos de Natal, a cantora Lígia França partiu de mala e cuia para a Itália, onde mora há 18 anos.
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ALMANAQUE Segundo Antônio Houaiss, publicação popular e indispensável durante muitas décadas.
Ano I - No 1 - Novembro’13 a Janeiro’14 Endereço
Rua da Misericórdia, 679 - Cidade Alta, Natal, RN - Cep 59025-470 Telefone
(84) 9641.2705 / (84) 8806-7523 Contato E-mail: iconenordeste@gmail.com Facebook /revistaiconeturismoecultura
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Leia on-line www.iconenordeste.com
CABECEIRA NORDESTINA O poeta alagoano José Inácio Vieira de Melo destaca a importância da trilogia “Os Peãs”, de Gerardo Mello Mourão.
Editor/Jornalista Responsável
Antonio Nahud - DRT/Ba 330
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À LA VERNE A jornalista Sheyla Azevedo conta sua primeira viagem ao sul do Brasil, mais exatamente em Santa Catarina.
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DOSSIÊ Cidade de patrimônio histórico-cultural riquíssimo, que já foi a maior produtora de cana-de-açúcar do Rio Grande do Norte, hoje comporta um aglomerado de engenhos descuidados e casarões desabitados. MOLESKINE A profundidade e a beleza da religiosidade popular traduzidas pelo olhar do fotógrafo mineiro, radicado na Bahia, Ricardo Prado. VISUAIS Newton Navarro, pintor, desenhista e ícone das artes visuais do Rio Grande do Norte.
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JOGO RÁPIDO O historiador e antropólogo Luís da Câmara Cascudo descreve suas impressões sobre Natal, a Noiva do Sol.
Administração/Financeiro
Ana Cláudia Bezerra Barros Redação
Andressa Vieira Fotografia
Morvan França Projeto Gráfico, Edição de Arte e Diagramação
Milton Vieira Comercial
Lívia Ferreira Rangel e Liliane Medeiros Machado Produção
Yanna Medeiros Revisão
Andreia Braz Arte-final
Gleyson Miranda Auxiliar Administrativo
Rivaldo Júnior Participações Especiais
Diogenes da Cunha Lima, Dorian Gray Caldas, José Inácio Vieira de Melo, Leila de Melo, Luís da Câmara Cascudo, Newton Navarro, Oswaldo Lamartine, Pablo Pinheiro, Paula Braz, Reinaldo Nunes, Ricardo Prado e Sheyla Azevedo Impressão
Offset Gráfica Tiragem
10.000 exemplares Conselho Editorial
Agnelo Alves Clotilde Tavares Diogenes da Cunha Lima François Silvestre
Heráclito Noé Iaperi Araújo Valério Mesquita Vicente Serejo
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. O conteúdo dos anúncios é de responsabilidade dos respectivos anunciantes. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos autores.
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mundo vegetal
Antonio Nahud
Os indígenas
de fala tupi, habitantes do nordeste do Brasil, conheciam muito bem o caju e faziam dele um dos seus mais completos e importantes alimentos. Deve-se, inclusive, aos indígenas o seu nome: a palavra acaiu, de origem tupi, quer dizer “noz que se produz”. Originário das regiões costeiras do Norte e Nordeste do Brasil, o cajueiro (Anacardium Occidentale) tem motivado o entusiasmo de muitos autores, desde o francês André Thevet, no século XVI, numa constante enunciação de seus prodígios. Jean de Léry, Pero Magalhães de Gandavo, José de Anchieta, Simão de Vasconcelos, entre outros, em crônicas de viagem, fizeram do cajueiro um personagem de lenda, culminando, referências ou estudos, em tempos mais recentes, à voz categorizada de um Gilberto Freyre. O caju está presente na literatura, na poesia, nos ditados populares, na fala, nos jogos infantis, nas crendices, nos costumes, no folclore, na medicina e no mobiliário e, é claro, na dieta alimentar, na culinária e na doçaria brasileira, especialmente, nordestina. São conhecidas cerca de vinte variedades de caju. Sua colheita é realizada de setembro a janeiro. Considerado muitas vezes como o fruto do cajueiro, embora seja um pseudofruto, o caju é constituído de duas partes: a castanha, que é a fruta propriamente dita, e o pedúnculo floral, piriforme, carnoso, amarelo, rosado ou vermelho. Além de ser consumido natural, pode ser utilizado na preparação de sucos, mel, doces, passas, sorvetes, licores, vinhos, xaropes e vinagres. A castanha, depois de torrada, é utilizada como petisco, sendo exportada para quase todo mundo. Já a castanha verde, é usada em pratos quentes. Depois de extraído o suco, sobra o bagaço do caju, muito rico em celulose, que pode ser usado na cozinha como
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Esther Azevedo
nas famosas frigideiras nordestinas - uma variação de fritada. Após a espremedura tem a denominação de mocororó (no Ceará). Depois de fermentado e destilado, obtém-se a cajuína. Vários tipos de doces são feitos de caju, incluindo-se nos condimentos a amêndoa em forma de farinha (pilada) ou inteira. Da farinha, faz-se, ainda, o cauim, de receita indígena, afrodisíaco. Quando ainda verde, o caju é chamado de maturi e é muito usado na cozinha do Nordeste no preparo de picadinhos e refogados. As utilidades do cajueiro são muitas e, delas, uma das quais se beneficia a miúdo o sertanejo é a terapêutica. Rico em vitamina C e ferro, protege as células do sistema imunológico contra os danos dos radicais livres. Suas raízes têm função diurética; a casca presta-se à assepsia e é usada no tratamento de afta e infecções na garganta. As folhas novas do cajueiro, quando cozidas e colocadas sobre feridas, promovem sua cicatrização. Ao natural, o caju é excelente no combate ao reumatismo e eczemas de pele. E o óleo de castanhade-caju é considerado potente antisséptico, também indicado no combate a vermes intestinais. Árvore que pode atingir até 10m de altura, apresenta copa proporcional ao seu tamanho, arredondada, chegando a alcançar o solo. Tronco geralmente tortuoso e ramificado. Folhas róseas quando jovens, verdes posteriormente. Flores pequenas, branco-rosadas, perfumadas, surgindo de junho a novembro. Encontra condições ideais de cultivo no litoral do Nordeste. Um cajueiro com quatro anos pode produzir de 100 a 150 kg por ano. 0 Brasil é importante produtor e exportador da castanha-de-caju, destacando-se os estados do Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte. De maneira geral, a cajucultura é, hoje, uma atividade de grande relevância socioeconômica para o nosso Nordeste.
Considerado muitas vezes como o fruto do cajueiro, Embora seja um
pseudofruto,
o caju é constituído de duas partes: a castanha, QUE é a fruta propriamente dita, e o
PEDÚNCULO,
floral, piriforme, carnoso, amarelo, rosado ou vermelho. novembro 2013
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as sete maravilhas SOLAR
Bela Vista PULMテグ Andressa Vieira
CULTURAL DE NATAL
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Morvan Franテァa
O casarão centenário Solar Bela Vista, localizado no centro histórico da capital potiguar, hoje ocupa um importante papel na produção e difusão das manifestações artísticas do Estado
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as sete maravilhas
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Passeando
pelos arredores da Ribeira ou Cidade Alta, bairros históricos da cidade do Natal, é comum de se ver prédios portentosos e de arquitetura antiga, revelando serem peças-chave no resguardo da história da cidade, contudo, sem qualquer preservação. Em alguns, a pintura já deveria ter sido renovada há algum tempo. Em outros, as pichações causam desagrado ao olhar, ou o matagal começa a crescer, invadindo e depredando patrimônios do centro histórico da cidade. Felizmente, não é esse o caso do casarão de arquitetura modernista Solar Bela Vista, localizado na Cidade Alta, na Av. Luís da Câmara Cascudo, próximo à Capitania das Artes e à Casa Câmara Cascudo, onde funciona um centro de cultura e lazer. O palacete foi erguido em 1907, com o bjetivo de abrigar a família do Coronel Aureliano Medeiros e também ostentar a sua posição social na cidade. Como o proprietário era um importante comerciante de algodão, não foram poupados investimentos: o casarão era cheio de modernidades arquitetônicas para a época; metais, vidros, cristais, acabamentos foram trazidos da Europa, além do mobiliário, tapetes, lustres e porcelanas, que também foram importados do exterior. Após a morte de Aureliano Medeiros, em 1933, o casarão passou pelas mãos de vários proprietários. Em 1948, Sinval Duarte Pereira o transforma no Hotel Bela Vista, título que o lugar carrega até hoje. Após o empreendimento de Sinval Duarte fechar as portas, o Solar passa a ser usado como cortiço, abrigando dezenas de pessoas, até os anos 1980, quando o Serviço Social da Indústria (SESI/RN), do sistema FIERN, compra e restaura o casarão, a fim de transformá-lo em um centro de cultura e lazer da capital do Estado. Desde então, o prédio tem passado por constantes processos de cuidado e manutenção. Contudo, até meados de 2012, pouco ainda se escutava sobre o Solar Bela Vista. O lugar funcionava basicamente como Escola de Música e era alugado para casamentos, lançamentos literários e outros eventos socioculturais. Em maio do ano passado, a jornalista Dodora Guedes foi convidada para assumir a gerência do Solar Bela Vista, com a missão de “transformar o Solar”. A transformação consistia em fazer do lugar um polo de produção e difusão de cultura em Natal. Esse objetivo foi “um desafio e um recomeço de vida para mim”, revela Dodora Guedes, gerente do Solar, que, até assumir a ad-
Programação fixa do Solar Bela Vista • Solar Literário • 1ª quinta-feira de cada mês (18h) - Parceria com o coletivo de escritores e a editora Jovens Escribas, com o lançamento de livros.
ministração do espaço, atuava mais na área de Comunicação, tendo trabalhado inclusive como jornalista política em Brasília. O processo de ressignificação do papel do Solar Bela Vista para a cidade de Natal está diretamente relacionado com a nova percepção que os natalenses passam a ter do lugar em que vivem. Segundo Dodora, muitas pessoas que visitam o Solar, mesmo adultos, ficam encantadas com a arquitetura e as práticas que se realizam ali dentro, e admitem nunca terem entrado antes no casarão. Uma afirmação um tanto triste, considerando a constatação de que o natalense, em geral, não conhece mesmo a história da cidade. Hoje, o Solar conta com uma programação cultural fixa, que consiste em atividades semanais, programações pontuais, que incluem palestras, cursos e oficinas. “A gente começou com uma programação para estimular o hábito de as pessoas virem aqui”, explica Dodora, que, para a execução do plano, realizou parcerias com grupos das diversas áreas culturais já consolidados na cidade. Como exemplo, podemos citar a Escola de Música da UFRN, que é o parceiro para o Solar Bela Música (realizado na última terça-feira de cada mês), e o Cineclube Natal, instituição responsável pela curadoria do Cine Solar (realizado às terceiras sextasfeiras de cada mês), que consiste em sessões de exibição de filmes com discussão posterior, geralmente contando com a presença de um convidado para o debate. Além de música e cinema, as atividades fixas do Solar Bela Vista agregam as áreas de circo, literatura e teatro. O guia completo da programação fixa e gratuita pode ser encontrado no próprio Solar Bela Vista - Av. Luís da Câmara Cascudo, 417, Cidade Alta) ou através do site do SESI (www.rn.sesi.org.br).
• Solar Teatral • 1ª sexta-feira de cada mês (20h) - Parceria com a Rede Potiguar de Teatro, com a exibição de peças teatrais. • Clube do Jazz do Solar • 2ª sexta-feira de cada mês (20h) - Parceria com a EMUFRN, com a apresentação de grupos jazzistas de todo o estado. • Cine Solar • 3ª sexta-feira de cada mês (19h30) - Parceria do Cineclube de Natal com exibição de filmes temáticos, seguida de debates. • Roda de Choro do Solar • Última sexta-feira de cada mês (19h30) - Parceria com a Confraria do Choro de Natal, apresentação dos melhores músicos do gênero na cidade. • Solar Belo Samba • 1º sábado de cada mês (12h30) – Parceria com sambistas que atuam no centro da cidade; apresentação musical nos jardins do Solar. • Circo Solar • 3º Domingo de cada mês (16h30) - Uma parceria com grupos e artistas circenses que atuam no estado, proporcionando espetáculos diversos a cada mês, com curadoria do grupo Tropa Trupe.
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Localizado a 102 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte, o município de São Miguel do Gostoso está na boca dos mais descolados turistas e em alta na imprensa de todo o país. A Revista Veja o escolheu como o “melhor novo destino” do litoral nordestino, baseando-se nas belezas do local, no fluxo de investimentos e nas taxas de crescimento do movimento de turistas.
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é pra lá que eu vou Histórias pitorescas Segundo os moradores mais antigos, o nome insólito da tranquila e hospitaleira cidade potiguar surgiu de uma combinação de duas histórias pitorescas. A primeira diz respeito a um comerciante que sofria de uma doença mortal e prometeu a São Miguel Arcanjo que se fosse curado construiria uma capela para o santo. Graça concedida, a igreja foi erguida por volta de 1890; a segunda, fala de um morador que hospedava mascates de passagem pela região. Ele tinha o hábito de contar causos intercalados por gargalhadas longas e gostosas, tornando-se sua marca registrada e sendo por isso apelidado de “Seu Gostoso”. Os hóspedes, encantados, começaram a chamar o remoto povoado de São Miguel de Seu Gostoso. Com o passar do tempo, a junção do santo com o carismático nativo originou o nome que conhecemos hoje. Até 1994, São Miguel do Gostoso era uma vila de pescadores que pertencia ao município de Touros. Depois de sua emancipação, naquele ano, cresceu e hoje tem cerca de 10 mil habitantes. Com vocação eminentemente turística, há em torno de 40 pousadas oferecendo excelente infraestrutura e uma gastronomia impecável, da cozinha regional à internacional. Limpa, com ruelas de terra embelezadas por árvores frutíferas – destacando-se tamarineiros centenários - e casas coloridas, uma única igreja católica, um cruzeiro, coqueiros ondulantes de um lado e o mar azul do outro, difere de outros cobiçados lugares turísticos ao recusar-se a perder a calma e a simplicidade. Com raros agitos frenéticos e não se permitindo música alta em bares ou nas ruas, ainda se encontra pessoas sentadas na porta de casa em cadeiras de balanço: jogam conversa fora, bordam labirinto ou apenas observam o dia passar com um espírito contemplativo que já não se vê mais nas médias e grandes cidades. Esportes a vela Conhecido como a “esquina do continente”, São Miguel do Gostoso faz parte do Polo Costa das Dunas e está localizado exatamente na ponta oeste do continente sul-americano, ou seja, “onde o vento faz a curva”. O Polo foi instituído em 1999 e é formado por Natal, Baía Formosa, Ceará-Mirim, Extremoz, Maxaranguape, Parnamirim, Tibau do Sul, Touros e Gostoso. Esse destino turístico tem como principal atrativo as condições ideais para a prática de esportes a vela, como kitesurf e windsurf, pela característica de seus ventos intensos e sol o ano inteiro. A primeira escola de esportes náuticos foi inaugurada em 2007, pelo windsurfista italiano Paolo Migliorini, e no final de 2010 instalou-se a terceira, comandada pelo tricampeão mundial Kauli Seadi, brasileiro de Florianópolis. Espaços de convivência, aulas práticas e também abrigo
de velas e pranchas, as escolas atraem velejadores veteranos e iniciantes ao longo de quase todo o ano, já que a temporada de bons ventos se prolonga por nove meses, a partir de setembro. A praia da Ponta do Santo Cristo é o point dos esportistas. Quem não se anima a velejar, pelo menos pode assistir na orla à dança colorida das velas, em geral, a partir do final da manhã. Dunas e coqueiros Acompanham todo o extenso litoral que forma as praias. São muito parecidas, sossegadas e enfeitadas com barcos bucólicos e pescadores cor de jambo. Destaque para Tourinhos, oito quilômetros a oeste e possivelmente a enseada mais bonita das redondezas. Emoldurada por formações rochosas petrificadas há mais de dois mil anos, tem ondas suaves, recife de corais e, quando a maré está baixando ou subindo, acontece um fenômeno curioso: “o suspiro da baleia”. A onda bate no paredão de corais e a pressão faz a água jorrar pelo orifício de uma pedra, como se fosse um chafariz. O jato chega a atingir até três metros de altura. Com águas claras e mornas, Tourinhos tem vista deslumbrante e permanece praticamente deserta a maior parte do ano, com exceção dos feriados prolongados. No município de Gostoso também fica a Praia do Marco. Ela tem esse nome porque foi ali que, um ano após o descobrimento do Brasil, portugueses da expedição Gaspar de Lemos fincaram o primeiro marco colonizador nas terras brasileiras. Apesar da importância histórica desse marco colonial, o fato é conhecido, no geral, apenas por estudiosos e historiadores. Privilegiada pela própria natureza “Aqui se faz gostoso” é o lema da cidade e seus moradores fazem questão de honrá-lo caprichando na gentileza. Como outras cidades do litoral brasileiro, foi privilegiada pela própria natureza e pelo clima estável de 28ºC o ano inteiro. Suas pousadas são refúgios rústicos e aconchegantes, com redes ao vento que ajudam a esquecer da correria da vida urbana e convidam à descontração. Onde quer que se esteja, bate uma brisa boa e constante a qualquer hora do dia ou da noite. O lugar é amistoso e seguro, apropriado para descansar e fugir do estresse. Empolgados, empresários locais e estrangeiros vêm transformando a cidadezinha em importante centro de lazer, investindo em novas opções hoteleiras e gastronômicas, além de empreendimentos imobiliários. Há inúmeros projetos de pequeno e grande porte sendo implantados em toda a região, provando que a cada ano a pacata cidade ganha mais visibilidade.
São Miguel do Gostoso (2011)
o filme 18
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Documentário dirigido pelo cineasta paulista Eugênio Puppo, que mora em Gostoso, recebeu críticas favoráveis. Não tem uma visão açucarada da cidade. É um outro olhar. Com 80 minutos de duração, imagens belíssimas algumas delas aéreas -, traduz a realidade de uma praia que, até pouco tempo atrás, era um tranquilo vilarejo de pescadores e que se transformou num próspero centro turístico do Nordeste, atraindo turistas de várias partes do Brasil e do exterior. Esse desenvolvimento acelerado, que gera renda e cria empregos, também tem suas mazelas. O filme discute isso e também explicita a especulação imobiliária trazida pelo súbito sucesso da cidade. Mostra bolsões de pobreza, mas exibe também a riqueza do folclore e, sobretudo, a cara de um povo alegre e bonito. O filme é um ótimo motivo para se pensar em desenvolvimento de forma ordenada, sustentá vel, sem agressão à natureza e, ao mesmo tempo, preservando valores culturais que são fundamentais para a afirmação de uma sociedade.
ONDE FICAR Pousada Casa de Taipa Rua Bagre Caia Coco, 99 | Centro | (84) 3263-4227 www.pousadacasadetaipa.com.br Pousada dos Ponteiros Enseada das Baleias, 1000 | (84) 3263-4008 www.pousadadosponteiros.com.br Pousada Mar de Estrelas Av. dos Arrecifes, 1120 | (84) 3263-4232 www.pousadamardeestrelas.com Pousada Mi Secreto Rua das Algas, 51 - Ponta do Santo Cristo | (84) 9195-4758 www.misecreto.com Pousada Porto do Trapiá Enseada das Baleias, 2099 - Praia do Maceió | 84) 3263-4162 www.portodotrapia.com.br Pousada Só Alegria Rua Cavalo Marinho, 52 | (84) 3263-4355 www.pousadasoalegria.com.br ONDE COMER Bar e Restaurante Golfinho Azul Av. Enseada das Baleias, 1491 | Praia da Xêpa | (84) 3263-4141 Pão Gostoso Padaria & Conveniência Av. dos Arrecifes, 1463 | (84) 3263-4257 Restaurante Balica Av. Enseada das Baleias, 1000 | Praia do Maceió | (84) 32634007 Restaurante Hibiscus Rua das Ostras | Centro | (84) 9406-4130 Restaurante Latitude 5 Rua dos Corais, 2 | Praia de Santo Cristo | (84) 3263-4087 Restaurante Mar de Estrelas Av. dos Arrecifes, 1120 | (84) 3263-4232 Restaurante Tuk Tuk Av. dos Arrecifes, 1786 | (84) 9445-9359 ONDE AGITAR Espaço Mix Rua Cavalo Marinho, s/n | Centro | (84) 3263-4250 Genesis Beach Bar Praia da Xêpa, 86 | Centro | (84) 9932-2322 COMO CHEGAR O acesso a partir de Natal se revela tranquilo, com a BR-101 em boas condições. De carro: saindo de Natal, pega-se a BR 101 seguindo as placas. 1h15 de viagem. De ônibus: Expresso Cabral parte todos os dias da rodoviária de Natal. Tempo de viagem: em média duas horas. As saídas variam conforme o dia da semana. Informações turísticas: www.aquisefazgostoso.com.br novembro 2013
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Razões para conhecer Gostoso 1. SOSSEGO E HOSPITALIDADE Amáveis e simpáticos, os gostosenses refletem a tranquilidade da cidade, recebendo os que vêm de fora com um sorriso no rosto e muita gentileza. Vale a pena conversar com eles sobre amenidades ou qualquer outro assunto. Sem falar na delícia da cadência do sotaque potiguar. 2. ESPORTES AQUÁTICOS O balneário é a mais nova meca de velejadores - kitesurf e windsurf -, despertando a adrenalina e agitação de atletas que chegam de diversas partes do Brasil e sobretudo da Europa. 3. GASTRONOMIA Come-se bem em Gostoso. A culinária é composta por variados frutos do mar. Peixe frito com tapioca ou macaxeira; cozido de peixe e crustáceos em geral. Além de feijão de coco e farofa com coco, uma diversidade de pratos típicos da região. Entre pratos à base de pescados, tem-se a oportunidade de experimentar invenções gastronômicas servidas nos restaurantes ao estilo “chic-pé-na-areia”. O peixe ao molho de manga, a caldeirada de frutos do mar e o camarão com maracujá fazem o maior sucesso, além de outros pratos saborosos. 4. TORRE DE PAPEL Nada mais fácil que compartilhar aventuras e desventuras de moradores que vieram da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e também da Suíça, França, Inglaterra, Portugal, Espanha, Itália e Argélia. Eles trocaram metrópoles barulhentas e profissões estressantes por um lugar onde as maiores riquezas vêm do mar e dos ventos. 5. MUSEU CASA DE TAIPA Construída e administrada pelos donos da Pousada Casa de Taipa, a casa de pau a pique em tamanho natural retrata fielmente os costumes do sertanejo nordestino. Toda em barro e com objetos doados pelos próprios moradores da cidade, dispõe de móveis, utensílios de cozinha, imagens de santos e outros itens, alguns com mais de cinco décadas. Fica na Rua Bagre Caia Coco, 99 – Centro. Tel.: (84) 3263-4227. Horário de funcionamento: todos os dias, 8h às 18h. Entrada gratuita.
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ilustres
Clara Camarão Diogenes da Cunha Lima
Conhecida por sua bravura indômita, a índia Clara Felipa Camarão é a primeira heroína do Brasil. Nascida no início do século XVII, em data desconhecida, pertencia à tribo potiguar que habitava a margem esquerda do Rio Potengi, em Aldeia Velha (hoje bairro de Igapó), nos arredores de Natal, então Capitania do Rio Grande. A bela índia que se sobressai nos primeiros capítulos da nossa história recebeu o nome de Clara Camarão ao se batizar e casar com o índio Antônio Felipe Camarão (tradução exata de Poti), da Nação Potiguar. Felipe foi batizado na capela de São Miguel de Guajiru, a 13 de junho de 1612. Tomou o nome do santo do dia, Antonio, e de Felipe IV, o rei de Espanha e Portugal. Na mesma capela, Clara foi batizada. Felipe Camarão aprendeu com os missionários jesuítas a falar e a escrever corretamente em português. Também sabia um pouco de latim. Era respeitado pela sua voz pausada e grave. A sua condição de cacique lhe dava o direito de ter as mulheres que desejasse, o que lhe aumentaria o prestígio perante a tribo e geraria muitos filhos, porém optou pelo casamento católico, tendo apenas uma mulher: Clara. Inicialmente Clara seguia as regras da tribo, com os típicos afazeres domésticos destinados às mulheres. Bronzeada, com longos cabelos negros, depois de casada passou a acompanhar o marido em todos os combates contra o domínio holandês. A função da índia tupi era parir, cuidar de menino, plantar, colher e cozinhar. Guerreira, rompeu a secular divisão de trabalho da sua tribo, ao se afastar dos afazeres domésticos para participar de batalhas. Dominava o arco e a flecha, a lança e o tacape. Montada a cavalo, investia contra as espadas e os arcabuzes do inimigo. Como não podia lutar lado a lado com o marido, proibição imposta pelos costumes tribais, formou um pelotão de índias potiguares sob seu comando. Segundo Abreu e Lima, “Clara Camarão, de uma valentia incrível, afrontou todos os perigos, castigou por muitas vezes o inimigo e penetrou nos mais cerrados batalhões. Ao passo que combatia, exortava os soldados a cumprir os seus deveres, prometendo-lhes vitória, dando assim o exemplo a muitas outras mulheres que procuravam imitá-la”. 22
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Dorian Gray Caldas
Os holandeses pretendiam fundar o Novo Mundo no Brasil. A Companhia Holandesa das Índias Ocidentais – WIC organizou a expedição que invadiu a Bahia em 1623, mas os invasores foram expulsos no ano seguinte. No dia 14 de fevereiro de 1630, trouxeram para Pernambuco 65 embarcações e 7.280 homens armados. Dominaram por 24 anos toda a rica região de 121 engenhos de açúcar. Governados pelo Conde Maurício de Nassau, parente da família real da Dinamarca, que trouxe para o Brasil colonial artistas e intelectuais, gente de toda a parte: flamengos, franceses, italianos, belgas, alemães e judeus vários. Fez um grande mecenato. Na época, o Brasil português existia há 130 anos, dando início à guerra de libertação nacional, que só terminaria com a capitulação holandesa, de 26 de janeiro de 1654. Nesse momento decisivo de nossa história, Clara e Felipe Camarão tiveram participação heroica em vários confrontos contra os holandeses. Uma das batalhas mais memoráveis foi a de Porto Calvo, em 1637. As tropas do príncipe Maurício de Nassau já haviam incendiado Olinda (Pernambuco) quando Clara Camarão, à frente de índias potiguares, combateu os holandeses com bravura. Conta a História que os holandeses se encontravam sitiados em Olinda, sem ter o que comer e obrigados a avançar para o litoral. A primeira aldeia, Tejecupapo, na Zona da Mata pernambucana, onde viviam no máximo duzentas pessoas. Buscando deter os estrangeiros, todos os homens da aldeia fizeram uma barricada na estrada e por serem em número muito inferior, foram totalmente liquidados. Ao chegarem à aldeia, eis que os holandeses encontram um grupo organizado de mulheres guerreiras lideradas por Clara Camarão e são por elas derrotados. “Armada de espada e broquel, montada a cavalo, foi vista nos conflitos mais arriscados [...] com admiração dos holandeses e aplausos dos nossos”, escreveu o historiador Domingos de Loreto. Esse grupo de mulheres ficou conhecido como “As Heroínas de Tejecupapo”, palco dessa batalha decisiva contra a dominação holandesa. Por esse feito corajoso – e pela primeira vez -, uma mulher, e ainda por cima índia, foi considerada heroína no Brasil. Sendo mulher,
nenhum reconhecimento recebeu na época, mas ao seu marido foram concedidas todas as honrarias do rei D. Felipe IV, de Portugal, pelos relevantes serviços prestados à nação portuguesa. Recebeu os títulos de Dom, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Capitão-Mor (Governador) dos Índios do Brasil. Quando a sorte virou contra os portugueses, Clara Camarão esteve na frente de batalha, defendendo as posições militares e a população civil, que, abandonando suas propriedades e as cidades, refugiaram-se atrás das linhas de Matias de Albuquerque, Felipe Camarão e Henrique Dias. Os holandeses ganharam terreno sobre os portugueses, que foram obrigados a abandonar a Vila Formosa do Serinhaém, em julho de 1635. Sua última tentativa de resistência foi a sangrenta batalha de Porto Calvo, ocorrida no dia 18 de fevereiro de 1637. Nesse dia, o comandante Henrique Dias foi ferido, perdendo uma mão. Felipe Camarão assumiu o comando da tropa, apoiado por Clara, enquanto, em meio à desordem da batalha, as demais mulheres seguiam em fuga para o sul, levando seus filhos. A primeira batalha dos Guararapes, em 1648, decisiva para a vitória das tropas luso-brasileiras contra os holandeses, foi a última em que Clara Camarão participou. Nesse episódio, o general flamengo Arciszewski registrou que, em 40 anos de combate em campos da Europa, somente um inimigo, o índio Felipe Camarão, conseguira abater o seu orgulho. O bravo ameríndio, capitão-mor dos índios do Brasil, morreria de malária, em Pernambuco, meses depois da batalha de Guararapes. Clara Camarão recolheu-se à viuvez e ao anonimato. É provável que tenha voltado à Aldeia Velha, hoje Igapó, onde viveu mais alguns anos. Não há registro do local e data de sua morte, mas permanece na memória popular como uma heroína da luta contra a invasão holandesa. A Refinaria Potiguar Clara Camarão homenageia o seu nome, sendo a primeira refinaria do Brasil a ser batizada com um nome de mulher.
a Função da índia tupi era parir, cuidar de menino, plantar, colher e cozinhar.
Guerreira,
rompeu a secular divisão de trabalho da sua
tribo,
ao se afastar dos afazeres domésticos para participar de
batalhas. novembro 2013
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quem veio de longe Nascida em Rio Claro, São Paulo, a arte-educadora Paula Braz é dona da escola de danças Shaman Tribal Estúdio, diretora da Companhia Shaman Tribal e professora de Tribal Fusion, em sua cidade natal, além de ministrar workshops em vários estados brasileiros, na Argentina e Chile. Produtora do “Shaman’s Fest”, realizado em Natal, Rio Grande do Norte, encontro internacional de dança tribal que está indo para sua terceira edição, ela morou em Natal por 10 anos, de 1998 a 2008. Saiba sobre sua vivência nordestina.
Antonio Nahud
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Reinaldo Nunes
Paula
BRAZ
“Foi uma época
que considero a mais importante da minha vida: entre os 18 e 28 anos. Fiz-me ‛genteʼ nesta cidade, que é considerada uma das mais bonitas do Brasil, e enquanto morei lá sempre mantive o desejo de algum dia poder olhar para a cidade com olhos exclusivos de turista, tenho certeza que o deslumbre seria bem maior. Não tive essa oportunidade, pois pisei em Natal pela primeira vez em 1998, com ‛mala e cuiaʼ, pretendendo fazer minha vida por lá. Com 18 anos essa pretensão tinha ares de aventura e passei meus primeiros anos em Natal tentando absorver a cidade, compreendê-la e fazer parte daquilo”.
“Por que
me mudei para Natal e não outra cidade? Explico: conheci um moço do tipo “bom para casar” e ambos tínhamos o desejo de nos mudarmos da cidade em que morávamos na época, Rio Claro, uma cidadezinha com 180 mil habitantes no interior de São Paulo. A escolha a princípio era Florianópolis, mas a forma como os sites e revistas de turismo vendiam Natal era irresistível. Além disso, rapidamente surgiu possibilidade de emprego em Natal, antes mesmo de nos mudarmos para lá. Quando desembarcamos em Natal minha primeira sensação foi tátil. Senti Natal na pele! O ar úmido e quente era contrastante com clima de São Paulo, que naquela época do ano era fria e árida. Acho que nunca me acostumei com toda essa umidade, mesmo depois de muitos anos”.
“A cidade
como um todo me parecia paradisíaca, mesmo no que diz respeito a seu caráter urbano. Na época, os jardins bem cuidados, as ruas bem pavimentadas e a cidade relativamente limpa eram muito atraentes. As praias potiguares são absolutamente diferentes das do litoral sul. Areia muito fina e clara, mar quente e esverdeado, vegetação verde-esmeralda... as paisagens quase faziam jus às reportagens e fotos editadas das revistas de turismo. Não houve uma única vez em que, ao mirar o Morro do Careca e a Praia de Ponta Negra, eu não me sentisse plena e feliz em morar em Natal”.
“E a gastronomia local...
não consigo pensar em outra cidade brasileira com culinária tão rica e variada. Confesso não ter me ajustado totalmente à culinária tradicional nordestina, pois nunca me adaptei às buchadas de bode, excesso de coentro, cuscuz doce, entre outros, que são muito diferentes das comidas às quais estava habituada. Mas me rendi ao queijo coalho, à carne de sol, à farofa d’água, ao feijão verde, à manteiga da terra, ao purê de macaxeira e ao próprio termo macaxeira. O que me encantava mesmo eram os menus como o do restaurante Camarões, do restaurante do hotel Manary, do Guinza, do Cassol, entre outros, que ofereciam com fartura todos os tipos de frutos do mar e receitas incríveis com peixes e demais amigos do mar. Gastando menos (bem menos) adorava as Casas de Caldos que me salvavam no final das noites de balada”.
“Mas nem tudo
foram flores. Levei anos para aprender a respeitar a diversidade cultural, incluindo a linguagem, que, embora seja a mesma que a minha, apresentava termos, gírias, colocações e entonações bem diferentes das do sotaque paulista. Tive que aprender a ser mais tolerante ao que diverge do meu jeito de agir e pensar, e isso foi para mim a melhor parte de morar em Natal. Tenho certeza de que voltei para São Paulo melhor enquanto pessoa. O preconceito do paulista em relação ao Nordeste é vergonhoso. Antes de me mudar, ouvi coisas do tipo: ‛não sorria demais, os homens são machistas e podem achar que você está flertando com elesʼ ou ainda: ‛melhor você usar aliança de casada ou vão pensar...ʼ, ‛puxa, será que lá tem internet?ʼ, ‛Natal? Do lado do Acre?ʼ ou apenas: ‛Natal??? Por que Natal????ʼ”
“O que mais gostei
de Natal? O apreço dos natalenses por suas tradições e raízes culturais e por tudo que diz respeito à arte e à cultura. Um verdadeiro reduto de artistas talentosíssimos. Acredito que os próprios natalenses não tenham a consciência desse apreço todo. Mas conheci muitos estados brasileiros e os do Nordeste são, de longe, os que mais abraçam sua própria cultura. Conheci o trabalho maravilhoso de grandes artistas potiguares e sinto-me orgulhosa e privilegiada por isso”.
“Voltei
para São Paulo quando entendi que meu tempo em Natal tinha terminado e do mesmo jeito que cheguei, parti, sabendo que faria a vida em outro lugar. Trouxe comigo dois filhotes nascidos potiguares, muitas histórias incríveis, amigos para toda a vida, paisagens memoráveis e o desejo de um dia, quem sabe, voltar a morar na Cidade do Sol, úmida, quente e incrivelmente iluminada, pois nunca vi céu de azul mais claro nem sol de tamanha intensidade. Cidade Luz...” outubro 2013
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à mesa
Apesar da pouca iluminação à noite, é difícil passar pela Rua Mipibu, no bairro de Petrópolis (Natal/RN), e não ter a atenção desviada por um lugar com uma fachada bonita e convidativa. A referência a um antigo sobrado é imediata, seja pela arquitetura do lugar (com térreo e primeiro andar, acompanhado de porta de madeira larga e janelas superiores), pela iluminação (que foge do modelo de luzes modernas), ou até mesmo pelas cadeiras, e mesas de madeira, que já se fazem ver da entrada, e remetem à decoração da casa de uma tia ou avó mais tradicionalista. O nome Sobradinho Creperia, estampado em uma placa na lateral do lugar, não foi escolhido aleatoriamente. Em meados de 2007, quando a funcionária pública potiguar Isabela Cabral e a gastrônoma gaúcha Namir Strejevitch decidiram montar o Bistrô das Belas, não contavam com o resultado final das obras realizadas no espaço. Foi inevitável, então, não descartar os aventais e produtos (já com a ideia inicial de nome timbrada) e adotar “Sobradinho” como cartão de visitas do lugar. A nova escolha não só veio a calhar com a arquitetura do lugar, mas também com a proposta de ser um espaço que foge da formalidade e pompa dos restaurantes comumente encontrados no bairro de Petrópolis para ser uma “extensão da casa”, um espaço para se conversar, comer e estar à vontade. Uma vez seduzido pela fachada do Sobradinho, o cliente que decidir entrar vai, certamente, se encantar pelo esmero da decoração do lugar. Nas paredes, quadros de artistas, a um primeiro olhar, aleatórios. As mesas são temáticas, cada uma dedicada a uma personalidade da música, literatura, artes cênicas ou artes plásticas. Um pouco de atenção e alguns minutos de observação são suficientes para identificarmos o ponto comum: assim como as donas do estabelecimento, os homenageados são potiguares ou gaúchos. Entre eles, encontramos, por exemplo, as cantoras potiguares Khrystal, Valéria Oliveira e Marina Elali, Moacy Cirne (escritor potiguar), e os gaúchos Jorge Furtado (cineasta), Adriana Calcanhoto 26
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Jantar à moda da casa Andressa Vieira
Leila de Melo
Milton Vieira
Creperia Sobradinho une boa comida e cultura em um espaço confortável e convidativo, com decoração e arquitetura que se propõem a ser uma “extensão da casa” dos clientes
(cantora), Júlia Lemmertz (atriz) e Mel Lisboa (atriz). Além disso, artigos antigos, tais como uma máquina de datilografar, uma admirável coleção de câmeras fotográficas e armários de madeira terminam de compor a decoração interna do Sobradinho. A um canto, um piano, que costumava ser tocado em apresentações às quintas-feiras. Vale lembrar também que o cliente que decidir ir comer sozinho e, por ventura, possuir o hábito da leitura, não se sentirá solitário. A casa também oferta aos clientes uma estante recheada de títulos de autores como Luís Fernando Veríssimo, Érico Veríssimo, Câmara Cascudo, Zila Mamede e Martha Medeiros. O tempo de espera do prato acaba não sendo suficiente sequer para uma primeira olhada nas ricas obras exposta. O cardápio apresenta uma variedade de pratos, sendo a especialidade os crepes, como o nome do lugar já sinaliza. O visitante que estiver acostumado a pedir códigos em restaurantes poderá se sentir perdido com uma peculiaridade da casa: os pratos são intitulados com nomes de pessoas,
então, para aqueles que gostam de frango, por exemplo, é comum que se peça o “Auta de Souza”, ou o “Elis Regina” e o “Nelson Gonçalves”. Sobradinho costuma realizar programações especiais para as datas comemorativas, como em setembro, quando é comemorado o aniversário do lugar, que em 2013 completou seis anos. Além disso, é comum também serem realizadas reuniões de leituras por grupos que já se habituaram ao estabelecimento e acabaram tornando-o, de fato, extensão da casa e das atividades. As proprietárias Isabela e Namir exibem e orgulham-se da obra Por cada uma, livro de poemas de autoria de Adélia Danielli, Iara Carvalho, Isabella Maia, Letícia Torres e Marina Rabelo, e que foi concebido por completo no Sobradinho. Vale lembrar ainda que, além dos crepes, o Sobradinho serve massas, saladas, risotos e sobremesas e abre para almoço e jantar. Uma ótima opção para o natalense que deseja fugir das filas e valores exorbitantes de restaurantes renomados.
SERVIÇO Nas imagens: as proprietárias da Creparia Sobradinho, Isabela Cabral e Namir Strejevitch; um dos crepes da casa, o Carol Bensimon (ganache de chocolate, com frutas flambadas e chocolate sonho de valsa); fachada e interior do espaço.
Horários de funcionamento: Terça à sexta - 11h30 às 14h30 Terça a sábado - 18h às 23h59 Domingo - 18h às 23h
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papo-cabeรงa
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A LUTA DE
Diogenes Andressa Vieira
Morvan França
Discípulo de Câmara Cascudo, professor, advogado, escritor e poeta, ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e ex-Secretário de Cultura do Estado, para Diogenes da Cunha Lima, Natal é o centro do mundo. A primeira vez que entrevistei Diogenes da Cunha Lima foi por ocasião da publicação de seu vigésimo terceiro livro, Natal, uma Nova Biografia. Não foi preciso mais que meia hora de conversa para identificar sua paixão pela capital potiguar, cidade que lhe acolheu. Essa impressão apenas se intensificava a cada encontro, inclusive no último, quando revisitei Diogenes para esta entrevista. Professor Diogenes contabiliza 76 anos de vida, com aparência e fôlego de bem menos. Nasceu em Nova Cruz, município do interior do Rio Grande do Norte e, aos treze anos, mudou-se para Natal, cidade que tomaria como sua paixão e objeto de defesa por todos os anos que se seguiram. Foi aconselhado pelo pai a buscar Luís da Câmara Cascudo, importante pesquisador e folclorista potiguar, e assim o fez. Sustenta sobre dois pilares fundamentais a sua formação social: o incentivo à cultura e o seu percurso e militância na educação. Diogenes orgulha-se ao afirmar ter certeza de que foi o aluno favorito de Cascudo. novembro 2013
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papo-cabeça Natal tomou conta de mim. É uma vida toda de dedicação, de amor, de preocupação com a cidade e com o crescimento do meu Estado. O senhor parece ter uma ligação muito forte com Natal, embora não seja natalense. Fale um pouco sobre esse vínculo com a cidade. Natal é minha paixão. O Rio Potengi tomou o lugar do Rio Curimataú (de Nova Cruz). Me encantou. É minha cidade natal, embora a outra seja minha cidade de nascimento, de onde guardo muita ternura da minha infância. Natal tomou conta de mim. É uma vida toda de dedicação, de amor, de preocupação com a cidade e com o crescimento do meu Estado. Considera ter um apego geográfico a Natal? Natal para mim é o centro do universo. O universo todo gira em torno de Natal. Natal é o ponto de partida, é a base de lançamento. O apego é total e ilimitado. O senhor e outros nomes importantes de Natal foram alunos do Colégio Atheneu, que recentemente decaiu. Como se sente tendo feito parte da história de uma importante instituição que tem enfrentado tantas dificuldades? Não só fui aluno, como fui também professor. E nós estamos numa luta para reerguer o Atheneu. A Academia [Norte-rio-grandense de Letras, da qual é presidente] já tomou providências. Eu fui com o Secretário de Turismo do Estado conversar com a Secretária de Educação, ela disse que estava restaurando o Atheneu. Eu levei o caso à Academia, que se propôs a ajudar o colégio. E há o estudo que estávamos fazendo com a professora Eva Arruda Câmara, que foi professora de lá. Além da parte física, que a secretária garantiu que vai sair agora, há a parte de levantamento cultural. Como avalia esse momento da educação brasileira, sobretudo a potiguar? Primeiro, com muito orgulho da minha Universidade Federal e satisfeito com alguns centros universitários daqui. Alguns centros universitários estão funcionando muito bem mesmo, promovendo boa qualificação. 30
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Tanto a UFERSA (Universidade Federal Rural do Semi-Árido) quanto a UFRN cresceram e hoje estou lutando ao lado daqueles que querem a Universidade do Seridó, pois lá existe um campus excelente e tem professores da Universidade Federal. Eu creio que está no momento da criação da Universidade Federal do Seridó. Quais foram seus maiores mestres? Mestre de todas as coisas, um sábio cordial, o arquiteto da alma brasileira foi Câmara Cascudo. Mas meu mestre maior foi meu pai. Dentre as figuras humanas com quem convivi e de quem fui amigo, posso lembrar figuras como Onofre Lopes, que foi quem me "jogou" na Universidade, Dinarte Mariz, grande figura humana e criador da Universidade Federal, que me apoiou ao longo da vida, e Djalma Marinho, outra personalidade absolutamente fantástica. Sobre sua gestão como Reitor da UFRN (1978-1982), como foi esse período? Alegrias, muitas. Dificuldades, algumas. Tive dificuldades porque era uma época de regime militar no país. Primeiro porque estavam surgindo os movimentos estudantis, movimentos de funcionários e de professores. Eu estava lá nomeado pelo Presidente da República e considerava legítimas as aspirações. Eu dizia que a Universidade é a comunidade do inconformismo e que eu só acreditava em professor que fosse inconformado. Você estava sendo inconformado lutando, você tinha que estar lutando. A Universidade também, por outro lado, era solidária. Ela era receptáculo de todas as opiniões, de todos os confluentes e tinha que ordenar isso. Por isso mesmo eu criei o Centro de Convivência com recursos próprios da Universidade, porque, embora tivesse sido iniciado na gestão anterior, o Ministério da Educação entendeu que teria que derrubar, mesmo as paredes já estando levantadas. Eu disse que não, que ia inaugurar, convidei o Ministro e com recursos próprios da Universidade, através de contratos e multas de empresas que não estavam cumprindo seus contratos. Foi o momento de crescimento de pesquisa na Universidade e eu coloquei para funcionar a Funpec (Fundação Norte-riograndense de Pesquisa). Foi feito um trabalho enorme sobre o Rio Grande
do Norte. Nós incentivamos o setor cultural com a publicação de discos da Escola de Música, por exemplo. A TV Universitária era em preto e branco e com programas importados, nós passamos para as cores, com programas locais. Trouxemos grandes figuras e fizemos uma série de programas locais fantásticos, criamos o Programa Memória Viva. Muitos outros setores foram dinamizados, como a biblioteca, cujo acervo nós duplicamos. Como foi sua relação com Câmara Cascudo? Quando vim embora para Natal, meu pai disse que aqui tinha um rio chamado Câmara Cascudo, o resto era tudo riacho. Eu fui lá, toquei a campainha, ele me atendeu e me recebeu. Ele já era um homem de 50 e poucos anos e eu tinha 13. E disse que queria conversar com ele. Ele achou graça, me recebeu, conversou, me deu presentes, chocolate, me animou e disse que lembrava vagamente do meu pai, que ele conheceu quando fez um estudo sobre a paróquia de Nova Cruz. Mas o grande contato foi quando fui aluno dele, na faculdade, e ele me escolheu como seu aluno predileto. Não tenho dúvidas de que, ao longo da vida, fui o aluno predileto dele. Passei vinte anos frequentando a casa dele, quase todos os dias.
Quais são os pilares culturais de Natal? A brisa de Natal é única. Ela diminui a agressividade do homem natalense e impede as rugas das mulheres. O homem natalense é apto à celebração, sempre. Sempre é dia de Natal. Por outro lado, a riqueza de Natal, da geografia, é absolutamente fantástica porque a cidade está unida, e não separada, pelo Rio Potengi. Mais bonito que qualquer outro rio do mundo. A beleza das dunas verdes, absolutamente fantásticas. A entrada da cidade já é significativa, diferente de Recife, Fortaleza ou João Pessoa, temos uma entrada muito mais portentosa. As ruas são largas, o que possibilita maior abertura de pensamentos. Acho Natal uma cidade encantadora. O que não é enxergado na cultura de Natal? Muita coisa não se observa em Natal. Por exemplo, o Rio Potengi, com toda a sua beleza, não é enxergado. Não foi feito nada ainda para transformar o rio em centro cultural, os passeios de barco que deveriam existir, a volta pelo mangue, a velha ponte que deveria ser transformada. Os casarões velhos que deveriam ser pintados para ficarem bonitos, elegantes... Dou o exemplo do Rio Potengi, mas há muita coisa que pode ser vista em Natal. Como analisa o aparente descaso de bairros como a Ribeira, por exemplo? Essa é outra doença. Tentamos fazer funcionar a Rua Chile e ela está abandonada. Mas para dar vitalidade à Ribeira só tem um jeito: tê-la como prioridade absoluta. Por exemplo, a diminuição ou até mesmo insenção de impostos para quem se instala, todos os estímulos para lá. E é um plano global que deve ser feito pelo governo e aplicado em médio prazo. Em todos os lugares do mundo de maior desenvolvimento, os bairros ribeirinhos, que têm o porto, são transformados em áreas culturais, como Buenos Aires, Nova York, Lisboa. O mundo inteiro faz isso e aqui nós ainda não tivemos coragem de fazer.
A brisa de Natal é única. Ela diminui a agressividade do homem natalense e impede as rugas das mulheres. O homem natalense é apto à celebração, sempre. Sempre é dia de Natal.
Frente à cultura nacional, como classificaria Natal? O Brasil é um arquipélago, um grande arquipélago com ilhas. Então o que é feito na ilha do Rio Grande do Norte não é visto na Paraíba e nem no Ceará. O que é feito no Ceará não chega ao Piauí e nem ao Maranhão. Ou seja, são ilhas culturais. Mas de vez em quando aparece um momento em que o Rio Grande do Norte mostra a sua face.
OS SIGNIFICADOS DE DIOGENES Nova Cruz: Saudade, emoção Natal: Base de lançamento Diogenes pai: Mestre de vida Cultura: Alimento espiritual da humanidade Educação: Visa tornar o homem útil e feliz Família: Fortaleza Trabalho: Dever que deve dar prazer Câmara Cascudo: Arquiteto da alma nacional Poesia: Essencial todos os dias UFRN: Chão sagrado da criação
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cênicas Na ribalta
O grupo teatral potiguar surgiu no ambiente escolar e já contabiliza vinte anos de história nos quais listam apresentações a nível local, nacional e internacional, projetos sociais e incentivo a novos grupos Andressa Vieira
Pablo Pinheiro Antonio Nahud
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Clown de
Shakespeare
com os
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cênicas Espetáculo "Sua Incelença, Ricardo III"
CLOWNS DE SHAKESPEARE: MAIS QUE TRABALHO, UM PROJETO DE VIDA. 34
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O público se acomoda nas cadeiras do teatro. A curiosidade começa a tomar conta dos presentes. Os atores e toda a equipe sentem o frio na barriga causado pelo nervosismo que raramente se esvai por completo. A iluminação se adéqua e o som começa. Abrem-se as cortinas. Começa o espetáculo! Certo? Errado. Para os Clowns de Shakespeare, grupo teatral potiguar surgido há vinte anos na capital do Estado, a montagem do espetáculo é apenas uma consequência, e não o objetivo, de todo o trabalho que está por trás do “fazer teatro”. Embora o grupo arquive em seu currículo a passagem por mais de 80 cidades de 21 estados do Brasil, fora as temporadas no exterior, como em alguns países da América Latina com o espetáculo “Sua Incelença, Ricardo III”, além do reconhecimento por parte do público, da crítica e dos principais veículos de comunicação com foco cultural do país, sua maior preocupação não é a de se autoafirmar enquanto importantes nomes do cenário artístico e cultural do Rio Grande do Norte e do Brasil (o que são), mas a de desmistificar o fazer teatro enquanto uma atividade que visa meramente à organização de um espetáculo e à circulação do “produto”. É mais que isso. O “fazer teatro” defendido e praticado pelos Clowns é pautado numa vertente artístico-pedagógica, no momento em que seus principais projetos são os que envolvem formação artística, com oficinas que promovem tanto na capital como no interior do Estado e em outros lugares do Brasil, além do apoio à formação de novos grupos de teatro e a troca de experiências, seja com projetos mais experientes ou que ainda estão engatinhando no percurso do trabalho teatral. Também realizam pesquisas constantes para o direcionamento das ideias e dos espetáculos. Para o grupo, o teatro é, mais que trabalho, um projeto de vida. “Não seria possível desenvolver o trabalho que fazemos se não estivéssemos dispostos a passar o resto das nossas vidas juntos”, assegura Fernando Yamamoto, diretor artístico, integrante e fundador dos Clowns. Atualmente, o grupo conta com catorze membros, sendo treze deles custeados pelos trabalhos dos Clowns. Contudo, os integrantes afirmam que a realidade em que vivem hoje é privilegiada se comparada à da maioria dos grupos de teatro existentes em Natal e em outras cidades de mesmo porte. Viver profissionalmente de teatro no Brasil acaba sendo escolher nadar contra o fluxo do modelo econômico vigente. “Nossa bilheteria não nos banca, bilheteria nenhuma banca artista”. Eles explicam que é necessário, para continuar existindo, correr atrás de patrocínios e editais, já que os ingressos dos espetáculos por si só não sustentam o grupo, e isso torna a profissão, financeiramente falando, insegura, pois é sempre preciso apostar em novas possibilidades de financiamento. A necessidade de “circular” por festivais artísticos é outro fator que impossibilita os integrantes de viver uma rotina fixa na profissão. Entre uma viagem e outra, é comum ficarem em média uma semana em Natal.
Segundo o grupo, Natal não comporta mais que dois meses de exibição de uma montagem, mesmo que já haja um público fidelizado pelo ritmo de espetáculos que geralmente são oferecidos na sede do grupo, o Barracão dos Clowns (Av. Amintas Barros, 4673), seja pelos anfitriões ou pelos convidados parceiros (grupos de teatro mais recentes, como Bololô e Arquétipos). O nome do grupo surge ainda no Colégio Objetivo de Natal, com a montagem do espetáculo “Sonhos de Uma Noite de Verão”, mas o grupo brinca que, apesar do título, não há nenhum contrato de fidelidade, e também realizam outros espetáculos que não necessariamente remetem ao escritor e dramaturgo inglês. Exemplos são as montagens “Roda Chico” (2005), “Fábulas” (2006), “O Casamento” (2006) e “O Capitão e a Sereia” (2009).
Formação e interiorização
Paralelo à circulação de espetáculos, os Clowns desempenham atividades de formação, como, por exemplo, o Barracão Mambembe, um Ponto de Cultura itinerante que circula por cidades do interior com o objetivo de potencializar algumas das atividades já desenvolvidas pelos Clowns, como os intercâmbios com artistas, a busca por profissionais para reciclagem e o compartilhamento de conhecimento através de oficinas. O projeto já passou por Currais Novos e Santa Cruz e, agora, no segundo ano, visita as cidades de Ceará-Mirim e Assú.
Titina Medeiros e "Cheias de Charme"
Titina Medeiros é integrante fixa do grupo e foi em uma das apresentações dos Clowns que foi convidada para fazer um teste para a novela “Cheias de Charme”, exibida pela Rede Globo durante o ano de 2012. Conseguiu o papel da empregada doméstica Socorro e viveu a experiência de exercer a profissão de atriz em um formato diferente dos palcos a que estava habituada. Ao serem indagados sobre as transformações decorrentes do nome que Titina havia adquirido devido à exposição em uma produção televisiva, o grupo respondeu que “na prática, não mudou nada, com exceção de algumas câmeras e blocos de autógrafos que antes não existiam”.
Ser Clown de Shakespeare
Escolher fazer teatro “de grupo”, levando em conta todas as acepções que o termo comporta, além do espetáculo e do compromisso da vivência coletiva, é estar disposto a confundir vida e ofício. Para os integrantes do Clowns de Shakespeare, essas são duas coisas que se fundem de uma forma natural. Esqueçamos as máscaras e maquiagens, aqui o “fazer teatro” também inclui experienciar a arte da vida real, aquela que se é vivida fora dos palcos. novembro 2013
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Amor Antonio Nahud
Morvan Franรงa
A ร RVORE DO
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Unidas pela impressionante força dos ventos locais, cresceram juntas, formando uma só árvore, e amoldaram as suas copas na figura de um
CORAÇÃO compacto, firme, sem espaços.
A majestosa gameleira é uma árvore nativa de todo o Brasil. Pertence à família das moráceas. Também conhecida como iroko, mata pau, guaxinduba, lombrigueira, entre outros nomes, sua madeira é utilizada para a confecção de gamelas - vasilhames usados no interior -, objetos domésticos, caixotaria leve e miolo de portas. As folhas ovais, de bordas lisas e verde-escuras, são utilizadas no preparo de água sagrada nos rituais da cultura afro-brasileira. Dizse que o Iroko, uma entidade que representa os nossos antepassados, costuma habitar a gameleira. Os seus frutos são consumidos por macacos, morcegos, aves e outros animais, que disseminam largamente suas sementes. No Rio Grande do Norte, mais exatamente em Barra de Maxaranguape, à beira-mar, o enroscamento de duas antigas gameleiras é parada obrigatória de dezenas de visitantes há muitos anos. Numa das mais belas paisagens da região, ao lado de dunas, da imensidão do mar e do Cabo de São Roque - ponto da América do Sul mais próximo da África, considerado por alguns historiadores como o provável lugar da primeira ancoragem da frota portuguesa de Pedro Álvares Cabral -, essas gameleiras entrelaçadas formam um coração e passaram a ser conhecidas com o nome popular de “Árvore do Amor”, atraindo supersticiosos. Unidas pela impressionante força dos ventos locais, cresceram juntas formando uma só árvore e amoldaram as suas copas na figura de um coração compacto, firme, sem espaços. Logo os nativos espalharam a lenda que no século XIX um enamorado casal de indígenas viveu e morreu sob sua sombra. Com o tempo e o vento, criou-se a simpatia de que a árvore favorece o amor. “Para quem quer casar recomenda-se circular três vezes em torno do tronco, repetindo o nome da pessoa amada ou da pessoa que se deseja namorar. Confirmando de vez o casório, amarram-se fitinhas numa de suas raízes. Já o casal que deseja que a chama da paixão nunca se apague, basta sentar alguns minutos dentro do arco, abraçados. E parece que funciona. "Muita gente volta para agradecer a benção alcançada”, diz o simpático e extrovertido Genilson Rodrigues, 39 anos, proprietário há 15 anos da barraca Skina do Brasil, ao lado das gameleiras, onde vende coco, sucos, coquetéis, cervejas, refrigerantes e espetinhos de queijo, carne e peixe. Mesmo recebendo visitantes dos quatro cantos do mundo o ano inteiro, inclusive celebridades (a atriz Vera Fischer, o futebolista inglês David Beckham, os apresentadores de tevê Ana Maria Braga e Álvaro Garnero etc.), e sendo um dos cenários da telenovela global “Flor do Caribe”, a Árvore do Amor é desprezada pelo poder público: nunca passou por podagem e sofre com a erosão que tira a areia de suas raízes. Tampouco há qualquer placa que conte sua história aos turistas, nem murada que evite a passagem de automóveis. Distante de Natal 55 Km, acesso pela BR-101 - direção litoral Norte, para chegar à Árvore do Amor basta seguir até Maxaranguape, continuando na direção de Caraúbas e entrando na estrada de terra que segue a costa. E lá está ela, simplesmente maravilhosa, numa impressionante obra da natureza. Vale a pena conhecer.
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Um lugar ao sol Oswaldo Lamartine
Morvan França
OSWALDO LAMARTINE (1919-2007) Épico e lírico. Real e irreal. Verdadeiro e alegórico. Intelectual sertanista, agrônomo e escritor, reconhecido como o maior sertanista brasileiro por Raquel de Queiroz e Ariano Suassuna. Deixou uma obra rica nas áreas da Etnografia, Antropologia e Sociologia. Sabia tudo dos Sertões, das caatingas do Nordeste. Sabia das abelhas, dos peixes, das plantas, dos bois, dos bodes, dos pássaros. Sabia das caças e da arte milenar de ferrar boi. Sabia das facas e dos punhais. Sabia da beleza do aboio e das artes do couro. Sabia das esporas de prata. Sabia dos riachos, dos rios e dos açudes. Sabia do vôo das marrecas. Sabia da poesia popular, dos romanceiros, dos cantadores de feira. Foi um nobre, um fidalgo, um cavalheiro. Vicente Serejo, que o saudou na Academia Norte-Rio Grandense do Norte, disse que Oswaldo era “o último Príncipe do Reinado do Grande Sertão de Nunca Mais”. Era.
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São Rafael-RN
“Cada vivente tem o seu sertão. Para uns são as terras além do horizonte e para outros, o quintal perdido da infância. Para mim, o sertão é a caatinga. E o do meu bem-querer, é quando descamba ali na Serra do Doutor Riacho do Maxixe - e vai esbarrar nas barrancas do Piranhas” novembro 2013
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lambe-lambe Martins-RN
Capela de São Francisco, Tangará-RN
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“O Sertão é mais que uma região fisiográfica. Além da terra, das plantas, dos bichos e do bicho -homem - tem o seu viver, os seus cheiros, cores e ruídos. O cheiro da água que nos desertos também cheira. O da terra molhada, do curral, da lenha queimada e de cada flor. O belo -horrível-cinzento dos chãos esturricados, o ‘arrepio-verde’ da babugem, a explosão em ouro das craibreiras em flor”
Ipueira-RN
“As serras azulescendo à tardinha. O chegar da boca da noite. A brisa dos alísios vinda de um quebrar de serra. O derramar de tinta no céu na pegada do inverno. O estourar da babugem”
Cerro Corá-RN
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lambe-lambe ParaĂş-RN
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“Não esqueço o morrer do dia do vaqueiro juntando gado. O grito da mãe-da-lua que os grandes trágicos nunca ouviram. A sombra do juazeiro, que é o precursor do ar-condicionado. Mas a sombra do trapiá ainda é mais fresca. Rapadura do Cariri. Coalhada escorrida. Queijo de coalho de leite de cabra, daqueles que rangem os dentes. Paçoca com banana de leite; música e ritmo do pilão secando paçoca. O canto do juriti que muitos tristes não ouviram”
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à moda da casa
Boi Calemba Antonio Nahud
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A dança folclórica do Bumba Meu Boi é um dos traços culturais marcantes na cultura brasileira, principalmente na região Nordeste. Surgiu no século XVIII, como uma forma de crítica à situação social dos negros e índios. Combinando elementos de comédia, drama, sátira e tragédia, resulta da união de elementos das culturas europeia, africana e indígena, com maior ou menor influência de cada uma dessas culturas. Misturada com teatro, incorpora encenações de peças religiosas nascidas na luta da igreja católica contra o paganismo. O costume da dança do Bumba Meu Boi foi intensificado pelos jesuítas, que, através de danças e pequenas representações, desejavam evangelizar os negros, os indígenas e os próprios aventureiros portugueses.
Newton Navarro
No Rio Grande do Norte, as danças folclóricas sempre despertaram a atenção dos estudiosos do folclore brasileiro, resultando em rico acervo assinado por Luís da Câmara Cascudo, Manoel Rodrigues de Melo, Hélio Galvão, Oswaldo Lamartine e Deífilo Gurgel. Essas danças foram definidas por Câmara Cascudo como “formas teatrais de enredo popular, com bailados e cantos, tratando de assunto religioso ou profano, representado no ciclo das festas do Natal”. Nos últimos anos, porém, com o advento dos meios de comunicação de massa, o nordestino, não só como espectador, mas também como participante, foi perdendo o interesse por essas danças, e hoje elas sobrevivem à custa de sacrifícios de alguns grupos que insistem em preservá-las. O primeiro registro do Bumba Meu Boi aparece no jornal O Carapuceiro, em 1840, mas sua origem exata é desconhecida. A expressão Boi Calemba foi registrada por Mário de Andrade, em sua viagem a Natal, em 1929. Essa expereriência está descrita no livro O Turista Aprendiz, resultado de sua famosa viagem etnográfica pelo Norte e Nordeste do Brasil. Termo criado com o intuito de diferenciar o Bumba Meu Boi do Rio Grande do Norte de outros grupos dos estados brasileiros. O Boi Calemba apresenta-se
normalmente com dezessete figurantes, entre eles os músicos do conjunto, classificados em dois grupos: os Enfeitados e os Mascarados. O boi consiste numa armação de cipó ou madeira, coberta com tecido – geralmente chita, com uma cabeça de papelão ou caveira de animal. O tema principal é a morte e ressurreição de um boi. O enredo básico conta a história de um boi de estimação de um fazendeiro rico que é morto pelo empregado negro, que mata o animal para atender ao pedido de sua esposa grávida, que sente desejo de comer a língua do boi. Descoberto como o autor do crime, o marido confessa o que fez e é levado preso. Mas, por intermédio da magia praticada por um curandeiro indígena, o boi ressuscita. O marido é perdoado e tudo termina bem, dando motivo para os cantos, as danças e a alegria. Com uma bonita coreografia, cantigas antigas e figurino de fitas coloridas e espelhos, proporcionam um diferenciado espetáculo teatral. Os instrumentos utilizados são a rabeca, o pandeiro, o triângulo e alguns instrumentos de corda, podendo ser substituídos pela sanfona. No Rio Grande do Norte, o Boi Pintadinho, de São Gonçalo do Amarante, é um dos grupos mais tradicionais. Tem mais de cem anos de existência.
A expressão Boi Calemba foi registrada por
Mário de Andrade, em sua viagem a Natal, em 1929. Termo criado com o intuito de diferenciar o Bumba Meu Boi do
Rio Grande do Norte de outros grupos dos estados brasileiros. novembro 2013
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na ponta da língua
“Flor do Caribe” e AS BELEZAS TROPICAIS potiguares Leila de Melo
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Morvan França
As belas praias do litoral potiguar são um dos maiores atrativos do estado, e o setor turístico ganhou um forte aliado: Vila dos Ventos. A cidade fictícia da novela das seis da Rede Globo, escrita por Walther Negrão, foi constituída a partir da junção de praias, lagoas, dunas e falésias e vem abrindo os olhos e aguçando a curiosidade das pessoas a respeito da costa norte-rio-grandense. Localizada no litoral do Rio Grande do Norte, o vilarejo é o lar dos protagonistas do folhetim, os amigos Cassiano (Henri Castelli), Ester (Grazi Massafera) e Alberto (Igor Rickli). Sob a direção de Jayme Monjardim, a produção estreou dia 11 de maio e exibiu seu último episódio dia 13 de setembro de 2013. Walther Negrão fez uma novela tropical e brasileira em que o sol e as praias estiveram sempre presentes, e investiu em um enredo de amor, vingança e elementos históricos, como a Segunda Guerra Mundial, para agradar aos olhos e fisgar a audiência do horário. A sucessora de “Lado a Lado” tinha a difícil tarefa de resgatar o prestígio da emissora, uma vez que a última produção amargou a pior audiência dos últimos anos do horário. Entre os elementos da trama, encontramos o triângulo amoroso entre Cassiano, Ester e Alberto, o vilão e o mocinho lutando pelo amor de sua musa; um complexo enredo sobre sobreviventes do nazismo e as feridas deixadas pelo Holocausto, que são representados pelos personagens Samuel (Juca de Oliveira) e Dionísio Albuquerque (Sérgio Mamberti). Como pano de fundo, está a vila de pescadores, tranquila, com militares da aeronáutica e a luta contra a exploração dos trabalhadores da extração de sal, mostrada pelo personagem Seu Chico (Cacá Amaral), pai de Cassiano. O eixo central da novela está no romance entre os três jovens e belos atores: Henri Castelli, Grazi Massafera e Igor Rockli. Os três são amigos de infância e tanto Cassiano quanto Alberto são apaixonados por Ester desde sempre. A trama começa em 2006, quando eles se reencontram, na ocasião, o tenente Cassiano pede a mão de sua noiva Ester em casamento, desper-
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na ponta da língua tando um sentimento de ciúmes e inconformismo em Alberto, que quer lutar por sua amada e para isso usa de sua influência, poder e dinheiro. Beleza é a palavra que melhor definiu “Flor do Caribe”. Tudo era bonito: os cenários convidativos e paradisíacos das praias potiguares; o elenco com atores jovens e de boa estampa, a cenografia que cuidadosamente caprichou em ressaltar o artesanato nordestino e, como cereja do bolo, a fotografia. Monjardim é um desses profissionais perfeccionistas, o resultado desse cuidado pôde ser conferido nas telinhas. No entanto, apesar do esmero da produção, a fragilidade na trama e no elenco eram perceptíveis. Grazi Massafera, por mais que tenha evoluído, ainda não estava pronta para ser protagonista; Igor Rickli, que parecia de início ser uma escolha equivocada, mostrou que não foi de todo mal, mas também não teve jogo de cintura para ser o vilão da história; quanto a Henri Castelli, ele não se sai mal enquanto coadjuvante, mas como protagonista mostrou que ainda tem muito a aprender. O sotaque nordestino ainda é um entrave para os atores do eixo Sul e Sudeste. Em “Flor do Caribe”, não foi diferente. Entre os vários núcleos, um carregou até demais no sotaque e outros não, mas creio que essa seja uma problemática recorrente em produções brasileiras de um modo geral. Há que se ressaltar as atuações da ala veterana do elenco, que emprestaram seu talento à novela: Laura Cardoso, como Dona Veridiana, esteve no núcleo cômico e sempre que entrava em cena chamava atenção; Juca de Oliveira, que viveu bem Samuel, um judeu atormentado pelos dramas da guerra, e Sérgio Mamberti, que foi o alemão um tanto quanto cruel que construiu um império às custas da guerra. Os personagens principais da novela foram as praias e as paisagens mostradas. As locações escolhidas para as gravações são o cartão de visitas do Rio Grande do Norte: as praias do litoral sul, Pipa, Sibaúma, Baía Formosa e Barra de Cunhaú; no litoral norte: Genipabu, Ponta do Mel e Porto do Mangue; e na região Seridó: Currais Novos. A capital potiguar também serviu de locação, foram gravadas cenas dentro do Forte dos Reis Magos, na região metropolitana, e a base aérea de Parnamirim foi o local de pouso do tenente Cassiano. Pipa é um dos destinos mais requisitados do Nordeste, possui praias de águas claras e mornas, imensos coqueirais, piscinas e mirantes. Localizada no município de Tibau do Sul, a praia fica a 85 km da capital, uma das praias do balneário é a Praia do Amor, um dos principais picos de surf, tem o mirante do chapadão, local perfeito para quem gosta de curtir a paisagem de uma forma privilegiada. Como um dos locais escolhidos para a filmagem da novela, a elevação proporciona uma vista linda para o mar da praia da Pipa. Além de ser agradável para apreciar o pôr-do-sol, serviu de locação para a novela, bem como a Praia do Madeiro. Além das belezas naturais, Pipa é cosmopolita, com uma intensa vida noturna, bares, restaurantes e pousadas. O local virou morada de muitos turistas estrangeiros que se encantaram pelo lugar e fixaram residência. Graças ao turismo crescente, o vilarejo pesqueiro de Sibaúma, em outros tempos um marasmo, tem-se ampliado, dando espaço para pousadas, bares e barracas de praia. Com vista para a praia de mesmo nome, o local fica no desaguar do Rio Catú. Seja pela constante brisa do mar, pelas areias finas ou pelas belas piscinas naturais, o destino encantou o elenco de “Flor do Caribe”. 50
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O sotaque
nordestino
ainda é um entrave para os atores do eixo Sul e Sudeste. em
Flor do Caribe, não foi diferente.
Boa parte das cenas da personagem Ester (Grazi Massafera), uma bugueira que faz passeios pelas dunas, foram rodadas nas dunas móveis de Genipabu, outro destino certo dos turistas que chegam em terras potiguares. Localizado a vinte quilômetros do centro de Natal, o Parque Turístico Ecológico Dunas de Genipabu também possui lagoas de água doce, com atividades para todos os gostos, desde passeios de dromedários, até o chamado “esquibunda” (os interessados descem as dunas sentados em cima de pranchas de madeira, até mergulharem nas águas da lagoa). Uma das primeiras cenas da novela, em que Ester e Cassiano (Henri Castelli) se reencontram, foi rodada na lagoa. A equipe de filmagens da novela também fez uso das belezas e atrativos do interior do estado, gravando cenas na cidade de Currais Novos, localizada na região Seridó, a 172 km da capital, lá foram gravadas as cenas em que Cassiano (Henri Castelli) cai na cilada do amigo Alberto (Igor Rickli) e acaba se tornando refém na Guatemala, no Caribe, onde é forçado a trabalhar em uma mina para um receptador de pedras preciosas. Somente sete anos depois, ele conseguirá fugir. A mina Brejuí serviu de locação. Outro tema abordado na novela, e que tem conexão direta com a capital potiguar, é a Segunda Guerra Mundial, a base aérea de Parnamirim foi determinante para que a força aliada pudesse chegar até a África e Europa, sendo assim crucial para o fim da guerra. Construiu-se uma estreita e intensa relação com os norte-americanos em Natal. Vilas foram construídas no populoso bairro do Alecrim e também casas de oficiais nos bairros de Petrópolis e Tirol, e muitos soldados e militares da força aérea norte-americana passaram pela cidade. A base aérea ficou conhecida como Trampolim da Vitória. O saldo de “Flor do Caribe” foi positivo para a Rede Globo, que pôde reaver seus bons índices no horário das seis da noite, mas, quanto ao turismo potiguar, ainda se espera o retorno, um maior número no fluxo de turistas no estado, dando assim um novo fôlego ao setor. Após a exposição das praias potiguares, se as expectativas dos empresários se confirmarem, então o folhetim se encerrou com chave de ouro.
fundo do baú
Americans are coming
natal na segunda guerra Antonio Nahud
Milton Vieira
Cedidas
Posição geográfica da capital potiguar atraiu tropas americanas em 1942. Ocupação acelerou o desenvolvimento local e mudou a sociedade.
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fundo do baú Em 1939, quando o governo de Getúlio Vargas ainda tinha posição dúbia em relação à política internacional, somente tentando se aproveitar das vantagens oferecidas pelas grandes potências em guerra, um hidroavião da companhia Lufthansa, com o símbolo nazista na cauda, pousou no Rio Potengi, em Natal, alertando que seria impossível ficar em “cima do muro”. Dois anos passados, após o ataque japonês a Pearl Harbor, quando o Brasil enfim declarou guerra ao Eixo depois de vários navios mercantes terem sido atacados por submarinos ítalo-alemães, com quase 700 mortes -, nove hidroaviões norte-americanos aterrissaram no mesmo rio como observadores. Na época, o Departamento de Guerra dos Estados Unidos da América considerava a capital potiguar um dos quatro pontos mais estratégicos do mundo, ao lado do Estreito de Gibraltar e dos canais de Suez e Dardanelos, no mar Mediterrâneo. Assim, montou-se em Natal o principal quartel-general dos países aliados no hemisfério sul. Outras bases controladas por norte-americanos seriam preparadas no Brasil, do Amapá a Santa Catarina, mas nenhuma delas rivalizou em movimento e importância com o Campo de Parnamirim e a Base Naval de Hidroaviões, os dois núcleos militares potiguares durante a guerra. Durante esse período, o comandante da Guarnição Militar de Natal, Cordeiro de Farias, ordenou blecautes, assombrada que estava a população com a notícia de que Adolf Hitler preparava uma invasão ao Rio Grande do Norte e Pernambuco. A população tinha que ficar na escuridão, todas as noites, a partir de uma hora determinada. Em 1943, contavam-se cinco mil militares acantonados e cinco mil em trânsito na cidade. No céu, aviões C-47, B-25 e muitos outros, que vinham dos Estados Unidos, abasteciam em Natal e partiam para fazer a travessia do Atlântico rumo ao continente africano. Acidentes aéreos, muitos deles com vítimas fatais, tornaram-se frequentes. No ar, a tensão da guerra, com holofotes iluminando o infi-
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A cara de Natal mudou repentinamente. Avenidas foram asfaltadas, o dólar virou moeda corrente no lugar dos mil réis, construiu-se uma fábrica de Coca-Cola - a primeira da América Latina e a quarta do mundo nito noturno em busca de aviões inimigos. A Base Naval de Hidroaviões, de tão importante que foi para o sucesso no desembarque na Normandia, no famoso Dia D, foi apelidada de Trampolim da Vitória, devido ao grande salto que ela proporcionou para a frente aliada. A cara de Natal mudou repentinamente. Avenidas foram asfaltadas, o dólar virou moeda corrente no lugar dos mil réis, construiu-se uma fábrica de Coca-Cola - a primeira da América Latina e a quarta do mundo -, abriram-se lanchonetes e uma cervejaria, a PX Beer Garden. Os natalenses passaram a
consumir sorvete, ketchup e chocolate gelado; usavam óculos de aviador, fumavam Marlboro e Lucky Strike, mascavam chicletes de tutti-fruti, adotaram roupas esportivas e calças jeans, cantavam jazz. Incorporaram o costume de fazer a barba com frequência, o hábito de tomar refrigerante e comer sanduíches. Também adicionaram ao idioma nativo expressões da língua inglesa, como “my friend”, “ok” e “bye-bye”. Foram organizados bailes na base naval, alguns com classificação “for all” (para todos), expressão que, segundo alguns historiadores, deu origem ao termo forró. Nessas festas, podiam ser encontrados astros de Hollywood como Bette Davis, Clark Gable, Marlene Dietrich, Humphrey Bogart, Al Johnson, Tyrone Power, entre outros. A orquestra de Glenn Miller tocou no Cine Rex. As praias de Ponta Negra, um trecho da orla batizado de Miami e o mar de Areia Branca eram as preferidas dos soldados em dias de folga. Sol, banhos de mar, bailes, cerveja gelada e muito namoro era o cotidiano dos norte-americanos nos intervalos dos combates no Atlântico. A movimentação estrangeira tornou Natal a cidade mais importante do Nordeste nesses anos, trazendo desenvolvimento e modernidade de costumes. Os estrangeiros gastavam muito dinheiro, prosperando os negócios. Muita gente fez fortuna. Theodorico Bezerra, dono do Grande Hotel, encheu os bolsos abrigando a elite dos oficiais estrangeiros. A viúva Machado, dona das terras onde foi erguido o Campo de Parnamirim, idem. Várias casas, como o Hípico e os Clubes 50, foram inauguradas para abrigar bailes que agitavam a região. Surgiram também bares suspeitos e cabarés nas ruas Doutor Barata, Chile, Tavares de Lira e Frei Miguelinho, na Ribeira, perto do porto. Prostíbulos como o Wonder Bar, o Cabaré de Maria Boa, a Pensão da Estela e o Bar Ideal eram os mais concorridos. O índice de doenças venéreas cresceu tanto que soldados passavam semanas de cama, afastados das operações. Foi preciso uma intervenção oficial, em caráter de urgência, com as garotas da zona do meretrício sendo examinadas e as saudáveis recebendo atestados de saúde - os famosos “love cards”. As moças “de família” adotaram costumes norte-americanos, passando a ir sozinhas ao comércio e às festas promovidas pelas tropas. Elas, que antes só saíam de casa acompanhadas dos pais ou irmãos, cobiçadas, eram convidadas vips dos bailes dos clubes militares e se recusavam a namorar
os nativos, de olho nos gringos, para revolta da população masculina local. Segundo os registros de Luís da Câmara Cascudo, cerca de 32 mulheres casaram com norte-americanos. Algumas deixaram o país, outras ficaram na cidade, como é o caso de Guiomar Gomes, que casou-se com o sargento Donald Wroblewski. Mas nem todas tiveram essa sorte, várias mulheres solteiras ficaram grávidas de combatentes norte-americanos, iniciando uma mistura interessante: nordestinos com olhos verdes ou azuis, geralmente com nomes próprios ingleses aportuguesados. O acerto para o envio de tropas brasileiras ao continente europeu foi realizado em Natal, no ano de 1943. Para isso, foi necessária a vinda do Presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, e o do Brasil, Getúlio Vargas. Os dois circularam pela cidade e acordaram como seria a parceria entre o Brasil e o bloco dos Aliados com a ida dos soldados brasileiros para a guerra. Como existia o receio de que os alemães quisessem tomar Natal, exatamente pela localização privilegiada, os combatentes também precisavam tomar conta do litoral. O medo era de que os nazistas chegassem em submarinos. Nessa época, cerca de 42 mil estrangeiros passaram por Natal, cuja população era de aproximadamente 55 mil habitantes. A capital potiguar, contudo, jamais foi palco de qualquer combate. Nenhuma bomba inimiga foi lançada e os únicos tiros ouvidos eram de treinamentos rotineiros dos norte-americanos. No meio do horror do conflito mundial, os aliados se viram num lugar atraente e amistoso. O sol ardente; o mar quente e calmo; as dunas mutantes; o vento perene; as relações pessoais... Tudo era novo em suas vidas. Por vias tortas – a guerra –, eles foram encaminhados ao paraíso. Com o fim da guerra, em 1945, a crise financeira se instalou na cidade e pouco a pouco Natal foi perdendo seu prestígio. Restou a estrutura deixada pelos anos de investimentos norte-americanos, além das lembranças dos dias de prosperidade. Momentos eternizados na história potiguar e nos álbuns de fotografias de milhares de soldados.
As moças “de família” adotaram costumes norte-americanos, passando a ir sozinhas ao comércio e às festas promovidas pelas tropas. eram convidadas vips dos bailes dos clubes militares e se recusavam a namorar os nativos, de olho nos gringos... novembro 2013
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bossa
A minha coragem, força e o fato de acreditar no que faço, levam-me sempre a novos começos. Portanto, a música é um sonho que não tem fim.
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Lígia
trocando
França
em miúdos Antonio Nahud
Morvan França
Ela nasceu em Natal. Desde pequena escutava e cantava músicas badaladas, mas sua identidade musical surgiu realmente aos 12 anos, participando do Grupo Regional Pó da Terra. Após inúmeros shows em bares e palcos, partiu de mala e cuia para a Itália, onde mora há 18 anos. Na terra do mestre Nino Rota, lançou três excelentes discos: “Vida” (2006), “Mundo Melhor” (2008) e “Meu Mundo é Hoje” (2010). Recheados de canções cuidadosamente escolhidas, em seus discos figuram nomes como Ary Barroso e Dorival Caymmi. Segundo o italiano Luciano Bertrand, conhecido agente de música, o swing de Lígia Fraça “é natural, elegante. Sua voz é preciosa”. Tem toda razão.
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bossa Como decidiu tornar-se artista? Não me decidi, nem me dei conta a respeito. Acredito que quando tens um dom, seja ele qual for, mais cedo ou mais tarde, ele desperta naturalmente, passando a existir de um modo marcante e decisivo no seu percuso. Você já realizou seus sonhos musicais? Tempos atrás, era difícil imaginar que realizaria o que eu terminaria por conseguir. A minha coragem, força e o fato de acreditar no que faço, levam-me sempre a novos começos. Portanto, a música é um sonho que não tem fim. Como se traduz? Profunda e melancólica é como me vejo. Adoro interpretar canções em que a melancolia esteja presente, mesmo de maneira sutil. Ao mesmo tempo, estou pronta para outros diferentes ritmos. A curiosidade faz parte de Lígia França. É complicado lidar com música num país estrangeiro? A apresentação em locais propícios e em festivais importantes é fundamental. O seu toque pessoal e novos projetos fazem com que a sua determinação resulte em apresentações e seja bem vista. A nossa música é bem aceita pela sua harmonia e acordes, sem falar das belas letras, portanto, trabalhar com esse “cartão de visita”, a Música Popular Brasileira, passa a ser de grande satisfação, ajudando a superar barreiras. Dá para perceber muitas influências no seu trabalho: jazz, bossa-nova, samba-canção etc. Quais os artistas que você gosta de ouvir? Quando morava no Brasil, ainda na minha infância e adolecência, muitas cantoras nossas me influenciaram. A mais presente foi a grande intérprete Elis Regina. Admirava o modo forte, e ao mesmo tempo frágil, como ela interpretava cada canção. Nara Leão, com sua voz doce e afinadas bossas. Leny Andrade, de técnica admirável. Mulheres, cantoras maravilhosas no que faziam. O samba e o choro, que escuto desde menina, também são importantes na minha trajetória musical, sinônimo de tristeza e alegria. Ao sair do Brasil, comecei a escultar coisas que aos meus ouvidos até então eram desconhecidas, uma janela imensa, cantoras como Billie Holliday, Ella Fitzgerald, Sarah,Vaughan, Nina Simone, Anita O’Day, Aretha Franklin, Etta James etc. me fizeram conhecer outros caminhos musicais essa marcados por vozes espetaculares, cheias de força e sentimentos. As minhas influências musicais vêm de tudo isso,ou seja, do que ouço. Como é a sua rotina de ensaios para os shows? Tudo depende se existe no projeto tournée de lançamento de um disco. Gosto do período de ensaios. A cumplicidade dos envolvidos no espetáculo é fundamental. Procuro sempre a entrega total. Há músicas que você gosta mais depois de gravadas? Normalmente sou eu mesma que escolho o meu repertório, seja nas apresentações ou nos discos. Existem músicas que depois de gravadas superam a expectativa. Mas, creio que isso seja normalíssimo. 56
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Sambistas como Noel Rosa, Pixinguinha, C a r to l a , N el s o n Cavaquinho, Adoniram B a r b o s a , W il s o n Batista e Paulinho da Viola. Eu os ouço desde pequena e me acompanham até os dias de hoje. Qual a sua melhor interpretação gravada e qual foi aquela que depois de ouvi-la, pensou: “Não era bem isso que eu queria”? Fico com duas canções do meu terceiro disco, “Meu Mundo É Hoje”: “Inolvidable”, de Júlio Gutierrez, com arranjo do pianista Aruan Ortiz, e “Guarda che Luna”, de Fred Buscaglione, com arranjo de Roberto Taufic. Como sou muito crítica em relação ao meu trabalho, sempre penso que o resultado de qualquer gravação poderia ter sido melhor. Qual o sambista que lhe levou a se interessar por samba? Sambistas como Noel Rosa, Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniram Barbosa, Wilson Batista e Paulinho da Viola. Eu os ouço desde pequena e me acompanham até os dias de hoje. Os seus discos misturam elementos modernos e tradicionais da música brasileira. É intencional? Totalmente. A Europa aprecia ritmos variados e canções de ontem e de hoje.
Qual o gênero musical que Lígia França jamais cantaria? Mesmo respeitando todo tipo de música, jamais gravaria metal ou brega. Nem mesmo gosto de ouvir. Nestes casos, sou muito radical, confesso. Você teve uma vida marcada pela luta contra o câncer. De alguma forma essa batalha marcou sua história musical? A minha luta em relação a minha saúde aconteceu em certa fase de minha vida. Foi um período de grande criatividade e vontade de realizações, mas não acredito que a doença tenha marcado minha música. Sei que tudo acontece no tempo devido. O importante é insistir nos sonhos, acreditando no seu trabalho. E os seus estudos musicais? Ainda no Brasil, estudava canto, mas tive que interromper para dar início ao meu tratamento. Retomei os estudos na Itália muitos anos depois, ao sentir que precisava me aprofundar ainda mais na música. Quem está no acervo pessoal de Lígia França? Artistas famosos e desconhecidos. São inspirações que me acompanham desde sempre. Inclusive a rica obra de cantores antigos. Em cena, você se inspira em algum artista, seja na postura ou no domínio de palco? Não. Mas antes de entrar em cena, costumo pedir licença e força a compositores e cantores para interpretar suas música. Princinpalmente aos que já não estão conosco.
O samba e o choro, que escuto desde menina, também são importantes na minha trajetória musical, sinônimo de tristeza e alegria.
Se sente de alguma forma insegura no palco? Não. Mas não nego que é uma responsabilidade única que se tem durante cada apresentação, afinal, o público é sempre diferente. Minutos antes de entrar em cena, com as mãos frias e suadas, procuro o olhar cúmplice dos músicos que estão comigo no palco, e o coração comanda o show.
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S. m. - Folheto ou livro que, além do calendário do ano, traz diversas indicações úteis, poesias, trechos literários, anedotas, curiosidades etc. (Houaiss). [Do árabe al-munákh,]“lugar onde o camelo se ajoelha”, ponto de encontro e de conversa dos beduínos. Repertório, endimião, camião, sarrabal. Edição de Arte: Milton Vieira
O POETA PUBLICITÁRIO
PACA ___Segundo roedor brasileiro em tamanho, perdendo apenas para a capivara. Adapta-se a ambientes muito variados, mas prefere as zonas cobertas com vegetação alta, vizinhas a rios ou riachos. É boa nadadora e gosta de água – é na água que se refugia quando está em perigo. Animais herbívoros, passam a noite em busca de frutos na mata. As pacas são, por temperamento, solitárias e tímidas, porém, em cativeiro convivem bem com outros animais. O tamanho pode variar de 60 a 80cm, e quando adultas, alcançam entre 6 e 12 quilos.
A marca “Rapadura” foi registrada pela empresa alemã Rapunzel, nos Estados Unidos e na Alemanha. A patente impede que os produtores brasileiros exportem o doce de cana-de-açúcar com a marca “Rapadura” para esses dois países.
Lampião e seu bando sofreram sua primeira grande derrota armada em Mossoró, cujos habitantes resistiram até da torre de uma igreja, a capela de São Vicente, onde foi construído o curioso e bem documentado Museu do Cangaço.
Completam-se, neste ano, 131 anos do nascimento e 56 anos da morte do pernambucano Manuel Bastos Tigre – jornalista, bibliotecário, poeta, compositor, humorista e publicitário de mão cheia. Foi ele quem criou, em 1922, o slogan “Se é Bayer, é bom”, utilizado até hoje pelo laboratório alemão. É dele, também, um dos reclames mais famosos da história da publicidade brasileira: “Veja, ilustre passageiro, / O belo tipo faceiro / Que o senhor tem ao seu lado. / No entanto, acredite / Quase morreu de bronquite: / Salvou-o o Rhum Creosotado”. Foi ele ainda quem compôs a letra de um dos primeiros jingles do país, “Chopp em Garrafa”, musicado por Ary Barroso e cantado por Orlando Silva.
DITADO POPULAR
“Laranja madura na beira da estrada, ou 58
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VULCÃO___O único vulcão extinto do Brasil, que conserva sua forma original, é o do Pico do Cabugi, no Rio Grande do Norte, em Angicos, e esse nome, em linguagem indígena, significa peito de moça.
400 artistas ao redor do mundo interpretaram
“Asa Branca”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, seja em versões em português, inglês ou até japonês.
Alguns santos do mês de outubro Santa Teresinha do Menino Jesus (de Liseux), Dia 1 São Francisco de Assis, Dia 4 Santo Benedito, dia 05 Nossa Senhora Aparecida, dia 12 Santa Teresa D’Avila, dia 15 Santa Úrsula, dia 21.
“Somente quando for cortada a última árvore, pescado o último peixe, poluído o último rio, é que as pessoas vão perceber que não podem comer dinheiro”. PROVÉRBIO ÍNDIGENA
BISCOITO MARIA_________ O biscoito Maria existe desde 1874 e tem esse nome no mundo inteiro. Foi criado por um confeiteiro inglês para festejar o casamento do Duque de Edimburgo com a Duquesa Maria Alexandrovna, da Rússia, em São Petersburgo. O biscoito já exibia o formato redondo e o nome Maria gravado em sua superfície. Apesar de ter sido criado na Inglaterra, o biscoito não se tornou muito popular naquele país. Conquistou mais sucesso em outras plagas da Europa, como Espanha e Portugal. Depois, ganhou o mundo.
ORIGEM DA EXPRESSÃO “A VACA FOI PRO BREJO” A frase usada para definir situações limite e sem solução vem das regiões brasileiras com longo período de estio. A vaca, uma das escassas fontes de sustento do nordestino, ao não suportar os longos períodos de estiagem, geralmente parte em busca de água, causando grande sofrimento ao seu proprietário.
está bichada ou tem maribondo no pé”. novembro 2013
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Os Peãs
cabeceira nordestina
José Inácio Vieira de Melo
Ricardo Prado
Gerardo Mello Mourão foi uma das vozes mais representativas da Literatura Brasileira contemporânea. Nasceu em 1917, no pé da serra do Ibiapaba, em Ipueiras, sertão do Ceará, e teve uma vida bastante acidentada, cheia de aventuras, prisões e exílios. Morreu em 2007, na cidade do Rio de Janeiro, aos 90 anos. Gerardo foi um poeta de expressão singular, considerado por vários críticos e muitos escritores – entre eles, Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, José Cândido de Carvalho e Octavio de Faria – como o poeta maior do Brasil. Sua obra mereceu, ao longo de mais de meio século, a atenção de grandes nomes da Literatura Ocidental, como Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luis Borges e Robert Graves. A vasta e variada escritura de Gerardo Mello Mourão compõe uma das mais elevadas contribuições para a literatura contemporânea e consegue alcançar dimensões universais, como é de se esperar de toda alta escritura. Escreveu, com brilhantismo e erudição, em verso e em prosa (romances, contos, ensaios e biografias). Entre seus livros, destacam-se o romance O Valete de Espadas (1960), o livro de ensaios A Invenção do Saber (1983), a epopeia Invenção do Mar (1997) e a trilogia poética Os Peãs (1980), composta pelos livros O País dos Mourões (1964), Peripécia 60
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de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977). Com Os Peãs, Mello Mourão alcançou, por outros caminhos e de outras formas, o sopro criador de um Camões, fundando um certo Brasil a partir da saga de sua família, os Mellos e os Mourões. Ao contrário do criador de Os Lusíadas, Gerardo não se utiliza apenas de formas fixas para construir seu canto. Seus versos podem ser bárbaros, de longo fôlego, como haveria de ser para poder narrar os episódios de Alexandre Mourão, herói de O País dos Mourões, como são também decassílabos e redondilhas que seguem o apuro técnico e rítmico dos cantadores de feira do Sertão. O ritmo grandiloquente, assemelhando-se às escrituras bíblicas, e os versos longos, mesclados de palavras e frases em vários idiomas, assim como os grafitos e as marcas dos brasões de sua família, que na verdade eram ferros de marcar gado, causaram grande estranhamento aos leitores mais comportados, incapazes de apreciar aquela diferença visual e de sentir o ritmo galopante da poética cartorial de Os Peãs, que veio inaugurar um novo momento na literatura brasileira. Outro aspecto preponderante nessa trilogia é a presença constante dos mitos gregos em diálogo com os personagens do sertão do Ceará.
Personagens reais aos quais são atribuídos dons e dotes mitológicos, pois o que é o mito, senão o fruto do nosso pasmo e do desejo de inventar os deuses e os santos. Ezra Pound percebeu que Gerardo tinha inaugurado o canto da genealogia da América. E esta é uma velha ambição cosmogônica: fazer, não a genealogia pessoal, mas a genealogia do seu povo, do seu mundo. Onde caíram, à esquerda e à direita, seus ancestrais, Gerardo convida a sua musa para serem os fundadores de um povo, e assim, através do ato amoroso, fundar O País dos Mourões:
“Peã” significa canto de louvor a Apolo, deus grego da beleza, patrono do Oráculo de Delfos e líder das Musas. Pois bem, a peripécia do criador de “O País dos Mourões” segue o “Rastro de Apolo”, que o conduz para o Oráculo de Delfos e de lá, sempre guarnecido pelas Musas, segue numa viagem pelas Áfricas, Europas e Américas, onde não há fronteiras entre tempo e espaço, e as geografias e cronologias se misturam ao bel prazer do herdeiro de Apolo, para que possa expressar o seu delírio de andarilho planetário. Mas, cantador dos sertões das Ipueiras, imprime no centro do livro um cordel composto de sextilhas heptassilábicas onde narra a “Vida e os feitos de Apolo”:
Apalpa, meu amor, meu corpo inteiro, sou macho e forte e em meus ombros de touro porque não te levar na madrugada e atravessar contigo as ruas desertas e as ruínas e as cidades cobertas de hera onde à esquerda e à direita eles tombaram e à beira de um riacho ver teu ventre crescer e irem surgindo já de mãos dadas, já de pés em dança rapazes e raparigas e a cantiga
Devoto fiel de Apolo cantador de profissão, vou cantar o deus da lira de minha religião quero contar sua vida fazer sua louvação.
Em Peripécia de Gerardo, a palavra-chave é “eleuteria”, que em grego significa “liberdade”. E do centro da Rosa dos Ventos, o poeta grego nascido no Ceará olha para todos os cantos e dá o passo, inventando caminhos e conhecendo lugares e ensinando e aprendendo que liberdade é amor.
A trilogia Os Peãs é uma prova do vigor da lira gerardiana, que não cabe em moldes nem em escolas literárias. Passear pela seara da obra de Gerardo Mello Mourão é sentir o “aroma, maciez e música” de uma poesia maior. Nenhum outro poeta brasileiro recebeu, em quantidade e qualidade, número tão grande e tão respeitável de artigos sobre sua obra. Somente os literatos de ouvidos cegos, que não conseguem alcançar o ritmo da sua poética poliédrica, é que não percebem a sua grandiosidade. O próprio Drummond declarou-se “possuído de violenta admiração pelo imenso, dramático e vigoroso painel” da poesia de Gerardo, pois sabia do opus magnífico do bardo de Ipueiras que, “atestará para sempre a grandeza singular e a intensidade universal da poesia”.
José Inácio Vieira de Melo Natural do povoado de Olho d’Água do Pai Mané, Alagoas, é radicado na Bahia desde 1988. É poeta com cinco livros publicados, dos quais se destacam A Terceira Romaria (Aboio Livre, 2005; Anome Livros, 2011), A Infância do Centauro (Escrituras, 2007) e Roseiral (Escrituras, 2010). Mantém o blog Cavaleiro de Fogo: www.jivmcavaleirodefogo.blogspot.com
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à la verne
Viagem DO CORAÇÃO Sheyla Azevedo
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ueria de volta aquela sensação de ver o novo e deixar nascer o olhar. Queria estar estranha num lugar que não me pertencia, nem eu pertencia a ele. Sempre que viajo é como se pudesse me apropriar de uma das características mais encantadoras dos gatos: olhar para as coisas - e eles fazem isso todo santo dia - como se fosse a primeira vez. Como se fosse um momento único e irrevogável transitar pelas avenidas de uma cidade nova, atentar-se para os prédios, as casas, as pessoas circulando, paradas nas esquinas, pessoas que você, provavelmente, nunca mais verá, tampouco saberá sobre suas vidas. É isso que nos permite viajar dentro da viagem. De construir pequenos e únicos momentos com suas cores, cheiros e movimentos que jamais se repetirão. Foi em Santa Catarina - o máximo ao sul do país aonde já cheguei - que vi pela primeira vez gaivotas no mar. Aqui na nossa região temos muito sol, céu azul, dunas e coqueiros e deve ser lindo para quem vê pela primeira vez. Mas eu me encantei com aqueles pássaros brancos, descansando placidamente pela areia das praias banhadas em prata lunar, porque foi ali que percebi, de maneira definitiva, que eles eram os habitantes e eu a visita. E, confesso, não tive coragem de adentrar no mar gelado do Sul. Jamais trairia as águas mornas do meu Nordeste. Pouco tempo. Muitas cidades para visitar. Uma vontade imensa de esticar os dias em varais de muitas horas. Primeiro pouso, Floripa. Na manhã seguinte, deveria seguir a estrada para conhecer lugares como, Pomerode, a cidade mais alemã do Brasil, Blumenau e Joinville. Minha base seria Balneário Camboriú, um município que fica na Região Metropolitana da Foz do Rio Itajaí, no litoral norte. É lá onde tem uma enorme estátua do Cristo, não o Redentor, mas o Cristo Luz, com 33 metros de altura e 528 toneladas. Uma vista esplendorosa da cidade, a mais de 150 metros do
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nível do mar. Impossível não querer fazer uma prece e agradecer. Quando ainda estava em Floripa, me arrisquei num desses passeios tradicionais e fui até a Praça XV de Novembro. A natureza plantou naquele lugar uma figueira que já ultrapassou os cem anos há muito tempo. Ela é tão grande e imponente em sua inércia gigantesca que dá, literalmente, para fazer um passeio ao seu redor. E, dizem os antigos que, dando-lhe sete voltas ao seu redor, ela apressa a chegada do amor. Estava na terceira quando ouvi uma voz desconhecida e acolhedora: - A senhorita está querendo encontrar um grande amor? Olhei para a direção da voz e vi um velho senhor sentado num banco bem cuidado, de boina e uma bengala acostumada às suas mãos, descansando do exercício de apoiar os passos trôpegos dos anos. Ele tinha um sorriso maroto e, de repente, fiquei envergonhada, censurando-me por acreditar que dando sete voltas ao redor de uma velha árvore eu pudesse encontrar alguma coisa senão o ridículo daquele ato. Talvez acreditar numa lenda boba como essa seja uma espécie de ponto de partida, de anunciação ao coração de que sim, o amor pode surgir e pode entrar; uma espécie de senha de acesso que damos ao acaso. Não lhe falei nada, apenas descansei o rosto numa expressão amigável e num sorriso tímido e desisti das outras quatro voltas. Arrumei a mochila nas costas e me encaminhei para o barco, que já me esperava para conhecer um pouco da história da ilha. Foi quando o acaso me fitou pela primeira vez, naquele barco. - Você vem lá de cima? – ele me perguntou, com o sorriso mais simpático do mundo nos olhos azuis e uma cor clara de cabelo que nenhuma L´oréal Paris seria capaz de reproduzir. Passei três segundos para decodificar que aquilo não era uma cantada barata e que ele estava falando em termos geográficos e, imediatamente, me lembrei do Atlas do mapa do Brasil, mostrado pela professa da terceira série. O Nordeste fica lá no alto.
Sempre que viajo é como se pudesse me apropriar de uma das características mais encantadoras dos gatos: olhar para as coisas - e eles fazem isso todo santo dia - como se fosse a primeira vez. – Sim. Respondi reticente, mas num tom amigável, e ele engatou: – Seu cabelo é lindo! Quase tocando nos anéis dos meus cachos negros, como se meu tom de pele e o meu sotaque fossem uma iguaria para aquele mar de pessoas brancas, loiras e absolutamente lindas. - Meu cabelo é tapuia. Brinquei, sem saber se ele entenderia. Mas ele entendeu e demonstrou interesse. E assim fomos cada vez mais nos entendendo nas próximas horas, enquanto falávamos sobre viagens, passeios, livros, música, política, economia, horóscopo, diferenças territoriais, encontros e uma vontade de não se desgrudar enquanto fosse possível. Principalmente depois do primeiro beijo, que aconteceu de frente para o mar, tendo as gaivotas como testemunha. O sabor inigualável da cuca alemã em Pomerode, a leveza dos cristais de Blumenau e o cheiro das flores da entrada de Joinville se misturaram com sua presença permanente e acolhedora. E ele ria quando eu dizia que o Jägermeister tinha gosto de biotônico Fontoura. E ríamos muito mais juntos depois de algumas tacinhas daquilo, e eu me sentia feliz e, de certo modo aliviada e livre de qualquer problema ou perigo. Tudo era possível e o todo o resto poderia esperar. Bom, e é verdade que estava desacostumada de tanta gentileza masculina e quase tinha um susto quando ele tirava o casaco para ajudar a me aquecer, porque, todos os dias, eu batia os dentes de frio a partir das cinco da tarde. Foram dias de alegria e contentamento. Dias em que as estrelas adiavam, até às oito da noite, a tarefa de espiar a terra e o sol tinha mais preguiça de amanhecer. – Quem sabe eu não subo o mapa para te encontrar, qualquer hora dessas, tapuia. Ele me disse na despedida. E, embora eu não precisasse acreditar naquilo, o beijei longamente e com urgência, porque ainda queria manter intacta em mim a sensação de alívio por não necessitar procurar, nem dar mais voltas ao redor do mundo - ou de árvores - para encontrar um grande amor.
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dossiê COM AÇÚCAR, COM AFETO
Os engenhos de Ceará-Mirim Andressa Vieira
Morvan França
Cidade de patrimônio histórico-cultural riquíssimo, que já foi a maior produtora de cana-de-açúcar do estado, hoje comporta um aglomerado de engenhos descuidados e casarões desabitados
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O número de
engenhos e plantações diminuiu significativamente, provocando uma queda em toda a abundância decorrente da
cana-de-açúcar. Engenho Imburanas
A aristocracia dominante trafegando em carruagens forradas de seda, festas esbanjadoras em um dos vários casarões da cidade, plantações de cana-de-açúcar que prosseguiam até onde a visão alcançava e dezenas de engenhos responsáveis por uma das grandes produções nacionais de açúcar. Esse não seria um cenário atípico de ser imaginado há pouco menos de duzentos anos em Ceará-Mirim, localizada há aproximadamente 28 km de Natal, na região metropolitana, cidade que, por sua majestade histórica, teria tudo para ainda figurar um importante lugar na lista dos destinos turísticos mais visitados do Estado. Não fosse o desleixo ao qual está submetida. A história da cidade tem desaparecido aos poucos, deixando um triste rastro de casarios e engenhos em ruínas. Arquitetura desgastada, paredes pichadas e chaminés solitárias à espera de serem tombadas pelo patrimônio arquitetônico do Estado. Quando, no século XVII, o “homem branco” português chegou oficialmente ao Vale do Ceará-Mirim, às margens do Rio Pequeno (hoje, Rio Ceará-Mirim), os índios Potiguares, chefiados por Felipe Camarão, o índio Poty, já habitavam o local. Logo, os colonizadores portugueses fizeram uso do trabalho escravo para desenvolver a economia do lugar, através do plantio de cana-de-açúcar, que chegara ao Rio Grande do Norte através dos colonizadores pernambucanos, tornando o lugar referência de ostentação e de muito luxo. Somente em 1882, depois obter status econômico, a vila recebeu o título de cidade, sendo denominada de Vila do Ceará-Mirim. É na primeira metade do século XIX que se verifica a maior expansão da produção de cana-de-açúcar no Estado. Segundo o historiador Rocha Pombo, em 1861, havia 173 engenhos de ferro e 12 de madeira produzindo açúcar, rapadura e outros produtos derivados. Desses, 44 eram localizados em Ceará-Mirim, o maior polo açucareiro do Rio Grande do Norte. Contudo, a partir da segunda metade do século XIX, o Brasil deixou de ser potência hegemônica no açúcar e começou a enfrentar concorrência nessa atividade econômica, o que causou a crise do setor no país. Por causa dessa disputa, a partir de 1865, os senhores de engenho do Rio Grande do Norte começaram a abandonar a cultura da cana-de-açúcar. Então, no início do século XX, a favor da modernização, começaram a surgir as usinas de açúcar, o que não livrou os plantios potiguares da crise da superprodução. O número de engenhos e plantações diminuiu significativamente, provocando uma queda em toda a abundância decorrente da cana-de-açúcar. Hoje, a cidade de Ceará-Mirim ainda preserva alguns casarios do início do século XIX, construídos no auge da produção açucareira. Alguns em bom estado, a maioria, desgastados, representação de um descaso e ignorância que têm se tornado comuns quando o assunto é o zelo pelos pontos turísticos e símbolos históricos do Estado. Engenho Guaporé
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dossiê
Engenho Verde Nasce
Alguns engenhos de Ceará-Mirim ENGENHO GUAPORÉ Construído no século XIX, por Manoel Varella do Nascimento, o Barão de Ceará-Mirim, para ser morada do Dr. Vicente Inácio Pereira (ex-governador do Rio Grande do Norte), casado com Isabel Varella, filha do Barão. A casa-grande do engenho costumava ser a casa de veraneio do Barão. Hoje Museu Guaporé, tem arquitetura em estilo francês, e na época era a residência mais pomposa da aristocracia canavieira. ENGENHO MUCURIPE Fundado no século XIX, pelo Major da Guarda Nacional, Antero Leopoldo Raposo da Câmara. Em 1935, Ruy Pereira (trineto do Barão de Ceará-Mirim) assume o comando do Engenho. Ainda possui o maquinário de fogo, vindo de Londres no século XIX, aceso e preservado. É o único engenho fundado no século XIX no Vale do Ceará-Mirim que está ativo. ENGENHO SÃO LEOPOLDO Fundado no século XIX, pelo Coronel da Guarda Nacional, Manoel Leopoldo Raposo da Câmara. Aqui nasce a família Câmara do Rio Grande do Norte, que tem vários filhos ilustres como Augusto Leopoldo Raposo da Câmara, que foi senador e deputado provincial. A casa-grande ainda é preservada com acervo de mobília e mosaicos antigos. Um dos principais destinos turísticos de Ceará-Mirim, tanto para turismo rural quanto pedagógico.
ENGENHO NASCENÇA Conserva a tradição açucareira por preservar todo o acervo do baronato de CearáMirim. Foi fundado no final do século XIX, por Hermínio Leopoldino Cavalcanti. Em 1967, foi adquirido por Roberto Pereira Varela (trineto do Barão de Ceará-Mirim), que levou para lá todo o acervo do Barão, que consiste em camas, mesas e carruagens ainda preservadas. Possui em suas terras a nascente do Rio Água Azul, principal afluente do Rio Ceará-Mirim. CASA-GRANDE E CAPELA DO ENGENHO CRUZEIRO A casa-grande do Engenho Cruzeiro foi construída no final do século XIX. Trata-se de um prédio de relevante importância arquitetônica. Ao lado da residência foi edificada a Capela do engenho, em 1904. ENGENHO CARNAUBAL Fundado em 1840. Três anos depois, inaugurou a primeira moenda de ferro horizontal trazida da Inglaterra. ENGENHO CAPELA Fundado pelo Barão de CearáMirim, tendo sido construído em 1869. Hoje, ainda conserva toda sua estrutura, estando também uma parte das máquinas em bom estado de conservação. ENGENHO DIAMANTE Está em ruínas e possui uma bela fonte de águas cristalinas, cercada de árvores nativas. ENGENHO OITEIRO- Foi fundado em 1889. ENGENHO SÃO FRANCISCO Fundado pelo Barão de Ceará-Mirim, foi transformado posteriormente em usina. ENGENHO VERDE NASCE É movido a vapor e seu maquinário é todo original. Em frente ao engenho existe uma cerca de ferro trazida da Inglaterra. A sua casa-grande foi tombada pela Fundação José Augusto.
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Engenho Santa Teresa
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Fé em Bom Jesus da Lapa
Ricardo Prado
A profundidade e a beleza da religiosidade popular traduzidas pelo olhar do fotógrafo mineiro, radicado na Bahia, Ricardo Prado. Ele registra pequenos agricultores de vida simples, balbuciando preces, fazendo seus pedidos e agradecimentos, seus olhares, gestos, lágrimas, luz e sombras, em uma das mais autênticas representações de fé e devoção do Brasil: a romaria de Bom Jesus da Lapa, município da região oeste da Bahia situado a 850 km de Salvador. As fotografias fazem parte da “Exposição Fé”, que esteve em cartaz recentemente no foyer do Teatro Castro Alves, em Salvador. “Busquei a manifestação espontânea e pura, o que há de mais singelo na busca individual pelo elo com a divindade, a crença no invisível”, afirma Prado. novembro 2013
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visuais
SOB O OLHAR DE
NEWTON NAVARRO Antonio Nahud
Milton Vieira
Como artista, sinto-me mais um desenhista, procurando, num grafismo para muitos às vezes exagerado, representar todo o meu sentimento diante de uma figura, uma paisagem.
Pintor e desenhista de sensibilidade exata, Newton Navarro (1928-1992) nasceu em Natal, a 8 de outubro. Ícone das artes visuais do Rio Grande do Norte, seu anseio artístico começou desde cedo, aos quatro anos de idade já se divertia no chão da calçada fazendo desenhos e pintando com cores berrantes. Herdou do pai - Elpídio Soares Bilro – o desejo artístico, já que este trabalhava muito bem a madeira, o ferro e a alvenaria. Sua mãe, Celina Navarro Bilro, também tinha vocação para as artes. De admirável popularidade, a obra de Navarro tornou-se objeto de estudos em livros, teses de doutorado e dissertações de mestrado, além de ter inspirado o videodocumentário “Devaneio do Olhar”, de Elizete Vasconcelos Arantes Filha. Ele tinha o Nordeste como temática. Desenhou e pintou pescadores, rendeiras e lavadeiras. Sem esquecer o sertão, os vaqueiros e cangaceiros. “Mesmo quando pinto Dom Quixote, eu desenho um Dom Quixote vestido de vaqueiro, com traços e características do homem nordestino”, disse certa vez numa entrevista. A coragem dos seus vaqueiros é exibida na cor, no amarelo-ouro, na postura do vaqueiro ou do cavalo que ergue o pescoço desafiando o mundo. Uma coragem que Newton também teve que vestir na vida para enfrentar com sua arte o mundo. Ele fez sua travessia carregando sua obra como religião. Há quem compare o seu trabalho com o de Portinari, mas o que torna a obra de ambos parecida é a ascendência do cubismo e o engajamento regional, que cada um adotou da sua forma. No trabalho de Portinari, o nordestino é apresentado como um povo faminto, doente, que sai de sua terra em busca da cidade grande e no caminho se perde. O nordestino de Portinari é um perdedor. No trabalho de Navarro, o novembro 2013
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visuais Há quem compare o seu trabalho com o de Portinari, mas o que torna a obra de ambos parecidas é a ascendência do cubismo e o engajamento regional, que cada um adotou da sua forma.
nordestino é um povo forte, gigante, com músculos à mostra, um vencedor. Fazendo uso de técnicas como aquarela, óleo, nanquim aguada, guache, bico de pena e outros materiais - como borra de café e chá -, Newton Navarro desenvolveu, a partir do grafismo, a ideia de expressão, movimento e ritmo. Pintor figurativo, acolheu o abstracionismo como forma de arte, abusando da cor, do traço anatômico. Os seus traços, aparentemente agressivos, são suavizados com o uso das cores. Isso distinguia Navarro dos outros artistas, não o situando em nenhuma escola de pintura, apenas num grafismo íntegro e constante. Quando desenhava, observava cada passo do seu objeto e ficava horas e horas contemplando suas personagens, registrando na sua memória visual os movimentos, as cores, as formas, para depois esboçar e dar o acabamento final. Distante da estética acadêmica, Navarro se expressou no Modernismo com propriedade, inclusive sendo o precursor da arte moderna no Rio Grande do Norte. Natal desconhecia o movimento da Semana de Arte de 22, que só se manifestou 26 anos depois, em 1948, através da primeira exposição de Newton Navarro, na Sorveteria Cruzeiro, com mais de cinquenta trabalhos expostos, dentre os quais, “Sejamos Docemente Pornográficos” e “Os Frutos do Amor Amadurecem ao Sol”. Muitas telas chocaram a população da conservadora cidade de Natal, acostumada apenas às pinturas bucólicas do pôr- do-sol do Rio Potengi e marinhas. O que mais chama a atenção na obra de Newton Navarro, além dos traços fortes e as cores, é a simbologia adotada como forma de expressão - uma transferência da imagem para um significado abstrato. Podemos observar essa transferência 76
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em vários pontos na obra de Navarro: o mesmo sol que aparece na aquarela do vaqueiro também aparece na aquarela da salina e na plantação de algodão, um sol escaldante como é comum no Nordeste, mas um sol que não mata, nem resseca a terra, um sol que traz vida e riqueza. A cor amarela que recai na plantação de algodão, na plantação de cana, nas salinas, no cavalo, é luz solar, é também ouro. Os vaqueiros de Navarro são quase sobre-humanos, parecem gigantes, e são. Símbolo da resistência nordestina, os vaqueiros usavam o couro para quase tudo que os cercava: porta de casebres, leitos, cordas, cantil, alforje, mochila, bainhas de faca e até as roupas com que enfrentavam a caatinga. Newton Navarro viveu a efervescência do Modernismo em Recife, na década de 1940, ao lado de artistas como Lula Cardoso Aires, Reinaldo Fonseca e Cícero Dias, que na época havia voltado de Paris e estava revolucionando a província com sua pintura abstracionista. Nas primeiras obras de Newton percebe-se um exercício de assimilação da linguagem do Modernismo. Seus primeiros estudos feitos em Recife retratam bem essa influência. Ao voltar para sua cidade natal, deu vazão à sua criatividade. Não só pintando e desenhando, como também atuando como dramaturgo, poeta e romancista. Certa vez, confessou; “Como artista, sinto-me mais um desenhista, procurando, num grafismo para muitos às vezes exagerado, representar todo o meu sentimento diante de uma figura, uma paisagem”. Claro que existem inúmeras maneiras de narrar e compreender o mundo, entretanto, as narrativas da arte são um privilégio. Newton narrou Natal como nenhum outro artista. Ele construiu, desenhou, pintou, escreveu mapas da cidade, com elementos fundamentais: a alma, a energia da vida.
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1- Tocador de Rabeca (1982) 2- Violeiro (1981) 3- Vaqueiro com Boiada (1985) 4- Touro Bravo na Caatinga (1985) 5- Prece na Caatinga (s.d) 6- Vaqueiro (1969) 7- Cangaceiro (1982) 8- Salinas (1985)
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Abrindo as portas Texto: Luís da Câmara Cascudo
Natal nasceu cidade. Nunca foi arrabalde, vila, aglomeração. Nasceu no dia do nascimento de Cristo, daí o seu nome. Tem uma história simples, porque foi mais uma designação política ao seu nascimento do que uma necessidade topográfica. Assim, tem uma história simples e emocional. A sua paisagem garante a imutabilidade do afeto. De um lado, o rio perene; do outro, a cinta dos morros verdes que até 1915 eram completamente desertos. Na minha meninice, Natal era uma cidade de 30 mil habitantes, iluminada por 90 candeeiros de querosene, sem transportes, dividida em dois grandes bairros: a Cidade Alta e a Cidade Baixa, ou seja, a Cidade Alta e a Ribeira. Os habitantes da Cidade Alta eram os xarias, os moradores da Cidade Baixa eram canguleiros. Eu sou canguleiro. Como ainda pertenço ao século XIX, sou testemunha do desenvolvimento muito
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rápido da cidade, especialmente depois de 1930, quando foi chamada “Cais da Europa”. Natal era o ponto mais perto do continente europeu, daí a necessidade militar de defendê-la. Povoou-se de soldados, marinheiros e aviadores. [...] Mas em 1911 já tinha luz elétrica, telefone, bondes elétricos e oito bondes puxados a burro. [...] Natal. Chamo-a Noiva do Sol, cidade sem tempestades. Cidade clara e simpática. Monteiro Lobato me dizia: “Sua felicidade é ter nascido numa cidade pequena, que cresceu com você, e daí o seu amor”. Quem nasce numa cidade grande, como o Rio de Janeiro, Paris, Londres, Berlim, não pode ter uma recordação como quem tem numa cidade pequena. Os lugares onde dancei, hoje são arranha-céus. O lugar mais alto de Natal, o
ponto mais alto no meu tempo, era a Torre da Matriz, onde eu via o alvissareiro com as bandeirinhas azul e vermelha avisando a vinda dos navios do Norte e do Sul. Natal, Noiva do Sol, minha cidade querida, deu-me o que sempre esperei: a tranquilidade do espírito, a paz do coração, o amor pelas coisas humildes do mundo, no meio das quais sempre vivi. Por amor à cidade, eu nada quis ser. Nem mesmo senador, como Getúlio Vargas me queria fazer. Nem Reitor da Universidade de Brasília, como Juscelino Kubistchek pensava. Fiquei em Natal, só, pobre e feliz. Sou o que Diogenes da Cunha Lima me chamou: um brasileiro feliz. Fonte: Nossa Cidade Natal - Crônicas. Natal: Edição Prefeitura da Cidade do Natal, 1984.
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